Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-209-4301-4
Opinião: ★★★☆☆
Prefácio e tradução: Wilson Lousada
Páginas: 624
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Sinopse: Livro autobiográfico publicado
após a morte do autor, As confissões de Jean-Jacques Rousseau podem ser
lidas como um autêntico romance, resumindo a riqueza de uma personalidade que
buscou compreender a vida pelo exercício da escrita, da filosofia e da
educação. Na narrativa de sua trajetória, Rousseau considera tanto a
perspectiva do homem quanto a do pensador, revelando o contexto em que surgiram
diversas de suas teorias — o que acabou por tornar esta obra, dentre toda a sua
produção, aquela que permanece mais viva através dos tempos. A presente edição
tem tradução e prefácio do poeta e crítico literário Wilson Lousada.
“Senti
antes de pensar; é o destino da humanidade.”
“A
tirania de meu patrão acabou por tornar insuportável o trabalho que eu teria
amado e por dar-me hábitos maus que teria odiado, tais como a mentira, a
preguiça e o roubo. Nada me ensinou melhor a diferença que há entre a
dependência filial e a escravatura servil do que a lembrança das modificações
que esta época produziu em mim. De natural tímido e vergonhoso, nunca senti
maior aversão por um defeito do que pelo descaramento; porém tinha gozado uma
liberdade honesta, que somente fora restrita por graus até aquela época e que
desaparecera de todo. Fora ousado em casa de meu pai, livre em casa de M.
Lambercier, discreto em casa de meu tio; tornei-me medroso em casa de meu
patrão e desde então fui uma criança perdida. Acostumado, na maneira de viver,
a uma igualdade perfeita com meus superiores, a não conhecer um prazer que não
estivesse a meu alcance, a não ver um prato do qual não tivesse a minha parte,
a não ter um desejo que não o dissesse, a pôr nos lábios, enfim, tudo o que ia
em meu coração: que julguem o que foi feito de mim numa casa em que não ousava
abrir a boca, onde era preciso sair da mesa antes de terminar a refeição e do
quarto imediatamente, quando nada mais tinha a fazer ali; onde, sempre preso ao
trabalho, só via motivos de prazer para os outros e de privações para mim; onde
a imagem da liberdade do patrão e dos companheiros aumentava o peso de minha
sujeição; onde, nas disputas sobre coisas que eu sabia melhor, não ousava abrir
a boca; enfim, onde a menor coisa que eu via tornava-se para meu coração um
objeto de cobiça, unicamente porque vivia privado de tudo. Adeus desafogo,
alegria, saídas felizes que antes, quando em falta, tão frequentemente me
tinham feito escapar ao castigo. Não posso lembrar-me sem rir de que uma noite,
em casa de meu pai, sendo condenado por alguma travessura a ir deitar-me sem
ceia e passando pela cozinha com o meu triste pedaço de pão, vi e senti o
cheiro do assado que dava voltas no espeto. Estavam ao redor do fogo: era
preciso que, ao passar, eu cumprimentasse todos. Quando, terminada a volta,
olhei com o rabo aquele assado que estava com uma cara tão boa e que cheirava
tão bem, não pude deixar de cumprimentá-lo também e de dizer-lhe em tom que causava
dó: Adeus, assado. Este dito ingênuo pareceu tão engraçado que me deixaram
ficar para a ceia. Talvez tal observação fosse igualmente feliz em casa de meu
patrão, porém o certo é que não me teria vindo aos lábios ou que não teria
ousado fazê-la.
Eis como
aprendi a cobiçar em silêncio, a esconder-me, a dissimular, a mentir e
finalmente a roubar; ideia que até então não tinha tido e da qual não pude,
desde então, ficar bem curado. A cobiça e a impotência levam sempre a isso. É
por isso que os lacaios são marotos e é por isso que todos os aprendizes devem
sê-lo: mas quando as condições são iguais e sem injustiças, quando tudo o que
veem está ao seu alcance, estes últimos perdem, ao crescer, essa inclinação
vergonhosa. Não tendo tido a mesma vantagem, não pude tirar o mesmo proveito.
Quase
sempre são os bons sentimentos mal dirigidos que fazem com que as crianças deem
o primeiro passo para o mal.”
“A
lisonja, ou melhor, a condescendência, não é sempre um defeito; mais
constantemente é uma virtude, principalmente nas pessoas jovens. A bondade com
que um homem nos trata faz com que nos apeguemos a ele; não é para iludi-lo que
cedemos ante seus argumentos, é para não entristecê-lo, para não pagar o bem
com o mal.”
“Antes
de ir mais adiante, devo ao leitor minhas desculpas ou uma justificação por
tantos detalhes insignificantes sobre os quais entrei e sobre os que encetarei
em seguida e que nada têm de interessante a seus olhos. Na tarefa que a mim
mesmo me impus, de mostrar-me tal como sou ao público, é preciso que de mim
nada fique mal explicado ou escondido; é preciso que incessantemente me
mantenha debaixo de seus olhos; que ele me siga em todos os erros de meu
coração, em todos os recantos de minha vida; que ele não me perca de vista um
só instante, de medo que, encontrando em minha narrativa a menor lacuna, a
menor falha, e a si mesmo perguntando que fez ele durante esse tempo?, não me
acuse de não ter querido dizer tudo. Com minhas confissões já dou bastante
pasto à malignidade dos homens para dar-lhes mais ainda com meu silêncio.”
“O
sofisma que me perdeu é o mesmo da maioria dos homens que se queixam de não ter
forças quando já é tarde para usá-las. A virtude só nos é custosa por culpa
nossa; e se quiséssemos ser sempre prudentes, raramente teríamos necessidade de
sermos virtuosos. Mas as inclinações fáceis de domar nos levam sem resistência;
cedemos a tentações ligeiras cujo perigo desprezamos. Insensivelmente caímos em
situações perigosas, das quais poderíamos facilmente nos precatar, porém das
quais não podemos mais sair sem esforços heroicos que nos metem medo; e
finalmente caímos no abismo, dizendo a Deus: Por que me fizestes tão fraco de
vontade? Porém, a nosso pesar, ele responde à nossa consciência: Fiz-te fraco
demais para saíres do abismo porque te fiz forte demais para não caíres nele.”
“Meu pouco êxito junto às mulheres veio sempre do fato de amá-las
demais.”
“Minha
estadia em casa de madame Vercellis tinha favorecido algumas relações que eu
mantinha na esperança de que viessem a ser úteis. Entre outras eu ia ver, de
vez em quando, um abade saboiano chamado M. Gaime, preceptor dos filhos do
conde de Mellarède. Ele era ainda jovem e pouco relacionado, mas cheio de bom
senso, probidade, luzes e um dos mais honestos homens que conheci. Não me auxiliou
em nada quanto ao objetivo que me levara à sua casa, não tinha muitas amizades
para poder colocar-me; porém perto dele tirei proveitos que me foram muito mais
preciosos durante a vida toda: as lições de moral sã e as máximas da perfeita
razão. Na sucessiva ordem de meus pendores e minhas ideias, sempre tinha estado
ou alto demais ou baixo demais, Aquiles ou Theresite,
ora herói, ora patife. M. Gaime tratou de pôr-me no devido lugar e de
mostrar-me tal como eu era sem censurar-me nem desencorajar-me. Falou-me muito
generosamente sobre meu gênio e minhas qualidades: mas acrescentou que via
surgirem obstáculos que me impediriam de tirar partido delas; de modo que
deviam, segundo ele, servir-me muito mais como expedientes para viver sem
fortuna do que degraus para alcançá-la. Fez-me um verdadeiro quadro da vida
humana, sobre a qual eu só tinha falsas ideias; mostrou-me como, com uma sorte
adversa, o homem prudente sempre pode alcançar a felicidade e correr sempre a
favor do vento que para ela sopra; como não há verdadeira felicidade sem
prudência e como esta pertence a todas as condições. Diminuiu bastante a minha
admiração pela grandeza provando-me que aqueles que dominam os outros não eram
nem mais sábios nem mais felizes do que estes. Disse-me uma coisa que sempre me
volta à memória: é que se cada homem pudesse ler no coração dos outros, veria
que há muito mais pessoas que querem descer do que as que querem subir. Tal
reflexão, cuja franqueza fere e que nada tem de exagerado, foi-me muito útil no
decurso de minha vida, obrigando-me a manter-me em meu lugar tranquilamente.
Deu-me as primeiras ideias sinceras sobre a virtude, que meu gênio orgulhoso só
me deixava ver em seus excessos. Fez-me sentir que o entusiasmo pelas virtudes
sublimes era pouco usado na sociedade; que quem muito se eleva está sujeito às
quedas; que a continuidade de pequenos deveres sempre bem cumpridos não pedia
menos força do que as ações heroicas; que delas se tirava partido melhor para a
honra e para a felicidade; e que valia infinitamente mais ter sempre a estima
dos homens do que, de vez em quando, sua admiração.”
“Ousaria
dizê-lo, quem só sente o amor sente o que há de mais doce na vida. Conheço um
outro sentimento, menos impetuoso talvez, porém mil vezes mais delicioso, que
algumas vezes se junta ao amor e que frequentemente vem separado. Esse
sentimento não é, tão pouco, a simples amizade: é mais voluptuoso, mais terno:
não creio que possa ser experimentado por pessoas do mesmo sexo; pelo menos fui
amigo como poucos o foram e não o experimentei jamais perto de nenhum homem.
Essa afirmativa não é clara, porém tornar-se-á compreensível mais adiante: os
sentimentos não se descrevem senão por seus efeitos.”
“Não
sentia toda a força de meu apego por ela senão quando não a via. Quando a tinha
sob os olhos, ficava contente apenas; contudo minha inquietação em sua ausência
era quase dolorosa. A necessidade de viver com ela me dava crises de
enternecimento que muitas vezes iam até as lágrimas. Recordar-me-ei sempre de
que, num dia santo, enquanto ela assistia às vésperas, fui passear fora da
cidade, o coração cheio de sua imagem e com o desejo ardente de passar meus
dias junto dela. Tinha bastante compreensão para ver que, no momento presente,
isso não era possível e que a felicidade que eu tanto saboreava seria curta.
Isso emprestava a meus devaneios uma tristeza que nada tinha, no entanto, de
sombria e que uma esperança lisonjeira temperava. O toque dos sinos, que sempre
me afligiu singularmente, o canto dos pássaros, a beleza do dia, a doçura da
paisagem, as casas esparsas e campestres nas quais, em imaginação, construía
nossa vida em comum; tudo isso me dá uma impressão tão viva, terna, triste e
comovedora que me vejo, como em êxtase, transportado para aquele tempo feliz e
para aquela estadia encantadora em que meu coração, possuindo toda a felicidade
que podia agradar-lhe, saboreava-a em inexprimíveis arrebatamentos, sem mesmo
sonhar com a voluptuosidade dos sentidos. Não me lembro de jamais me ter
lançado no futuro com mais força e ilusão do que naquele tempo; e o que mais me
comoveu na lembrança de tais devaneios, quando se realizaram, foi ter
encontrado as coisas tais quais eu as havia imaginado. Se algum dia o sonho de
um homem acordado teve o ar duma visão profética, foi aquele, certamente. Só me
iludi em sua imaginária duração, na qual os dias, os anos e a vida inteira passavam-se
em inalterável tranquilidade; ao passo que, na realidade, tudo aquilo não durou
mais do que um momento. Ai de mim! A felicidade mais duradoura que gozei foi em
sonho: a realização desse sonho foi quase que imediatamente seguida do
despertar.”
“Duas
coisas quase inadaptáveis uniram-se em mim sem que eu pudesse imaginar como: um
temperamento muito ardente, paixões vivas, impetuosas e ideias de nascimento
lento, embaraçadas e que nunca se apresentavam senão depois de um
acontecimento. Dir-se-ia que meu coração e meu espírito não pertenciam ao mesmo
indivíduo. O sentimento, mais rápido do que o relâmpago, vem ocupar minha alma;
porém, em vez de iluminá-la, queima-me e me ofusca. Sinto tudo e nada vejo. Sou
arrebatado, mas estúpido; é preciso que esteja com sangue-frio para pensar. O
que há de surpreendente é que, no entanto, tenho bastante tato, penetração,
argúcia mesmo, contanto que tenham paciência comigo: faço excelentes improvisos
com vagar, mas instado, jamais fiz alguma coisa ou disse algo que valesse a
pena. Manteria uma conversa bem agradável na carruagem de posta, assim como
dizem que os espanhóis jogam xadrez. Quando li uma passagem sobre o duque de
Saboia que voltou, quando já a caminho, para gritar: À sua garganta,
comerciante de Paris, eu digo: Eis-me aqui.
Esta
lentidão no pensar junto a essa vivacidade no sentir, não a experimento somente
durante a conversa, experimento-a mesmo quando só e quando trabalho. As ideias
arrumam-se em minha cabeça com a mais incrível dificuldade: circulam por ali
surdamente, fermentam até me comoverem, abafarem-me, darem-me palpitações; e,
no meio de toda essa emoção, nada vejo nitidamente, não saberia escrever uma
palavra só: é preciso que eu a espere. Insensivelmente essa grande agitação se
acalma, o caos se aclara, cada coisa vem pôr-se no devido lugar, mas lentamente
e após uma perturbação longa e difícil. Já assistiu alguma vez à ópera na
Itália? Nas mudanças de cenário reina, naqueles grandes teatros, uma desordem
desagradável e que dura muito tempo; todas as decorações são misturadas, por
todo lado há uma agitação que aborrece, julga-se que tudo vai ficar de pernas
para o ar; entretanto, aos poucos, tudo se arranja, não falta nada e ficamos
surpresos quando vemos suceder a um tumulto tão longo um espetáculo
deslumbrante. Esta manobra é quase igual à que tem lugar em meu cérebro quando
quero escrever. Se eu tivesse sabido esperar antes, e depois descrever em toda
sua beleza as coisas que me são inspiradas desse modo, poucos autores me teriam
sobrepujado.
Daí
vem a extrema dificuldade que encontro para escrever. Meus manuscritos
riscados, borrados, confusos, indecifráveis atestam o trabalho que me dão. Não
há um só que não me tivesse sido preciso transcrever quatro ou cinco vezes
antes de entregá-lo à prensa. Nunca consegui fazer alguma coisa com a pena na
mão e diante da mesa com o papel; é durante os passeios, no meio dos rochedos e
dos bosques; é à noite em meu leito e durante as minhas insônias que tomo nota
em meu cérebro: podem calcular com que lentidão, principalmente para um homem
absolutamente desprovido de memória verbal e que a vida inteira jamais
conseguiu decorar seis versos. Há períodos que virei e revirei na cabeça
durante cinco ou seis noites antes que estivesse em estado de ser posto no
papel. Daí decorre ainda que me saio melhor nas obras que exigem trabalho do
que naquelas que querem ser feitas com certa ligeireza, como as cartas, gênero
cujo tom jamais consegui alcançar e que me causam suplícios quando as escrevo.
Não escrevo cartas, mesmo sobre os menores assuntos, que não me custem horas de
fadiga, ou, se quero escrever logo o que se me apresenta, não sei nem começar
nem acabar; minha carta é um palavrório longo e confuso; mal entendê-la-ão
quando a lerem.
Não
só custo a interpretar as ideias como até custo a concebê-las. Estudei os
homens e me julgo um observador muito bom: entretanto não sei ver nada do que
tenho sob os olhos; não vejo bem o que me trazem à lembrança e só tenho
inspiração em minhas recordações. Em tudo o que dizem, em tudo o que fazem, em
tudo o que se passa em minha presença, não sinto nada, não possuo penetração
para nada. A exterioridade é tudo o que me impressiona. Todavia tudo aquilo me
volta à lembrança, recordo-me do lugar, da ocasião, do tom, do olhar, gesto,
circunstância: nada me escapa. Então, sobre aquilo que fazem ou dizem, encontro
o que pensaram e dificilmente me engano.
Tão
pouco senhor de minha sagacidade, mesmo quando só, julguem pois o que devo ser
em conversa quando, para falar convenientemente, e preciso pensar em mil coisas
ao mesmo tempo e sucessivamente. Só o ter que me lembrar de tantas
conveniências, das quais tenho certeza de esquecer uma pelo menos, é o bastante
para intimidar-me. Nem mesmo compreendo como ousam falar num círculo de
pessoas; porque ante cada palavra é preciso passar em revista todos os que se
acham ali; é preciso conhecer todos os gênios, saber-lhes as histórias para ter
certeza de não dizer nada que possa ofender alguém. Neste ponto os que vivem em
sociedade têm uma grande vantagem: sabendo melhor o que é preciso calar, têm
mais certeza do que dizem; entretanto ainda assim lhes escapam frequentemente
muitas grosserias. Julguem aquele que repentinamente cai ali: quase que lhe é
impossível falar impunemente um minuto. Nos encontros a sós há um outro
inconveniente que acho pior, a necessidade de falar seguidamente: quando lhe
falam, é preciso responder e se não lhe dizem nada, é preciso animar a
conversa. Esse constrangimento insuportável foi o que me fez desgostar da sociedade.
Não vejo vexame mais terrível do que a obrigação de falar logo e sempre. Não
sei se isso se relaciona com a minha mortal aversão por tudo o que é sujeição:
mas basta que seja absolutamente preciso que eu fale para que, infalivelmente,
eu diga uma tolice.
O que
há de mais fatal é que em vez de calar-me quando nada tenho a dizer é quando,
para desobrigar-me depressa, sinto o prurido de querer falar. Apresso-me a
balbuciar logo palavras sem ideias, muito feliz quando nada significam.
Querendo vencer ou esconder minha inépcia, raramente deixo de mostrá-la. Entre
os mil exemplos que poderia citar, tomo um que não é de minha juventude e sim
duma época em que, depois de ter vivido muitos anos em sociedade, teria tempo
de aprender a ser desembaraçado e conveniente, caso isso fosse possível. Uma
noite estava eu entre duas senhoras e um homem cujo nome posso citar: era o
senhor duque de Gontaut. Não havia mais ninguém na sala e eu me esforçava para
contribuir com algumas palavras, Deus sabe quais!, para uma conversa entre
quatro pessoas, sendo que as outras três não tinham, certamente, necessidade de
meu suplemento. A dona da casa mandou vir um opiato que ela estava tomando para
o estômago duas vezes por dia. A outra senhora, vendo-a fazer uma careta, disse
rindo, É o opiato de Tronchin. Não creio, respondeu ela no mesmo tom da
primeira. Acho que um pouco mais vale do que o outro, acrescentou galantemente
o espirituoso Rousseau. Todos ficaram interditos: não houve o menor comentário
nem o menor sorriso e no momento seguinte a conversa tomou novo rumo. Para com
outra pessoa, a estupidez teria podido ser engraçada, mas dirigida a uma mulher
muito amável para não ter feito com que falassem um pouco a seu respeito e que,
certamente, eu não tinha desejo de ofender, era uma saída terrível e creio que
as duas testemunhas, homem e mulher, bem custaram a reter a gargalhada. Eis os
rasgos de espírito que me escapam por querer falar sem encontrar nada para
dizer. Dificilmente esqueceria esse, porque, além de ser em si mesmo muito
notável, tenho a convicção de que teve consequências que nos fazem lembrar
frequentemente.
Julgo
que com isso há bastante para fazê-los compreender como, não sendo um tolo,
passei no entanto, muitas vezes, como por sê-lo, mesmo em casa de pessoas
capazes de julgar bem: tanto mais infeliz pelo fato de minha fisionomia e meus
olhos prometerem muito e tal espera frustrada tornar mais chocante a minha
estupidez. Esse detalhe, que uma particularidade fez nascer, não é inútil para
o que vou relatar depois. Contém a chave de muitas coisas extraordinárias que
me viram fazer e que atribuem a um humor selvagem que absolutamente não tenho.
Teria gostado da sociedade como qualquer outro se não tivesse certeza de ali
mostrar-me, não só para desvantagem minha, como bem diferente do que sou. O
partido que tomei de escrever e esconder-me é precisamente o que me convém.
Comigo presente, jamais teriam sabido o que eu valia, nem mesmo o teriam
suposto e foi o que aconteceu com madame Dupin, apesar de ser mulher talentosa,
e apesar de eu ter vivido em sua casa vários anos: ela me disse muitas vezes
isso mesmo depois daquele tempo. De resto, tudo isso sofre certas exceções a
que me referirei mais tarde.3”
3 Em
breve veremos uma dessas exceções na narrativa que fará no livro IV, quando,
admitido à audiência do senado de Berne com o superior de um convento a quem
ele servia de intérprete, viu-se obrigado a expor, imediatamente e sem ter
podido preparar-se, o objeto e os motivos de sua missão. Sabe-se, além disso,
que em sociedade, quando o assunto da conversa lhe interessava vivamente, e
principalmente quando se julgava nas boas graças daqueles que o escutavam,
falava com tanta facilidade quanto graça e energia, segundo a natureza do
assunto. Mas a esse respeito não há testemunho mais notável do que o de Dusaulx
ao descrever um jantar que teve lugar em sua casa, em 1771, e no qual Rousseau
se encontrava com outras pessoas a quem via pela primeira vez. “A não ser
algumas rusgas, como foi amável naquele dia! Ora divertido, ora sublime. Antes
do jantar, contou-nos algumas das histórias mais inocentes consignadas em suas
Confissões. Muitos dentre nós já as conheciam, porém soube dar-lhes uma feição
nova e ainda mais vida do que em seu livro. Ouso dizer que não se conhecia a si
mesmo quando pretendia que a natureza lhe havia recusado o dom da palavra: sem
dúvida, a solidão tinha feito aquele talento concentrar-se em si mesmo; porém
nos momentos de abandono e quando nada o perturbava, saíam-lhe as palavras como
uma torrente impetuosa a que nada resiste.” (De minhas relações com J. J.
Rousseau.)
“Não
é quando uma ação vil acaba de ser cometida que ela nos atormenta, é quando,
muito depois, nos lembramos dela; porque tal lembrança nunca se extingue.”
“O
que eu mais lastimo nos detalhes de minha vida cuja lembrança perdi é de não
ter feito diários de minhas viagens. Nunca pensei tanto, vivi tanto, existi
tanto, fui tanto eu mesmo, se ouso dizer assim, do que naquelas que fiz só e a
pé. A marcha tem qualquer coisa que anima e aviva as ideias: quase não posso
pensar quando fico parado; é preciso que meu corpo esteja em movimento para
movimentar meu espírito também. A vista do campo, a sucessão de aspectos
agradáveis, o ar livre, o saudável apetite, a boa saúde que adquiro andando, a
liberdade das tavernas, o afastamento de tudo o que me faz sentir minha
dependência, de tudo o que me lembra minha situação, tudo isso liberta minha
alma, dá-me maior audácia para pensar, de qualquer modo me lança na imensidade dos
seres para combiná-los, escolhê-los, dispor deles à minha vontade, sem
constrangimento e sem receio. Como senhor, disponho de toda a natureza; meu
coração, errando de objeto em objeto, identifica-se com aqueles que o
lisonjeiam, cerca-se de imagens encantadoras, embebeda-se com sentimentos
deliciosos. Se, para fixá-los, divirto-me descrevendo-os em mim mesmo, que
pincelada vigorosa, que colorido fresco, que expressão enérgica lhes dou! Dizem
que encontraram tudo isso em minhas obras, embora escritas já a caminho do
declínio de minha vida. Oh! Se tivessem visto os de minha mocidade, os que fiz
durante minhas viagens, os que compus sem jamais escrevê-los!… Por que, dirão,
não os escrever? E por que escrevê-los? Responderei: por que privar-me do
encanto atual para dizer a outras pessoas o que senti? Que me importavam os
leitores, um público e a terra inteira enquanto eu planava nos céus? Ademais,
trazia comigo papel e penas? Se tivesse pensado em tudo aquilo, não me teria
vindo nada. Não previa que ia ter ideias; elas vinham quando bem entendiam e
não quando eu queria. Elas não vinham, ou vinham em multidão: oprimiam-me com
seu número e sua força. Dez volumes por dia não chegariam. Onde arranjar tempo
para escrevê-las? Ao chegar, só pensava em comer bem: ao partir, só pensava em
caminhar. Sentia que um novo paraíso me esperava à porta: só pensava em ir
procurá-lo.
Nunca
senti tão bem tudo isso senão na viagem de que estou falando. Vindo a Paris,
tinha me limitado às ideias relativas ao que ia fazer. Lançara-me na carreira
em que ia entrar e tinha-a percorrido com glória suficiente: mas aquela
carreira não era a que meu coração desejava e os seres muito reais prejudicam
os seres imaginários. O coronel Godard e seu sobrinho não se casavam com um
herói como eu me sentia. Graças ao céu, estava agora livre de todos aqueles
obstáculos: podia, à vontade, mergulhar no país da quimera, pois só ele ficara
diante de mim. Por isso mergulhei nele tão bem que várias vezes perdi realmente
a minha rota e teria ficado muito aborrecido se seguisse mais em linha reta,
porque se sentisse que em Lião iria voltar à terra, teria preferido jamais
chegar.
Um
dia, tendo deliberado sair do caminho para ir ver um sítio que me pareceu
admirável, este me agradou tanto e dei tantas voltas que finalmente me perdi de
todo. Após várias horas de caminhadas inúteis, cansado e morrendo de sede e
fome, entrei na habitação de um camponês que não tinha bela aparência; porém
era a única que eu via pelos arredores. Julgava eu que era como em Genebra, ou
na Suíça, onde todos os habitantes, sossegadamente, estão em estado de praticar
a hospitalidade. Pedi àquele que me desse jantar pois eu lho pagaria.
Ofereceu-me leite desnatado e enorme pão de cevada, dizendo-me que era tudo o
que tinha. Bebia aquele leite com delícias e comia aquele pão, palha e tudo;
mas não era muito reparador para um homem esgotado pela fadiga. Aquele
camponês, que me examinava, julgou a veracidade de minha história pela de meu
apetite. Subitamente, depois de ter dito que via bemb
que eu era um rapaz honrado que não estava ali para vendê-lo, abriu um pequeno
alçapão ao lado da cozinha, desceu e voltou um momento depois com um bom pão
moreno de puro trigo, um presunto muito apetitoso, embora em fatias, e uma
garrafa de vinho cujo aspecto aqueceu meu coração mais do que o resto; a isso
acrescentem uma omelete bem espessa, e fiz um jantar como só um peão pode
conhecer. Quando se tratou de pagar, eis que sua inquietação e seus receios o
tomam de novo; não queria receber e afastava o dinheiro muito perturbado: e o
que havia de engraçado era que eu nem desconfiava de que tinha ele medo.
Finalmente pronunciou, estremecendo, aquelas terríveis palavras de recebedor e
de rato de adega. Deu-me a entender que escondia seu vinho por causa dos impostos,
que escondia seu pão por causa dos tributos e que seria um homem perdido se
desconfiassem que não passava fome. Tudo o que me disse a respeito desse
assunto, sobre o qual não tinha a menor ideia, causou-me uma impressão que jamais
se apagará. Foi aquele o gérmen desse ódio inextinguível que se desenvolveu
depois em meu coração contra os vexames que o povo infeliz sofre e contra seus
opressores. Aquele homem, embora com recursos, não ousava comer o pão que havia
ganhado com o suor de seu rosto e não podia evitar sua ruína senão mostrando-se
na mesma miséria que reinava ao redor dele. Saí de sua casa tão indignado como
pesaroso e deplorando a sorte daquelas lindas regiões às quais a natureza só
prodigalizou seus dons para torná-las presas de bárbaros publicanos.”
b Aparentemente eu
ainda não tinha a fisionomia que me emprestaram depois em meus retratos.
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