quinta-feira, 26 de junho de 2025

Estado e política em Marx (Parte II), de Emir Sader

Editora: Boitempo

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-7559-375-2

Páginas: 120

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Sinopse: Ver Parte I



A mercadoria, como ponto de partida da análise de Marx, desempenhará papel estratégico indispensável: sendo ao mesmo tempo forma elementar da riqueza e denúncia do conceito desta em seus limites empíricos, em sua falsa concreção, a posição da mercadoria como ponto de partida indica-nos para os dois planos em que caminhará O capital: o da estrutura lógica do capital, das leis centrais que o comandam, e o das formas históricas de que se revestem as categorias que sustentam essa estrutura. O papel primeiro da ciência consiste na distinção e tradução das formas de aparição dessas categorias, na estrutura fundamental que as gerou, já que seu lugar é possibilitado pela não coincidência entre essas formas e a essência do processo. A tradução da riqueza em mercadorias nos leva, assim, de um plano a outro, esvaziando e preenchendo o conceito de riqueza: sua vacuidade vem de sua diluição no “imenso arsenal de mercadorias”, que ao mesmo tempo lhe determina um conteúdo. Sua vida, portanto, como forma de aparição dos produtos no capitalismo, é determinada por todas as coordenadas do sistema de produção que tem na mercadoria seu definidor; a riqueza pode nos aparecer enquanto tal, autônoma, porque sintetiza, por detrás de si, na sua heteronomia em relação às categorias do capital, as leis básicas que determinam este sistema social. Aqui reside o centro motor de determinações que atrai as análises de Marx.

Obedecendo às normas traçadas nos Grundrisse, o primeiro passo procura desmistificar o “real imediato”, o “falsamente concreto”, a “totalidade viva”, para abrir campo ao objeto real e possibilitar o surgimento da ciência. Descortina-se paralelamente o plano da ideologia e o do conhecimento científico. Noções como população, nação, Estado – sintomaticamente extraídas do vocabulário das análises políticas – tornam-se inócuas como ponto de partida, porque não designam nada como mecanismo real da sociedade moderna, mas apenas dão nome a regiões desse real, compostas de maneira arbitrária. As análises de O capital são particularmente claras a esse respeito, porque distinguem as leis que comandam o processo social, dos graus de desenvolvimento histórico em que as diversas formas de sociedade se encontram.

Quando se dirige às noções elementares com o capitalismo como ponto de partida, Marx situa-se diretamente no plano das relações sociais de produção, distanciando-se da problemática política que partia das relações de homem a homem como centro e fundamento da vida social. Esse deslocamento de perspectiva obrigará a consideração da política em dois níveis dentro do marxismo: seu lugar dentro das condições estipuladas em O capital para as relações de produção capitalistas, e o papel que desempenham as formações sociais concretas, que nunca correspondem precisamente àqueles requisitos.

Contudo, em ambos os planos, a ruptura das concepções anteriores sobre o objeto da política é total. O nome – política – sobreviverá para designar a mesma preocupação com o poder na sociedade; porém, esta ganhará feições diversas, a ponto de deslocar o significado da noção de poder social. Não haverá um objeto propriamente político: são as próprias relações sociais permeadas pela estrutura de classe que determinam imediatamente a presença do político, refletindo os mecanismos do poder na sociedade, à medida que são extensões do roteiro do capital. Neste plano, o político apresenta-se sob formas similares tanto no nível da análise do modo de produção capitalista como nas suas ocorrências concretas. A extensão dos limites políticos neste último plano ocorre a partir das questões que se põem a respeito das passagens de um modo de produção a outro: insuficiência de criação das condições de acumulação primitiva, como exemplo de uma ordem de questões, e problemas de esgotamento de mercado, de outro.

Esse caráter estruturado do capitalismo como objetivo único – ainda que com ritmos distintos de desenvolvimento em seu interior – torna-se menos visível nas análises mais especificamente políticas de Marx, em que a distinção salientada entre a gênese histórica e a história contemporânea do sistema parece não vigorar. A passagem das análises econômicas para O 18 de brumário pode ser tomada como ida daquela estrutura às suas formas de existência mais imediatas, empíricas, cuja análise já não tomasse como objetivo o capitalismo enquanto sistema, mas seus modos de se representar históricos – um nível meramente aparente, seu lugar definido no plano das relações de produção.

Essa desvalorização da política parece ganhar sustentação no fato de que, se o objeto de O capital não é a Inglaterra, mas as leis centrais do capitalismo, O 18 de brumário visa à vida política francesa diretamente como preocupação. Se a determinação do objeto da política obedecesse a critérios similares aos da análise do capitalismo, ela deveria recair não sobre uma ocorrência particular da vida política burguesa, mas sobre o liberalismo – esquema proposto politicamente pela ascensão burguesa.

Entretanto, partir do liberalismo, para Marx, é um procedimento ideológico que esconde as contradições em que ele mesmo se debate: para o liberalismo, o século XVIII marca, com a sociedade burguesa, a independência dos homens em relação às formações sociais em que vivem; elas passam a se apresentar aos indivíduos “como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior”[26]. Porém, a produção, do ponto de vista do indivíduo isolado, pressupõe o mais alto grau de desenvolvimento – e integração – social já conseguido, e, portanto, a sociedade burguesa produz a um só tempo o animal político da maneira mais radical no plano do desenvolvimento social, e o indivíduo isolado, liberado dos mecanismos sociais, na sua forma de autoconsciência. O liberalismo é, assim, produto de uma estrutura social que socializa, mais do que qualquer outra anterior, o indivíduo no nível da produção, a que mais lhe possibilita uma consciência autônoma, enquanto sujeito consumidor. Na forma particular de a ideologia refletir a dissociação entre a produção coletiva e a apropriação privada dentro do capitalismo, o liberalismo não reproduz os dois membros, mas apenas o caráter privado e aparentemente arbitrário do consumo.

O liberalismo não pode, em consequência, servir de ponto de partida, porque ele não testemunha as duas faces do mesmo fenômeno; sua capacidade explicativa depende da exteriorização dos mecanismos sociais, para que os indivíduos surjam independentes. Ele se torna impotente para dar conta dos dois momentos simultâneos do processo, porque de sua separação ele haure sua vida, seu significado. Partir do liberalismo é, portanto, já se instalar no campo cindido dessas duas figuras, deixando pra trás os fundamentos do mecanismo que as gerou enquanto fisionomias de um mesmo corpo. Como todo conceito ideológico, ele diz algo sobre o processo real, sem conseguir dizer nada sobre si mesmo; descreve situações reais, sem acompanhar sua constituição e seu desenvolvimento.

As características que definem o capitalismo – modo de produção fundado na troca – não nos autorizam a estipular uma forma política definida que o acompanhe. A instauração das relações de produção capitalistas solicita determinadas condições exteriores a essas relações, arroladas por Marx como os fatores da “acumulação primitiva do capital”; mas essas formas de apropriação não econômicas são solicitadas apenas como condições de instalação do sistema, não se incorporando ao seu mecanismo normal de reprodução. O mesmo ocorre com a unificação da sociedade política em torno do Estado. Uma vez dadas as condições estipuladas por Marx em O capital para o funcionamento do capitalismo, essas condições políticas não necessitariam mais intervir, uma vez que foi aberto o espaço para a produção e reprodução das relações capitalistas.

As análises políticas concretas enfrentam, entretanto, um objeto distinto: as conjunturas particulares nunca reproduzem as condições estritas de um único modo de produção, compondo sempre uma conjunção de alguns deles. Isso faz com que as observações feitas acima sirvam apenas como fio condutor para as análises concretas. Por exemplo: a centralização do Estado cria as condições de unificação da estrutura social que as relações capitalistas requerem. Sua intervenção posterior dependerá das condições de reprodução daquelas relações, o que é função do grau de desenvolvimento da estrutura econômica de cada país e, antes disso, da realização das condições de acumulação primitiva. As situações políticas terão, portanto, a mesma diversidade que os graus diferentes de desenvolvimento que a estrutura capitalista produz. Por isso, as análises políticas de Marx visam sempre ao Estado sob as formas de existência anômalas em relação ao liberalismo.”

[26] Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 40.

 

 

Na monarquia de julho, o Estado francês era apropriado exclusivamente por um dos setores da burguesia francesa – a aristocracia financeira. Era a forma de espoliação que acionava o capital financeiro sem obrigatoriamente se ligar à revolução das forças produtivas que definia a relação entre essa classe e o Estado. “A monarquia de julho nada mais foi que uma companhia de ações destinada à exploração do tesouro nacional da França, cujos dividendos eram distribuídos entre os ministros, as câmaras, 240 mil eleitores e seus acólitos. Luís Filipe era o diretor dessa companhia – era Robert Macaire sentado no trono”[28]. A essa apropriação do Estado só poderia corresponder uma forma de governo monárquico, já que não se produzem as condições materiais que possibilitem ao Estado a pretensão de se colocar à cabeça da burguesia como um todo. Representa o setor financeiro tomado isoladamente: sua forma de existência assegura-se apenas através da reprodução dos juros do capital, que, neste caso, sequer implica um desenvolvimento deste, mas um entesouramento nas mãos do Estado, através da elevação dos impostos. O Estado funcionava como catalisador da poupança social, que revestia em função do capital financeiro; se a função de acionador do mecanismo de acumulação de capital era desempenhada pelo Estado, o resultado dessa acumulação era enviesado para bolsos que não arrastavam na sua expansão outros setores da sociedade. Os privilégios políticos abertos da monarquia representavam esse caráter do Estado. A burguesia industrial – e, consequentemente, os setores do comércio – constituíam-se na oposição oficial, que se tornava muito mais aguda quanto maior era o domínio que detinha sobre a classe operária. Esta, a pequena burguesia e os camponeses estavam fora do poder político.

Esse era o quadro imediatamente anterior à Revolução de 1848. Embora as relações de produção capitalistas estivessem já em grau avançado de desenvolvimento, a ponto de os interesses da burguesia industrial francesa já carregarem atrás de si, por extensão, os interesses dos demais setores da sociedade, a apropriação do Estado não correspondia ainda a essa situação. A dependência crescente do Estado em relação à aristocracia financeira, pelos empréstimos que esta lhe fazia, a juros altos, criava um mecanismo socialmente caro – agravado pelo seu papel improdutivo – que era arcado por todas as demais classes sociais, cada uma à sua forma, material e ideologicamente. “Comércio, indústria, agricultura, navegação e os interesses dos burgueses industriais estavam forçosamente ameaçados e prejudicados sob esse sistema.”[29] O setor industrial, responsável mais direto pela necessidade que leva a burguesia a passar por representante geral da sociedade, pelo incremento da produção, tornava-se apêndice do capital financeiro, inversamente às solicitações do capital. A crise política não tinha suas raízes na questão formal de que havia uma distância entre o grau do desenvolvimento das relações de produção e a apropriação do Estado, ou de que apenas uma classe social exercia essa apropriação. A questão de fundo, que a cada momento determina a existência de uma crise política, advém do caráter da classe social que se apropria do Estado, em oposição ou, ao menos, em dissonância com as relações de produção vigentes. Assim, se nessa situação uma crise política interna à sociedade capitalista se esboçava, a apropriação mais tarde do Estado em nome dos camponeses tornou-se compatível com a dominação burguesa, devido à impossibilidade de um programa específico que atendesse aos interesses dessa camada social. Por sua vez, se a apropriação do Estado se faz pela classe operária, não só esse programa se torna possível como exclusivo em relação aos interesses burgueses em geral, colocando em xeque a sobrevivência das relações de produção capitalistas.

Nessa conjuntura concreta, as dificuldades que o domínio da aristocracia financeira colocava à expansão da revolução burguesa arrastavam para a oposição ao governo a maioria da população. Estavam dadas as condições para uma aliança geral contra o governo. Entretanto, o caráter dessas condições era heterogêneo em relação aos setores que compunham tal aliança. O segredo dessa unidade era exclusivamente negativo: sua polarização era dada por um eixo exterior – a monarquia de julho – visado de forma diferente por cada setor social, cujo móvel era distinto. Da parte dos burgueses industriais, tratava-se dos seus “interesses ameaçados”, pois “comércio, indústria, agricultura, navegação” estavam em constante perigo; através da ameaça a essas atividades, o governo tinha igualmente contra si os operários, na luta em defesa de seus empregos. A participação da pequena burguesia fazia-se menos em torno de interesses materiais comuns do que pela “indignação” com o saque que se praticava ao Estado; finalmente, a massa do povo francês, o campesinato, rebelava-se contra os altos impostos, particularmente contra aquele que era a espinha dorsal da arrecadação estatal: o imposto sobre o vinho.

Pôde-se constituir assim uma frente que possuía em comum um objetivo político imediato: a derrubada do governo, mas essa frente não se sustentava em condições econômicas comuns, para que se produzisse um programa positivo comum. Dos setores componentes dessa frente, apenas dois são classes sociais cujos interesses materiais possibilitam um programa político que torne exequível esta frente: a burguesia industrial e o operariado. A classe operária estava ainda insuficientemente organizada, e os outros setores sociais se definem pela heteronomia em relação a essas classes, de tal forma que o campo ficou livre para o acesso da burguesia industrial ao Estado. O apoio generalizado da população, somado às condições materiais propícias – praga das batatas e más colheitas de 1845 e 1846, que propiciaram elevação maior ainda do custo de vida em 1847, e a crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra, tendo como reflexo no continente uma avalanche de falências da burguesia e dos pequenos comerciantes – logrou a derrubada da monarquia de julho e a instalação do novo governo.

Essa distinção entre objetivos políticos comuns – responsáveis pela sua união – e interesses econômicos diversos é o ponto de partida das formas dissimuladas na aliança das classes contra a monarquia. O político aparece aqui com o papel formal de unificação, com a função ideológica dissimuladora, a respeito dos interesses de classe distintos; estes, que podem dar os limites dessa unificação, não afloram em nenhum instante, até aqui. A liderança da burguesia já se configura nesse caráter impresso ao político: o modo próprio da burguesia fazer valer seus interesses a impele à consideração abstrata do político. Porque quando combate o despotismo dos juros, combate-o em nome do capital produtivo, e não como uma forma necessária que o capital reveste.

Todas as classes sociais que se opunham à aristocracia financeira encontraram seu lugar no governo de fevereiro. Este se propunha como finalidade uma reforma eleitoral, que propiciasse uma comunidade política sólida, ampliando o número de cidadãos que se incorporam à vida política da sociedade. A república, “cuja definição cada partido reservava para si mesmo”[30], era a forma de governo unânime solicitada, em oposição à monarquia. A política, que abriu os caminhos da cristalização do poder burguês através da apropriação do Estado pela burguesia industrial, começa, a partir de agora, a ver seu conteúdo reinterpretado à luz desse poder consolidado. A república tinha um papel definido enquanto bandeira de ascensão burguesa: livrar o capital dos entraves estatais à sua circulação mais produtiva, criando-se as condições políticas para uma economia de mercado. A república adaptava-se a esse projeto, porque conseguia galvanizar as outras classes sociais aos “interesses gerais da sociedade”. O político, assim, os unia, mas sob uma forma enganosa, já que introduzia uma comunidade econômica definida, o domínio do grande capital. “Em nenhum período, portanto, encontramos uma mistura mais confusa de frases altissonantes e efetiva incerteza e imperícia, aspirações mais entusiastas de inovação e um domínio mais arraigado da velha rotina, maior harmonia em toda a sociedade e mais profunda discordância entre seus elementos.”[31] Os conflitos ganham o caráter de oposição entre a “harmonia”, política, e a “discordância”, econômica, porque, como já vimos, aquele plano conseguiu ser revestido, pela liderança burguesa, do papel ideológico de “representar a Nação”.

A desaparição da monarquia constitucional marcava também a desaparição do Estado como um poder arbitrariamente oposto à sociedade. Ele ressurge dentro do papel que a revolução burguesa lhe atribuiu: unificador de todas as classes sociais. Sua identificação com a Nação, entendida como a soma dos cidadãos, unificados formalmente em torno do Estado, é o critério indispensável para o desempenho daquele papel. O sufrágio universal é o instrumento que legitima essa função.

A base sob a qual se torna possível essa unificação começou com a oposição unânime à aristocracia financeira. Mas o caráter formal dessa unificação advém do fato de ela ter de se abstrair das relações de produção. À burguesia industrial não interessava, e não interessa nunca, a marginalização da aristocracia financeira; para ela trata-se apenas de lhe atribuir um papel acessório em relação aos investimentos industriais. À classe operária, por viver apenas à custa do seu trabalho, a aristocracia financeira se lhe afigura como uma outra forma de lumpemproletariado, como um setor totalmente improdutivo socialmente, o que a leva a se opor à sua simples existência. O interesse da pequena burguesia e do campesinato estava ligado sempre à “ordem” e à estabilidade, tanto política quanto econômica, devido à sua importância em um plano e outro. Havia, assim, justaposição de interesses comuns, voltados para a queda da monarquia. Porém, o caráter que a burguesia imprime, por sua natureza de agente do capital, levou-a a colocar, em condições de transformar esse interesse comum (gemeinsame) em interesse geral (allgemeine)[32] esses objetivos que, episodicamente, uniam politicamente as classes sociais, em objetivos permanentes e interesses da Nação. O governo instalado pela República de Fevereiro, fruto real de uma “transação entre as diversas classes”, aparecia aos olhos dessas mesmas classes como representante real dos interesses gerais do país.

Essa tradução política que generalizava interesses distintos era fundamental para cobrir a lacuna entre a composição heterogênea do governo e as tarefas econômicas solicitadas pelo grau de desenvolvimento das relações de produção na França da época. Neste nível, tratava-se de “completar a dominação da burguesia”, o que pedia uma entente entre todos os seus setores, inclusive a aristocracia financeira. O instrumento formalizador da Revolução de Fevereiro que, a um só tempo, possibilitava o cumprimento dessa tarefa, mas o fazia em nome dos interesses gerais da sociedade, era o sufrágio universal. Ao homogeneizar os indivíduos sob a forma de cidadãos, desconhecendo os papéis distintos que ocupam nas relações de produção, o sufrágio universal coloca a apropriação do Estado à mercê de critérios quantitativos. A “maioria da Nação” passa a definir os critérios dessa posse, independentemente do critério qualitativo que atribua condições maiores ou menores de desenvolvimento das forças produtivas a uma ou outra classe social. As próprias classes parecem esvair-se nesse processo.

O mesmo sufrágio universal com que Lamartine acenava para se opor aos operários que, através de barricadas, reivindicavam o direito de proclamar a república, agora coloca os proprietários nominais, que formam a maioria da França, os camponeses, como “juízes sobre o destino da França”[33]. A Revolução de Fevereiro tornou-se necessária porque o capital industrial ainda não se havia imposto totalmente nas relações de produção, mas a burguesia industrial vale-se também positivamente dessa carência, fazendo-a instrumento seu: apoia-se nos camponeses, resquício ainda não superado da estrutura feudal, para promover essa superação, através da sua ascensão ao poder político. Daí o caráter puramente transitório da soma de interesses dos dois setores, cuja tendência inevitável é o conflito; enquanto um se prende ao passado, à defesa da pequena propriedade, outro representa os desígnios do grande capital, para o qual a pequena propriedade é um momento ultrapassado.

Contudo, a ideologia da “fraternidade”, da “unidade entre as classes”, torna-se vazia apenas a partir do instante em que uma classe como proletariado revela efetivamente os conflitos políticos entre as classes, a partir de sua consciência de classe; porque inicialmente aquelas expressões não deixam de ter raízes que lhe dão fundamento: para o proletariado francês, tratava-se de lutar contra as “sobrevivências feudais”, e assim conseguir “o terreno para lutar pela sua emancipação revolucionária”, o que o levava a aliar-se às reivindicações políticas da burguesia. Essa unidade política era perdida de perspectiva à medida que o sufrágio universal dissolvia-os sob a forma de cidadãos, homogeneizados com o restante da sociedade. E, finalmente, pela passagem de um governo do domínio exclusivo da aristocracia financeira, para outro, de representação da quase totalidade das classes sociais. Tudo isso tornou possível a ideologia da fraternité: “A frase que correspondia a essa imaginária abolição das relações de classe era a fraternité, a confraternização e a fraternidade universal. Essa idílica abstração dos antagonismos de classe, essa conciliação sentimental dos interesses de classe contraditórios, esse imaginário elevar-se acima da luta de classes, essa fraternité foi, de fato, a palavra de ordem da Revolução de Fevereiro. As classes estavam separadas por um simples equívoco, e Lamartine batizou o governo provisório, a 24 de fevereiro, de “‘un gouvernement qui suspende ce malentendu terrible qui existe entre les différentes classes’ [um governo que suspende esse terrível mal-entendido que existe entre as diferentes classes]”[34].

À sua forma de existência como classe hegemônica, a burguesia faz corresponder formas políticas determinadas, conforme o estágio de desenvolvimento em que se encontre. Nesse momento em que essa hegemonia se define, a necessidade de revolucionar incessantemente as forças produtivas faz com que, politicamente, seja possível um Estado que se identifique com a nação. A forma de república parlamentar torna-se produto dessa identificação, que tem sua legitimação no sufrágio universal: sob essas condições assenta-se a fraternité.”

[28] Karl Marx, Lutas de classes na França (São Paulo, Boitempo, 2012), p. 40.

[29] Idem.

[30] Ibidem, p. 89.

[31] Idem.

[32] Cf. idem.

[33] Ibidem, p. 45.

[34] Ibidem, p. 49.

 

 

Na medida em que aumenta o Poder Executivo para garantir o afastamento do povo em relação ao governo, diminui obrigatoriamente a representação das diversas classes que se coligam no governo; aumenta sua afirmação como um todo, às expensas dos interesses de cada setor.

Bonaparte sente-se com força suficiente para substituir o ministério Barrot-Falloux, representante direto dos orleanistas e legitimistas. Essa força vem da máquina do Estado que, com seus recursos materiais, cria uma camada própria: os funcionários. Mas Bonaparte vale-se também de que a própria burguesia autolimita seu poder político, para melhor equipar o Executivo na luta de classes. “A burguesia francesa foi obrigada por seu enquadramento de classe a, por um lado, destruir as condições de vida de todo e qualquer poder parlamentar, portanto, também do seu próprio, e, por outro, tornar irresistível o Poder Executivo hostil a ela”[44]. A unificação política da sociedade em torno do Estado, de requisito da luta contra os privilégios feudais e introdutor da burguesia como classe hegemônica em oposição aos senhores feudais, torna-se forma burguesa de luta contra as classes assalariadas.

O móvel fundamental da burguesia revela-se ser a sua manutenção como classe, e esta se sustenta no seu poder social, no seu lugar hegemônico nas relações de produção e na sociedade como um todo. Para tanto, de um lado ela nega suas próprias reivindicações liberais, que a impulsionariam para o fortalecimento legislativo e para reformas eleitorais cada vez mais amplas. De outro, percebe que, para preservar o seu poder social intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se sua classe fosse condenada a mesma nulidade política que todas as demais classes.[45]

Ela percebe a hierarquia que se estabelece entre o poder social e o poder político; não só o seu poder social, a sua presença como classe, impõe-se à sua existência política na luta pela apropriação do Estado como a anulação do poder político se torna requisito indispensável de sobrevivência de seu poder social. Se foi seu poder social que a capacitou a almejar a posse do Estado, esta não precisa se dar sob forma direta. Se “seu poder político devia ser desmantelado”, “para preservar o seu poder social intacto”, é porque a expressão “poder político” encerra em si mesma uma contradição, já que o nível político não é mais suficientemente autônomo a ponto de determinar a existência de um poder próprio. Seu esvaziamento pela estrutura social burguesa é o próprio requisito do fortalecimento do verdadeiro poder de classe: o poder social. Foi precisamente a ascensão da burguesia ao Estado que polarizou a luta política, e solicitou esse fortalecimento do Executivo em detrimento de sua representação política. Mas como o seu poder não existe sob a forma singularizada da posse do Estado, mas é, em última instância, o poder do capital, que se difunde através da ideologia, da existência do próprio Estado, da existência da política como forma institucionalizada de relações entre os indivíduos como cidadãos e não como membros de classes etc., seu poder social aumenta quando sua representação política diminui. Porque esta também é simplesmente um momento daquele, que não define a burguesia como classe, mas vive em função de seu poder social.

Porém, para tanto, ela depende da coincidência dos interesses de outro setor social que, a cada momento, adapte o Estado às necessidades de sobrevivência do seu poder social. Enquanto o liberalismo, como ideologia adaptada às condições de uma economia de mercado, produz os setores políticos que põem em prática uma política estatal do laissez-faire – e à burguesia isso é bastante –, essa separação entre posse do Estado e poder social e político pode ser preservada. Mas, à medida que as necessidades das relações de produção burguesas solicitam maior intervenção do Estado, sua forma cada vez mais centralizada já não é assumida voluntariamente por nenhum setor social que pudesse ser representante da burguesia. A essa necessidade corresponde apenas o poder pessoal, o bonapartismo, que nega a democracia liberal e o parlamentarismo, na mesma medida em que a burguesia nega a pequena propriedade. Os dois mecanismos são paralelos porque o bonapartismo capta sua legitimidade a partir de um jogo em torno da afirmação de princípio da propriedade privada, e o seu combate de fato pela concentração do capital.”

[44] Idem, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 77.

[45] Ibidem, p. 81.

 

 

“Os momentos mais importantes dessa evolução do Estado – se considerarmos a análise de Marx sobre seu desenvolvimento na França – são:

a. A monarquia de julho representou uma apropriação privilegiada do Estado pela aristocracia financeira, possibilitando uma oposição conjugada de todas as outras classes sociais. Porém, essa oposição não é unificada, mas se faz também enquanto classes com interesses distintos, cuja unidade é dada apenas na oposição a esse governo.

b. A monarquia de julho demonstra a incapacidade da aristocracia financeira passar por representante geral da sociedade: sua forma particular de existência – os juros – sob sua forma isolada, é socialmente improdutiva, o que a impede de patrocinar os interesses de outras classes sociais.

c. A existência de uma distância entre as relações de produção capitalista, já predominantes na França, e a apropriação do Estado por um setor secundário dentro da burguesia: o capital financeiro. Dentro do capitalismo, a este é reservado um papel complementar em relação ao capital industrial, motor central de propulsão do sistema, através do mais-valor. Aquela apropriação tinha consequências no plano das relações de produção, na medida da influência direta do Estado no processo de redistribuição da renda – e do poder – na sociedade. O Estado, vítima de uma espoliação profunda, transfere-se às outras classes sociais através dos impostos crescentes.

d. Nesse tipo de governo, o Estado aparece claramente como instrumento particular de uma classe, que o coloca em oposição aos interesses da sociedade. A forma de apropriação econômica da aristocracia financeira tomada isoladamente, sob a forma da espoliação do Estado, não condiz com relações jurídicas de igualdade, pois estas pressupõem a troca de equivalentes no mercado, e aquela se dá sob forma ociosa, lateralmente ao processo produtivo. Daí terminar encontrando oposição generalizada da sociedade.

e. Essa oposição soma interesses economicamente distintos, que se conciliam em uma “harmonia aparente” no nível do político, cujo caminho é o do esvaziamento, à medida que essa coligação se instala no governo.

f. A Revolução de 1848 representa a cristalização do capitalismo na França, pela hegemonia do capital industrial que vai passar a coordenar as outras classes sociais em torno de si. Para tanto, ele vai encontrar no bonapartismo um modo de conciliar sua predominância nas relações de produção com uma forma de convivência com as outras classes sociais. Trata-se de anular o seu poder político para sobreviver como poder social, o que se torna possível porque o mecanismo de sobrevivência do capital – o mais-valor – é uma forma de exploração interna às relações de produção, o que libera o plano político da necessidade de uma dominação burguesa direta.”

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