Editora: Boitempo
Opinião: ★★★☆☆
ISBN: 978-85-7559-375-2
Páginas: 120
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Sinopse: Ver Parte
I
“A mercadoria, como ponto de partida da análise de Marx,
desempenhará papel estratégico indispensável: sendo ao mesmo tempo forma
elementar da riqueza e denúncia do conceito desta em seus limites empíricos, em
sua falsa concreção, a posição da mercadoria como ponto de partida indica-nos
para os dois planos em que caminhará O capital: o da estrutura lógica do capital, das leis centrais que o comandam, e
o das formas históricas de que se revestem as categorias que sustentam essa
estrutura. O papel primeiro da ciência consiste na distinção e tradução das formas
de aparição dessas categorias, na estrutura fundamental que as gerou, já
que seu lugar é possibilitado pela não coincidência entre essas formas e a
essência do processo. A tradução da riqueza em mercadorias nos leva, assim, de
um plano a outro, esvaziando e preenchendo o conceito de riqueza: sua
vacuidade vem de sua diluição no “imenso arsenal de mercadorias”, que ao mesmo
tempo lhe determina um conteúdo. Sua vida, portanto, como forma de aparição dos
produtos no capitalismo, é determinada por todas as coordenadas do sistema de
produção que tem na mercadoria seu definidor; a riqueza pode nos aparecer
enquanto tal, autônoma, porque sintetiza, por detrás de si, na sua heteronomia
em relação às categorias do capital, as leis básicas que determinam este
sistema social. Aqui reside o centro motor de determinações que atrai as
análises de Marx.
Obedecendo
às normas traçadas nos Grundrisse, o primeiro passo procura
desmistificar o “real imediato”, o “falsamente concreto”, a “totalidade viva”,
para abrir campo ao objeto real e possibilitar o surgimento da ciência.
Descortina-se paralelamente o plano da ideologia e o do conhecimento
científico. Noções como população, nação, Estado –
sintomaticamente extraídas do vocabulário das análises políticas – tornam-se
inócuas como ponto de partida, porque não designam nada como mecanismo real da
sociedade moderna, mas apenas dão nome a regiões desse real, compostas
de maneira arbitrária. As análises de O capital são particularmente claras a esse respeito, porque distinguem as leis
que comandam o processo social, dos graus de desenvolvimento histórico em que
as diversas formas de sociedade se encontram.
Quando
se dirige às noções elementares com o capitalismo como ponto de partida, Marx
situa-se diretamente no plano das relações sociais de produção,
distanciando-se da problemática política que partia das relações de homem a
homem como centro e fundamento da vida social. Esse deslocamento de
perspectiva obrigará a consideração da política em dois níveis dentro do marxismo:
seu lugar dentro das condições estipuladas em O capital para as relações de produção capitalistas, e o papel que desempenham as
formações sociais concretas, que nunca correspondem precisamente àqueles
requisitos.
Contudo,
em ambos os planos, a ruptura das concepções anteriores sobre o objeto da
política é total. O nome – política – sobreviverá para designar a mesma
preocupação com o poder na sociedade; porém, esta ganhará feições
diversas, a ponto de deslocar o significado da noção de poder social.
Não haverá um objeto propriamente político: são as próprias relações sociais
permeadas pela estrutura de classe que determinam imediatamente a presença do
político, refletindo os mecanismos do poder na sociedade, à medida que são extensões
do roteiro do capital. Neste plano, o político apresenta-se sob formas
similares tanto no nível da análise do modo de produção capitalista como nas
suas ocorrências concretas. A extensão dos limites políticos neste último plano
ocorre a partir das questões que se põem a respeito das passagens de um modo
de produção a outro: insuficiência de criação das condições de acumulação
primitiva, como exemplo de uma ordem de questões, e problemas de esgotamento de
mercado, de outro.
Esse
caráter estruturado do capitalismo como objetivo único – ainda que com ritmos
distintos de desenvolvimento em seu interior – torna-se menos visível nas
análises mais especificamente políticas de Marx, em que a distinção salientada
entre a gênese histórica e a história contemporânea do sistema parece não
vigorar. A passagem das análises econômicas para O 18 de brumário pode ser tomada como ida daquela
estrutura às suas formas de existência mais imediatas, empíricas, cuja análise
já não tomasse como objetivo o capitalismo enquanto sistema, mas seus modos de
se representar históricos – um nível meramente aparente, seu lugar definido no
plano das relações de produção.
Essa desvalorização
da política parece ganhar sustentação no fato de que, se o objeto de O capital não é a Inglaterra, mas as leis
centrais do capitalismo, O 18 de brumário visa à vida política francesa
diretamente como preocupação. Se a determinação do objeto da política
obedecesse a critérios similares aos da análise do capitalismo, ela deveria
recair não sobre uma ocorrência particular da vida política burguesa, mas sobre
o liberalismo – esquema proposto politicamente pela ascensão burguesa.
Entretanto,
partir do liberalismo, para Marx, é um procedimento ideológico que esconde as
contradições em que ele mesmo se debate: para o liberalismo, o século XVIII
marca, com a sociedade burguesa, a independência dos homens em relação às
formações sociais em que vivem; elas passam a se apresentar aos indivíduos
“como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior”[26]. Porém, a produção, do ponto de vista do
indivíduo isolado, pressupõe o mais alto grau de desenvolvimento – e integração
– social já conseguido, e, portanto, a sociedade burguesa produz a um só tempo
o animal político da maneira mais radical no plano do desenvolvimento
social, e o indivíduo isolado, liberado dos mecanismos sociais, na sua
forma de autoconsciência. O liberalismo é, assim, produto de uma estrutura
social que socializa, mais do que qualquer outra anterior, o indivíduo no nível
da produção, a que mais lhe possibilita uma consciência autônoma, enquanto
sujeito consumidor. Na forma particular de a ideologia refletir a dissociação
entre a produção coletiva e a apropriação privada dentro do capitalismo, o
liberalismo não reproduz os dois membros, mas apenas o caráter privado e
aparentemente arbitrário do consumo.
O
liberalismo não pode, em consequência, servir de ponto de partida, porque ele
não testemunha as duas faces do mesmo fenômeno; sua capacidade explicativa
depende da exteriorização dos mecanismos sociais, para que os indivíduos surjam
independentes. Ele se torna impotente para dar conta dos dois momentos
simultâneos do processo, porque de sua separação ele haure sua vida, seu
significado. Partir do liberalismo é, portanto, já se instalar no campo cindido
dessas duas figuras, deixando pra trás os fundamentos do mecanismo que as gerou
enquanto fisionomias de um mesmo corpo. Como todo conceito ideológico, ele diz
algo sobre o processo real, sem conseguir dizer nada sobre si mesmo; descreve
situações reais, sem acompanhar sua constituição e seu desenvolvimento.
As
características que definem o capitalismo – modo de produção fundado na troca –
não nos autorizam a estipular uma forma política definida que o acompanhe. A
instauração das relações de produção capitalistas solicita determinadas
condições exteriores a essas relações, arroladas por Marx como os fatores da
“acumulação primitiva do capital”; mas essas formas de apropriação não
econômicas são solicitadas apenas como condições de instalação do sistema, não
se incorporando ao seu mecanismo normal de reprodução. O mesmo ocorre com a
unificação da sociedade política em torno do Estado. Uma vez dadas as condições
estipuladas por Marx em O capital para o funcionamento do
capitalismo, essas condições políticas não necessitariam mais intervir, uma vez
que foi aberto o espaço para a produção e reprodução das relações capitalistas.
As
análises políticas concretas enfrentam, entretanto, um objeto distinto: as conjunturas
particulares nunca reproduzem as condições estritas de um único modo de
produção, compondo sempre uma conjunção de alguns deles. Isso faz com que as
observações feitas acima sirvam apenas como fio condutor para as análises
concretas. Por exemplo: a centralização do Estado cria as condições de
unificação da estrutura social que as relações capitalistas requerem. Sua
intervenção posterior dependerá das condições de reprodução daquelas relações,
o que é função do grau de desenvolvimento da estrutura econômica de cada país
e, antes disso, da realização das condições de acumulação primitiva. As
situações políticas terão, portanto, a mesma diversidade que os graus
diferentes de desenvolvimento que a estrutura capitalista produz. Por isso, as
análises políticas de Marx visam sempre ao Estado sob as formas de existência
anômalas em relação ao liberalismo.”
[26] Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 40.
“Na monarquia de julho, o Estado francês era apropriado exclusivamente
por um dos setores da burguesia francesa – a aristocracia financeira. Era a
forma de espoliação que acionava o capital financeiro sem obrigatoriamente se
ligar à revolução das forças produtivas que definia a relação entre essa classe
e o Estado. “A monarquia de julho nada mais foi que uma companhia de ações
destinada à exploração do tesouro nacional da França, cujos dividendos eram
distribuídos entre os ministros, as câmaras, 240 mil eleitores e seus acólitos.
Luís Filipe era o diretor dessa companhia – era Robert Macaire sentado no
trono”[28]. A essa apropriação do Estado só
poderia corresponder uma forma de governo monárquico, já que não se produzem as
condições materiais que possibilitem ao Estado a pretensão de se colocar à
cabeça da burguesia como um todo. Representa o setor financeiro tomado
isoladamente: sua forma de existência assegura-se apenas através da reprodução
dos juros do capital, que, neste caso, sequer implica um desenvolvimento deste,
mas um entesouramento nas mãos do Estado, através da elevação dos impostos. O
Estado funcionava como catalisador da poupança social, que revestia em função
do capital financeiro; se a função de acionador do mecanismo de acumulação de
capital era desempenhada pelo Estado, o resultado dessa acumulação era
enviesado para bolsos que não arrastavam na sua expansão outros setores da
sociedade. Os privilégios políticos abertos da monarquia representavam esse
caráter do Estado. A burguesia industrial – e, consequentemente, os setores do
comércio – constituíam-se na oposição oficial, que se tornava muito mais aguda
quanto maior era o domínio que detinha sobre a classe operária. Esta, a pequena
burguesia e os camponeses estavam fora do poder político.
Esse
era o quadro imediatamente anterior à Revolução de 1848. Embora as relações de
produção capitalistas estivessem já em grau avançado de desenvolvimento, a
ponto de os interesses da burguesia industrial francesa já carregarem atrás de
si, por extensão, os interesses dos demais setores da sociedade, a apropriação
do Estado não correspondia ainda a essa situação. A dependência crescente do
Estado em relação à aristocracia financeira, pelos empréstimos que esta lhe
fazia, a juros altos, criava um mecanismo socialmente caro – agravado pelo seu
papel improdutivo – que era arcado por todas as demais classes sociais, cada
uma à sua forma, material e ideologicamente. “Comércio, indústria, agricultura,
navegação e os interesses dos burgueses industriais estavam forçosamente
ameaçados e prejudicados sob esse sistema.”[29] O
setor industrial, responsável mais direto pela necessidade que leva a burguesia
a passar por representante geral da sociedade, pelo incremento da produção,
tornava-se apêndice do capital financeiro, inversamente às solicitações do
capital. A crise política não tinha suas raízes na questão formal de que havia
uma distância entre o grau do desenvolvimento das relações de produção e a
apropriação do Estado, ou de que apenas uma classe social exercia essa
apropriação. A questão de fundo, que a cada momento determina a existência de
uma crise política, advém do caráter da classe social que se apropria do
Estado, em oposição ou, ao menos, em dissonância com as relações de produção
vigentes. Assim, se nessa situação uma crise política interna à sociedade
capitalista se esboçava, a apropriação mais tarde do Estado em nome dos
camponeses tornou-se compatível com a dominação burguesa, devido à
impossibilidade de um programa específico que atendesse aos interesses dessa
camada social. Por sua vez, se a apropriação do Estado se faz pela classe
operária, não só esse programa se torna possível como exclusivo em relação aos
interesses burgueses em geral, colocando em xeque a sobrevivência das relações
de produção capitalistas.
Nessa
conjuntura concreta, as dificuldades que o domínio da aristocracia financeira
colocava à expansão da revolução burguesa arrastavam para a oposição ao governo
a maioria da população. Estavam dadas as condições para uma aliança geral
contra o governo. Entretanto, o caráter dessas condições era heterogêneo em
relação aos setores que compunham tal aliança. O segredo dessa unidade era
exclusivamente negativo: sua polarização era dada por um eixo exterior – a
monarquia de julho – visado de forma diferente por cada setor social, cujo
móvel era distinto. Da parte dos burgueses industriais, tratava-se dos seus
“interesses ameaçados”, pois “comércio, indústria, agricultura, navegação”
estavam em constante perigo; através da ameaça a essas atividades, o governo
tinha igualmente contra si os operários, na luta em defesa de seus empregos. A
participação da pequena burguesia fazia-se menos em torno de interesses
materiais comuns do que pela “indignação” com o saque que se praticava ao
Estado; finalmente, a massa do povo francês, o campesinato, rebelava-se contra
os altos impostos, particularmente contra aquele que era a espinha dorsal da
arrecadação estatal: o imposto sobre o vinho.
Pôde-se
constituir assim uma frente que possuía em comum um objetivo político
imediato: a derrubada do governo, mas essa frente não se sustentava em condições
econômicas comuns, para que se produzisse um programa positivo comum. Dos
setores componentes dessa frente, apenas dois são classes sociais cujos
interesses materiais possibilitam um programa político que torne exequível esta
frente: a burguesia industrial e o operariado. A classe operária estava ainda
insuficientemente organizada, e os outros setores sociais se definem pela
heteronomia em relação a essas classes, de tal forma que o campo ficou livre
para o acesso da burguesia industrial ao Estado. O apoio generalizado da população,
somado às condições materiais propícias – praga das batatas e más colheitas de
1845 e 1846, que propiciaram elevação maior ainda do custo de vida em 1847, e a
crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra, tendo como reflexo no
continente uma avalanche de falências da burguesia e dos pequenos comerciantes
– logrou a derrubada da monarquia de julho e a instalação do novo governo.
Essa
distinção entre objetivos políticos comuns – responsáveis pela sua união
– e interesses econômicos diversos é o ponto de partida das formas
dissimuladas na aliança das classes contra a monarquia. O político aparece aqui
com o papel formal de unificação, com a função ideológica dissimuladora, a
respeito dos interesses de classe distintos; estes, que podem dar os limites dessa
unificação, não afloram em nenhum instante, até aqui. A liderança da burguesia
já se configura nesse caráter impresso ao político: o modo próprio da burguesia
fazer valer seus interesses a impele à consideração abstrata do político.
Porque quando combate o despotismo dos juros, combate-o em nome do capital
produtivo, e não como uma forma necessária que o capital reveste.
Todas
as classes sociais que se opunham à aristocracia financeira encontraram seu
lugar no governo de fevereiro. Este se propunha como finalidade uma reforma
eleitoral, que propiciasse uma comunidade política sólida, ampliando o número
de cidadãos que se incorporam à vida política da sociedade. A república, “cuja
definição cada partido reservava para si mesmo”[30],
era a forma de governo unânime solicitada, em oposição à monarquia. A política,
que abriu os caminhos da cristalização do poder burguês através da apropriação
do Estado pela burguesia industrial, começa, a partir de agora, a ver seu
conteúdo reinterpretado à luz desse poder consolidado. A república tinha um
papel definido enquanto bandeira de ascensão burguesa: livrar o capital dos
entraves estatais à sua circulação mais produtiva, criando-se as condições
políticas para uma economia de mercado. A república adaptava-se a esse projeto,
porque conseguia galvanizar as outras classes sociais aos “interesses gerais da
sociedade”. O político, assim, os unia, mas sob uma forma enganosa, já que
introduzia uma comunidade econômica definida, o domínio do grande capital. “Em
nenhum período, portanto, encontramos uma mistura mais confusa de frases
altissonantes e efetiva incerteza e imperícia, aspirações mais entusiastas de
inovação e um domínio mais arraigado da velha rotina, maior harmonia em toda a
sociedade e mais profunda discordância entre seus elementos.”[31]
Os conflitos ganham o caráter de oposição entre a “harmonia”, política, e a
“discordância”, econômica, porque, como já vimos, aquele plano conseguiu ser
revestido, pela liderança burguesa, do papel ideológico de “representar a Nação”.
A
desaparição da monarquia constitucional marcava também a desaparição do Estado
como um poder arbitrariamente oposto à sociedade. Ele ressurge dentro do papel
que a revolução burguesa lhe atribuiu: unificador de todas as classes sociais.
Sua identificação com a Nação, entendida como a soma dos cidadãos,
unificados formalmente em torno do Estado, é o critério indispensável para o
desempenho daquele papel. O sufrágio universal é o instrumento que
legitima essa função.
A
base sob a qual se torna possível essa unificação começou com a oposição
unânime à aristocracia financeira. Mas o caráter formal dessa unificação advém
do fato de ela ter de se abstrair das relações de produção. À burguesia
industrial não interessava, e não interessa nunca, a marginalização da
aristocracia financeira; para ela trata-se apenas de lhe atribuir um papel
acessório em relação aos investimentos industriais. À classe operária, por
viver apenas à custa do seu trabalho, a aristocracia financeira se lhe afigura
como uma outra forma de lumpemproletariado, como um setor totalmente
improdutivo socialmente, o que a leva a se opor à sua simples existência. O
interesse da pequena burguesia e do campesinato estava ligado sempre à “ordem”
e à estabilidade, tanto política quanto econômica, devido à sua importância em
um plano e outro. Havia, assim, justaposição de interesses comuns, voltados
para a queda da monarquia. Porém, o caráter que a burguesia imprime, por sua
natureza de agente do capital, levou-a a colocar, em condições de transformar
esse interesse comum (gemeinsame) em interesse geral (allgemeine)[32] esses objetivos que, episodicamente, uniam
politicamente as classes sociais, em objetivos permanentes e interesses da
Nação. O governo instalado pela República de Fevereiro, fruto real de uma
“transação entre as diversas classes”, aparecia aos olhos dessas mesmas classes
como representante real dos interesses gerais do país.
Essa
tradução política que generalizava interesses distintos era fundamental para
cobrir a lacuna entre a composição heterogênea do governo e as tarefas
econômicas solicitadas pelo grau de desenvolvimento das relações de produção na
França da época. Neste nível, tratava-se de “completar a dominação da
burguesia”, o que pedia uma entente entre todos os seus setores, inclusive a
aristocracia financeira. O instrumento formalizador da Revolução de Fevereiro
que, a um só tempo, possibilitava o cumprimento dessa tarefa, mas o fazia em
nome dos interesses gerais da sociedade, era o sufrágio universal. Ao
homogeneizar os indivíduos sob a forma de cidadãos, desconhecendo os papéis
distintos que ocupam nas relações de produção, o sufrágio universal coloca a
apropriação do Estado à mercê de critérios quantitativos. A “maioria da
Nação” passa a definir os critérios dessa posse, independentemente do critério
qualitativo que atribua condições maiores ou menores de desenvolvimento das
forças produtivas a uma ou outra classe social. As próprias classes parecem
esvair-se nesse processo.
O
mesmo sufrágio universal com que Lamartine acenava para se opor aos operários
que, através de barricadas, reivindicavam o direito de proclamar a república,
agora coloca os proprietários nominais, que formam a maioria da França,
os camponeses, como “juízes sobre o destino da França”[33].
A Revolução de Fevereiro tornou-se necessária porque o capital industrial ainda
não se havia imposto totalmente nas relações de produção, mas a burguesia
industrial vale-se também positivamente dessa carência, fazendo-a instrumento
seu: apoia-se nos camponeses, resquício ainda não superado da estrutura feudal,
para promover essa superação, através da sua ascensão ao poder político. Daí o
caráter puramente transitório da soma de interesses dos dois setores, cuja
tendência inevitável é o conflito; enquanto um se prende ao passado, à defesa
da pequena propriedade, outro representa os desígnios do grande capital, para o
qual a pequena propriedade é um momento ultrapassado.
Contudo,
a ideologia da “fraternidade”, da “unidade entre as classes”, torna-se vazia
apenas a partir do instante em que uma classe como proletariado revela
efetivamente os conflitos políticos entre as classes, a partir de sua
consciência de classe; porque inicialmente aquelas expressões não deixam de ter
raízes que lhe dão fundamento: para o proletariado francês, tratava-se de lutar
contra as “sobrevivências feudais”, e assim conseguir “o terreno para lutar
pela sua emancipação revolucionária”, o que o levava a aliar-se às
reivindicações políticas da burguesia. Essa unidade política era perdida de
perspectiva à medida que o sufrágio universal dissolvia-os sob a forma de
cidadãos, homogeneizados com o restante da sociedade. E, finalmente, pela
passagem de um governo do domínio exclusivo da aristocracia financeira, para
outro, de representação da quase totalidade das classes sociais. Tudo isso
tornou possível a ideologia da fraternité: “A frase que correspondia a
essa imaginária abolição das relações de classe era a fraternité, a
confraternização e a fraternidade universal. Essa idílica abstração dos
antagonismos de classe, essa conciliação sentimental dos interesses de classe
contraditórios, esse imaginário elevar-se acima da luta de classes, essa fraternité
foi, de fato, a palavra de ordem da Revolução de Fevereiro. As classes estavam
separadas por um simples equívoco, e Lamartine batizou o governo
provisório, a 24 de fevereiro, de “‘un gouvernement qui suspende ce
malentendu terrible qui existe entre les différentes classes’ [um governo
que suspende esse terrível mal-entendido que existe entre as diferentes classes]”[34].
À sua
forma de existência como classe hegemônica, a burguesia faz corresponder formas
políticas determinadas, conforme o estágio de desenvolvimento em que se
encontre. Nesse momento em que essa hegemonia se define, a necessidade de
revolucionar incessantemente as forças produtivas faz com que, politicamente,
seja possível um Estado que se identifique com a nação. A forma de república
parlamentar torna-se produto dessa identificação, que tem sua legitimação
no sufrágio universal: sob essas condições assenta-se a fraternité.”
[28] Karl Marx, Lutas
de classes na França (São Paulo, Boitempo, 2012), p. 40.
[29] Idem.
[30] Ibidem, p. 89.
[31] Idem.
[32] Cf. idem.
[33] Ibidem, p. 45.
[34] Ibidem, p. 49.
“Na medida em que aumenta o Poder Executivo para garantir o afastamento
do povo em relação ao governo, diminui obrigatoriamente a representação das
diversas classes que se coligam no governo; aumenta sua afirmação como um todo,
às expensas dos interesses de cada setor.
Bonaparte
sente-se com força suficiente para substituir o ministério Barrot-Falloux,
representante direto dos orleanistas e legitimistas. Essa força vem da máquina
do Estado que, com seus recursos materiais, cria uma camada própria: os
funcionários. Mas Bonaparte vale-se também de que a própria burguesia
autolimita seu poder político, para melhor equipar o Executivo na luta de
classes. “A burguesia francesa foi obrigada por seu enquadramento de classe a,
por um lado, destruir as condições de vida de todo e qualquer poder
parlamentar, portanto, também do seu próprio, e, por outro, tornar irresistível
o Poder Executivo hostil a ela”[44]. A unificação
política da sociedade em torno do Estado, de requisito da luta contra os
privilégios feudais e introdutor da burguesia como classe hegemônica em
oposição aos senhores feudais, torna-se forma burguesa de luta contra as
classes assalariadas.
O
móvel fundamental da burguesia revela-se ser a sua manutenção como classe, e
esta se sustenta no seu poder social, no seu lugar hegemônico nas relações de produção
e na sociedade como um todo. Para tanto, de um lado ela nega suas próprias
reivindicações liberais, que a impulsionariam para o fortalecimento legislativo
e para reformas eleitorais cada vez mais amplas. De outro, percebe que, para
preservar o seu poder social intacto, o seu poder político devia ser
desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as
demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e
a ordem se sua classe fosse condenada a mesma nulidade política que todas as
demais classes.[45]
Ela
percebe a hierarquia que se estabelece entre o poder social e o poder político;
não só o seu poder social, a sua presença como classe, impõe-se à sua
existência política na luta pela apropriação do Estado como a anulação do poder
político se torna requisito indispensável de sobrevivência de seu poder social.
Se foi seu poder social que a capacitou a almejar a posse do Estado, esta não
precisa se dar sob forma direta. Se “seu poder político devia ser
desmantelado”, “para preservar o seu poder social intacto”, é porque a
expressão “poder político” encerra em si mesma uma contradição, já que o nível
político não é mais suficientemente autônomo a ponto de determinar a existência
de um poder próprio. Seu esvaziamento pela estrutura social burguesa é o
próprio requisito do fortalecimento do verdadeiro poder de classe: o poder
social. Foi precisamente a ascensão da burguesia ao Estado que polarizou a
luta política, e solicitou esse fortalecimento do Executivo em detrimento de
sua representação política. Mas como o seu poder não existe sob a forma
singularizada da posse do Estado, mas é, em última instância, o poder do
capital, que se difunde através da ideologia, da existência do próprio Estado,
da existência da política como forma institucionalizada de relações entre os
indivíduos como cidadãos e não como membros de classes etc., seu poder social
aumenta quando sua representação política diminui. Porque esta também é
simplesmente um momento daquele, que não define a burguesia como classe, mas
vive em função de seu poder social.
Porém,
para tanto, ela depende da coincidência dos interesses de outro setor social
que, a cada momento, adapte o Estado às necessidades de sobrevivência do seu
poder social. Enquanto o liberalismo, como ideologia adaptada às condições de
uma economia de mercado, produz os setores políticos que põem em prática uma
política estatal do laissez-faire – e à burguesia isso é bastante –,
essa separação entre posse do Estado e poder social e político pode ser
preservada. Mas, à medida que as necessidades das relações de produção
burguesas solicitam maior intervenção do Estado, sua forma cada vez mais
centralizada já não é assumida voluntariamente por nenhum setor social que
pudesse ser representante da burguesia. A essa necessidade corresponde
apenas o poder pessoal, o bonapartismo, que nega a democracia liberal e o
parlamentarismo, na mesma medida em que a burguesia nega a pequena propriedade.
Os dois mecanismos são paralelos porque o bonapartismo capta sua legitimidade a
partir de um jogo em torno da afirmação de princípio da propriedade privada, e
o seu combate de fato pela concentração do capital.”
[44] Idem, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 77.
[45]
Ibidem, p. 81.
“Os
momentos mais importantes dessa evolução do Estado – se considerarmos a análise
de Marx sobre seu desenvolvimento na França – são:
a. A monarquia
de julho representou uma apropriação privilegiada do Estado pela aristocracia
financeira, possibilitando uma oposição conjugada de todas as outras classes
sociais. Porém, essa oposição não é unificada, mas se faz também enquanto
classes com interesses distintos, cuja unidade é dada apenas na oposição a esse
governo.
b. A
monarquia de julho demonstra a incapacidade da aristocracia financeira passar
por representante geral da sociedade: sua forma particular de existência – os
juros – sob sua forma isolada, é socialmente improdutiva, o que a impede de
patrocinar os interesses de outras classes sociais.
c. A
existência de uma distância entre as relações de produção capitalista, já
predominantes na França, e a apropriação do Estado por um setor secundário
dentro da burguesia: o capital financeiro. Dentro do capitalismo, a este é
reservado um papel complementar em relação ao capital industrial, motor central
de propulsão do sistema, através do mais-valor. Aquela apropriação tinha
consequências no plano das relações de produção, na medida da influência direta
do Estado no processo de redistribuição da renda – e do poder – na sociedade. O
Estado, vítima de uma espoliação profunda, transfere-se às outras classes
sociais através dos impostos crescentes.
d.
Nesse tipo de governo, o Estado aparece claramente como instrumento particular
de uma classe, que o coloca em oposição aos interesses da sociedade. A forma de
apropriação econômica da aristocracia financeira tomada isoladamente, sob a
forma da espoliação do Estado, não condiz com relações jurídicas de igualdade,
pois estas pressupõem a troca de equivalentes no mercado, e aquela se dá sob
forma ociosa, lateralmente ao processo produtivo. Daí terminar encontrando
oposição generalizada da sociedade.
e.
Essa oposição soma interesses economicamente distintos, que se conciliam em uma
“harmonia aparente” no nível do político, cujo caminho é o do esvaziamento, à
medida que essa coligação se instala no governo.
f. A
Revolução de 1848 representa a cristalização do capitalismo na França, pela
hegemonia do capital industrial que vai passar a coordenar as outras classes
sociais em torno de si. Para tanto, ele vai encontrar no bonapartismo um modo
de conciliar sua predominância nas relações de produção com uma forma de convivência
com as outras classes sociais. Trata-se de anular o seu poder político para
sobreviver como poder social, o que se torna possível porque o mecanismo de
sobrevivência do capital – o mais-valor – é uma forma de exploração interna às
relações de produção, o que libera o plano político da necessidade de uma
dominação burguesa direta.”
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