Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-209-4301-4
Opinião: ★★★☆☆
Prefácio e tradução: Wilson Lousada
Páginas: 624
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Sinopse: Ver Parte
I
“É
uma coisa muito singular que minha imaginação nunca se mostre muito
agradavelmente senão quando minha situação é a menos agradável possível e que,
ao contrário, é menos sorridente quando tudo ri ao redor de mim. Minha má
cabeça não pode sujeitar-se às coisas. Ela não saberia embelezar, ela quer
criar. Os objetos reais ali se reproduzem mais ou menos como são; ela só sabe
ornar os objetos imaginários. Se quero descrever a primavera, é preciso que
esteja no inverno; se quero escrever sobre uma bela paisagem, é preciso que
esteja cercado por muros; e disse cem vezes que se algum dia fosse metido na
Bastilha, ali faria um quadro da liberdade.”
“Enquanto, assim dividido entre o trabalho, o prazer e a
instrução, eu vivia no mais doce repouso, a Europa não estava tão tranquila
quanto eu. A França e o imperador acabavam de declarar-se guerra: o rei da
Sardenha tinha se metido na querela e o exército francês manobrava no Piemonte
para entrar no ducado de Milão. Passou uma coluna por Chambéri e entre outras o
regimento de Champagne, cujo coronel era o senhor duque de la Trimouille, ao
qual fui apresentado, e que, me prometendo muitas coisas, seguramente jamais
tornou a pensar em mim. Nosso jardinzinho ficava precisamente no alto do bairro
pelo qual entravam as tropas e eu me apaixonei pelo resultado dessa guerra como
se ela muito me interessasse. Até aí não havia pensado em saber dos negócios
políticos; e pus-me então a ler os jornais pela primeira vez, mas com tanta
parcialidade pela França que meu coração batia de alegria diante de suas
menores vantagens e suas derrotas me afligiam como se me atingissem
pessoalmente. Se tal capricho fosse passageiro, nem me daria ao trabalho de
falar nele; porém enraizou-se de tal modo em meu coração, sem razão nenhuma,
que quando, em Paris, tomei atitude de antidéspota e republicano feroz, sentia
a despeito de mim mesmo, uma predileção secreta por aquela mesma nação que
achava servil e por aquele governo que eu fingia criticar. O que havia de
engraçado era que me envergonhava duma simpatia tão contrária às minhas máximas
e não ousava confessá-la a ninguém; censurava os franceses por seus defeitos
enquanto meu coração sangrava mais do que o deles. Sou, seguramente, o único
que, vivendo num país que o tratava bem e que eu adorava, se revestiu ali mesmo
de um falso ar de desprezo. Finalmente tal simpatia foi tão desinteressada de
minha parte, tão forte, tão constante, tão invencível que, mesmo depois de ter
saído do reino, depois que o governo, os magistrados, os autores me perseguiram
à vontade, depois que se tornou moda cumular-me de injustiças e ultrajes, não
pude curar-me de minha loucura. Amo-os a despeito de mim mesmo embora me
maltratem.
Durante
muito tempo procurei a razão dessa parcialidade e não pude encontrá-la a não
ser na ocasião em que a vi nascer. Uma crescente paixão pela literatura
francesa prendia-me aos livros franceses, aos autores desses livros e ao país
desses autores. No momento exato em que desfilavam sob meus olhos os soldados
franceses, eu lia os grandes capitães de Brantôme. Tinha a cabeça cheia dos
Clisson, Bayard, Lautrec, Coligny, Montmorency, la Trimouille e afeiçoava-me a
seus descendentes como aos herdeiros de seus méritos e sua coragem. A cada
regimento que passava, julgava rever aquelas famosas tropas negras que outrora
haviam feito tantas proezas no Piemonte. Finalmente aplicava ao que via as
ideias que bebia naqueles livros: minhas leituras contínuas, e sempre tiradas
da mesma nação, nutriam minha afeição por ela e deram-me uma paixão cega que
coisa nenhuma conseguiu ultrapassar. Tive ocasião depois, em minhas viagens, de
observar que essa impressão não era particularmente minha e que agindo mais ou
menos em toda terra, na parte da nação que gostava de ler e que cultivava as
letras, ela equilibrava o ódio geral que inspira o ar superior dos franceses.
Os romances, mais do que os homens, fazem com que as mulheres de todos os
países se apeguem à França; suas obras-primas dramáticas prendem a juventude
aos seus teatros. A celebridade de Paris para ali atrai multidões de
estrangeiros que, quando podem, voltam entusiasmados. Finalmente o excelente
gosto de sua literatura submete-lhe todos os espíritos cultos; e na guerra tão
infeliz de que estão saindo, vi seus autores e seus filósofos sustentarem a
glória do nome francês, glória que fora empanada por seus guerreiros.”
“Segundo
minha opinião, a ociosidade não é menor flagelo na sociedade do que a solidão.
Nada restringe mais o espírito, nada engendra mais insignificâncias, mais
mexericos, mais malícia, amofinações, mentiras, que ficarmos eternamente fechados
num quarto, tendo como única ocupação a necessidade de falarmos
continuadamente. Quando todos estão ocupados, só falamos quando há alguma coisa
a dizer; mas quando nada fazemos é absolutamente preciso tagarelar sempre; e
eis de todos os constrangimentos o mais incômodo e o mais perigoso. Ouso mesmo
ir mais longe e mantenho que para tornarmos um círculo verdadeiramente
agradável, é preciso não só que cada qual faça alguma coisa, como que seja algo
que exija um pouco de atenção. Um trabalho de dar nós, é o mesmo que não fazer
nada; e precisamos tantos cuidados para entreter uma mulher que faz um trabalho
de nós como aquele que fica de braços cruzados. Mas quando ela borda, é
diferente: ocupa-se o bastante para não notar os intervalos de silêncio. O que há
de chocante, de ridículo é ver, durante esse tempo, uma dúzia de magrelas
levantar-se, assentar-se, ir, vir, fazer piruetas sobre os calcanhares, revirar
duzentas vezes as estatuetas da chaminé e fatigar a imaginação para manter um
inesgotável fluxo de palavras: bela ocupação! Essas pessoas, façam o que façam,
sempre serão pesadas aos outros e a si mesmas. Quando estava em Motiers ia
fazer redes em casa de minhas vizinhas; quando frequentava a sociedade, sempre
tinha que trazer no bolso um bilboquê e ficava jogando todo o tempo para
dispensar-me de falar quando nada tinha a dizer. Se todos fizessem o mesmo, os
homens seriam menos maus, seu trato seria mais seguro e, penso, mais agradável.
Enfim que os engraçados riam se quiserem, mas sustento que a única moral à
altura do século presente é a moral do bilboquê.”
“Gozar
a vida!, será uma sorte talhada para o homem? Ah!, se algum dia, um só em minha
vida, tivesse gozado em sua plenitude todas as delícias do amor, não creio que
minha frágil existência pudesse suportar: morreria durante o feito.”
“Se
há na vida sentimento delicioso, é o que experimentamos ao sermos útil uns aos
outros.”
““Em
geral, os que creem imaginam Deus como eles mesmos são: os bons o julgam bom,
os maus o julgam mau; os devotos, biliosos e cheios de ódio, só veem o inferno
porque desejariam maldizer todo o mundo; as almas doces e amantes quase não
creem no inferno.”
“A
verdadeira felicidade não se descreve, sente-se e se sente tanto mais quanto
menos se pode descrevê-la, porque não é o resultado de uma reunião de fatos e
sim dum estado permanente.”
“Nada
demonstra melhor as verdadeiras inclinações dum homem do que a qualidade de
suas amizades.”
“Nunca houve para mim um meio-termo
entre tudo e nada.”
“Sempre
o disse e senti, a verdadeira alegria não se descreve.”
“Enquanto
eu filosofava sobre os deveres do homem, um acontecimento veio obrigar-me a
refletir mais sobre os meus. Thérèse engravidou pela terceira vez. Sincero
demais para comigo mesmo, intimamente muito altivo para querer desmentir meus
princípios com minhas ações, pus-me a examinar o destino de meus filhos e as
minhas relações com Thérèse, sob as leis da natureza, da justiça e da razão, e
sob as daquela religião pura, sã, eterna como seu autor, que os homens
mancharam, fingindo querer purificá-la e da qual só conseguiram fazer, por meio
de suas fórmulas, uma religião de palavras, visto como pouco custa prescrever o
impossível quando nos dispensamos de pô-lo em prática.
Se eu me
enganava em meus resultados, nada é mais surpreendente do que a segurança com
que me entregava. Se eu fosse desses homens maus de nascença, surdos à doce voz
da natureza, no peito dos quais jamais germina o verdadeiro sentimento de
justiça e de humanidade, aquela dureza seria muito simples; mas aquele calor de
coração, aquela viva sensibilidade, aquela facilidade de entregar-me à amizade,
aquela força com que as amizades me subjugam, aquele cruel desgosto quando me é
preciso rompê-las, aquela bondade inata para com os meus semelhantes, aquele
ardente amor ao grandioso, ao verdadeiro, ao belo, ao justo; aquela aversão por
toda espécie de mal, aquela impossibilidade de odiar, de aborrecer, e mesmo de
desejar mal; aquela ternura, aquela emoção doce e viva que experimento ao ver
tudo o que é virtuoso, generoso, amável: tudo isto poderá harmonizar-se na
mesma alma com a depravação que faz calcar aos pés, sem escrúpulos, o mais doce
dos deveres? Não, sinto-o e digo-o em voz alta, não é possível. Nunca, num só
instante de sua vida, Jean-Jacques pode ser um homem sem sentimentos, sem entranhas,
um pai desnaturado. Pude enganar-me, porém não ficar empedernido. Se expuser
minhas razões, direi demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos
outros: não quero expor os jovens que me possam ler a que se deixem arrastar
pelos mesmos erros. Contentar-me-ei em dizer que foram tais, que ao entregar
meus filhos à educação pública, por não poder educá-los eu mesmo, destinando-os
a ser operários e camponeses em vez de aventureiros e cavalheiros de indústria,
julguei agir como cidadão e como pai, e considerava-me como um membro da
república de Platão. Mais de uma vez, desde então, os gemidos de meu coração me
disseram que me havia enganado; mas, longe de minha razão me dizer o mesmo,
frequentemente bendisse o céu por tê-los resguardado desse modo do destino do
pai e daquele que os ameaçava quando me visse obrigado a abandoná-los. Se os
tivesse deixado nas mãos de madame d’Épinay ou nas de madame de Luxembourg,
que, por amizade, por generosidade, ou por qualquer outro motivo, deles
quiseram se encarregar mais tarde, teriam sido os meus filhos mais felizes,
teriam sido educados como homens honrados, pelo menos? Ignoro-o, mas tenho
certeza de que os levariam a odiar, talvez até a trair seus pais: cem vezes
mais valera que não os tivesse conhecido.
Meu
terceiro filho foi, portanto, posto na Roda, assim como os primeiros, e o mesmo
aconteceu com os outros dois que se seguiram, pois foram cinco ao todo os
filhos que tive. Tal arranjo me pareceu tão bom, tão sensato, tão legítimo, que
se não me gabei abertamente, foi apenas por consideração a Thérèse; porém
disse-o a todos aqueles a quem havia confessado nossas ligações: disse-o a
Diderot, a Grimm; falei sobre ele, mais tarde, com madame d’Épinay, e depois
ainda a madame de Luxembourg, e isso livremente, francamente, sem nenhuma
espécie de necessidade, e podendo facilmente esconder o fato a todo mundo; pois
la Gouin era uma mulher honesta, muito discreta e com a qual contava
perfeitamente. O único de meus amigos com quem tive necessidade de me abrir foi
com o médico Thierry, que cuidou da minha pobre tia num dos partos em que
passou bem mal. Numa palavra, não fiz nenhum mistério de minha conduta, não só
porque nunca soube esconder nada de meus amigos, como porque, na verdade, nada
via de mal no que fazia. Bem pesadas as coisas, escolhi o melhor para os meus
filhos, ou pelo menos aquilo que julgava ser o melhor. Teria querido mais
ainda: preferia ter sido educado e criado como eles o foram.
Enquanto
fazia desse modo as minhas confidências, madame le Vasseur também as fazia por
seu lado, porém com objetivos menos desinteressados. Eu as havia levado, a ela
e a filha, à casa de madame Dupin que, por amizade a mim, tinha tido mil
bondades para com elas. A mãe pô-la ao corrente do segredo da filha. Madame Dupin,
que é boa e generosa, e a quem ela não dizia quanto, apesar da modicidade de
meus recursos, eu me esforçava para prover a tudo, procurava, por seu lado,
diminuir as necessidades com uma liberalidade que, por ordem de madame le
Vasseur, Thérèse sempre me ocultou durante minha estadia em Paris, e cuja
confissão só me veio a fazer na Ermitage, depois de vários desafogos de
coração. Eu não sabia que madame Dupin, que nunca me deixou perceber qualquer
coisa, estivesse tão ao par de tudo; também ignoro se madame de Chenonceaux,
sua nora, o sabia; mas madame de Francueil, sua enteada, não o ignorava e não
pôde calar-se. No ano seguinte tocou-me no assunto, quando eu já havia deixado
sua casa. Isso me forçou a escrever-lhe uma carta, que encontrarão em meus papéis,
e na qual exponho as razões que podia dar sem comprometer madame le Vasseur e
sua família; pois os mais fortes determinantes daí partiam, e calei-os.2
Tenho
plena confiança na discrição de madame Dupin e na amizade de madame de
Chenonceaux; tinha-a na de madame de Francueil, que além disso morreu muito
antes que meu segredo fosse divulgado. Só poderia ter sido espalhado pelas
mesmas pessoas a quem eu o havia confiado, e só o foi efetivamente depois de
minha ruptura com elas. São julgados só por esta ação: sem querer desculpar-me
da reprovação que mereço, prefiro ser apontado como culpado a receber a
acusação que a perversidade deles merece. Minha culpa é grande, mas é um erro:
negligenciei meus deveres, mas o desejo de prejudicar não entrou em meu
coração, e as entranhas paternas não saberiam falar poderosamente pelos filhos
que nunca viram: mas trair a confiança da amizade, violar o mais santo de todos
os pactos, publicar os segredos vertidos em nosso seio, desonrando por prazer o
amigo que enganamos e que nos respeita ainda ao nos deixar, não são faltas
apenas, são baixezas morais e torpezas.3
Prometi-lhes
a minha confissão e não minha justificação, por isso ponho ponto final no
assunto. Cabe-me não faltar à verdade, ao leitor cabe ser justo. Não lhe
pedirei nada mais.”
2 Essas
razões, as mais determinantes, que só deixa entrever aqui, são positivamente
explicadas no livro IX e principalmente em suas Réveries: “O certo é que foi o
medo de um destino, para meus filhos, mil vezes pior e quase inevitável por
qualquer outro caminho, que mais influiu em minha decisão... Não estando em
condições de educá-los pessoalmente, ter-me-ia sido preciso, em minha situação,
que a mãe os criasse, o que os tornaria mimados, e educados por sua família,
que deles teria feito monstros. Ainda estremeço só em pensar.” (Oitavo
Passeio).
Já vimos
anteriormente a ideia odiosa que nos dá de todos os indivíduos dessa família; e
o que vai acrescentar em breve, o roubo da sua roupa branca, só contribuirá
para confirmá-la.
Para não
termos que voltar nessas notas a um assunto tão triste, vamos, resumindo,
colocar os leitores a par de alguns fatos que a ele se ligam, pondo-os na
altura de determinarem o grau de indulgência ou de severidade com que devem
fazer seu julgamento.
Primeiro,
pela ideia que nos dá Rousseau no seu VII livro, das pessoas com que lidava nos
primeiros tempos de sua ligação com Thérèse le Vasseur e o efeito que sobre ele
causou o modo daqueles companheiros pensarem e viverem, fica bem provado que,
se foi cinco vezes culpado por abandonar os filhos, não foram as mesmas causas
que determinaram os cinco abandonos sucessivos. No abandono dos dois primeiros,
seguiu Rousseau o exemplo dado por homens tão divertidos, tão amáveis, que via
e ouvia diariamente em casa de la Selle, sua hospedeira. Resolveu-se a fazê-lo,
nos diz ele alegremente, como aqueles amigos faziam em caso semelhante.
Quando
nasceu o terceiro, sua situação era outra. Já era autor, e autor famoso,
meditava novas obras, filosofava sobre os deveres do homem, e sua ação desta
vez, diz-nos ele mesmo, foi resultado duma resolução bem pesada e com seus
motivos. “Se dissesse minhas razões, acrescenta ele, diria demais. Já que
conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos outros.” Essas razões são fáceis de
perceber; e duvidamos que após um exemplo tão fatal, seja de temer sua sedução.
Nosso filósofo, assim que entrou para a carreira das letras, sentiu-se chamado,
ou melhor, empurrado pelo seu gênio para trabalhos e deveres de ordem mais
elevada que não se conciliavam com as preocupações importunas e vulgares
impostas a um pai sem fortuna pela necessidade de educar e criar os filhos.
Encarregando a sociedade de criá-los e educá-los no estabelecimento destinado a
isso mesmo, julgava-se ele em estado de indenizá-la amplamente com suas obras.
Se realmente Rousseau teve esta ideia, não se trata mais de saber se, falando
de modo geral, merece aprovação; sofreu a condenação a este respeito: mas, uma
vez a ideia admitida, mais valeria que houvesse no mundo cinco pessoas a mais
com o nome de Rousseau, criadas pelo próprio pai, e que Heloísa e Emílio
não tivessem sido escritas; numa palavra, resta-nos saber se Rousseau,
tendo-nos encarregado de seus filhos, nos deu efetivamente a compensação de que
se gabava.
De
resto, se Rousseau, culpado dentro do direito, se acha justificado deste modo,
apressemo-nos a observar ainda que nunca teve para consigo mesmo esta espécie
de justificação. Mesmo no auge da glória e quando recebia de todos os lados os
tributos de reconhecimento e de admiração, o remorso agitava sua alma e influía
em sua conduta privada. Os leitores verão a prova disso no livro XII e na
passagem de Emílio que vem citada em nota nessa ocasião. (N.T.)
3 No
tempo em que Rousseau morava em Paris, o ter enviado sucessivamente seus cinco
filhos à casa de caridade era, no quarteirão em que residia, fato notório. Eis
o que diz a esse respeito aquele que se encarregou, no Jornal enciclopédico, da
obra de Ginguené sobre as Confissões
na época de sua publicação, em 1791: “O acaso levara-me a morar na rua
Grenelle-Saint-Honoré, bem em frente à casa onde Rousseau ocupava o terceiro
andar. Um cabeleireiro tinha loja naquela casa e tornou-se meu fornecedor.
Sempre evitei a conversa com homens dessa profissão e, no momento de ajeitar os
cabelos, raramente deixava de me munir com um livro. Porém foi exatamente esta
precaução que me traiu. Um belo dia estava eu com um dos volumes de M.
Rousseau, e eis que o meu cabeleireiro vem me dizer que era um homem muito
conhecido, e que ele era amigo da governante, a quem muito lamentava, visto que
os filhos que tinha com o patrão eram barbaramente mandados para os
Enfants-Trouvés. Não acreditei, etc., etc.” (Extraído dos jornais de agosto de
1791.) (N.T.)
“Pouco
custa prescrever o impossível quando nos dispensamos de pô-lo em prática.”
“A impaciência de ir para
l’Ermitage não me deixou esperar pela primavera; e assim que minha casa ficou
pronta, tratei de mudar-me com grande algazarra do partido holbáquico que em
voz alta predizia que eu não suportaria três meses de solidão e que dentro em
pouco me veriam, envergonhado, voltar para viver em Paris como eles. Quanto a
mim, que há quinze anos me via fora de meu elemento, achando-me prestes a
volver ao campo, nem prestava atenção às zombarias. Desde que me lançara no
mundo, contra minha vontade, não tinha cessado de chorar as minhas queridas
Charmettes e a doce vida que ali tinha levado. Sentia-me talhado para o sossego
do campo; era-me impossível viver feliz noutros lugares: em Veneza, metido nos
negócios públicos, na dignidade duma espécie de representação, no orgulho de
projetos ambiciosos; em Paris, no turbilhão da grande sociedade, na
sensualidade das ceias, no esplendor dos espetáculos, cercado pelos fumos da
glória, os meus bosques, meus regatos, meus solitários passeios, sempre vinham
me distrair com sua lembrança, contristando-me, arrancando-me suspiros e
anseios. Todos os trabalhos a que tinha podido submeter-me, todos os projetos
de ambição que, por acessos, tinham me entusiasmado não visavam a outra coisa
senão chegar um dia àqueles benditos lazeres campestres que naquele momento eu
me gabava de alcançar. Sem ter chegado a um bem-estar fácil, que sempre achara
ser o único meio de obter o que desejava, eu julgava, devido à minha situação
especial, poder dispensá-lo e alcançar o mesmo fim por um caminho completamente
diferente. Não tinha um vintém de renda: mas tinha um nome e meus dons; era
sóbrio e fugira às necessidades mais dispendiosas, a todas as exigências da
opinião. Além disso, apesar de preguiçoso, sabia ser laborioso quando o queria
ser; e minha preguiça era mais a dum homem independente do que a dum mandrião,
pois só gostava de trabalhar quando tinha vontade de fazê-lo. O meu trabalho como
copista de música não era brilhante nem lucrativo: porém era certo. Sabiam que
eu estava satisfeito com ele por ter tido a coragem de escolhê-lo. Podia contar
que trabalho não me faltaria e que daria para eu viver, se trabalhasse bem. Os
dois mil francos que me restavam dos lucros de Devin du village e de
meus outros escritos concorriam para que vivesse sem apertos; e várias obras
que tinha me prometiam, sem nada pedir aos editores, suplementos suficientes
para trabalhar à vontade, sem me exceder e mesmo gozando os prazeres dos
passeios. Meu pequeno lar, composto de três pessoas, todas trabalhando e sendo
úteis, não era de manutenção dispendiosa. Finalmente todos os meus recursos, em
proporção aos meus desejos e minhas necessidades, razoavelmente podiam
prometer-me uma vida de felicidade duradoura naquela que meus pendores me
fizeram escolher.
Poderia
escolher somente o lado lucrativo, e em vez de sujeitar minha pena à cópia de
música, podia devotá-la inteiramente aos escritos que, com o voo que eu empreendera
e que me sentia em estado de sustentar, dariam para eu viver na abundância e
até na opulência, por pouco que tivesse querido reunir minhas habilidades de
autor ao cuidado de publicar bons livros. Todavia eu sentia que escrever para
ganhar o pão teria, bem depressa, abafado o meu gênio e matado meu talento,
pois estes residiam mais em meu coração do que na pena, e minha inspiração
nascera simplesmente dum modo de pensar elevado e altivo, única condição que
podia nutri-la. Nada de vigoroso, nada de grande pode partir duma pena
completamente venal. A necessidade, talvez a avidez, ter-me-ia feito escrever
depressa de preferência a escrever bem. Se a necessidade do sucesso não me
tivesse mergulhado nas cabalas, ter-me-ia impelido a dizer coisas que agradassem
à multidão em vez das úteis e verdadeiras; e de autor ilustre passaria a
garatujador de papel. Não, não: sempre senti que a carreira de escritor não era
profissão e só podia ser ilustre e respeitável, enquanto não fosse obrigação. É
muito difícil pensar com nobreza quando nos preocupamos em ganhar para viver.
Para poder, para ousar dizer grandes verdades, não se deve contar com o seu
sucesso. Dava meus livros ao público com a certeza de ter falado para o bem
comum, sem nenhuma preocupação pelo resto. Se a obra era refugada, tanto pior
para aqueles que dela não queriam tirar proveito. Quanto a mim, não precisava
de sua aprovação para viver. O meu trabalho de copista dava para viver se meus
livros não se vendessem; e eis precisamente o que contribuía para que eles se
vendessem.”
“Uma
vez que escondemos qualquer coisa de alguém que amamos, em breve não temos mais
escrúpulos em guardar segredo a respeito de tudo.”
“Tudo
parecia concorrer para me tirar de meu devaneio doce e louco. Não estava curado
de meu ataque quando recebi um exemplar do poema sobre a ruína de Lisboa, que supus
me ter sido enviado pelo autor. Isso me pôs na obrigação de lhe escrever e de
falar-lhe de sua obra. Fi-lo por intermédio de uma carta, que foi publicada
muito tempo depois, sem o meu consentimento, como ficará explicado mais abaixo.
Admirado por ver aquele pobre homem, acabrunhado, por assim dizer, pela
prosperidade e pela glória, declamar no entanto, e amargamente, contra as
misérias desta vida e sempre achar que tudo andava mal, formei o insensato
projeto de fazer com que ele compreendesse, provando-lhe que tudo andava bem.
Voltaire, sempre parecendo crer em Deus, realmente nunca acreditou senão no
diabo, já que seu pretenso Deus não passa dum ser malfazejo que, segundo ele,
só acha prazer em causar aborrecimentos. O absurdo desta doutrina, que salta
aos olhos, é principalmente revoltante num homem que acumulou bens de toda
espécie, que, no meio da felicidade, procurou fazer seus semelhantes
desesperarem, pintando-lhes a imagem pavorosa e cruel de todas as calamidades
que não o atingiram. Com mais autoridade do que ele para levar em conta e pesar
os males da vida humana, deles fiz um exame imparcial e provei-lhe que, de
todos aqueles males, não havia um só de que a providência não fosse desculpada
e que não tivesse sua origem mais no abuso que o homem fazia de suas
faculdades, do que na própria natureza. Naquela carta, tratei-o com todo o
respeito, com toda a consideração, toda atenção e, posso dizer, com todo
respeito possível. Entretanto, sabendo-o dono dum amor-próprio extremamente
irritável, não lhe mandei esta carta diretamente e sim enviei-a ao doutor
Tronchin, seu médico e seu amigo, com plenos poderes para entregá-la ou
destruí-la, segundo achasse mais conveniente. Tronchin entregou a carta.
Voltaire me respondeu, em poucas linhas, que, estando doente e sendo ele mesmo
o enfermeiro, adiava para outra ocasião a resposta e não disse palavra sobre a
questão. Tronchin, mandando-me a carta, juntou-lhe uma, onde deixava
transparecer pouca estima por aquele que lhe havia entregue.
Nunca
publiquei nem mesmo mostrei estas duas cartas, por não gostar de fazer
ostentação de pequenos triunfos desta espécie; porém elas estão em originais
nas minhas coleções (maço A, nos 20 e 21). Depois, Voltaire publicou
aquela resposta que me havia prometido, mas que não me endereçou diretamente. É
ela simplesmente o romance de Cândido,
sobre o qual não posso falar porque não o li.”
“Muito
tempo hesitei sobre a maneira pela qual deveria conduzir-me junto dela, como se
o verdadeiro amor deixasse bastante razão para seguir deliberações.”
“Assim
que me vi só, voltei a mim; sentia-me mais calmo depois de ter falado (me
declarado): o amor quando conhecido por aquela que o inspira se torna mais
suportável.”
“As
mulheres conhecem a arte de esconder o ódio, principalmente quando é um ódio
forte.”
“É no
campo que aprendemos a amar e a servir à humanidade: na cidade só aprendemos a
desprezá-la!”
“Se é
uma desgraça alguém enganar-se na escolha de seus amigos, não é outra menos
cruel despertar dum erro tão doce.”
“Minhas
piores culpas foram as da omissão: raramente fiz o que não devia fazer e
desgraçadamente com mais raridade ainda fiz o que eu tinha necessidade de
fazer.”
“A
princípio eu começara por interessar-me muito por madame du Deffand, a quem a
perda da visão a tornava, para mim, digna de comiseração: mas sua maneira de
viver, tão contrária à minha, cuja hora de despertar quase que era a hora em
que ela ia deitar-se; sua ilimitada paixão pelos homens espirituosos; a
importância que dava, por bem ou por mal, aos menores escritos sem importância
que apareciam; o despotismo e o arrebatamento de suas máximas; sua preocupação
excessiva pró ou contra todas as coisas, que não lhe permitia discutir as
coisas sem convulsões; seus incríveis preconceitos, sua invencível obstinação,
o extravagante entusiasmo a que a levava a perseverança em opiniões
apaixonadas; tudo isso me afastou depressa dos cuidados que desejava
prestar-lhe. Fui me afastando; ela o percebeu: foi o bastante para enfurecê-la;
e apesar de eu sentir o quanto era para recear uma mulher com tal temperamento,
preferi ainda assim expor-me ao flagelo de seu ódio do que ao de sua amizade.”
“Tinha com que me distrair em
viagem, entregando-me às reflexões que se apresentavam sobre tudo o que acabava
de me suceder; porém não era essa a disposição de meu espírito nem os desejos
de meu coração. É admirável a facilidade com que, passado o mal, por mais
recente que seja, eu o esqueço. Quanto mais a previsão me amedronta e perturba
quando o vejo desenhar-se no futuro, tanto mais sua lembrança me volta
fracamente e se extingue com facilidade assim que o mal acontece. Minha
imaginação cruel, que sem cessar se atormenta pensando nas desgraças que ainda
não existem, afasta-me da que aconteceu e me impede de recordar as que já
passaram. Contra aquilo que já não existe não há mais precauções a tomar e é
inútil preocupação. De certo modo, esgoto minha infelicidade antecipadamente:
quanto mais sofri ao prever um acontecimento, mais facilidade tenho em
esquecê-lo; ao passo que ao contrário, incessantemente ocupado com a minha
felicidade passada, dela me lembro e a rumino, por assim dizer, a ponto de
gozá-la de novo quando quero. É a esta feliz disposição, sinto, que devo nunca
ter conhecido aquele humor rancoroso que fermenta num coração vingativo para
recordação contínua das ofensas recebidas, e que se atormenta a si mesmo com
todo o mal que desejaria causar a seu inimigo. Naturalmente arrebatado,
experimentei a cólera, o próprio ódio nos primeiros impulsos; porém nunca um
desejo de vingança criou raízes dentro de meu peito. Ocupo-me muito pouco com
as ofensas para me ocupar muito com quem me ofendeu. Só penso no mal que recebi
por causa daquele que ainda posso vir a receber; e se estivesse seguro de que
não mais me faria mal, seria imediatamente esquecido aquele que mo causasse.
Pregam-nos muito o perdão às ofensas: é uma virtude muito bela sem dúvida, mas
que não ponho em uso. Ignoro se meu coração saberá dominar o ódio, pois nunca
experimentei tal sentimento e penso muito pouco em meus inimigos para ter o
mérito de perdoá-los. Não direi até que ponto, para me atormentar, eles mesmos
se atormentaram. Estou à sua mercê, têm eles todo o poder, dele usam. Só há uma
única coisa acima de seu poderio e a que eu os desafio: é, preocupando-se
comigo, obrigarem-me a preocupar-me com eles.”
“Espíritos sem cultura e sem luzes
não conhecem outro objeto de estima senão a reputação, o poder e o dinheiro,
estão até bem longe de supor que se deve algum respeito aos talentos e que há
certa desonra em ultrajá-los.”
“Sempre
gostei apaixonadamente da água e ao vê-la fico num devaneio delicioso, apesar
de ser sempre sem objetivo. Nunca deixei, logo ao despertar, quando o tempo
estava bonito, de correr para a colina para aspirar o ar saudável e fresco da
manhã e para descansar os olhos nas tranquilas águas daquele lago que com seus
rios e montanhas encantavam a minha vista. Não descubro homenagem mais digna à
Divindade do que aquela muda admiração excitada pela contemplação de suas obras
e que não se exprime por ações. Compreendo por que os que moram em cidades, e
só veem paredes, ruas e crimes, têm pouca fé; porém não posso compreender por
que os camponeses, e principalmente os que vivem solitários, podem deixar de
tê-la. Pois suas almas extasiadas não se elevam cem vezes por dia ao Autor das
maravilhas que têm debaixo dos olhos?”
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