sexta-feira, 13 de junho de 2025

As confissões (Parte II), de Jean-Jacques Rousseau

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-209-4301-4

Opinião: ★★★☆☆

Prefácio e tradução: Wilson Lousada

Páginas: 624

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Sinopse: Ver Parte I



“É uma coisa muito singular que minha imaginação nunca se mostre muito agradavelmente senão quando minha situação é a menos agradável possível e que, ao contrário, é menos sorridente quando tudo ri ao redor de mim. Minha má cabeça não pode sujeitar-se às coisas. Ela não saberia embelezar, ela quer criar. Os objetos reais ali se reproduzem mais ou menos como são; ela só sabe ornar os objetos imaginários. Se quero descrever a primavera, é preciso que esteja no inverno; se quero escrever sobre uma bela paisagem, é preciso que esteja cercado por muros; e disse cem vezes que se algum dia fosse metido na Bastilha, ali faria um quadro da liberdade.”

 

 

“Enquanto, assim dividido entre o trabalho, o prazer e a instrução, eu vivia no mais doce repouso, a Europa não estava tão tranquila quanto eu. A França e o imperador acabavam de declarar-se guerra: o rei da Sardenha tinha se metido na querela e o exército francês manobrava no Piemonte para entrar no ducado de Milão. Passou uma coluna por Chambéri e entre outras o regimento de Champagne, cujo coronel era o senhor duque de la Trimouille, ao qual fui apresentado, e que, me prometendo muitas coisas, seguramente jamais tornou a pensar em mim. Nosso jardinzinho ficava precisamente no alto do bairro pelo qual entravam as tropas e eu me apaixonei pelo resultado dessa guerra como se ela muito me interessasse. Até aí não havia pensado em saber dos negócios políticos; e pus-me então a ler os jornais pela primeira vez, mas com tanta parcialidade pela França que meu coração batia de alegria diante de suas menores vantagens e suas derrotas me afligiam como se me atingissem pessoalmente. Se tal capricho fosse passageiro, nem me daria ao trabalho de falar nele; porém enraizou-se de tal modo em meu coração, sem razão nenhuma, que quando, em Paris, tomei atitude de antidéspota e republicano feroz, sentia a despeito de mim mesmo, uma predileção secreta por aquela mesma nação que achava servil e por aquele governo que eu fingia criticar. O que havia de engraçado era que me envergonhava duma simpatia tão contrária às minhas máximas e não ousava confessá-la a ninguém; censurava os franceses por seus defeitos enquanto meu coração sangrava mais do que o deles. Sou, seguramente, o único que, vivendo num país que o tratava bem e que eu adorava, se revestiu ali mesmo de um falso ar de desprezo. Finalmente tal simpatia foi tão desinteressada de minha parte, tão forte, tão constante, tão invencível que, mesmo depois de ter saído do reino, depois que o governo, os magistrados, os autores me perseguiram à vontade, depois que se tornou moda cumular-me de injustiças e ultrajes, não pude curar-me de minha loucura. Amo-os a despeito de mim mesmo embora me maltratem.

Durante muito tempo procurei a razão dessa parcialidade e não pude encontrá-la a não ser na ocasião em que a vi nascer. Uma crescente paixão pela literatura francesa prendia-me aos livros franceses, aos autores desses livros e ao país desses autores. No momento exato em que desfilavam sob meus olhos os soldados franceses, eu lia os grandes capitães de Brantôme. Tinha a cabeça cheia dos Clisson, Bayard, Lautrec, Coligny, Montmorency, la Trimouille e afeiçoava-me a seus descendentes como aos herdeiros de seus méritos e sua coragem. A cada regimento que passava, julgava rever aquelas famosas tropas negras que outrora haviam feito tantas proezas no Piemonte. Finalmente aplicava ao que via as ideias que bebia naqueles livros: minhas leituras contínuas, e sempre tiradas da mesma nação, nutriam minha afeição por ela e deram-me uma paixão cega que coisa nenhuma conseguiu ultrapassar. Tive ocasião depois, em minhas viagens, de observar que essa impressão não era particularmente minha e que agindo mais ou menos em toda terra, na parte da nação que gostava de ler e que cultivava as letras, ela equilibrava o ódio geral que inspira o ar superior dos franceses. Os romances, mais do que os homens, fazem com que as mulheres de todos os países se apeguem à França; suas obras-primas dramáticas prendem a juventude aos seus teatros. A celebridade de Paris para ali atrai multidões de estrangeiros que, quando podem, voltam entusiasmados. Finalmente o excelente gosto de sua literatura submete-lhe todos os espíritos cultos; e na guerra tão infeliz de que estão saindo, vi seus autores e seus filósofos sustentarem a glória do nome francês, glória que fora empanada por seus guerreiros.”

 

 

“Segundo minha opinião, a ociosidade não é menor flagelo na sociedade do que a solidão. Nada restringe mais o espírito, nada engendra mais insignificâncias, mais mexericos, mais malícia, amofinações, mentiras, que ficarmos eternamente fechados num quarto, tendo como única ocupação a necessidade de falarmos continuadamente. Quando todos estão ocupados, só falamos quando há alguma coisa a dizer; mas quando nada fazemos é absolutamente preciso tagarelar sempre; e eis de todos os constrangimentos o mais incômodo e o mais perigoso. Ouso mesmo ir mais longe e mantenho que para tornarmos um círculo verdadeiramente agradável, é preciso não só que cada qual faça alguma coisa, como que seja algo que exija um pouco de atenção. Um trabalho de dar nós, é o mesmo que não fazer nada; e precisamos tantos cuidados para entreter uma mulher que faz um trabalho de nós como aquele que fica de braços cruzados. Mas quando ela borda, é diferente: ocupa-se o bastante para não notar os intervalos de silêncio. O que há de chocante, de ridículo é ver, durante esse tempo, uma dúzia de magrelas levantar-se, assentar-se, ir, vir, fazer piruetas sobre os calcanhares, revirar duzentas vezes as estatuetas da chaminé e fatigar a imaginação para manter um inesgotável fluxo de palavras: bela ocupação! Essas pessoas, façam o que façam, sempre serão pesadas aos outros e a si mesmas. Quando estava em Motiers ia fazer redes em casa de minhas vizinhas; quando frequentava a sociedade, sempre tinha que trazer no bolso um bilboquê e ficava jogando todo o tempo para dispensar-me de falar quando nada tinha a dizer. Se todos fizessem o mesmo, os homens seriam menos maus, seu trato seria mais seguro e, penso, mais agradável. Enfim que os engraçados riam se quiserem, mas sustento que a única moral à altura do século presente é a moral do bilboquê.”

 

 

“Gozar a vida!, será uma sorte talhada para o homem? Ah!, se algum dia, um só em minha vida, tivesse gozado em sua plenitude todas as delícias do amor, não creio que minha frágil existência pudesse suportar: morreria durante o feito.”

 

 

“Se há na vida sentimento delicioso, é o que experimentamos ao sermos útil uns aos outros.”

 

 

““Em geral, os que creem imaginam Deus como eles mesmos são: os bons o julgam bom, os maus o julgam mau; os devotos, biliosos e cheios de ódio, só veem o inferno porque desejariam maldizer todo o mundo; as almas doces e amantes quase não creem no inferno.”

 

 

“A verdadeira felicidade não se descreve, sente-se e se sente tanto mais quanto menos se pode descrevê-la, porque não é o resultado de uma reunião de fatos e sim dum estado permanente.”

 

 

“Nada demonstra melhor as verdadeiras inclinações dum homem do que a qualidade de suas amizades.”

 

 

Nunca houve para mim um meio-termo entre tudo e nada.”

 

 

“Sempre o disse e senti, a verdadeira alegria não se descreve.”

 

 

“Enquanto eu filosofava sobre os deveres do homem, um acontecimento veio obrigar-me a refletir mais sobre os meus. Thérèse engravidou pela terceira vez. Sincero demais para comigo mesmo, intimamente muito altivo para querer desmentir meus princípios com minhas ações, pus-me a examinar o destino de meus filhos e as minhas relações com Thérèse, sob as leis da natureza, da justiça e da razão, e sob as daquela religião pura, sã, eterna como seu autor, que os homens mancharam, fingindo querer purificá-la e da qual só conseguiram fazer, por meio de suas fórmulas, uma religião de palavras, visto como pouco custa prescrever o impossível quando nos dispensamos de pô-lo em prática.

Se eu me enganava em meus resultados, nada é mais surpreendente do que a segurança com que me entregava. Se eu fosse desses homens maus de nascença, surdos à doce voz da natureza, no peito dos quais jamais germina o verdadeiro sentimento de justiça e de humanidade, aquela dureza seria muito simples; mas aquele calor de coração, aquela viva sensibilidade, aquela facilidade de entregar-me à amizade, aquela força com que as amizades me subjugam, aquele cruel desgosto quando me é preciso rompê-las, aquela bondade inata para com os meus semelhantes, aquele ardente amor ao grandioso, ao verdadeiro, ao belo, ao justo; aquela aversão por toda espécie de mal, aquela impossibilidade de odiar, de aborrecer, e mesmo de desejar mal; aquela ternura, aquela emoção doce e viva que experimento ao ver tudo o que é virtuoso, generoso, amável: tudo isto poderá harmonizar-se na mesma alma com a depravação que faz calcar aos pés, sem escrúpulos, o mais doce dos deveres? Não, sinto-o e digo-o em voz alta, não é possível. Nunca, num só instante de sua vida, Jean-Jacques pode ser um homem sem sentimentos, sem entranhas, um pai desnaturado. Pude enganar-me, porém não ficar empedernido. Se expuser minhas razões, direi demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos outros: não quero expor os jovens que me possam ler a que se deixem arrastar pelos mesmos erros. Contentar-me-ei em dizer que foram tais, que ao entregar meus filhos à educação pública, por não poder educá-los eu mesmo, destinando-os a ser operários e camponeses em vez de aventureiros e cavalheiros de indústria, julguei agir como cidadão e como pai, e considerava-me como um membro da república de Platão. Mais de uma vez, desde então, os gemidos de meu coração me disseram que me havia enganado; mas, longe de minha razão me dizer o mesmo, frequentemente bendisse o céu por tê-los resguardado desse modo do destino do pai e daquele que os ameaçava quando me visse obrigado a abandoná-los. Se os tivesse deixado nas mãos de madame d’Épinay ou nas de madame de Luxembourg, que, por amizade, por generosidade, ou por qualquer outro motivo, deles quiseram se encarregar mais tarde, teriam sido os meus filhos mais felizes, teriam sido educados como homens honrados, pelo menos? Ignoro-o, mas tenho certeza de que os levariam a odiar, talvez até a trair seus pais: cem vezes mais valera que não os tivesse conhecido.

Meu terceiro filho foi, portanto, posto na Roda, assim como os primeiros, e o mesmo aconteceu com os outros dois que se seguiram, pois foram cinco ao todo os filhos que tive. Tal arranjo me pareceu tão bom, tão sensato, tão legítimo, que se não me gabei abertamente, foi apenas por consideração a Thérèse; porém disse-o a todos aqueles a quem havia confessado nossas ligações: disse-o a Diderot, a Grimm; falei sobre ele, mais tarde, com madame d’Épinay, e depois ainda a madame de Luxembourg, e isso livremente, francamente, sem nenhuma espécie de necessidade, e podendo facilmente esconder o fato a todo mundo; pois la Gouin era uma mulher honesta, muito discreta e com a qual contava perfeitamente. O único de meus amigos com quem tive necessidade de me abrir foi com o médico Thierry, que cuidou da minha pobre tia num dos partos em que passou bem mal. Numa palavra, não fiz nenhum mistério de minha conduta, não só porque nunca soube esconder nada de meus amigos, como porque, na verdade, nada via de mal no que fazia. Bem pesadas as coisas, escolhi o melhor para os meus filhos, ou pelo menos aquilo que julgava ser o melhor. Teria querido mais ainda: preferia ter sido educado e criado como eles o foram.

Enquanto fazia desse modo as minhas confidências, madame le Vasseur também as fazia por seu lado, porém com objetivos menos desinteressados. Eu as havia levado, a ela e a filha, à casa de madame Dupin que, por amizade a mim, tinha tido mil bondades para com elas. A mãe pô-la ao corrente do segredo da filha. Madame Dupin, que é boa e generosa, e a quem ela não dizia quanto, apesar da modicidade de meus recursos, eu me esforçava para prover a tudo, procurava, por seu lado, diminuir as necessidades com uma liberalidade que, por ordem de madame le Vasseur, Thérèse sempre me ocultou durante minha estadia em Paris, e cuja confissão só me veio a fazer na Ermitage, depois de vários desafogos de coração. Eu não sabia que madame Dupin, que nunca me deixou perceber qualquer coisa, estivesse tão ao par de tudo; também ignoro se madame de Chenonceaux, sua nora, o sabia; mas madame de Francueil, sua enteada, não o ignorava e não pôde calar-se. No ano seguinte tocou-me no assunto, quando eu já havia deixado sua casa. Isso me forçou a escrever-lhe uma carta, que encontrarão em meus papéis, e na qual exponho as razões que podia dar sem comprometer madame le Vasseur e sua família; pois os mais fortes determinantes daí partiam, e calei-os.2

Tenho plena confiança na discrição de madame Dupin e na amizade de madame de Chenonceaux; tinha-a na de madame de Francueil, que além disso morreu muito antes que meu segredo fosse divulgado. Só poderia ter sido espalhado pelas mesmas pessoas a quem eu o havia confiado, e só o foi efetivamente depois de minha ruptura com elas. São julgados só por esta ação: sem querer desculpar-me da reprovação que mereço, prefiro ser apontado como culpado a receber a acusação que a perversidade deles merece. Minha culpa é grande, mas é um erro: negligenciei meus deveres, mas o desejo de prejudicar não entrou em meu coração, e as entranhas paternas não saberiam falar poderosamente pelos filhos que nunca viram: mas trair a confiança da amizade, violar o mais santo de todos os pactos, publicar os segredos vertidos em nosso seio, desonrando por prazer o amigo que enganamos e que nos respeita ainda ao nos deixar, não são faltas apenas, são baixezas morais e torpezas.3

Prometi-lhes a minha confissão e não minha justificação, por isso ponho ponto final no assunto. Cabe-me não faltar à verdade, ao leitor cabe ser justo. Não lhe pedirei nada mais.”

2 Essas razões, as mais determinantes, que só deixa entrever aqui, são positivamente explicadas no livro IX e principalmente em suas Réveries: “O certo é que foi o medo de um destino, para meus filhos, mil vezes pior e quase inevitável por qualquer outro caminho, que mais influiu em minha decisão... Não estando em condições de educá-los pessoalmente, ter-me-ia sido preciso, em minha situação, que a mãe os criasse, o que os tornaria mimados, e educados por sua família, que deles teria feito monstros. Ainda estremeço só em pensar.” (Oitavo Passeio).

Já vimos anteriormente a ideia odiosa que nos dá de todos os indivíduos dessa família; e o que vai acrescentar em breve, o roubo da sua roupa branca, só contribuirá para confirmá-la.

Para não termos que voltar nessas notas a um assunto tão triste, vamos, resumindo, colocar os leitores a par de alguns fatos que a ele se ligam, pondo-os na altura de determinarem o grau de indulgência ou de severidade com que devem fazer seu julgamento.

Primeiro, pela ideia que nos dá Rousseau no seu VII livro, das pessoas com que lidava nos primeiros tempos de sua ligação com Thérèse le Vasseur e o efeito que sobre ele causou o modo daqueles companheiros pensarem e viverem, fica bem provado que, se foi cinco vezes culpado por abandonar os filhos, não foram as mesmas causas que determinaram os cinco abandonos sucessivos. No abandono dos dois primeiros, seguiu Rousseau o exemplo dado por homens tão divertidos, tão amáveis, que via e ouvia diariamente em casa de la Selle, sua hospedeira. Resolveu-se a fazê-lo, nos diz ele alegremente, como aqueles amigos faziam em caso semelhante.

Quando nasceu o terceiro, sua situação era outra. Já era autor, e autor famoso, meditava novas obras, filosofava sobre os deveres do homem, e sua ação desta vez, diz-nos ele mesmo, foi resultado duma resolução bem pesada e com seus motivos. “Se dissesse minhas razões, acrescenta ele, diria demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos outros.” Essas razões são fáceis de perceber; e duvidamos que após um exemplo tão fatal, seja de temer sua sedução. Nosso filósofo, assim que entrou para a carreira das letras, sentiu-se chamado, ou melhor, empurrado pelo seu gênio para trabalhos e deveres de ordem mais elevada que não se conciliavam com as preocupações importunas e vulgares impostas a um pai sem fortuna pela necessidade de educar e criar os filhos. Encarregando a sociedade de criá-los e educá-los no estabelecimento destinado a isso mesmo, julgava-se ele em estado de indenizá-la amplamente com suas obras. Se realmente Rousseau teve esta ideia, não se trata mais de saber se, falando de modo geral, merece aprovação; sofreu a condenação a este respeito: mas, uma vez a ideia admitida, mais valeria que houvesse no mundo cinco pessoas a mais com o nome de Rousseau, criadas pelo próprio pai, e que Heloísa e Emílio não tivessem sido escritas; numa palavra, resta-nos saber se Rousseau, tendo-nos encarregado de seus filhos, nos deu efetivamente a compensação de que se gabava.

De resto, se Rousseau, culpado dentro do direito, se acha justificado deste modo, apressemo-nos a observar ainda que nunca teve para consigo mesmo esta espécie de justificação. Mesmo no auge da glória e quando recebia de todos os lados os tributos de reconhecimento e de admiração, o remorso agitava sua alma e influía em sua conduta privada. Os leitores verão a prova disso no livro XII e na passagem de Emílio que vem citada em nota nessa ocasião. (N.T.)

3 No tempo em que Rousseau morava em Paris, o ter enviado sucessivamente seus cinco filhos à casa de caridade era, no quarteirão em que residia, fato notório. Eis o que diz a esse respeito aquele que se encarregou, no Jornal enciclopédico, da obra de Ginguené sobre as Confissões na época de sua publicação, em 1791: “O acaso levara-me a morar na rua Grenelle-Saint-Honoré, bem em frente à casa onde Rousseau ocupava o terceiro andar. Um cabeleireiro tinha loja naquela casa e tornou-se meu fornecedor. Sempre evitei a conversa com homens dessa profissão e, no momento de ajeitar os cabelos, raramente deixava de me munir com um livro. Porém foi exatamente esta precaução que me traiu. Um belo dia estava eu com um dos volumes de M. Rousseau, e eis que o meu cabeleireiro vem me dizer que era um homem muito conhecido, e que ele era amigo da governante, a quem muito lamentava, visto que os filhos que tinha com o patrão eram barbaramente mandados para os Enfants-Trouvés. Não acreditei, etc., etc.” (Extraído dos jornais de agosto de 1791.) (N.T.)

 

 

“Pouco custa prescrever o impossível quando nos dispensamos de pô-lo em prática.”

 

 

A impaciência de ir para l’Ermitage não me deixou esperar pela primavera; e assim que minha casa ficou pronta, tratei de mudar-me com grande algazarra do partido holbáquico que em voz alta predizia que eu não suportaria três meses de solidão e que dentro em pouco me veriam, envergonhado, voltar para viver em Paris como eles. Quanto a mim, que há quinze anos me via fora de meu elemento, achando-me prestes a volver ao campo, nem prestava atenção às zombarias. Desde que me lançara no mundo, contra minha vontade, não tinha cessado de chorar as minhas queridas Charmettes e a doce vida que ali tinha levado. Sentia-me talhado para o sossego do campo; era-me impossível viver feliz noutros lugares: em Veneza, metido nos negócios públicos, na dignidade duma espécie de representação, no orgulho de projetos ambiciosos; em Paris, no turbilhão da grande sociedade, na sensualidade das ceias, no esplendor dos espetáculos, cercado pelos fumos da glória, os meus bosques, meus regatos, meus solitários passeios, sempre vinham me distrair com sua lembrança, contristando-me, arrancando-me suspiros e anseios. Todos os trabalhos a que tinha podido submeter-me, todos os projetos de ambição que, por acessos, tinham me entusiasmado não visavam a outra coisa senão chegar um dia àqueles benditos lazeres campestres que naquele momento eu me gabava de alcançar. Sem ter chegado a um bem-estar fácil, que sempre achara ser o único meio de obter o que desejava, eu julgava, devido à minha situação especial, poder dispensá-lo e alcançar o mesmo fim por um caminho completamente diferente. Não tinha um vintém de renda: mas tinha um nome e meus dons; era sóbrio e fugira às necessidades mais dispendiosas, a todas as exigências da opinião. Além disso, apesar de preguiçoso, sabia ser laborioso quando o queria ser; e minha preguiça era mais a dum homem independente do que a dum mandrião, pois só gostava de trabalhar quando tinha vontade de fazê-lo. O meu trabalho como copista de música não era brilhante nem lucrativo: porém era certo. Sabiam que eu estava satisfeito com ele por ter tido a coragem de escolhê-lo. Podia contar que trabalho não me faltaria e que daria para eu viver, se trabalhasse bem. Os dois mil francos que me restavam dos lucros de Devin du village e de meus outros escritos concorriam para que vivesse sem apertos; e várias obras que tinha me prometiam, sem nada pedir aos editores, suplementos suficientes para trabalhar à vontade, sem me exceder e mesmo gozando os prazeres dos passeios. Meu pequeno lar, composto de três pessoas, todas trabalhando e sendo úteis, não era de manutenção dispendiosa. Finalmente todos os meus recursos, em proporção aos meus desejos e minhas necessidades, razoavelmente podiam prometer-me uma vida de felicidade duradoura naquela que meus pendores me fizeram escolher.

Poderia escolher somente o lado lucrativo, e em vez de sujeitar minha pena à cópia de música, podia devotá-la inteiramente aos escritos que, com o voo que eu empreendera e que me sentia em estado de sustentar, dariam para eu viver na abundância e até na opulência, por pouco que tivesse querido reunir minhas habilidades de autor ao cuidado de publicar bons livros. Todavia eu sentia que escrever para ganhar o pão teria, bem depressa, abafado o meu gênio e matado meu talento, pois estes residiam mais em meu coração do que na pena, e minha inspiração nascera simplesmente dum modo de pensar elevado e altivo, única condição que podia nutri-la. Nada de vigoroso, nada de grande pode partir duma pena completamente venal. A necessidade, talvez a avidez, ter-me-ia feito escrever depressa de preferência a escrever bem. Se a necessidade do sucesso não me tivesse mergulhado nas cabalas, ter-me-ia impelido a dizer coisas que agradassem à multidão em vez das úteis e verdadeiras; e de autor ilustre passaria a garatujador de papel. Não, não: sempre senti que a carreira de escritor não era profissão e só podia ser ilustre e respeitável, enquanto não fosse obrigação. É muito difícil pensar com nobreza quando nos preocupamos em ganhar para viver. Para poder, para ousar dizer grandes verdades, não se deve contar com o seu sucesso. Dava meus livros ao público com a certeza de ter falado para o bem comum, sem nenhuma preocupação pelo resto. Se a obra era refugada, tanto pior para aqueles que dela não queriam tirar proveito. Quanto a mim, não precisava de sua aprovação para viver. O meu trabalho de copista dava para viver se meus livros não se vendessem; e eis precisamente o que contribuía para que eles se vendessem.”

 

 

“Uma vez que escondemos qualquer coisa de alguém que amamos, em breve não temos mais escrúpulos em guardar segredo a respeito de tudo.”

 

 

“Tudo parecia concorrer para me tirar de meu devaneio doce e louco. Não estava curado de meu ataque quando recebi um exemplar do poema sobre a ruína de Lisboa, que supus me ter sido enviado pelo autor. Isso me pôs na obrigação de lhe escrever e de falar-lhe de sua obra. Fi-lo por intermédio de uma carta, que foi publicada muito tempo depois, sem o meu consentimento, como ficará explicado mais abaixo. Admirado por ver aquele pobre homem, acabrunhado, por assim dizer, pela prosperidade e pela glória, declamar no entanto, e amargamente, contra as misérias desta vida e sempre achar que tudo andava mal, formei o insensato projeto de fazer com que ele compreendesse, provando-lhe que tudo andava bem. Voltaire, sempre parecendo crer em Deus, realmente nunca acreditou senão no diabo, já que seu pretenso Deus não passa dum ser malfazejo que, segundo ele, só acha prazer em causar aborrecimentos. O absurdo desta doutrina, que salta aos olhos, é principalmente revoltante num homem que acumulou bens de toda espécie, que, no meio da felicidade, procurou fazer seus semelhantes desesperarem, pintando-lhes a imagem pavorosa e cruel de todas as calamidades que não o atingiram. Com mais autoridade do que ele para levar em conta e pesar os males da vida humana, deles fiz um exame imparcial e provei-lhe que, de todos aqueles males, não havia um só de que a providência não fosse desculpada e que não tivesse sua origem mais no abuso que o homem fazia de suas faculdades, do que na própria natureza. Naquela carta, tratei-o com todo o respeito, com toda a consideração, toda atenção e, posso dizer, com todo respeito possível. Entretanto, sabendo-o dono dum amor-próprio extremamente irritável, não lhe mandei esta carta diretamente e sim enviei-a ao doutor Tronchin, seu médico e seu amigo, com plenos poderes para entregá-la ou destruí-la, segundo achasse mais conveniente. Tronchin entregou a carta. Voltaire me respondeu, em poucas linhas, que, estando doente e sendo ele mesmo o enfermeiro, adiava para outra ocasião a resposta e não disse palavra sobre a questão. Tronchin, mandando-me a carta, juntou-lhe uma, onde deixava transparecer pouca estima por aquele que lhe havia entregue.

Nunca publiquei nem mesmo mostrei estas duas cartas, por não gostar de fazer ostentação de pequenos triunfos desta espécie; porém elas estão em originais nas minhas coleções (maço A, nos 20 e 21). Depois, Voltaire publicou aquela resposta que me havia prometido, mas que não me endereçou diretamente. É ela simplesmente o romance de Cândido, sobre o qual não posso falar porque não o li.”

 

 

“Muito tempo hesitei sobre a maneira pela qual deveria conduzir-me junto dela, como se o verdadeiro amor deixasse bastante razão para seguir deliberações.”

 

 

“Assim que me vi só, voltei a mim; sentia-me mais calmo depois de ter falado (me declarado): o amor quando conhecido por aquela que o inspira se torna mais suportável.”

 

 

“As mulheres conhecem a arte de esconder o ódio, principalmente quando é um ódio forte.”

 

 

“É no campo que aprendemos a amar e a servir à humanidade: na cidade só aprendemos a desprezá-la!”

 

 

“Se é uma desgraça alguém enganar-se na escolha de seus amigos, não é outra menos cruel despertar dum erro tão doce.”

 

 

“Minhas piores culpas foram as da omissão: raramente fiz o que não devia fazer e desgraçadamente com mais raridade ainda fiz o que eu tinha necessidade de fazer.”

 

 

“A princípio eu começara por interessar-me muito por madame du Deffand, a quem a perda da visão a tornava, para mim, digna de comiseração: mas sua maneira de viver, tão contrária à minha, cuja hora de despertar quase que era a hora em que ela ia deitar-se; sua ilimitada paixão pelos homens espirituosos; a importância que dava, por bem ou por mal, aos menores escritos sem importância que apareciam; o despotismo e o arrebatamento de suas máximas; sua preocupação excessiva pró ou contra todas as coisas, que não lhe permitia discutir as coisas sem convulsões; seus incríveis preconceitos, sua invencível obstinação, o extravagante entusiasmo a que a levava a perseverança em opiniões apaixonadas; tudo isso me afastou depressa dos cuidados que desejava prestar-lhe. Fui me afastando; ela o percebeu: foi o bastante para enfurecê-la; e apesar de eu sentir o quanto era para recear uma mulher com tal temperamento, preferi ainda assim expor-me ao flagelo de seu ódio do que ao de sua amizade.”

 

 

Tinha com que me distrair em viagem, entregando-me às reflexões que se apresentavam sobre tudo o que acabava de me suceder; porém não era essa a disposição de meu espírito nem os desejos de meu coração. É admirável a facilidade com que, passado o mal, por mais recente que seja, eu o esqueço. Quanto mais a previsão me amedronta e perturba quando o vejo desenhar-se no futuro, tanto mais sua lembrança me volta fracamente e se extingue com facilidade assim que o mal acontece. Minha imaginação cruel, que sem cessar se atormenta pensando nas desgraças que ainda não existem, afasta-me da que aconteceu e me impede de recordar as que já passaram. Contra aquilo que já não existe não há mais precauções a tomar e é inútil preocupação. De certo modo, esgoto minha infelicidade antecipadamente: quanto mais sofri ao prever um acontecimento, mais facilidade tenho em esquecê-lo; ao passo que ao contrário, incessantemente ocupado com a minha felicidade passada, dela me lembro e a rumino, por assim dizer, a ponto de gozá-la de novo quando quero. É a esta feliz disposição, sinto, que devo nunca ter conhecido aquele humor rancoroso que fermenta num coração vingativo para recordação contínua das ofensas recebidas, e que se atormenta a si mesmo com todo o mal que desejaria causar a seu inimigo. Naturalmente arrebatado, experimentei a cólera, o próprio ódio nos primeiros impulsos; porém nunca um desejo de vingança criou raízes dentro de meu peito. Ocupo-me muito pouco com as ofensas para me ocupar muito com quem me ofendeu. Só penso no mal que recebi por causa daquele que ainda posso vir a receber; e se estivesse seguro de que não mais me faria mal, seria imediatamente esquecido aquele que mo causasse. Pregam-nos muito o perdão às ofensas: é uma virtude muito bela sem dúvida, mas que não ponho em uso. Ignoro se meu coração saberá dominar o ódio, pois nunca experimentei tal sentimento e penso muito pouco em meus inimigos para ter o mérito de perdoá-los. Não direi até que ponto, para me atormentar, eles mesmos se atormentaram. Estou à sua mercê, têm eles todo o poder, dele usam. Só há uma única coisa acima de seu poderio e a que eu os desafio: é, preocupando-se comigo, obrigarem-me a preocupar-me com eles.”

 

 

Espíritos sem cultura e sem luzes não conhecem outro objeto de estima senão a reputação, o poder e o dinheiro, estão até bem longe de supor que se deve algum respeito aos talentos e que há certa desonra em ultrajá-los.”

 

 

“Sempre gostei apaixonadamente da água e ao vê-la fico num devaneio delicioso, apesar de ser sempre sem objetivo. Nunca deixei, logo ao despertar, quando o tempo estava bonito, de correr para a colina para aspirar o ar saudável e fresco da manhã e para descansar os olhos nas tranquilas águas daquele lago que com seus rios e montanhas encantavam a minha vista. Não descubro homenagem mais digna à Divindade do que aquela muda admiração excitada pela contemplação de suas obras e que não se exprime por ações. Compreendo por que os que moram em cidades, e só veem paredes, ruas e crimes, têm pouca fé; porém não posso compreender por que os camponeses, e principalmente os que vivem solitários, podem deixar de tê-la. Pois suas almas extasiadas não se elevam cem vezes por dia ao Autor das maravilhas que têm debaixo dos olhos?”

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