Editora: Boitempo
Opinião: ★★★☆☆
ISBN: 978-85-7559-375-2
Páginas: 120
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Sinopse: Ver Parte
I
“Fica então caracterizado que a lógica mais importante que comanda a
compreensão do papel do político no mundo moderno é a que distingue
claramente entre os momentos históricos em que a burguesia luta pela sua
hegemonia sobre as relações feudais e o momento a partir do qual o capitalismo
se instaurou como estrutura social predominante. As formas de existência
solicitadas ao político nesse segundo momento serão determinadas pelas
condições em que aquela primeira etapa foi vencida. Em outras palavras: as
condições de acumulação primitiva obtidas pela burguesia na luta contra os
privilégios feudais solicitarão uma intervenção maior ou menor dos mecanismos
políticos no novo esquema das relações de produção. As estruturas e o campo
de ação possível no interior do qual se darão as condições de reprodução do
capital serão, a partir dessas condições primitivas, o motor de
compreensão dos fenômenos políticos, em geral, e do papel do Estado, em
particular.
O
político era assim, inicialmente, um instrumento através do qual a
centralização do poder permitia a quebra dos privilégios locais do feudalismo,
auxiliando a introdução das condições que possibilitaram o desenvolvimento
capitalista. Porém, Marx distingue a ruptura com esse papel no momento em que a
instauração das relações de produção capitalistas como predominantes introduz
consigo a possibilidade de uma cisão vertical na luta entre as classes; a
oposição específica que a burguesia enfrenta da parte da classe operária e dos
camponeses solicita uma roupagem nova do Estado. Na luta contra os privilégios
feudais, o simples caráter de órgão centralizador já o tornava instrumento
apto, tendo em vista o caráter das relações sociais a enfrentar. Quando se
trata de enfrentar as classes sociais já tipicamente capitalistas, o papel do
Estado tem obrigatoriamente de mudar. A recomposição das classes, alterando o
objeto da luta, implica a modificação do próprio instrumento. A imparcialidade
buscada pelo Estado bonapartista visa a atender a esse novo caráter das
relações de classe, demonstrando que as formas políticas clássicas do
liberalismo não correspondiam à fase de cristalização do capitalismo, mas ao
momento de sua ascensão e instauração. O Estado bonapartista corresponde à
fase da hegemonia em que, ao reproduzir de forma multiplicada suas relações de
produção, o capitalismo superou o Estado liberal. As bases materiais dessa
superação – que a fizeram “ir da realidade aos livros, e não vice-versa” –
foram a passagem da pequena à grande propriedade, e as contradições de classe
mais agudas que isso envolve.
Ao
buscarmos captar as transformações políticas que refletem alterações mais
profundas da estrutura social – e que, portanto, não são apenas recomposições
secundárias na vida social – pode-se dizer, genericamente, que Marx nos fornece
as seguintes indicações mais importantes:
a. Há
uma forma tradicional de apropriação do Estado pela burguesia, que é a
república parlamentar; ela corresponde à fase de luta da burguesia pela
instauração das relações capitalistas de produção, quando o inimigo enfrentado
é o feudalismo ou o absolutismo. A estes se contrapõem os esquemas do
liberalismo e da filosofia do século XVIII em geral.
b.
Porém, uma vez vencida essa etapa, a república parlamentar cria um abismo entre
as classes possuidoras – que conseguem representar-se de maneira multiforme
junto ao Estado – e o restante da sociedade. “Se a república parlamentar, como
dizia o senhor Thiers, era “a que menos as dividia” (as diversas frações da
classe dominante), ela abria, por outro lado, um abismo entre essa classe e o
corpo inteiro da sociedade situada fora de suas parcas fileiras”[62].
Isso significa que, se a república parlamentar preenche as necessidades de
representar os diversos setores das classes dominantes, essa tarefa é atendida
à custa do distanciamento do Estado em relação às outras camadas da sociedade.
Ela torna o governo “uma assembleia das classes dominantes”, preocupando-se
mais com as possíveis cisões verticais na sociedade, através de uma coordenação
eficiente das classes no poder. Entretanto, na medida em que ela representa uma
relação mais significativa entre as classes e o Estado, dá a este uma
transparência imediata em termos de privilégios de classe. A representação
política simultânea das classes dominantes e das outras classes sociais faz com
que o Estado, sob essa forma, pague o preço do distanciamento em relação às
outras classes sociais. Enquanto aparece essencialmente como representante das
classes dominantes, o Estado não preenche todo o seu papel, já que a unidade
política da sociedade não engloba todas as classes sociais. Pela aproximação
muito estreita entre a estrutura econômica e social e o Estado, aquela própria
estrutura se vê ameaçada pelo abismo social que se estabelece. Vemos assim como
ao Estado não compete apenas o papel de coordenador das classes no poder, já
que essa tarefa se cumpre plenamente na república parlamentar, e esta demonstra
insuficiências em relação às funções do Estado. Existe, portanto, uma distância
entre os interesses das classes dirigentes – enquanto classes – e as funções
que a estrutura social capitalista solicita ao Estado.
c.
Marx aponta o bonapartismo como uma forma historicamente superior de
apropriação do Estado pelas classes dominantes. O bonapartismo é uma forma de
governo que ressalta a relativa autonomia que o Estado preserva, dando-lhe
possibilidade de surgir como verdadeiro unificador da sociedade como um todo;
sua meta é realizar “a unidade de todas as classes, fazendo reviver para todos
a ilusão da glória nacional”. O bonapartismo representa outra forma de
apropriação do Estado. Já não se trata de uma integração das classes dominantes
onde os interesses destas se compõem com os do Estado, sob a forma do corpo
legislativo. O bonapartismo, ao contrário, enfatiza a tarefa de “unificação de
todas as classes”. Para que esse papel propriamente político se realize, é
necessária uma nova forma de apropriação do Estado pelas classes dominantes:
uma dominação mediada por uma forma de governo com predominância do Executivo
sobre o Legislativo, aparentemente acima do corpo social, fora da sociedade.
Ele representa, assim, uma aparente abdicação do poder político pela burguesia,
quando se trata apenas de abandonar a posse direta do Estado, o que não só não
lhe retira o poder político na sociedade como se torna requisito de sua
manutenção. O bonapartismo, de um lado, é uma necessidade a que a burguesia tem
que se submeter. “A burguesia, pelo visto, não tinha outra alternativa senão
eleger Bonaparte.”[63] “Na realidade, ele era a
única forma de governo possível em um momento em que a burguesia já havia
perdido e a classe operária ainda não havia adquirido a capacidade de governar
a nação.”[64] Mas, de outro lado, essa necessidade é
solicitada pela sua própria preservação no poder.
Como
forma de governo, ele é fruto, em geral: 1) da incapacidade das classes no
poder de assumir as funções políticas como representantes do conjunto da classe
dominante e em nome da sociedade; 2) da divisão e equilíbrio relativo entre os
grupos dominantes. Criam-se, assim, as condições tanto da personalização do
poder quanto da aparição da imagem da soberania do Estado. Nessa situação, as
“massas”, no seu sentido genérico, são a única “força social” possível de
sustentação para um poder pessoal autônomo, e a única fonte possível de
legitimidade para o próprio Estado. Eis por que a compreensão do caráter do
governo bonapartista nos desloca obrigatoriamente para as relações de força
entre as classes, conforme elas se dão nas relações gerais na sociedade.
O
bonapartismo deve necessariamente ser uma forma dúbia de governo, pois sua
pretensão é, ao mesmo tempo: 1) “salvar a classe operária destruindo o
parlamentarismo e, com ele, a indisfarçada subserviência do governo às classes
proprietárias”[65], bem como 2) “salvar as classes
proprietárias sustentando sua supremacia econômica sobre a classe operária”[66]. Trata-se de um “governo de salvação nacional”,
em que o termo salvação opera em dois sentidos diversos: salva-se a classe
operária no plano político, subtraindo o Estado à submissão econômica direta da
burguesia; salva-se a burguesia economicamente, à custa de uma integração
política das outras classes na vida do Estado. As relações políticas são
reafirmadas como as que fundamentam toda a relação social, com o político
tomado sob a forma da abstração das modificações nas relações de homem a homem.
Uma vez operada a “emancipação política” de todos os indivíduos, dissolvem-se
sua divisão em classes, e todos se reencontram na qualidade de cidadãos,
libertos e em condições de igualdade para se enfrentarem em situação idêntica
no mercado.
Não
só o político é tomado como o estruturador das relações entre os homens, como
isso se dá pelo esvaziamento e a postergação das relações de produção, tomadas
como outro nível. Justapõem-se as relações econômicas e políticas, estas
determinando automaticamente a existência social dos indivíduos, e preparando
suas condições de seres sociais. A dubiedade do bonapartismo vem do exercício
de má-fé que pratica com as estruturas que o sustentam: ele joga com a passagem
de um nível a outro – do econômico ao político, e vice-versa – afirmando, ao
mesmo tempo, a sociedade como uma unidade bem estruturada. Pela afirmação da
“autonomia” do político, como forma de solapá-la, criam-se as condições para a
existência dissimulada do Estado.
A
essência da possibilidade de “se dissimular” implica sempre a unidade de uma
estrutura e de uma dupla atividade no seio da unidade, tendentes à manutenção e
a não revelação. O Estado aparece como a unidade da estrutura, as relações
políticas e econômicas como as atividades duplas no seio da unidade. Mantém
relações complementares na sua essência, mas exclusivamente na sua atividade
imediata. Ao Estado compete afirmar sua identidade conservando suas diferenças;
é preciso afirmá-las reciprocamente para que, quando nos deparemos com uma,
encontremo-nos bruscamente em face da outra. No funcionamento cotidiano do
sistema, ele não poderia ter relações de aparência/essência, o que liquidaria
seu caráter duplo, seu papel e, sobretudo, o papel do Estado.
Para
que essa má-fé seja possível, é preciso que o princípio de identidade não seja
um princípio constitutivo da estrutura. E a própria ideia de “representação
política” implica sempre uma denúncia da dualidade: se eu me represento
politicamente, não existo aí como presença real, direta; de outro lado, a
“representação econômica” é impossível: aqui eu existo concreta e imediatamente
como produto ou propriedade.
O
bonapartismo reveste o Estado, assim, de um apropriamento político, realizando
da maneira mais completa possível a dissociação entre o homem enquanto produtor
privado e enquanto cidadão político abstrato, para a qual o Estado moderno foi
criado. Se o capitalismo revela a verdadeira essência do Estado, ao
dilacerar essas contradições ao máximo, é o bonapartismo que a realiza em seu
mais alto grau, consagrando as tarefas específicas do político. O bonapartismo
revela-se, assim, como a verdade histórica de todas as formas anteriores de
Estado. E a burguesia pode ser a portadora dessa forma acabada de alienação
política, porque o seu tipo próprio de exploração lhe é propício: “a burguesia
não tem rei; a verdadeira forma do seu domínio é a república”. Vale dizer: seu
domínio não precisa se dar pela posse direta do Estado; a própria forma de
constituição das relações sociais de produção – da qual o Estado é a expressão
– reserva-lhe o papel hegemônico. Por isso, a burguesia não apenas é obrigada –
em determinados momentos –, mas pode se valer de um governo como o
bonapartismo, forma política anônima em termos de classe.
d. O
Estado revela, então, que só existe sob a forma de dissimulação, porque
representa a unidade fictícia de uma multiplicidade. Representa a
sociedade, a nação, os interesses gerais dos indivíduos,
abstrações intelectuais sem determinações reais. É o Estado de uma sociedade
dividida em classes; isto é, ainda que não seja apropriado diretamente pela
classe hegemônica na sociedade, sua própria existência introduz uma forma de unidade,
de harmonia, de ordem, que dissimula as relações entre as classes
no processo de produção. As definições em torno do Estado tornam-se, pois, o
reflexo seguro da posição das classes em relação à sociedade burguesa. Porque o
Estado não se mantém, ou ele existe, e este é um fator suficiente para
seu reforçamento, ou ele tem sua existência solapada por alguma forma de
negação de todas as relações capitalistas. Como sua existência está
comprometida com essas relações de produção, a apropriação do Estado – tal como
ele existe sob o capitalismo – pela classe operária não faz sentido: “a classe
operária não pode simplesmente se apossar da máquina do Estado tal como ela se
apresenta e dela servir-se para seus próprios fins”[67].
Como representante dos interesses gerais reais da sociedade, a classe operária
transforma a tomada do Estado, pois no mesmo ato mina a própria necessidade que
até aqui sustentara e dera vida ao Estado: isto é, “o primeiro ato no qual o
Estado aparecerá como o representante real de toda a sociedade – a conversão
dos meios de produção em propriedade social – será seu último ato independente
enquanto Estado”68. Apropriação do Estado pela classe
operária significa, assim, obrigatoriamente, apropriação dos meios de produção
pela sociedade como um todo. Como o Estado é, ele mesmo, o autor desse ato,
durante o período de ditadura do proletariado, ele não é abolido, mas
prepara sua autodissolução.
O
Estado pode passar de instrumento na luta contra os privilégios feudais a
instrumento a serviço do capital contra o trabalho, porque sua determinação
essencial foi mantida: o caráter de organismo de uma unidade fictícia, formal,
da sociedade. Mas, como instrumento particular de dominação, ele é incompatível
com uma classe cujos interesses particulares coincidem com os interesses gerais
da sociedade. A primeira forma de governo da classe operária preocupou-se,
antes de mais nada, por isso, com a apropriação e destruição dessa máquina.
(...)
e. O
bonapartismo, como forma superior de apropriação do Estado pela burguesia, em
que o caráter do Estado de unificador acima do corpo social é desenvolvido ao
extremo, revela-se como a verdade do Estado burguês. O papel a que o Estado
como instituição foi outorgado dentro da estrutura capitalista é desempenhado o
mais rigorosamente possível pelo Estado bonapartista. É ele quem melhor
concilia o favorecimento econômico direto das classes possuidoras com a
manutenção da ordem, requisito indispensável do funcionamento das relações
burguesas de produção.
Por
sua vez, para Marx, o Estado capitalista é o que realiza da maneira mais
profunda as tarefas que o Estado esboçou como suas através dos diferentes tipos
de sociedade. É a anatomia do Estado moderno que serve de chave para as formas
anteriores de Estado. Porque é aqui que se delineia mais claramente um objeto
definido para o político como nível autônomo de relações sociais. Na medida em
que eleva às suas culminâncias à dissociação entre o papel privado do indivíduo
e seu comportamento como cidadãos políticos, distingue mais nitidamente do que
qualquer sociedade anterior, a comunidade política se constituindo
autonomamente. Vimos como isso se dá com o esvaziamento do peso das relações
políticas dentro da estrutura capitalista e, assim, como a realização da
política – através de sua autonomização – é o mesmo movimento de denúncia de
sua efetividade. O Estado capitalista e as relações políticas dentro do
funcionamento da estrutura capitalista são as formas políticas desenvolvidas
que servem de chave para a explicação do nível político em todos os planos. O
momento em que eles amadurecem suficientemente, a ponto de colocarem – através
da Comuna de Paris – sua dissolução na ordem do dia, é aquele em que se revela
o segredo do Estado e da política. Aqui, o Estado e a política são a verdade do
Estado e da política em todas as formas sociais anteriores; o momento de sua
destruição é o momento mais profundo de sua verdade.
É
nessa direção que devemos tentar esboçar a revisão que o marxismo propõe da
filosofia política anterior. Da mesma forma que a análise do capital é, ao
mesmo tempo, a crítica da economia política, a análise do nível político nos dá
as coordenadas para a compreensão, em Marx, do papel da filosofia política:
seus limites, seus fundamentos e sua ideologia.”
[62] Karl Marx, A
guerra civil na França, cit., p. 55.
[63] Idem, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 150.
[64] Idem, A guerra
civil na Franca, cit. p. 56.
[65] Ibidem, p. 56.
[66] Idem.
[67] Ibidem, p. 54.
[68] Friedrich Engels, Anti-Duhring (Paris, Editions Sociales,
1966), p. 196.
O
interesse que Marx dispensa ao bonapartismo justifica-se, assim, pelo fato de
ele conter em si, como fenômeno político, os segredos mais importantes à
compreensão do político como nível de relações sociais. O Estado bonapartista
desempenha esse papel ao mesmo tempo em que é a forma do Estado que melhor
cumpre as tarefas que favorecem a burguesia. E, no entanto, aparece como
entidade acima das classes sociais. Ele consegue, simultaneamente, cristalizar
sua dependência das relações de produção, afirmando sua autonomia. Neste jogo
entre as relações de produção e o político, a dependência e a autonomia, reside
o caráter dissimulador que define o papel do Estado bonapartista. O segredo da
autonomia da política revela-se residir na sua dependência, na sua autonomia,
possibilitada pelo esvaziamento do político no capitalismo. Para que se entenda
como o Estado pode assumir, ao mesmo tempo, esses papéis contraditórios, é
preciso esclarecer tanto o caráter de dependência como o de autonomia que ele
assume, ou seja, tanto a forma do Estado de se relacionar com as classes
dominantes como a ideia e a força de poder político.
A
interpretação corrente do caráter de classe que Marx atribui ao Estado toma as
formas simplificadas, de uso programático, de Marx, Engels e Lenin, pelos conceitos teóricos que
sustentam o caráter classista do Estado. Parte-se da formulação de que “o
Estado é o instrumento da vontade da classe dominante”, omitindo-se todas as
mediações que esclarecem o lugar social preciso dessa definição. Os múltiplos
aspectos do poder do Estado encontrariam seu unificador na vontade da classe
dominante. Assim, essa interpretação pressupõe:
a. a
existência de uma vontade unificada que exerça o poder do Estado como seu
instrumento;
b. a
ausência de frações distintas nessa unidade, que possibilitem diversidade e
conflitos dentro da classe dominante;
c. a
manipulação da superestrutura política como instrumento sem consistência
própria e imediatamente amoldável aos interesses da classe dominante.
Nessa
forma voluntarista de conceber a ação do Estado, toma-se a dominação em última
instância do econômico sem quaisquer mediações: a classe dominante subjuga à
sua vontade os mecanismos da estrutura capitalista. É a partir desse polo de
referência que se iluminariam todas as relações sociais. A própria ideologia
torna-se assim impostura, uma simples mentira, de que se vale essa classe para
cristalizar seu domínio social.
Essa
visão unilateral reforça a relação entre o Estado e a classe dominante, em
detrimento das relações que o Estado mantém com o conjunto da sociedade. Quando
esse papel é relegado, o caráter específico do Estado e da política se esconde;
o papel que possuem de referência a toda a sociedade e que justifica sua
existência social. Enquanto as relações de produção privatizam os indivíduos,
desligando a força de trabalho do seu produto e, dessa forma, atribuindo-lhes
funções que não se ligam ao destino geral da sociedade, o político visa
traduzir essas relações privadas sob a forma de “interesses gerais” da
sociedade. A relação que o Estado mantém com a sociedade não se entrosa com a
que ele mantém com as classes nessa visão; elas se hierarquizam de maneira
rígida, em que a única relação real é a segunda, da qual a primeira é apenas
uma aparência enganosa. Então, o plano político fica reduzido, simplesmente, a
uma visão falsa, e a ideologia, a uma mentira.
Não
se compreende, a partir daí, a diferença específica com que o bonapartismo
reveste o Estado, distinguindo-se das outras formas de governo; não se explica
como o nível político possa ter uma mecânica própria que constitua um governo
diante do qual todas as classes parecem igualmente se curvar. Quando nos
aprofundamos nessa mecânica própria ao político é que percebemos como são
incompatíveis entre si a compreensão do bonapartismo e a concepção do Estado
meramente como vontade da classe dominante. Se o Estado bonapartista não
conseguisse se revestir aos olhos dos proprietários rurais, da classe operária
e da pequena burguesia urbana como seu salvador, por retirar o Estado do
domínio direto das classes possuidoras, ele não poderia se apresentar como o
“governo de união nacional”, “representante dos interesses gerais da
sociedade”. O Estado bonapartista realça exatamente as relações do Estado com a
nação, a sociedade, a generalidade, procurando encarná-las. Se ele pode, ao
mesmo tempo, ser o melhor governo possível para a burguesia, embora apareça
como governo de todas as classes e de nenhuma, é porque essa “nação” e essa
“generalidade” são constituídas de maneira viciada. O Estado se vale do apoio
de uma camada social que não se constitui como classe – os camponeses, a
maioria da nação –, porém que ocupa um lugar determinado na produção para que
possa fazer valer seus interesses; isto é, a nação, como soma de indivíduos,
não reduz os mecanismos das relações de produção, mas se constitui pela posição
dos homens desligados de seu papel nessas relações. É esse caráter viciado que
liga indissoluvelmente o conceito de nação à ideologia burguesa, e possibilita
a essa classe um governo do tipo bonapartista. Omitir essa mediação é não
entender as distinções que o bonapartismo possui em relação aos outros tipos de
Estado, e, mais ainda, negar o papel próprio do Estado e do político. É não
atribuir concreção real alguma às formas ideológicas.
A
tarefa a que Marx se propõe nas suas análises do bonapartismo é a de
desmascarar o caráter de classe de um governo que se pretende estar acima dos
interesses privados. Porém, a demonstração de Marx é tanto mais evidente quanto
ele justifica ao longo dela como a aparência de Estado de todas as classes é
uma ilusão, mas uma ilusão bem fundada, que surge efetivamente como a verdade
do sistema para quem não assume o ponto de vista da produção. A partir daqui é
que a intenção de desmascarar as ideologias se prolonga na compreensão de suas
raízes materiais. É preciso ressaltar, pois, que o Estado bonapartista não
rompe seus laços com os interesses das classes dominantes, antes é solicitado
por eles; e que, de resto, seu próprio caráter de imposição da “ordem” já o
revela. No entanto, sua diferença em relação à república parlamentar, por
exemplo, advém do fato de ele dissimular essas relações através da sua tradução
em nome dos “interesses gerais da sociedade”, apoiando-se no caráter dúbio dos
camponeses, defensores e vítimas da propriedade privada. Se o governo
bonapartista é dúbio e dissimulador, é porque ele encontra as raízes que tornam
possível esse jogo nas próprias relações entre as classes sociais, bem como na
oscilação entre as relações de produção e o dever-ser social, expresso no nível
da superestrutura.
O
Estado bonapartista é um Estado de classe, para Marx, bem como todos os tipos
possíveis de Estado. Porém, Estado de classe quer dizer Estado de uma
sociedade dividida em classes; nesta se encontram as raízes do seu caráter
classista, como também do fato da cultura, do direito etc. marcarem-se pela
ideologia. A expressão “instrumento das classes dominantes” só tem sentido
quando explicita dessa forma. Porque não se identificam sumariamente
“interesses das classes dominantes” e comportamento do Estado; este representa
o produto de uma relação com a totalidade das relações sociais, isto é, o
Estado representa a relação dos interesses das classes dominantes com os das
outras classes sociais. Dessa relação, extrai-se sua forma de existência. Ele
existe por causa da divisão da sociedade, e as formas de existência pelas quais
passa ganham daí também sua justificação, relacionando-se com o grau de
desenvolvimento das contradições de classes na sociedade. Assim, quando Marx
diz que o Estado é instrumento das classes dominantes, não está afirmando que é
a posse do Estado que lhe dá esse caráter, mas sim que, porque são classes
dominantes, o Estado, enquanto preserva as relações sociais que lhes
favorecem, funciona como instrumento seu.”
“PODER POLÍTICO E POSSE DO ESTADO
A
constatação do caráter classista do bonapartismo só ganha consistência, para
Marx, quando se explicitam as formas econômicas e sociais que o tornam
possível, e que também se responsabilizam por sua dissimulação. Essas é que
justificam a possibilidade de dissociação básica de que Marx se vale para explicar
o bonapartismo, entre poder político e posse do Estado. O
surgimento do bonapartismo representou o esmagamento da representação política
da burguesia; porém, esse governo lhe interessava na medida em que esse
esmagamento era o requisito para o reforçamento do seu poder social.
Veremos
como a responsabilidade disso repousa no fato de que a estrutura capitalista
atribui ao plano político o papel de organizar os indivíduos, abstraindo-se da
relação que mantenham com os meios de produção na sociedade. Essa tarefa
procura trazer implícita a ideia de que esta é a relação determinante
socialmente quanto à existência coletiva dos homens. Entretanto, como vimos, a
redução a este contato – ao mecanismo de trocas – não elimina a participação
dos indivíduos nas relações de produção, e nem a sintetiza. Essas relações
continuam a existir, e, no caso do capitalismo, também a dar fundamento à
divisão da sociedade em classes. A tradução das relações econômicas em luta de
classes responde pela continuação da luta política na sociedade como fenômeno
que a afeta globalmente, encontrando no plano mesmo da produção suas diretrizes
iniciais. O fato de a divisão em classes ter seu fundamento na produção faz com
que as lutas políticas tenham destino paralelo à importância que esse plano
possui dentro da estrutura social capitalista. Enquanto a luta social em que se
empenhava a burguesia se voltava contra os senhores feudais, o seu centro mesmo
era dado no Estado, cuja posse e reforçamento pela burguesia determinavam já
imediatamente um golpe de morte no poderio econômico e social do feudalismo.
A
passagem ao capitalismo como sistema de relações sociais hegemônico traz
consigo a separação que deseja imprimir entre a economia e a política. Este
nível pretende as relações sociais que os homens mantêm entre si, relegando as
relações econômicas para o círculo do comportamento particular dos indivíduos.
Na França, por exemplo, como o ano 1848 representa historicamente a implantação
definitiva do capitalismo, com suas relações de produção e estruturação
política adquirindo hegemonia indiscutida, o governo bonapartista procura
representar esse desligamento entre a estrutura econômica e a ação política das
classes sociais. Assim, o liberalismo, modelo clássico da democracia burguesa,
vive o tempo da luta contra o feudalismo e começa a agonizar quando as cisões
horizontais da sociedade passam a predominar. A inadaptação da república
parlamentar aos interesses da burguesia francesa vale como atestado dessa
falência prematura do liberalismo.
A
verdade da separação entre o econômico e o político no capitalismo é a mesma do
divórcio entre a produção e a circulação; isto é, tem na ideologia sua origem e
sustentação. Enquanto atribui esse papel ao político, o capitalismo o esvazia
de sentido, relegando-o ao nível da superestrutura. Porém, como as relações de
produção continuam a reproduzir o antagonismo entre as classes, o político
propaga-se por toda a estrutura, em um rumo exatamente oposto ao da tentativa
de sua circunscrição. A separação radical entre a força de trabalho e os meios
de produção serve de fundamento à tentativa da ideologia burguesa de
desconhecer a relação que os homens mantêm com esses meios organizando-os
apenas enquanto indivíduos. Contudo, ao mesmo tempo, essa separação radicaliza
as contradições de classe e, assim, as lutas políticas entre as classes invadem
todos os níveis da estrutura social. Em suma, centrar a vida política em torno
da posse do Estado é considerar o político ainda dentro do plano que a
estrutura capitalista pretende lhe reservar. Porém, quando Marx se propõe a uma
ação política contra o capitalismo, ele está tomando o político na mesma
extensão que possua a divisão em classes na sociedade: isto é, como estigma que
perpassa todas as relações capitalistas. O poder político vive, então,
para além da posse do Estado, encontrando suas raízes na própria forma de se
organizar a sociedade, o que inclui a posse do Estado como momento importante,
mas sem se limitar a ela, pois não a tem como fundamento.”
“A generalização das trocas, possibilitando a organização da produção em
função do mercado, não teve desenvolvimento suficiente para que, aos olhos de
Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, fosse possível constatar a novidade
radical do capitalismo: a hegemonia do valor de troca sobre o valor de uso,
cuja diferenciação e constatação será um dos marcos na distinção entre
ideologia e ciência no mundo moderno. Essa indistinção, que faz a economia
política definir seu objeto como sendo as interações entre homem e natureza, encontra
seu correspondente na filosofia política quando ela apreende apenas um dos
aspectos da contradição capitalista: a liberação dos homens em relação aos
meios de produção, sem fazê-la acompanhar da divisão em classes implícita, e de
suas consequências. Somente na sequência desse raciocínio é que seria possível
colocar em xeque a realidade do esquema Estado/sociedade civil. A separação
entre o trabalhador direto e os meios de produção vale – quando tomada
isoladamente – como fundamento da consideração da economia como ciência das
relações entre homem/natureza, com a consequente autonomia das relações
homem/homem, como são tomadas pela política.”
“Não
estamos nos movendo fora dos limites a que Rousseau se propõe, quando tocamos em um
argumento de funcionamento prático do sistema, porque esse argumento conta para
o seu pensamento. Ele chega a ser considerado como o responsável pelo fim moral
dos Estados: “No instante em que o governo usurpa a soberania, o pacto social
se rompe; e todos os simples cidadãos, recolocados de direito em sua liberdade
natural, são forçados, mas não obrigados, a obedecer”[90].
Assim, o domínio do Executivo sobre o Legislativo – do fato sobre a vontade
geral – é retomado em uma sociedade política legitimamente constituída; só que,
agora, ele ressurge sob a forma institucionalizada, materializada em organismos
propriamente políticos: o Executivo e o Legislativo. Se, em Hobbes, o conflito entre a vaidade e o medo da morte
violenta traduz-se na sociedade política sob a forma dos instintos particulares
e do Leviatã, isso não se dá com as mesmas dificuldades, já que não se põe,
para ele, o problema de um corpo político legítimo, mas apenas o de uma
coletividade possível. Por outro lado, em Rousseau, a sociedade política
legitimada pelo Contrato Social, reproduzindo os conflitos que a
antecederam, denuncia como insuficiente a resolução desses conflitos através do
plano político, que deixa de se constituir no lugar por excelência da emancipação
humana.
As
soluções de Rousseau buscam uma conciliação frustrada desde a colocação inicial
da questão. Tratar-se-ia de duas ordens de medidas:
a.
assembleias fixas e periódicas do Legislativo;
b.
submissão à votação, em cada abertura das sessões dessas assembleias, de duas
proposições, submetidas separadamente ao povo: revogação, ou não, da forma de
governo, e continuação, ou não, da delegação de poderes a seus ocupantes.
A
própria limitação das medidas restritivas propostas aponta para as fronteiras
demasiado estreitas em que se move quem não coloca em xeque a própria validade
da existência de um nível de relações humanas propriamente políticas. Pelo fato
de ser o momento mais marcante da filosofia política clássica e, com isso, de
ter elevado ao máximo o lugar das relações políticas na emancipação humana,
Rousseau é quem se dilacera mais profundamente com esses limites. Aprofundando
o seu projeto, aproxima-se mais do que qualquer pensador anterior da verdade do
político. Depois dele, o grande passo da filosofia política, que encaminharia
as soluções dessas questões, já não estaria nas mãos dos intelectuais, mas
seria dado exatamente no plano da prática política, em que se agudizavam as
dificuldades de Rousseau. O fim dessa fase da filosofia
política é marcado pela Comuna de Paris. E, como veremos, não será
gratuitamente que uma de suas medidas definidoras será a concentração, em suas
mãos, tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo; tanto da vontade quanto
da força. Destruindo-se essa dualidade, que Rousseau toma como um “dado
natural” de toda ação humana, os fundamentos da vida política estarão colocados
em jogo.
O
máximo de consciência possível da filosofia política, dentro do esquema
Estado/sociedade civil, não lhe dava o suficiente para se desvencilhar das
antinomias em que se debatia. Sua retomada pelo jovem Marx representou, com seu
aprofundamento, a denúncia de suas insuficiências.”
[90] Jean-Jacques
Rousseau, Obras (Porto Alegre, Globo, 1958, v. II), p. 152.
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