sexta-feira, 13 de junho de 2025

As confissões (Parte II), de Jean-Jacques Rousseau

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-209-4301-4

Opinião: ★★★☆☆

Prefácio e tradução: Wilson Lousada

Páginas: 624

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Sinopse: Ver Parte I



“É uma coisa muito singular que minha imaginação nunca se mostre muito agradavelmente senão quando minha situação é a menos agradável possível e que, ao contrário, é menos sorridente quando tudo ri ao redor de mim. Minha má cabeça não pode sujeitar-se às coisas. Ela não saberia embelezar, ela quer criar. Os objetos reais ali se reproduzem mais ou menos como são; ela só sabe ornar os objetos imaginários. Se quero descrever a primavera, é preciso que esteja no inverno; se quero escrever sobre uma bela paisagem, é preciso que esteja cercado por muros; e disse cem vezes que se algum dia fosse metido na Bastilha, ali faria um quadro da liberdade.”

 

 

“Enquanto, assim dividido entre o trabalho, o prazer e a instrução, eu vivia no mais doce repouso, a Europa não estava tão tranquila quanto eu. A França e o imperador acabavam de declarar-se guerra: o rei da Sardenha tinha se metido na querela e o exército francês manobrava no Piemonte para entrar no ducado de Milão. Passou uma coluna por Chambéri e entre outras o regimento de Champagne, cujo coronel era o senhor duque de la Trimouille, ao qual fui apresentado, e que, me prometendo muitas coisas, seguramente jamais tornou a pensar em mim. Nosso jardinzinho ficava precisamente no alto do bairro pelo qual entravam as tropas e eu me apaixonei pelo resultado dessa guerra como se ela muito me interessasse. Até aí não havia pensado em saber dos negócios políticos; e pus-me então a ler os jornais pela primeira vez, mas com tanta parcialidade pela França que meu coração batia de alegria diante de suas menores vantagens e suas derrotas me afligiam como se me atingissem pessoalmente. Se tal capricho fosse passageiro, nem me daria ao trabalho de falar nele; porém enraizou-se de tal modo em meu coração, sem razão nenhuma, que quando, em Paris, tomei atitude de antidéspota e republicano feroz, sentia a despeito de mim mesmo, uma predileção secreta por aquela mesma nação que achava servil e por aquele governo que eu fingia criticar. O que havia de engraçado era que me envergonhava duma simpatia tão contrária às minhas máximas e não ousava confessá-la a ninguém; censurava os franceses por seus defeitos enquanto meu coração sangrava mais do que o deles. Sou, seguramente, o único que, vivendo num país que o tratava bem e que eu adorava, se revestiu ali mesmo de um falso ar de desprezo. Finalmente tal simpatia foi tão desinteressada de minha parte, tão forte, tão constante, tão invencível que, mesmo depois de ter saído do reino, depois que o governo, os magistrados, os autores me perseguiram à vontade, depois que se tornou moda cumular-me de injustiças e ultrajes, não pude curar-me de minha loucura. Amo-os a despeito de mim mesmo embora me maltratem.

Durante muito tempo procurei a razão dessa parcialidade e não pude encontrá-la a não ser na ocasião em que a vi nascer. Uma crescente paixão pela literatura francesa prendia-me aos livros franceses, aos autores desses livros e ao país desses autores. No momento exato em que desfilavam sob meus olhos os soldados franceses, eu lia os grandes capitães de Brantôme. Tinha a cabeça cheia dos Clisson, Bayard, Lautrec, Coligny, Montmorency, la Trimouille e afeiçoava-me a seus descendentes como aos herdeiros de seus méritos e sua coragem. A cada regimento que passava, julgava rever aquelas famosas tropas negras que outrora haviam feito tantas proezas no Piemonte. Finalmente aplicava ao que via as ideias que bebia naqueles livros: minhas leituras contínuas, e sempre tiradas da mesma nação, nutriam minha afeição por ela e deram-me uma paixão cega que coisa nenhuma conseguiu ultrapassar. Tive ocasião depois, em minhas viagens, de observar que essa impressão não era particularmente minha e que agindo mais ou menos em toda terra, na parte da nação que gostava de ler e que cultivava as letras, ela equilibrava o ódio geral que inspira o ar superior dos franceses. Os romances, mais do que os homens, fazem com que as mulheres de todos os países se apeguem à França; suas obras-primas dramáticas prendem a juventude aos seus teatros. A celebridade de Paris para ali atrai multidões de estrangeiros que, quando podem, voltam entusiasmados. Finalmente o excelente gosto de sua literatura submete-lhe todos os espíritos cultos; e na guerra tão infeliz de que estão saindo, vi seus autores e seus filósofos sustentarem a glória do nome francês, glória que fora empanada por seus guerreiros.”

 

 

“Segundo minha opinião, a ociosidade não é menor flagelo na sociedade do que a solidão. Nada restringe mais o espírito, nada engendra mais insignificâncias, mais mexericos, mais malícia, amofinações, mentiras, que ficarmos eternamente fechados num quarto, tendo como única ocupação a necessidade de falarmos continuadamente. Quando todos estão ocupados, só falamos quando há alguma coisa a dizer; mas quando nada fazemos é absolutamente preciso tagarelar sempre; e eis de todos os constrangimentos o mais incômodo e o mais perigoso. Ouso mesmo ir mais longe e mantenho que para tornarmos um círculo verdadeiramente agradável, é preciso não só que cada qual faça alguma coisa, como que seja algo que exija um pouco de atenção. Um trabalho de dar nós, é o mesmo que não fazer nada; e precisamos tantos cuidados para entreter uma mulher que faz um trabalho de nós como aquele que fica de braços cruzados. Mas quando ela borda, é diferente: ocupa-se o bastante para não notar os intervalos de silêncio. O que há de chocante, de ridículo é ver, durante esse tempo, uma dúzia de magrelas levantar-se, assentar-se, ir, vir, fazer piruetas sobre os calcanhares, revirar duzentas vezes as estatuetas da chaminé e fatigar a imaginação para manter um inesgotável fluxo de palavras: bela ocupação! Essas pessoas, façam o que façam, sempre serão pesadas aos outros e a si mesmas. Quando estava em Motiers ia fazer redes em casa de minhas vizinhas; quando frequentava a sociedade, sempre tinha que trazer no bolso um bilboquê e ficava jogando todo o tempo para dispensar-me de falar quando nada tinha a dizer. Se todos fizessem o mesmo, os homens seriam menos maus, seu trato seria mais seguro e, penso, mais agradável. Enfim que os engraçados riam se quiserem, mas sustento que a única moral à altura do século presente é a moral do bilboquê.”

 

 

“Gozar a vida!, será uma sorte talhada para o homem? Ah!, se algum dia, um só em minha vida, tivesse gozado em sua plenitude todas as delícias do amor, não creio que minha frágil existência pudesse suportar: morreria durante o feito.”

 

 

“Se há na vida sentimento delicioso, é o que experimentamos ao sermos útil uns aos outros.”

 

 

““Em geral, os que creem imaginam Deus como eles mesmos são: os bons o julgam bom, os maus o julgam mau; os devotos, biliosos e cheios de ódio, só veem o inferno porque desejariam maldizer todo o mundo; as almas doces e amantes quase não creem no inferno.”

 

 

“A verdadeira felicidade não se descreve, sente-se e se sente tanto mais quanto menos se pode descrevê-la, porque não é o resultado de uma reunião de fatos e sim dum estado permanente.”

 

 

“Nada demonstra melhor as verdadeiras inclinações dum homem do que a qualidade de suas amizades.”

 

 

Nunca houve para mim um meio-termo entre tudo e nada.”

 

 

“Sempre o disse e senti, a verdadeira alegria não se descreve.”

 

 

“Enquanto eu filosofava sobre os deveres do homem, um acontecimento veio obrigar-me a refletir mais sobre os meus. Thérèse engravidou pela terceira vez. Sincero demais para comigo mesmo, intimamente muito altivo para querer desmentir meus princípios com minhas ações, pus-me a examinar o destino de meus filhos e as minhas relações com Thérèse, sob as leis da natureza, da justiça e da razão, e sob as daquela religião pura, sã, eterna como seu autor, que os homens mancharam, fingindo querer purificá-la e da qual só conseguiram fazer, por meio de suas fórmulas, uma religião de palavras, visto como pouco custa prescrever o impossível quando nos dispensamos de pô-lo em prática.

Se eu me enganava em meus resultados, nada é mais surpreendente do que a segurança com que me entregava. Se eu fosse desses homens maus de nascença, surdos à doce voz da natureza, no peito dos quais jamais germina o verdadeiro sentimento de justiça e de humanidade, aquela dureza seria muito simples; mas aquele calor de coração, aquela viva sensibilidade, aquela facilidade de entregar-me à amizade, aquela força com que as amizades me subjugam, aquele cruel desgosto quando me é preciso rompê-las, aquela bondade inata para com os meus semelhantes, aquele ardente amor ao grandioso, ao verdadeiro, ao belo, ao justo; aquela aversão por toda espécie de mal, aquela impossibilidade de odiar, de aborrecer, e mesmo de desejar mal; aquela ternura, aquela emoção doce e viva que experimento ao ver tudo o que é virtuoso, generoso, amável: tudo isto poderá harmonizar-se na mesma alma com a depravação que faz calcar aos pés, sem escrúpulos, o mais doce dos deveres? Não, sinto-o e digo-o em voz alta, não é possível. Nunca, num só instante de sua vida, Jean-Jacques pode ser um homem sem sentimentos, sem entranhas, um pai desnaturado. Pude enganar-me, porém não ficar empedernido. Se expuser minhas razões, direi demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos outros: não quero expor os jovens que me possam ler a que se deixem arrastar pelos mesmos erros. Contentar-me-ei em dizer que foram tais, que ao entregar meus filhos à educação pública, por não poder educá-los eu mesmo, destinando-os a ser operários e camponeses em vez de aventureiros e cavalheiros de indústria, julguei agir como cidadão e como pai, e considerava-me como um membro da república de Platão. Mais de uma vez, desde então, os gemidos de meu coração me disseram que me havia enganado; mas, longe de minha razão me dizer o mesmo, frequentemente bendisse o céu por tê-los resguardado desse modo do destino do pai e daquele que os ameaçava quando me visse obrigado a abandoná-los. Se os tivesse deixado nas mãos de madame d’Épinay ou nas de madame de Luxembourg, que, por amizade, por generosidade, ou por qualquer outro motivo, deles quiseram se encarregar mais tarde, teriam sido os meus filhos mais felizes, teriam sido educados como homens honrados, pelo menos? Ignoro-o, mas tenho certeza de que os levariam a odiar, talvez até a trair seus pais: cem vezes mais valera que não os tivesse conhecido.

Meu terceiro filho foi, portanto, posto na Roda, assim como os primeiros, e o mesmo aconteceu com os outros dois que se seguiram, pois foram cinco ao todo os filhos que tive. Tal arranjo me pareceu tão bom, tão sensato, tão legítimo, que se não me gabei abertamente, foi apenas por consideração a Thérèse; porém disse-o a todos aqueles a quem havia confessado nossas ligações: disse-o a Diderot, a Grimm; falei sobre ele, mais tarde, com madame d’Épinay, e depois ainda a madame de Luxembourg, e isso livremente, francamente, sem nenhuma espécie de necessidade, e podendo facilmente esconder o fato a todo mundo; pois la Gouin era uma mulher honesta, muito discreta e com a qual contava perfeitamente. O único de meus amigos com quem tive necessidade de me abrir foi com o médico Thierry, que cuidou da minha pobre tia num dos partos em que passou bem mal. Numa palavra, não fiz nenhum mistério de minha conduta, não só porque nunca soube esconder nada de meus amigos, como porque, na verdade, nada via de mal no que fazia. Bem pesadas as coisas, escolhi o melhor para os meus filhos, ou pelo menos aquilo que julgava ser o melhor. Teria querido mais ainda: preferia ter sido educado e criado como eles o foram.

Enquanto fazia desse modo as minhas confidências, madame le Vasseur também as fazia por seu lado, porém com objetivos menos desinteressados. Eu as havia levado, a ela e a filha, à casa de madame Dupin que, por amizade a mim, tinha tido mil bondades para com elas. A mãe pô-la ao corrente do segredo da filha. Madame Dupin, que é boa e generosa, e a quem ela não dizia quanto, apesar da modicidade de meus recursos, eu me esforçava para prover a tudo, procurava, por seu lado, diminuir as necessidades com uma liberalidade que, por ordem de madame le Vasseur, Thérèse sempre me ocultou durante minha estadia em Paris, e cuja confissão só me veio a fazer na Ermitage, depois de vários desafogos de coração. Eu não sabia que madame Dupin, que nunca me deixou perceber qualquer coisa, estivesse tão ao par de tudo; também ignoro se madame de Chenonceaux, sua nora, o sabia; mas madame de Francueil, sua enteada, não o ignorava e não pôde calar-se. No ano seguinte tocou-me no assunto, quando eu já havia deixado sua casa. Isso me forçou a escrever-lhe uma carta, que encontrarão em meus papéis, e na qual exponho as razões que podia dar sem comprometer madame le Vasseur e sua família; pois os mais fortes determinantes daí partiam, e calei-os.2

Tenho plena confiança na discrição de madame Dupin e na amizade de madame de Chenonceaux; tinha-a na de madame de Francueil, que além disso morreu muito antes que meu segredo fosse divulgado. Só poderia ter sido espalhado pelas mesmas pessoas a quem eu o havia confiado, e só o foi efetivamente depois de minha ruptura com elas. São julgados só por esta ação: sem querer desculpar-me da reprovação que mereço, prefiro ser apontado como culpado a receber a acusação que a perversidade deles merece. Minha culpa é grande, mas é um erro: negligenciei meus deveres, mas o desejo de prejudicar não entrou em meu coração, e as entranhas paternas não saberiam falar poderosamente pelos filhos que nunca viram: mas trair a confiança da amizade, violar o mais santo de todos os pactos, publicar os segredos vertidos em nosso seio, desonrando por prazer o amigo que enganamos e que nos respeita ainda ao nos deixar, não são faltas apenas, são baixezas morais e torpezas.3

Prometi-lhes a minha confissão e não minha justificação, por isso ponho ponto final no assunto. Cabe-me não faltar à verdade, ao leitor cabe ser justo. Não lhe pedirei nada mais.”

2 Essas razões, as mais determinantes, que só deixa entrever aqui, são positivamente explicadas no livro IX e principalmente em suas Réveries: “O certo é que foi o medo de um destino, para meus filhos, mil vezes pior e quase inevitável por qualquer outro caminho, que mais influiu em minha decisão... Não estando em condições de educá-los pessoalmente, ter-me-ia sido preciso, em minha situação, que a mãe os criasse, o que os tornaria mimados, e educados por sua família, que deles teria feito monstros. Ainda estremeço só em pensar.” (Oitavo Passeio).

Já vimos anteriormente a ideia odiosa que nos dá de todos os indivíduos dessa família; e o que vai acrescentar em breve, o roubo da sua roupa branca, só contribuirá para confirmá-la.

Para não termos que voltar nessas notas a um assunto tão triste, vamos, resumindo, colocar os leitores a par de alguns fatos que a ele se ligam, pondo-os na altura de determinarem o grau de indulgência ou de severidade com que devem fazer seu julgamento.

Primeiro, pela ideia que nos dá Rousseau no seu VII livro, das pessoas com que lidava nos primeiros tempos de sua ligação com Thérèse le Vasseur e o efeito que sobre ele causou o modo daqueles companheiros pensarem e viverem, fica bem provado que, se foi cinco vezes culpado por abandonar os filhos, não foram as mesmas causas que determinaram os cinco abandonos sucessivos. No abandono dos dois primeiros, seguiu Rousseau o exemplo dado por homens tão divertidos, tão amáveis, que via e ouvia diariamente em casa de la Selle, sua hospedeira. Resolveu-se a fazê-lo, nos diz ele alegremente, como aqueles amigos faziam em caso semelhante.

Quando nasceu o terceiro, sua situação era outra. Já era autor, e autor famoso, meditava novas obras, filosofava sobre os deveres do homem, e sua ação desta vez, diz-nos ele mesmo, foi resultado duma resolução bem pesada e com seus motivos. “Se dissesse minhas razões, acrescenta ele, diria demais. Já que conseguiram seduzir-me, seduzirão muitos outros.” Essas razões são fáceis de perceber; e duvidamos que após um exemplo tão fatal, seja de temer sua sedução. Nosso filósofo, assim que entrou para a carreira das letras, sentiu-se chamado, ou melhor, empurrado pelo seu gênio para trabalhos e deveres de ordem mais elevada que não se conciliavam com as preocupações importunas e vulgares impostas a um pai sem fortuna pela necessidade de educar e criar os filhos. Encarregando a sociedade de criá-los e educá-los no estabelecimento destinado a isso mesmo, julgava-se ele em estado de indenizá-la amplamente com suas obras. Se realmente Rousseau teve esta ideia, não se trata mais de saber se, falando de modo geral, merece aprovação; sofreu a condenação a este respeito: mas, uma vez a ideia admitida, mais valeria que houvesse no mundo cinco pessoas a mais com o nome de Rousseau, criadas pelo próprio pai, e que Heloísa e Emílio não tivessem sido escritas; numa palavra, resta-nos saber se Rousseau, tendo-nos encarregado de seus filhos, nos deu efetivamente a compensação de que se gabava.

De resto, se Rousseau, culpado dentro do direito, se acha justificado deste modo, apressemo-nos a observar ainda que nunca teve para consigo mesmo esta espécie de justificação. Mesmo no auge da glória e quando recebia de todos os lados os tributos de reconhecimento e de admiração, o remorso agitava sua alma e influía em sua conduta privada. Os leitores verão a prova disso no livro XII e na passagem de Emílio que vem citada em nota nessa ocasião. (N.T.)

3 No tempo em que Rousseau morava em Paris, o ter enviado sucessivamente seus cinco filhos à casa de caridade era, no quarteirão em que residia, fato notório. Eis o que diz a esse respeito aquele que se encarregou, no Jornal enciclopédico, da obra de Ginguené sobre as Confissões na época de sua publicação, em 1791: “O acaso levara-me a morar na rua Grenelle-Saint-Honoré, bem em frente à casa onde Rousseau ocupava o terceiro andar. Um cabeleireiro tinha loja naquela casa e tornou-se meu fornecedor. Sempre evitei a conversa com homens dessa profissão e, no momento de ajeitar os cabelos, raramente deixava de me munir com um livro. Porém foi exatamente esta precaução que me traiu. Um belo dia estava eu com um dos volumes de M. Rousseau, e eis que o meu cabeleireiro vem me dizer que era um homem muito conhecido, e que ele era amigo da governante, a quem muito lamentava, visto que os filhos que tinha com o patrão eram barbaramente mandados para os Enfants-Trouvés. Não acreditei, etc., etc.” (Extraído dos jornais de agosto de 1791.) (N.T.)

 

 

“Pouco custa prescrever o impossível quando nos dispensamos de pô-lo em prática.”

 

 

A impaciência de ir para l’Ermitage não me deixou esperar pela primavera; e assim que minha casa ficou pronta, tratei de mudar-me com grande algazarra do partido holbáquico que em voz alta predizia que eu não suportaria três meses de solidão e que dentro em pouco me veriam, envergonhado, voltar para viver em Paris como eles. Quanto a mim, que há quinze anos me via fora de meu elemento, achando-me prestes a volver ao campo, nem prestava atenção às zombarias. Desde que me lançara no mundo, contra minha vontade, não tinha cessado de chorar as minhas queridas Charmettes e a doce vida que ali tinha levado. Sentia-me talhado para o sossego do campo; era-me impossível viver feliz noutros lugares: em Veneza, metido nos negócios públicos, na dignidade duma espécie de representação, no orgulho de projetos ambiciosos; em Paris, no turbilhão da grande sociedade, na sensualidade das ceias, no esplendor dos espetáculos, cercado pelos fumos da glória, os meus bosques, meus regatos, meus solitários passeios, sempre vinham me distrair com sua lembrança, contristando-me, arrancando-me suspiros e anseios. Todos os trabalhos a que tinha podido submeter-me, todos os projetos de ambição que, por acessos, tinham me entusiasmado não visavam a outra coisa senão chegar um dia àqueles benditos lazeres campestres que naquele momento eu me gabava de alcançar. Sem ter chegado a um bem-estar fácil, que sempre achara ser o único meio de obter o que desejava, eu julgava, devido à minha situação especial, poder dispensá-lo e alcançar o mesmo fim por um caminho completamente diferente. Não tinha um vintém de renda: mas tinha um nome e meus dons; era sóbrio e fugira às necessidades mais dispendiosas, a todas as exigências da opinião. Além disso, apesar de preguiçoso, sabia ser laborioso quando o queria ser; e minha preguiça era mais a dum homem independente do que a dum mandrião, pois só gostava de trabalhar quando tinha vontade de fazê-lo. O meu trabalho como copista de música não era brilhante nem lucrativo: porém era certo. Sabiam que eu estava satisfeito com ele por ter tido a coragem de escolhê-lo. Podia contar que trabalho não me faltaria e que daria para eu viver, se trabalhasse bem. Os dois mil francos que me restavam dos lucros de Devin du village e de meus outros escritos concorriam para que vivesse sem apertos; e várias obras que tinha me prometiam, sem nada pedir aos editores, suplementos suficientes para trabalhar à vontade, sem me exceder e mesmo gozando os prazeres dos passeios. Meu pequeno lar, composto de três pessoas, todas trabalhando e sendo úteis, não era de manutenção dispendiosa. Finalmente todos os meus recursos, em proporção aos meus desejos e minhas necessidades, razoavelmente podiam prometer-me uma vida de felicidade duradoura naquela que meus pendores me fizeram escolher.

Poderia escolher somente o lado lucrativo, e em vez de sujeitar minha pena à cópia de música, podia devotá-la inteiramente aos escritos que, com o voo que eu empreendera e que me sentia em estado de sustentar, dariam para eu viver na abundância e até na opulência, por pouco que tivesse querido reunir minhas habilidades de autor ao cuidado de publicar bons livros. Todavia eu sentia que escrever para ganhar o pão teria, bem depressa, abafado o meu gênio e matado meu talento, pois estes residiam mais em meu coração do que na pena, e minha inspiração nascera simplesmente dum modo de pensar elevado e altivo, única condição que podia nutri-la. Nada de vigoroso, nada de grande pode partir duma pena completamente venal. A necessidade, talvez a avidez, ter-me-ia feito escrever depressa de preferência a escrever bem. Se a necessidade do sucesso não me tivesse mergulhado nas cabalas, ter-me-ia impelido a dizer coisas que agradassem à multidão em vez das úteis e verdadeiras; e de autor ilustre passaria a garatujador de papel. Não, não: sempre senti que a carreira de escritor não era profissão e só podia ser ilustre e respeitável, enquanto não fosse obrigação. É muito difícil pensar com nobreza quando nos preocupamos em ganhar para viver. Para poder, para ousar dizer grandes verdades, não se deve contar com o seu sucesso. Dava meus livros ao público com a certeza de ter falado para o bem comum, sem nenhuma preocupação pelo resto. Se a obra era refugada, tanto pior para aqueles que dela não queriam tirar proveito. Quanto a mim, não precisava de sua aprovação para viver. O meu trabalho de copista dava para viver se meus livros não se vendessem; e eis precisamente o que contribuía para que eles se vendessem.”

 

 

“Uma vez que escondemos qualquer coisa de alguém que amamos, em breve não temos mais escrúpulos em guardar segredo a respeito de tudo.”

 

 

“Tudo parecia concorrer para me tirar de meu devaneio doce e louco. Não estava curado de meu ataque quando recebi um exemplar do poema sobre a ruína de Lisboa, que supus me ter sido enviado pelo autor. Isso me pôs na obrigação de lhe escrever e de falar-lhe de sua obra. Fi-lo por intermédio de uma carta, que foi publicada muito tempo depois, sem o meu consentimento, como ficará explicado mais abaixo. Admirado por ver aquele pobre homem, acabrunhado, por assim dizer, pela prosperidade e pela glória, declamar no entanto, e amargamente, contra as misérias desta vida e sempre achar que tudo andava mal, formei o insensato projeto de fazer com que ele compreendesse, provando-lhe que tudo andava bem. Voltaire, sempre parecendo crer em Deus, realmente nunca acreditou senão no diabo, já que seu pretenso Deus não passa dum ser malfazejo que, segundo ele, só acha prazer em causar aborrecimentos. O absurdo desta doutrina, que salta aos olhos, é principalmente revoltante num homem que acumulou bens de toda espécie, que, no meio da felicidade, procurou fazer seus semelhantes desesperarem, pintando-lhes a imagem pavorosa e cruel de todas as calamidades que não o atingiram. Com mais autoridade do que ele para levar em conta e pesar os males da vida humana, deles fiz um exame imparcial e provei-lhe que, de todos aqueles males, não havia um só de que a providência não fosse desculpada e que não tivesse sua origem mais no abuso que o homem fazia de suas faculdades, do que na própria natureza. Naquela carta, tratei-o com todo o respeito, com toda a consideração, toda atenção e, posso dizer, com todo respeito possível. Entretanto, sabendo-o dono dum amor-próprio extremamente irritável, não lhe mandei esta carta diretamente e sim enviei-a ao doutor Tronchin, seu médico e seu amigo, com plenos poderes para entregá-la ou destruí-la, segundo achasse mais conveniente. Tronchin entregou a carta. Voltaire me respondeu, em poucas linhas, que, estando doente e sendo ele mesmo o enfermeiro, adiava para outra ocasião a resposta e não disse palavra sobre a questão. Tronchin, mandando-me a carta, juntou-lhe uma, onde deixava transparecer pouca estima por aquele que lhe havia entregue.

Nunca publiquei nem mesmo mostrei estas duas cartas, por não gostar de fazer ostentação de pequenos triunfos desta espécie; porém elas estão em originais nas minhas coleções (maço A, nos 20 e 21). Depois, Voltaire publicou aquela resposta que me havia prometido, mas que não me endereçou diretamente. É ela simplesmente o romance de Cândido, sobre o qual não posso falar porque não o li.”

 

 

“Muito tempo hesitei sobre a maneira pela qual deveria conduzir-me junto dela, como se o verdadeiro amor deixasse bastante razão para seguir deliberações.”

 

 

“Assim que me vi só, voltei a mim; sentia-me mais calmo depois de ter falado (me declarado): o amor quando conhecido por aquela que o inspira se torna mais suportável.”

 

 

“As mulheres conhecem a arte de esconder o ódio, principalmente quando é um ódio forte.”

 

 

“É no campo que aprendemos a amar e a servir à humanidade: na cidade só aprendemos a desprezá-la!”

 

 

“Se é uma desgraça alguém enganar-se na escolha de seus amigos, não é outra menos cruel despertar dum erro tão doce.”

 

 

“Minhas piores culpas foram as da omissão: raramente fiz o que não devia fazer e desgraçadamente com mais raridade ainda fiz o que eu tinha necessidade de fazer.”

 

 

“A princípio eu começara por interessar-me muito por madame du Deffand, a quem a perda da visão a tornava, para mim, digna de comiseração: mas sua maneira de viver, tão contrária à minha, cuja hora de despertar quase que era a hora em que ela ia deitar-se; sua ilimitada paixão pelos homens espirituosos; a importância que dava, por bem ou por mal, aos menores escritos sem importância que apareciam; o despotismo e o arrebatamento de suas máximas; sua preocupação excessiva pró ou contra todas as coisas, que não lhe permitia discutir as coisas sem convulsões; seus incríveis preconceitos, sua invencível obstinação, o extravagante entusiasmo a que a levava a perseverança em opiniões apaixonadas; tudo isso me afastou depressa dos cuidados que desejava prestar-lhe. Fui me afastando; ela o percebeu: foi o bastante para enfurecê-la; e apesar de eu sentir o quanto era para recear uma mulher com tal temperamento, preferi ainda assim expor-me ao flagelo de seu ódio do que ao de sua amizade.”

 

 

Tinha com que me distrair em viagem, entregando-me às reflexões que se apresentavam sobre tudo o que acabava de me suceder; porém não era essa a disposição de meu espírito nem os desejos de meu coração. É admirável a facilidade com que, passado o mal, por mais recente que seja, eu o esqueço. Quanto mais a previsão me amedronta e perturba quando o vejo desenhar-se no futuro, tanto mais sua lembrança me volta fracamente e se extingue com facilidade assim que o mal acontece. Minha imaginação cruel, que sem cessar se atormenta pensando nas desgraças que ainda não existem, afasta-me da que aconteceu e me impede de recordar as que já passaram. Contra aquilo que já não existe não há mais precauções a tomar e é inútil preocupação. De certo modo, esgoto minha infelicidade antecipadamente: quanto mais sofri ao prever um acontecimento, mais facilidade tenho em esquecê-lo; ao passo que ao contrário, incessantemente ocupado com a minha felicidade passada, dela me lembro e a rumino, por assim dizer, a ponto de gozá-la de novo quando quero. É a esta feliz disposição, sinto, que devo nunca ter conhecido aquele humor rancoroso que fermenta num coração vingativo para recordação contínua das ofensas recebidas, e que se atormenta a si mesmo com todo o mal que desejaria causar a seu inimigo. Naturalmente arrebatado, experimentei a cólera, o próprio ódio nos primeiros impulsos; porém nunca um desejo de vingança criou raízes dentro de meu peito. Ocupo-me muito pouco com as ofensas para me ocupar muito com quem me ofendeu. Só penso no mal que recebi por causa daquele que ainda posso vir a receber; e se estivesse seguro de que não mais me faria mal, seria imediatamente esquecido aquele que mo causasse. Pregam-nos muito o perdão às ofensas: é uma virtude muito bela sem dúvida, mas que não ponho em uso. Ignoro se meu coração saberá dominar o ódio, pois nunca experimentei tal sentimento e penso muito pouco em meus inimigos para ter o mérito de perdoá-los. Não direi até que ponto, para me atormentar, eles mesmos se atormentaram. Estou à sua mercê, têm eles todo o poder, dele usam. Só há uma única coisa acima de seu poderio e a que eu os desafio: é, preocupando-se comigo, obrigarem-me a preocupar-me com eles.”

 

 

Espíritos sem cultura e sem luzes não conhecem outro objeto de estima senão a reputação, o poder e o dinheiro, estão até bem longe de supor que se deve algum respeito aos talentos e que há certa desonra em ultrajá-los.”

 

 

“Sempre gostei apaixonadamente da água e ao vê-la fico num devaneio delicioso, apesar de ser sempre sem objetivo. Nunca deixei, logo ao despertar, quando o tempo estava bonito, de correr para a colina para aspirar o ar saudável e fresco da manhã e para descansar os olhos nas tranquilas águas daquele lago que com seus rios e montanhas encantavam a minha vista. Não descubro homenagem mais digna à Divindade do que aquela muda admiração excitada pela contemplação de suas obras e que não se exprime por ações. Compreendo por que os que moram em cidades, e só veem paredes, ruas e crimes, têm pouca fé; porém não posso compreender por que os camponeses, e principalmente os que vivem solitários, podem deixar de tê-la. Pois suas almas extasiadas não se elevam cem vezes por dia ao Autor das maravilhas que têm debaixo dos olhos?”

As confissões (Parte I), de Jean-Jacques Rousseau

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-209-4301-4

Opinião: ★★★☆☆

Prefácio e tradução: Wilson Lousada

Páginas: 624

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Sinopse: Livro autobiográfico publicado após a morte do autor, As confissões de Jean-Jacques Rousseau podem ser lidas como um autêntico romance, resumindo a riqueza de uma personalidade que buscou compreender a vida pelo exercício da escrita, da filosofia e da educação. Na narrativa de sua trajetória, Rousseau considera tanto a perspectiva do homem quanto a do pensador, revelando o contexto em que surgiram diversas de suas teorias — o que acabou por tornar esta obra, dentre toda a sua produção, aquela que permanece mais viva através dos tempos. A presente edição tem tradução e prefácio do poeta e crítico literário Wilson Lousada.



“Senti antes de pensar; é o destino da humanidade.”

 

 

“A tirania de meu patrão acabou por tornar insuportável o trabalho que eu teria amado e por dar-me hábitos maus que teria odiado, tais como a mentira, a preguiça e o roubo. Nada me ensinou melhor a diferença que há entre a dependência filial e a escravatura servil do que a lembrança das modificações que esta época produziu em mim. De natural tímido e vergonhoso, nunca senti maior aversão por um defeito do que pelo descaramento; porém tinha gozado uma liberdade honesta, que somente fora restrita por graus até aquela época e que desaparecera de todo. Fora ousado em casa de meu pai, livre em casa de M. Lambercier, discreto em casa de meu tio; tornei-me medroso em casa de meu patrão e desde então fui uma criança perdida. Acostumado, na maneira de viver, a uma igualdade perfeita com meus superiores, a não conhecer um prazer que não estivesse a meu alcance, a não ver um prato do qual não tivesse a minha parte, a não ter um desejo que não o dissesse, a pôr nos lábios, enfim, tudo o que ia em meu coração: que julguem o que foi feito de mim numa casa em que não ousava abrir a boca, onde era preciso sair da mesa antes de terminar a refeição e do quarto imediatamente, quando nada mais tinha a fazer ali; onde, sempre preso ao trabalho, só via motivos de prazer para os outros e de privações para mim; onde a imagem da liberdade do patrão e dos companheiros aumentava o peso de minha sujeição; onde, nas disputas sobre coisas que eu sabia melhor, não ousava abrir a boca; enfim, onde a menor coisa que eu via tornava-se para meu coração um objeto de cobiça, unicamente porque vivia privado de tudo. Adeus desafogo, alegria, saídas felizes que antes, quando em falta, tão frequentemente me tinham feito escapar ao castigo. Não posso lembrar-me sem rir de que uma noite, em casa de meu pai, sendo condenado por alguma travessura a ir deitar-me sem ceia e passando pela cozinha com o meu triste pedaço de pão, vi e senti o cheiro do assado que dava voltas no espeto. Estavam ao redor do fogo: era preciso que, ao passar, eu cumprimentasse todos. Quando, terminada a volta, olhei com o rabo aquele assado que estava com uma cara tão boa e que cheirava tão bem, não pude deixar de cumprimentá-lo também e de dizer-lhe em tom que causava dó: Adeus, assado. Este dito ingênuo pareceu tão engraçado que me deixaram ficar para a ceia. Talvez tal observação fosse igualmente feliz em casa de meu patrão, porém o certo é que não me teria vindo aos lábios ou que não teria ousado fazê-la.

Eis como aprendi a cobiçar em silêncio, a esconder-me, a dissimular, a mentir e finalmente a roubar; ideia que até então não tinha tido e da qual não pude, desde então, ficar bem curado. A cobiça e a impotência levam sempre a isso. É por isso que os lacaios são marotos e é por isso que todos os aprendizes devem sê-lo: mas quando as condições são iguais e sem injustiças, quando tudo o que veem está ao seu alcance, estes últimos perdem, ao crescer, essa inclinação vergonhosa. Não tendo tido a mesma vantagem, não pude tirar o mesmo proveito.

Quase sempre são os bons sentimentos mal dirigidos que fazem com que as crianças deem o primeiro passo para o mal.”

 

 

“A lisonja, ou melhor, a condescendência, não é sempre um defeito; mais constantemente é uma virtude, principalmente nas pessoas jovens. A bondade com que um homem nos trata faz com que nos apeguemos a ele; não é para iludi-lo que cedemos ante seus argumentos, é para não entristecê-lo, para não pagar o bem com o mal.”

 

 

“Antes de ir mais adiante, devo ao leitor minhas desculpas ou uma justificação por tantos detalhes insignificantes sobre os quais entrei e sobre os que encetarei em seguida e que nada têm de interessante a seus olhos. Na tarefa que a mim mesmo me impus, de mostrar-me tal como sou ao público, é preciso que de mim nada fique mal explicado ou escondido; é preciso que incessantemente me mantenha debaixo de seus olhos; que ele me siga em todos os erros de meu coração, em todos os recantos de minha vida; que ele não me perca de vista um só instante, de medo que, encontrando em minha narrativa a menor lacuna, a menor falha, e a si mesmo perguntando que fez ele durante esse tempo?, não me acuse de não ter querido dizer tudo. Com minhas confissões já dou bastante pasto à malignidade dos homens para dar-lhes mais ainda com meu silêncio.”

 

 

“O sofisma que me perdeu é o mesmo da maioria dos homens que se queixam de não ter forças quando já é tarde para usá-las. A virtude só nos é custosa por culpa nossa; e se quiséssemos ser sempre prudentes, raramente teríamos necessidade de sermos virtuosos. Mas as inclinações fáceis de domar nos levam sem resistência; cedemos a tentações ligeiras cujo perigo desprezamos. Insensivelmente caímos em situações perigosas, das quais poderíamos facilmente nos precatar, porém das quais não podemos mais sair sem esforços heroicos que nos metem medo; e finalmente caímos no abismo, dizendo a Deus: Por que me fizestes tão fraco de vontade? Porém, a nosso pesar, ele responde à nossa consciência: Fiz-te fraco demais para saíres do abismo porque te fiz forte demais para não caíres nele.”

 

 

“Meu pouco êxito junto às mulheres veio sempre do fato de amá-las demais.”

 

 

“Minha estadia em casa de madame Vercellis tinha favorecido algumas relações que eu mantinha na esperança de que viessem a ser úteis. Entre outras eu ia ver, de vez em quando, um abade saboiano chamado M. Gaime, preceptor dos filhos do conde de Mellarède. Ele era ainda jovem e pouco relacionado, mas cheio de bom senso, probidade, luzes e um dos mais honestos homens que conheci. Não me auxiliou em nada quanto ao objetivo que me levara à sua casa, não tinha muitas amizades para poder colocar-me; porém perto dele tirei proveitos que me foram muito mais preciosos durante a vida toda: as lições de moral sã e as máximas da perfeita razão. Na sucessiva ordem de meus pendores e minhas ideias, sempre tinha estado ou alto demais ou baixo demais, Aquiles ou Theresite, ora herói, ora patife. M. Gaime tratou de pôr-me no devido lugar e de mostrar-me tal como eu era sem censurar-me nem desencorajar-me. Falou-me muito generosamente sobre meu gênio e minhas qualidades: mas acrescentou que via surgirem obstáculos que me impediriam de tirar partido delas; de modo que deviam, segundo ele, servir-me muito mais como expedientes para viver sem fortuna do que degraus para alcançá-la. Fez-me um verdadeiro quadro da vida humana, sobre a qual eu só tinha falsas ideias; mostrou-me como, com uma sorte adversa, o homem prudente sempre pode alcançar a felicidade e correr sempre a favor do vento que para ela sopra; como não há verdadeira felicidade sem prudência e como esta pertence a todas as condições. Diminuiu bastante a minha admiração pela grandeza provando-me que aqueles que dominam os outros não eram nem mais sábios nem mais felizes do que estes. Disse-me uma coisa que sempre me volta à memória: é que se cada homem pudesse ler no coração dos outros, veria que há muito mais pessoas que querem descer do que as que querem subir. Tal reflexão, cuja franqueza fere e que nada tem de exagerado, foi-me muito útil no decurso de minha vida, obrigando-me a manter-me em meu lugar tranquilamente. Deu-me as primeiras ideias sinceras sobre a virtude, que meu gênio orgulhoso só me deixava ver em seus excessos. Fez-me sentir que o entusiasmo pelas virtudes sublimes era pouco usado na sociedade; que quem muito se eleva está sujeito às quedas; que a continuidade de pequenos deveres sempre bem cumpridos não pedia menos força do que as ações heroicas; que delas se tirava partido melhor para a honra e para a felicidade; e que valia infinitamente mais ter sempre a estima dos homens do que, de vez em quando, sua admiração.”

 

 

“Ousaria dizê-lo, quem só sente o amor sente o que há de mais doce na vida. Conheço um outro sentimento, menos impetuoso talvez, porém mil vezes mais delicioso, que algumas vezes se junta ao amor e que frequentemente vem separado. Esse sentimento não é, tão pouco, a simples amizade: é mais voluptuoso, mais terno: não creio que possa ser experimentado por pessoas do mesmo sexo; pelo menos fui amigo como poucos o foram e não o experimentei jamais perto de nenhum homem. Essa afirmativa não é clara, porém tornar-se-á compreensível mais adiante: os sentimentos não se descrevem senão por seus efeitos.”

 

 

“Não sentia toda a força de meu apego por ela senão quando não a via. Quando a tinha sob os olhos, ficava contente apenas; contudo minha inquietação em sua ausência era quase dolorosa. A necessidade de viver com ela me dava crises de enternecimento que muitas vezes iam até as lágrimas. Recordar-me-ei sempre de que, num dia santo, enquanto ela assistia às vésperas, fui passear fora da cidade, o coração cheio de sua imagem e com o desejo ardente de passar meus dias junto dela. Tinha bastante compreensão para ver que, no momento presente, isso não era possível e que a felicidade que eu tanto saboreava seria curta. Isso emprestava a meus devaneios uma tristeza que nada tinha, no entanto, de sombria e que uma esperança lisonjeira temperava. O toque dos sinos, que sempre me afligiu singularmente, o canto dos pássaros, a beleza do dia, a doçura da paisagem, as casas esparsas e campestres nas quais, em imaginação, construía nossa vida em comum; tudo isso me dá uma impressão tão viva, terna, triste e comovedora que me vejo, como em êxtase, transportado para aquele tempo feliz e para aquela estadia encantadora em que meu coração, possuindo toda a felicidade que podia agradar-lhe, saboreava-a em inexprimíveis arrebatamentos, sem mesmo sonhar com a voluptuosidade dos sentidos. Não me lembro de jamais me ter lançado no futuro com mais força e ilusão do que naquele tempo; e o que mais me comoveu na lembrança de tais devaneios, quando se realizaram, foi ter encontrado as coisas tais quais eu as havia imaginado. Se algum dia o sonho de um homem acordado teve o ar duma visão profética, foi aquele, certamente. Só me iludi em sua imaginária duração, na qual os dias, os anos e a vida inteira passavam-se em inalterável tranquilidade; ao passo que, na realidade, tudo aquilo não durou mais do que um momento. Ai de mim! A felicidade mais duradoura que gozei foi em sonho: a realização desse sonho foi quase que imediatamente seguida do despertar.”

 

 

“Duas coisas quase inadaptáveis uniram-se em mim sem que eu pudesse imaginar como: um temperamento muito ardente, paixões vivas, impetuosas e ideias de nascimento lento, embaraçadas e que nunca se apresentavam senão depois de um acontecimento. Dir-se-ia que meu coração e meu espírito não pertenciam ao mesmo indivíduo. O sentimento, mais rápido do que o relâmpago, vem ocupar minha alma; porém, em vez de iluminá-la, queima-me e me ofusca. Sinto tudo e nada vejo. Sou arrebatado, mas estúpido; é preciso que esteja com sangue-frio para pensar. O que há de surpreendente é que, no entanto, tenho bastante tato, penetração, argúcia mesmo, contanto que tenham paciência comigo: faço excelentes improvisos com vagar, mas instado, jamais fiz alguma coisa ou disse algo que valesse a pena. Manteria uma conversa bem agradável na carruagem de posta, assim como dizem que os espanhóis jogam xadrez. Quando li uma passagem sobre o duque de Saboia que voltou, quando já a caminho, para gritar: À sua garganta, comerciante de Paris, eu digo: Eis-me aqui.

Esta lentidão no pensar junto a essa vivacidade no sentir, não a experimento somente durante a conversa, experimento-a mesmo quando só e quando trabalho. As ideias arrumam-se em minha cabeça com a mais incrível dificuldade: circulam por ali surdamente, fermentam até me comoverem, abafarem-me, darem-me palpitações; e, no meio de toda essa emoção, nada vejo nitidamente, não saberia escrever uma palavra só: é preciso que eu a espere. Insensivelmente essa grande agitação se acalma, o caos se aclara, cada coisa vem pôr-se no devido lugar, mas lentamente e após uma perturbação longa e difícil. Já assistiu alguma vez à ópera na Itália? Nas mudanças de cenário reina, naqueles grandes teatros, uma desordem desagradável e que dura muito tempo; todas as decorações são misturadas, por todo lado há uma agitação que aborrece, julga-se que tudo vai ficar de pernas para o ar; entretanto, aos poucos, tudo se arranja, não falta nada e ficamos surpresos quando vemos suceder a um tumulto tão longo um espetáculo deslumbrante. Esta manobra é quase igual à que tem lugar em meu cérebro quando quero escrever. Se eu tivesse sabido esperar antes, e depois descrever em toda sua beleza as coisas que me são inspiradas desse modo, poucos autores me teriam sobrepujado.

Daí vem a extrema dificuldade que encontro para escrever. Meus manuscritos riscados, borrados, confusos, indecifráveis atestam o trabalho que me dão. Não há um só que não me tivesse sido preciso transcrever quatro ou cinco vezes antes de entregá-lo à prensa. Nunca consegui fazer alguma coisa com a pena na mão e diante da mesa com o papel; é durante os passeios, no meio dos rochedos e dos bosques; é à noite em meu leito e durante as minhas insônias que tomo nota em meu cérebro: podem calcular com que lentidão, principalmente para um homem absolutamente desprovido de memória verbal e que a vida inteira jamais conseguiu decorar seis versos. Há períodos que virei e revirei na cabeça durante cinco ou seis noites antes que estivesse em estado de ser posto no papel. Daí decorre ainda que me saio melhor nas obras que exigem trabalho do que naquelas que querem ser feitas com certa ligeireza, como as cartas, gênero cujo tom jamais consegui alcançar e que me causam suplícios quando as escrevo. Não escrevo cartas, mesmo sobre os menores assuntos, que não me custem horas de fadiga, ou, se quero escrever logo o que se me apresenta, não sei nem começar nem acabar; minha carta é um palavrório longo e confuso; mal entendê-la-ão quando a lerem.

Não só custo a interpretar as ideias como até custo a concebê-las. Estudei os homens e me julgo um observador muito bom: entretanto não sei ver nada do que tenho sob os olhos; não vejo bem o que me trazem à lembrança e só tenho inspiração em minhas recordações. Em tudo o que dizem, em tudo o que fazem, em tudo o que se passa em minha presença, não sinto nada, não possuo penetração para nada. A exterioridade é tudo o que me impressiona. Todavia tudo aquilo me volta à lembrança, recordo-me do lugar, da ocasião, do tom, do olhar, gesto, circunstância: nada me escapa. Então, sobre aquilo que fazem ou dizem, encontro o que pensaram e dificilmente me engano.

Tão pouco senhor de minha sagacidade, mesmo quando só, julguem pois o que devo ser em conversa quando, para falar convenientemente, e preciso pensar em mil coisas ao mesmo tempo e sucessivamente. Só o ter que me lembrar de tantas conveniências, das quais tenho certeza de esquecer uma pelo menos, é o bastante para intimidar-me. Nem mesmo compreendo como ousam falar num círculo de pessoas; porque ante cada palavra é preciso passar em revista todos os que se acham ali; é preciso conhecer todos os gênios, saber-lhes as histórias para ter certeza de não dizer nada que possa ofender alguém. Neste ponto os que vivem em sociedade têm uma grande vantagem: sabendo melhor o que é preciso calar, têm mais certeza do que dizem; entretanto ainda assim lhes escapam frequentemente muitas grosserias. Julguem aquele que repentinamente cai ali: quase que lhe é impossível falar impunemente um minuto. Nos encontros a sós há um outro inconveniente que acho pior, a necessidade de falar seguidamente: quando lhe falam, é preciso responder e se não lhe dizem nada, é preciso animar a conversa. Esse constrangimento insuportável foi o que me fez desgostar da sociedade. Não vejo vexame mais terrível do que a obrigação de falar logo e sempre. Não sei se isso se relaciona com a minha mortal aversão por tudo o que é sujeição: mas basta que seja absolutamente preciso que eu fale para que, infalivelmente, eu diga uma tolice.

O que há de mais fatal é que em vez de calar-me quando nada tenho a dizer é quando, para desobrigar-me depressa, sinto o prurido de querer falar. Apresso-me a balbuciar logo palavras sem ideias, muito feliz quando nada significam. Querendo vencer ou esconder minha inépcia, raramente deixo de mostrá-la. Entre os mil exemplos que poderia citar, tomo um que não é de minha juventude e sim duma época em que, depois de ter vivido muitos anos em sociedade, teria tempo de aprender a ser desembaraçado e conveniente, caso isso fosse possível. Uma noite estava eu entre duas senhoras e um homem cujo nome posso citar: era o senhor duque de Gontaut. Não havia mais ninguém na sala e eu me esforçava para contribuir com algumas palavras, Deus sabe quais!, para uma conversa entre quatro pessoas, sendo que as outras três não tinham, certamente, necessidade de meu suplemento. A dona da casa mandou vir um opiato que ela estava tomando para o estômago duas vezes por dia. A outra senhora, vendo-a fazer uma careta, disse rindo, É o opiato de Tronchin. Não creio, respondeu ela no mesmo tom da primeira. Acho que um pouco mais vale do que o outro, acrescentou galantemente o espirituoso Rousseau. Todos ficaram interditos: não houve o menor comentário nem o menor sorriso e no momento seguinte a conversa tomou novo rumo. Para com outra pessoa, a estupidez teria podido ser engraçada, mas dirigida a uma mulher muito amável para não ter feito com que falassem um pouco a seu respeito e que, certamente, eu não tinha desejo de ofender, era uma saída terrível e creio que as duas testemunhas, homem e mulher, bem custaram a reter a gargalhada. Eis os rasgos de espírito que me escapam por querer falar sem encontrar nada para dizer. Dificilmente esqueceria esse, porque, além de ser em si mesmo muito notável, tenho a convicção de que teve consequências que nos fazem lembrar frequentemente.

Julgo que com isso há bastante para fazê-los compreender como, não sendo um tolo, passei no entanto, muitas vezes, como por sê-lo, mesmo em casa de pessoas capazes de julgar bem: tanto mais infeliz pelo fato de minha fisionomia e meus olhos prometerem muito e tal espera frustrada tornar mais chocante a minha estupidez. Esse detalhe, que uma particularidade fez nascer, não é inútil para o que vou relatar depois. Contém a chave de muitas coisas extraordinárias que me viram fazer e que atribuem a um humor selvagem que absolutamente não tenho. Teria gostado da sociedade como qualquer outro se não tivesse certeza de ali mostrar-me, não só para desvantagem minha, como bem diferente do que sou. O partido que tomei de escrever e esconder-me é precisamente o que me convém. Comigo presente, jamais teriam sabido o que eu valia, nem mesmo o teriam suposto e foi o que aconteceu com madame Dupin, apesar de ser mulher talentosa, e apesar de eu ter vivido em sua casa vários anos: ela me disse muitas vezes isso mesmo depois daquele tempo. De resto, tudo isso sofre certas exceções a que me referirei mais tarde.3

3 Em breve veremos uma dessas exceções na narrativa que fará no livro IV, quando, admitido à audiência do senado de Berne com o superior de um convento a quem ele servia de intérprete, viu-se obrigado a expor, imediatamente e sem ter podido preparar-se, o objeto e os motivos de sua missão. Sabe-se, além disso, que em sociedade, quando o assunto da conversa lhe interessava vivamente, e principalmente quando se julgava nas boas graças daqueles que o escutavam, falava com tanta facilidade quanto graça e energia, segundo a natureza do assunto. Mas a esse respeito não há testemunho mais notável do que o de Dusaulx ao descrever um jantar que teve lugar em sua casa, em 1771, e no qual Rousseau se encontrava com outras pessoas a quem via pela primeira vez. “A não ser algumas rusgas, como foi amável naquele dia! Ora divertido, ora sublime. Antes do jantar, contou-nos algumas das histórias mais inocentes consignadas em suas Confissões. Muitos dentre nós já as conheciam, porém soube dar-lhes uma feição nova e ainda mais vida do que em seu livro. Ouso dizer que não se conhecia a si mesmo quando pretendia que a natureza lhe havia recusado o dom da palavra: sem dúvida, a solidão tinha feito aquele talento concentrar-se em si mesmo; porém nos momentos de abandono e quando nada o perturbava, saíam-lhe as palavras como uma torrente impetuosa a que nada resiste.” (De minhas relações com J. J. Rousseau.)

 

 

“Não é quando uma ação vil acaba de ser cometida que ela nos atormenta, é quando, muito depois, nos lembramos dela; porque tal lembrança nunca se extingue.”

 

 

“O que eu mais lastimo nos detalhes de minha vida cuja lembrança perdi é de não ter feito diários de minhas viagens. Nunca pensei tanto, vivi tanto, existi tanto, fui tanto eu mesmo, se ouso dizer assim, do que naquelas que fiz só e a pé. A marcha tem qualquer coisa que anima e aviva as ideias: quase não posso pensar quando fico parado; é preciso que meu corpo esteja em movimento para movimentar meu espírito também. A vista do campo, a sucessão de aspectos agradáveis, o ar livre, o saudável apetite, a boa saúde que adquiro andando, a liberdade das tavernas, o afastamento de tudo o que me faz sentir minha dependência, de tudo o que me lembra minha situação, tudo isso liberta minha alma, dá-me maior audácia para pensar, de qualquer modo me lança na imensidade dos seres para combiná-los, escolhê-los, dispor deles à minha vontade, sem constrangimento e sem receio. Como senhor, disponho de toda a natureza; meu coração, errando de objeto em objeto, identifica-se com aqueles que o lisonjeiam, cerca-se de imagens encantadoras, embebeda-se com sentimentos deliciosos. Se, para fixá-los, divirto-me descrevendo-os em mim mesmo, que pincelada vigorosa, que colorido fresco, que expressão enérgica lhes dou! Dizem que encontraram tudo isso em minhas obras, embora escritas já a caminho do declínio de minha vida. Oh! Se tivessem visto os de minha mocidade, os que fiz durante minhas viagens, os que compus sem jamais escrevê-los!… Por que, dirão, não os escrever? E por que escrevê-los? Responderei: por que privar-me do encanto atual para dizer a outras pessoas o que senti? Que me importavam os leitores, um público e a terra inteira enquanto eu planava nos céus? Ademais, trazia comigo papel e penas? Se tivesse pensado em tudo aquilo, não me teria vindo nada. Não previa que ia ter ideias; elas vinham quando bem entendiam e não quando eu queria. Elas não vinham, ou vinham em multidão: oprimiam-me com seu número e sua força. Dez volumes por dia não chegariam. Onde arranjar tempo para escrevê-las? Ao chegar, só pensava em comer bem: ao partir, só pensava em caminhar. Sentia que um novo paraíso me esperava à porta: só pensava em ir procurá-lo.

Nunca senti tão bem tudo isso senão na viagem de que estou falando. Vindo a Paris, tinha me limitado às ideias relativas ao que ia fazer. Lançara-me na carreira em que ia entrar e tinha-a percorrido com glória suficiente: mas aquela carreira não era a que meu coração desejava e os seres muito reais prejudicam os seres imaginários. O coronel Godard e seu sobrinho não se casavam com um herói como eu me sentia. Graças ao céu, estava agora livre de todos aqueles obstáculos: podia, à vontade, mergulhar no país da quimera, pois só ele ficara diante de mim. Por isso mergulhei nele tão bem que várias vezes perdi realmente a minha rota e teria ficado muito aborrecido se seguisse mais em linha reta, porque se sentisse que em Lião iria voltar à terra, teria preferido jamais chegar.

Um dia, tendo deliberado sair do caminho para ir ver um sítio que me pareceu admirável, este me agradou tanto e dei tantas voltas que finalmente me perdi de todo. Após várias horas de caminhadas inúteis, cansado e morrendo de sede e fome, entrei na habitação de um camponês que não tinha bela aparência; porém era a única que eu via pelos arredores. Julgava eu que era como em Genebra, ou na Suíça, onde todos os habitantes, sossegadamente, estão em estado de praticar a hospitalidade. Pedi àquele que me desse jantar pois eu lho pagaria. Ofereceu-me leite desnatado e enorme pão de cevada, dizendo-me que era tudo o que tinha. Bebia aquele leite com delícias e comia aquele pão, palha e tudo; mas não era muito reparador para um homem esgotado pela fadiga. Aquele camponês, que me examinava, julgou a veracidade de minha história pela de meu apetite. Subitamente, depois de ter dito que via bemb que eu era um rapaz honrado que não estava ali para vendê-lo, abriu um pequeno alçapão ao lado da cozinha, desceu e voltou um momento depois com um bom pão moreno de puro trigo, um presunto muito apetitoso, embora em fatias, e uma garrafa de vinho cujo aspecto aqueceu meu coração mais do que o resto; a isso acrescentem uma omelete bem espessa, e fiz um jantar como só um peão pode conhecer. Quando se tratou de pagar, eis que sua inquietação e seus receios o tomam de novo; não queria receber e afastava o dinheiro muito perturbado: e o que havia de engraçado era que eu nem desconfiava de que tinha ele medo. Finalmente pronunciou, estremecendo, aquelas terríveis palavras de recebedor e de rato de adega. Deu-me a entender que escondia seu vinho por causa dos impostos, que escondia seu pão por causa dos tributos e que seria um homem perdido se desconfiassem que não passava fome. Tudo o que me disse a respeito desse assunto, sobre o qual não tinha a menor ideia, causou-me uma impressão que jamais se apagará. Foi aquele o gérmen desse ódio inextinguível que se desenvolveu depois em meu coração contra os vexames que o povo infeliz sofre e contra seus opressores. Aquele homem, embora com recursos, não ousava comer o pão que havia ganhado com o suor de seu rosto e não podia evitar sua ruína senão mostrando-se na mesma miséria que reinava ao redor dele. Saí de sua casa tão indignado como pesaroso e deplorando a sorte daquelas lindas regiões às quais a natureza só prodigalizou seus dons para torná-las presas de bárbaros publicanos.”

b Aparentemente eu ainda não tinha a fisionomia que me emprestaram depois em meus retratos.