Editora: Atena
Tradução: Maria Lacerda de Moura
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 202
Sinopse: Jean-Jacques
Rousseau foi um dos “pais” da Revolução Francesa – a primeira das revoluções
modernas, baseada em princípios liberais, democráticos e nacionalistas. O
Contrato Social, de sua autoria, era lido e aplaudido em praça pública.
Inspirados nas ideias de Rousseau, os revolucionários defendiam o princípio da
soberania popular e da igualdade de direitos. A contestação da sociedade tal
como estava organizada foi o tema do ensaio Discurso Sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, em que se vê a desigualdade e
a injustiça como frutos da competição e da hierarquia mal constituída. Nesta
obra o autor afirma que a organização social corrompe a natureza humana e lhe
sufoca o potencial.
“Eu quisera viver e morrer livre, isto é, de
tal modo submetido às leis que nem eu nem ninguém pudesse sacudir o honroso
jugo, esse jugo salutar e doce, que as cabeças mais altivas carregam tanto mais
docilmente quanto são feitas para não carregar nenhum outro.
Eu quisera, pois, que ninguém, no Estado,
pudesse dizer-se acima da lei, e que ninguém, fora dele, pudesse impor alguma
que o Estado fosse obrigado a reconhecer; de fato, qualquer que possa ser a
constituição de um governo, se neste se encontra um só homem que não esteja
submetido à lei, todos os outros ficam necessariamente à discrição deste
último: e, havendo um chefe nacional e outro estrangeiro, qualquer que seja a
partilha da autoridade que possam fazer, é impossível que ambos sejam bem
obedecidos e o Estado bem governado.
Eu não quisera habitar uma república de nova
instituição, por muito boas que fossem as leis que pudesse ter, de medo de que,
constituído o governo de outra maneira, talvez, que não a exigida pelo momento,
não convindo aos novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo governo, ficasse o
Estado sujeito a ser abalado e destruído quase desde o seu nascimento; porque a
liberdade é como esses alimentos sólidos e suculentos, ou esses vinhos
generosos, próprios para nutrir e fortificar os temperamentos robustos a eles
habituados, mas que inutilizam, arruínam, embriagam os fracos e delicados, que
a ele não estão afeitos. Os povos, uma vez acostumados a senhores, não podem
mais passar sem eles. Se tentam sacudir o jugo, afastam-se tanto mais da liberdade
quanto, tomando por ela uma licença desenfreada que lhe é oposta, suas
revoluções os entregam quase sempre a sedutores que só fazem agravar as suas
cadeias.”
“Só a inscrição do templo de Delfos continha
um preceito mais importante e mais difícil do que todos os grossos livros dos
moralistas.”
“Parece, com efeito, que, se sou obrigado a
não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do
que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem,
deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.”
“Um autor célebre, calculando os bens e os
males da vida humana, e comparando as duas somas, achou que a última ultrapassa
muito a primeira, e que tomando o conjunto, a vida era para o homem um péssimo
presente. Não fiquei surpreendido com a conclusão; ele tirou todos os seus
raciocínios da constituição do homem civilizado. Se subisse até ao homem
natural, pode-se julgar que encontraria resultados muito diferentes; porque
perceberia que o homem só tem os males que se criou para si mesmo, o que à
natureza se faria justiça. Não foi fácil chegarmos a ser tão desgraçados.
Quando, de um lado, consideramos o imenso trabalho dos homens, tantas ciências
profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos
entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados, rios tornados navegáveis,
terras arroteadas, lagos cavados, pantanais dissecados, construções enormes
elevadas sobre a terra, o mar coberto de navios e marinheiros, e quando,
olhando do outro lado, procuramos, meditando um pouco as verdadeiras vantagens
que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só podemos nos
impressionar com a espantosa desproporção que reina entre essas coisas, e
deplorar a cegueira do homem, que, para nutrir seu orgulho louco, não sei que
vã admiração de si mesmo, o faz correr ardorosamente para todas as misérias de
que é suscetível e que a benfazeja natureza havia tomado cuidado em afastar
dele.
Os homens são maus, uma triste e contínua
experiência dispensa a prova; entretanto, o homem é naturalmente bom, creio
havê-lo demonstrado. Que será, pois, que o pode ter depravado a esse ponto,
senão as mudanças sobrevindas na sua constituição, os progressos que fez e os
conhecimentos que adquiriu? Que se admire quanto se queira a sociedade humana,
não será menos verdade que ela conduz necessariamente os homens a se odiar
entre si à proporção do crescimento dos seus interesses, a se retribuir
mutuamente serviços aparentes, e a se fazer efetivamente todos os males
imagináveis. Que se pode pensar de um comércio em que a razão de cada
particular lhe dita máximas diretamente contrárias àquelas que a razão pública
prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tira os seus lucros da desgraça do
outro?”
“Que se penetre, pois, através de nossas
frívolas demonstrações de benevolência, no que se passa no fundo dos corações,
e que se reflita no que deve ser um estado de coisas em que todos os homens são
forçados a se acariciar e a se destruir mutuamente, e em que nascem inimigos
por dever e velhacos por interesse. Se me respondem que a sociedade é assim
constituída, que cada homem ganha em servir aos outros, replicarei que isso
estaria muito bem se não ganhasse ainda mais para prejudicá-lo. Não há proveito
tão legítimo que não seja ultrapassado pelo que se pode fazer ilegítimo, e o
mal feito pelo próximo é sempre mais lucrativo que os serviços. Não se trata,
pois, senão de achar os meios de assegurar a impunidade, e é para isso que os
poderosos empregam todas as suas forças, e os fracos toda a sua astúcia.
O homem selvagem, quando acabou de comer,
está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se,
algumas vezes, tem de disputar seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter
antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar sua
subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por
alguns socos. O vencedor come o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e
tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente;
trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em
seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súditos e
escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é que,
quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões
aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas
prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos
homens, meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do
universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo
menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.
Comparai, sem preconceitos, o estado do homem
civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como além da
sua maldade, suas necessidades e suas misérias, o primeiro abriu novas portas à
miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos
consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos
excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa
à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e outros de
excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua perniciosa
condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas
velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno
do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias
epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos,
nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas de
nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem
precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou
em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente
a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de
terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os
habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas
essas causas acumulam continuamente sobre nossas cabeças, sentireis como a
natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.”
“O luxo, impossível de prevenir entre os
homens ávidos de suas próprias comodidades e da consideração dos outros, não
tarda a completar o mal que as sociedades começaram; e, sob o pretexto
desnecessário de fazer viver os pobres, empobrece todo o resto e despovoa o
Estado, cedo ou tarde.
O luxo é um remédio muito pior do que o mal
que pretende curar; ou antes, é ele mesmo o pior dos males, em qualquer Estado,
grande ou pequeno, e que, para nutrir as multidões de criados e de miseráveis
que fez, acabrunha e arruína o trabalhador e o cidadão.”
“Mau grado o que dizem os moralistas, o
entendimento humano deve muito às paixões, que, de comum acordo, também lhe
devem muito: é pela sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa; só
procuramos conhecer porque desejamos gozar; e não é possível conceber porque
aquele que não tivesse desejos nem temores se desse ao trabalho de raciocinar.
As paixões, por sua vez, se originam das nossas necessidades, e o seu progresso
dos nossos conhecimentos; porque só podemos desejar ou temer coisas segundo as
ideias que temos delas, ou pelo simples impulso da natureza; e o homem
selvagem, privado de toda sorte de luzes, só experimenta as paixões dessa
última espécie; seus desejos não passam pelas suas necessidades físicas*; os
únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e o repouso;
os únicos males que teme são a dor e a fome. Digo a dor, e não a morte; porque
jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus
terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da
condição animal.”
*: Isso me parece a última evidência, e eu
não poderia conceber de onde os nossos filósofos podem fazer nascer todas as
paixões que pretendem no homem natural. Excetuado apenas o necessário físico,
que a própria natureza pede, todas as nossas outras necessidades só o são pelo
hábito, antes do qual não eram necessidades, ou pelos desejos, e não se deseja
o que não se está em estado do conhecer. Daí resulta que, como o homem selvagem
só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas cuja posse está ao
seu alcance, ou é fácil adquirir, nada devo ser tão tranquilo como a sua alma e
nada tão limitado como o seu espírito.
“Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos
da história, quem não vê que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e
os meios de cessar de o ser? Sua imaginação nada lhe pinta; seu coração nada
lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente à mão, e ele
está tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar adquirir maiores,
que não pode ter nem previdência nem curiosidade. O espetáculo da natureza
torna-se-lhe indiferente à força de se lhe tornar familiar: é sempre a mesma
ordem, são sempre as mesmas revoluções; não tem o espírito de se admirar das
maiores maravilhas; e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o
homem tem necessidade para saber observar, uma vez, o que viu todos os dias.
Sua alma, que coisa alguma agita, entrega-se ao sentimento único de sua
existência atual sem nenhuma ideia do futuro, por mais próximo que possa estar;
e seus projetos, limitados como suas vistas, estendem-se apenas até ao fim do
dia. Tal é, ainda hoje, o grau de previdência do caraíba: vende de manhã sua
cama de algodão, e vem chorar, à noite, para comprá-la novamente, por não ter
previsto que precisaria dela na noite próxima.”
“Que se pense de quantas ideias somos
devedores ao uso da palavra; quanto a gramática exerce e facilita as operações
do espírito; e que se pense nas penas inconcebíveis e no tempo infinito que
teve de custar a primeira invenção das línguas; que se juntem essas reflexões
às precedentes, e então se julgará quantos milhares de séculos foram precisos
para desenvolver sucessivamente no espírito humano as operações de que é capaz.
(...)
“Quanto a mim, horrorizado com as
dificuldades que se multiplicam, e convencido da impossibilidade quase
demonstrada de que as línguas tenham podido nascer e se estabelecer por meios
puramente humanos, deixo a quem quiser empreendê-la a discussão deste difícil
problema: o que foi mais necessário, a sociedade já ligada à instituição das
línguas, ou as línguas já inventadas para o estabelecimento da sociedade.”
“Sei que nos repetem sem cessar que nada foi
tão miserável como o homem nesse estado; e, se é verdade, como creio haver
provado, que que só depois de muitos séculos pode ele ter o desejo e a ocasião
de sair dele, isso seria um processo que fazer à natureza e não àquele que ela
assim tivesse constituído. Mas, se entendo bem o termo miserável, trata-se de
uma palavra que não tem nenhum sentido, ou que significa apenas uma provação
dolorosa, o sofrimento do corpo ou da alma: ora, eu só desejaria que me
explicassem qual pode ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está
em paz e o corpo com saúde. Pergunto qual, a vida civil ou a natural, está mais
sujeita a se tornar insuportável para os que a gozam. Em torno de nós, quase
que só vemos pessoas que se lastimam de sua existência, e muitas mesmo que se
privam dela tanto quanto o podem; e a reunião das leis divina e humana mal
basta para deter essa desordem. Pergunto se jamais se ouviu dizer que um
selvagem em liberdade tenha somente pensado em se lastimar da vida e em se
suicidar. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira
miséria. Ninguém, ao contrário, foi mais miserável do que o homem selvagem
deslumbrado pelas luzes, atormentado pelas paixões, e raciocinando sobre um
estado diferente do seu. Foi por uma providência muito sábia que as faculdades
que ele tinha em potência só deviam desenvolver-se com as ocasiões de as
exercer, a fim de que não lhe fossem nem supérfluas e cometidas antes do tempo,
nem tardias e inúteis às suas necessidades. Só no instinto, tinha ele tudo o de
que necessitava para viver em estado de natureza; numa razão cultivada, tem
apenas o que lhe é preciso para viver em sociedade.”
“Não vamos, principalmente concluir com
Hobbes que, por não ter nenhuma ideia de bondade, o homem seja naturalmente
mau; que seja vicioso, porque não conhece a virtude; que recuse sempre aos seus
semelhantes serviços que não acredita serem do seu dever; ou que, em virtude do
direito que se atribui com razão às coisas de que tem necessidade, imagine
loucamente ser o único proprietário de todo o universo. Hobbes viu muito bem o
defeito de todas as definições modernas do direito natural: mas, as
consequências que tira da sua mostram que a toma em um sentido que não é menos
falso. Raciocinando sobre os princípios que estabelece, esse autor deveria
dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado de nossa
conservação é menos prejudicial à dos outros, esse estado era, por conseguinte,
o mais próprio à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Diz precisamente o
contrário, por ter feito entrar, fora de propósito, no cuidado da conservação do
homem selvagem, a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são
obra da sociedade e que tornaram as leis necessárias. O mau, diz ele, é uma
criança robusta. Resta saber se o selvagem é uma criança robusta. Quando se
concordasse com ele, que se concluiria? Que, se esse homem, sendo robusto, era
tão dependente dos outros como quando fraco, não há excessos aos quais não se
entregasse: batendo na própria mãe quando ela demorasse muito a lhe dar de
mamar; estrangulando um irmão menor quando por ele incomodado; mordendo a perna
de outro quando nele esbarrasse ou fosse por ele importunado. Mas, são duas
suposições contraditórias no estado de natureza: ser robusto e dependente. O
homem é fraco quando dependente, e emancipado antes de ser robusto. Hobbes não
viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem
os nossos jurisconsultos, impede-os também de abusar das suas faculdades, como
ele próprio o pretende; de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são
maus, precisamente porque não sabem o que é ser bom. Com efeito, não é nem o
desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a
ignorância do vício que os impedem de fazer mal.”
“É preciso não confundir o amor-próprio e o
amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes por sua natureza e por seus
efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a
velar por sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e
modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é
apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada
indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos
homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da
honra. Bem entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro
estado de natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular
olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no
universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito,
não é possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é
capaz de fazer possa germinar em sua alma. Pela mesma razão, esse homem não
poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião
de alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e
não o mal, que constitui a ofensa, homens que não sabem se apreciar nem se
comparar podem fazer-se muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem,
sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma palavra, cada homem, vendo seus
semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode arrebatar a
presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens senão
como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de
despeito, e sem outra paixão que a dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso.”
“A piedade é um sentimento natural, que,
moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a
conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro
daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de
lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer
à sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma
criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício,
se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta
máxima sublime de justiça raciocinada, Faze a outrem o que queres que te façam,
inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos
perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: Faze o teu bem com o
menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais
do que em argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que
todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da
educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera
adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o gênero humano não mais
existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios
dos que o compõem.”
“Concluamos que, errando nas florestas, sem
indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma
necessidade dos seus semelhantes, assim como sem nenhum desejo de os
prejudicar, talvez mesmo sem jamais se reconhecerem individualmente, o homem
selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, tinha somente os
sentimentos e as luzes próprias desse estado; que não sentia senão as suas
verdadeiras necessidades, não olhava senão o que acreditava ter interesse de
ver; e que sua inteligência não fazia mais progressos do que a sua vaidade. Se,
por acaso, fazia alguma descoberta, podia tanto menos comunicá-la do que nem
mesmo reconhecia seus filhos. A arte perecia com o inventor. Não havia educação
nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente; e, partindo cada uma
sempre do mesmo ponto, os séculos se escoavam em toda a grosseria das primeiras
idades; a espécie já estava velha, e o homem conservava-se sempre criança.”
“Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa
do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem,
em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem
exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto a diferença de homem para
homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a
desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de
instituição.
Mas, quando a natureza afetasse, na
distribuição dos seus dons, tantas preferências como se pretende, que vantagem
os mais favorecidos tirariam disso, com prejuízo dos outros, em um estado de
coisas que não admitiria quase nenhuma espécie de relações entre eles? Onde não
há amor, de que servirá a beleza? De que serve o espírito a pessoas que não
falam, e a astúcia às que não têm negócios? Ouço sempre repetir que os mais
fortes oprimirão os fracos. Mas, que me expliquem o que querem dizer com a
palavra opressão. Uns dominarão com violência, outros gemerão sujeitos a todos
os seus caprichos. Eis, precisamente, o que se observa entre nós; mas, não vejo
como se poderia dizer o mesmo dos selvagens, a quem seria dificílimo fazer
perceber o que é servidão e dominação. Um homem poderá se apoderar dos frutos
colhidos por outro, da caça que o outro matou, do antro que lhe servia de
asilo; mas, como poderá conseguir fazer-se obedecer? E quais poderiam ser as cadeias
da dependência entre homens que não possuíam nada? Se me expulsam de uma
árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em um lugar, quem me
impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força muito superior à
minha e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito feroz, para me
constranger a prover à sua subsistência enquanto ele permanece ocioso, é
preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante, que me
deixe amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que
o mate; isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito
maior do que o que quer evitar, e do que o que me dá a mim mesmo. Depois de
tudo isso, sua vigilância se relaxa por um momento, um barulho imprevisto fá-lo
voltar a cabeça: dou vinte passos na floresta, meus ferros se quebram, e nunca
mais me tornará a ver.
Sem prolongar inutilmente esses detalhes,
cada qual deve ver que, sendo os laços da servidão formados exclusivamente da
dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem, é
impossível sujeitar um homem sem o pôr antes na situação de não poder passar
sem outro homem; situação que, não existindo no estado de natureza, deixa cada
um livre do jugo e torna vã a lei do mais forte.”
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