Editora: Abril Cultural
Tradução e notas: Marilena de Souza Chauí e J. Guinsburg
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 138
Sinopse: 1. Carta
sobre os cegos para o uso dos que veem [1749]: Embora publicada
anonimamente, esta obra de Diderot acarretou a prisão do filósofo no castelo de
Vincennes. É que o sensualismo epistemológico que ela defende foi considerado
deletério pela repressão exercida, naquele momento, pelo governo de Luís XV.
2. O sobrinho de Rameau [1761]: Diálogo sobre a
música e arte, em geral, apresenta-se como uma “Sátira Segunda”, pois é
sequência da “Sátira Primeira”, o opúsculo “Sobre os Caracteres e as Palavras
Caráter, Profissão etc.”, escrito anteriormente por Diderot.
3. Diálogo entre D’Alembert e Diderot; O sonho
de D’Alembert; Continuação do diálogo [1769]: Publicadas apenas em
1830, as três obras pertencem ao que de mais imaginativo produziu a especulação
filosófica de Diderot.
4. Suplemento à viagem de Bougainville ou Diálogo entre
A e B [1772]: Utilizando também a forma dialogada, a obra possui
significativo subtítulo: “Sobre o inconveniente de atribuir ideias morais a
certas ações físicas que não se comportam”.
5. Paradoxo sobre o comediante [1769]: Obra de
permanente atualidade, enquanto teoria do ator, ultrapassa porém o plano
estético ao propor uma teoria geral da sensibilidade.
6. Dos autores e dos críticos [1773]: Capítulo
final do “Discurso Sobre a Poesia Dramática”.
7. Diálogo de um filósofo com a Marechala de...
[1774]: O diálogo circulou inicialmente em cópias manuscritas, antes de ser
impresso. A marechala é provavelmente a esposa de Victor François, Duque de
Broglie e Marechal de França.
Carta sobre os
cegos para uso dos que veem (★★★☆☆)
“Se vos prestardes por um instante a tal
suposição, ela vos lembrará, sob traços supostos, a história e as perseguições
dos que tiveram a desgraça de encontrar a verdade em séculos de trevas, e a
imprudência de revelá-la aos cegos contemporâneos, entre os quais não deparavam
inimigos mais cruéis do que aqueles que, por sua condição e sua educação,
pareciam dever estar menos afastados de seus sentimentos.”
“Um meio quase seguro de enganar-se em
metafísica é não simplificar bastante os objetos de que nos ocupamos; e um
segredo infalível para chegar em físico-matemática a resultados defeituosos é
supô-los menos compostos do que o são.”
“Tudo o que é do homem perece com o homem.”
“Vem um tempo em que o gosto dá conselhos
cuja justeza se reconhece, mas que não se tem mais a força de seguir.”
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O sobrinho de
Rameau (★★★★☆)
“EU — Há uma eternidade que não vos via. Não
penso muito em vós quando não vos vejo. Mas sempre me agrada rever-vos. Que
tendes feito?
ELE — O que vós, eu e todos fazem: o bem, o
mal e nada. Depois tive fome e comi quando a ocasião se apresentou. Após ter
comido, tive sede e bebi algumas vezes. Entrementes minha barba crescia, e
quando ficou grande mandei raspá-la.
EU — Fizestes mal. É a única coisa que vos
falta para serdes um sábio.”
“(...) ELE — Se ajuda alguém é sem
desconfiar. É um filósofo à sua moda. Só pensa em si próprio. O resto do mundo
não lhe interessa. Sua filha e sua mulher poderão morrer quando quiserem; desde
que os sinos da paróquia continuem a tanger a décima e a décima sétima
badaladas, tudo estará bem, e é uma sorte para ele. O que prezo particularmente
nas pessoas de gênio é que são boas só para uma coisa; fora esta, mais nada.
Não sabem o que é ser cidadão, pai, mãe, irmão, parente, amigo. Cá entre nós: é
necessário assemelhar-se a ele sob todos os aspectos, mas não querer ser
farinha do mesmo saco. É preciso homens, mas não homens de gênio. Palavra de
honra, não é preciso mesmo. São os reformadores da face do globo, e, como nas
menores coisas a estupidez é tão habitual quanto potente, sua reforma não pode
ocorrer sem confusão. Por isso, parte do que imaginaram chega a ser instituída,
mas o resto fica como dantes. Resultado: dois evangelhos, um traje de arlequim.
A sabedoria do monge de Rabelais é a verdadeira sabedoria, para seu repouso e o
dos outros: cumprir mal e mal o dever, sempre falar bem do senhor prior e
deixar o mundo ao sabor de seus caprichos. O mundo vai bem, pois a multidão
está contente com ele. Se conhecesse história, eu vos mostraria que o mal sempre
veio cá embaixo pelas artes de algum homem de gênio. Mas não conheço história
porque nada sei. O diabo que me carregue se alguma vez aprendi alguma coisa, e
se estou pior por não ter aprendido. Um dia, estava à mesa de um ministro do
rei de França, cujo espírito vale por quatro. Pois bem, o ministro nos
demonstrou, como um e um são dois, que nada era mais útil aos povos do que a
mentira, nada mais nocivo do que a verdade. Não me recordo muito de suas
provas, mas delas decorria com evidência que as pessoas de gênio são
detestáveis. E se uma criança, ao nascer, trouxesse na fronte a marca desse
perigoso presente da natureza, dever-se-ia sufocá-la ou lançá-la num antro de
vagabundos.
EU — No entanto, todas essas personagens, tão
inimigas do gênio, estão certas de possuí-lo.
ELE — Creio que no íntimo pensam dessa
maneira, mas não creio que ousassem confessá-lo.
EU — É por modéstia. Desde então concebeste
um ódio terrível contra o gênio?
ELE — Para nunca voltar atrás.
EU — Mas lembro-me de uma ocasião em que o
desespero vos dominava por serdes apenas um homem comum. Se o pró e o contra
vos afligirem igualmente, nunca sereis feliz. É preciso tomar um partido e
permanecer fiel a ele. Ninguém voltará atrás ao concordar inteiramente
convosco, aceitando que os homens de gênio frequentemente são singulares, ou,
como diz o provérbio, que não há grandes inteligências sem um grão de loucura.
Desprezar-se-ão os séculos que não os produzirem. Serão a honra dos povos entre
os quais tiverem existido. Cedo ou tarde, estátuas lhes serão erguidas. E serão
encarados como benfeitores do gênero humano. Sem desagradar ao sublime ministro
que me haveis citado, creio que a mentira pode servir um momento, mas a longo
prazo é necessariamente nociva, e que, ao contrário, a verdade serve
necessariamente a longo prazo, embora possa ocorrer que prejudique no momento.
Por isso, eu me sentiria tentado a concluir que o homem de gênio, capaz de
desacreditar um erro geral ou de empenhar-se numa grande verdade, é sempre um
ser digno de nossa veneração. Pode acontecer que se torne vítima do preconceito
e das leis, porém há dois tipos de leis: umas, absolutamente equânimes e
gerais, outras, estranhas, cuja sanção provém apenas da necessidade ou da
cegueira das circunstâncias. Se estas cobrem de ignomínia o culpado que as
infringe, a ignomínia é passageira e o tempo se encarrega de revertê-las
definitivamente sobre os juízes e as nações. Hoje, quem é o desonrado: Sócrates
ou o magistrado que o obrigou a beber cicuta?”
“— Mas pesai o mal e o bem. Daqui a mil anos
fará derramar lágrimas; será a admiração dos homens de todos os recantos da
terra. Inspirará humanidade, comiseração, ternura. Perguntar-se-á quem foi,
qual o seu país, e invejar-se-á a França. Causou sofrimento a algumas pessoas
que já não vivem e às quais damos pouco ou nenhum valor. Nada temos a temer de
seus vícios e de seus defeitos. Teria sido melhor, sem dúvida, se tivesse
recebido da natureza as virtudes de um homem de bem com os talentos de um
grande homem. É uma árvore que secou algumas outras, plantadas ao seu redor,
que sufocou as plantas que cresciam aos seus pés; mas elevou sua copa até as
nuvens e seus ramos se estenderam ao longe, oferecendo sua sombra aos que
vinham, vêm e virão repousar à volta de seu tronco majestoso; produziu frutos
de raro sabor e que se renovam incessantemente. Seria desejável que Voltaire
tivesse também a doçura de Duclos, a candura do Abade Trublet, a retidão do
Abade D’Olivet, mas, como isto não é possível, olhemos a coisa por seu lado
verdadeiramente interessante. Esqueçamos por um momento o ponto que ocupamos no
espaço e na duração, e estendamos nossa vista aos séculos por vir, às regiões
mais afastadas e aos povos por nascer. Sonhemos com o bem de nossa espécie. Se
não somos bastante generosos, pelo menos perdoemos a natureza por ter sido mais
sábia do que nós. Se lançardes água fria sobre a cabeça de Greuze,
extinguireis, talvez, seu talento com sua vaidade.”
“Apodrecer sob o mármore, apodrecer sob a
terra, é sempre apodrecer.”
“A voz da consciência e da honra é muito
fraca quando as tripas gritam.”
“Se ficar rico farei a devolução, e estou
mesmo disposto a devolver de todas as maneiras possíveis: pela mesa, pelo jogo,
pelo vinho, pelas mulheres.”
“ELE — Vós outros, filósofos, pensais de
maneira diversa, pois acreditais que a mesma felicidade é feita para todos. Que
estranha visão! Vossa felicidade supõe uma certa propensão romanesca que não
temos, uma alma singular, um gosto particular. Enfeitais essa esquisitice com o
nome de virtude, chamando-a, também, filosofia. Mas a virtude e a filosofia são
feitas para todo mundo? Quem pode tem; quem pode conserva. Imaginai o universo
sensato e filosofante. Que terrível chatice! Escutai. Viva a filosofia, viva a
sabedoria de Salomão: beber bons vinhos, saborear petiscos delicados, rolar
sobre belas mulheres, repousar em camas macias. O resto é vaidade.
EU — Como? E servir à pátria?
ELE — Vaidade! Não há mais pátria. De um polo
ao outro só vejo tiranos e escravos.
EU — Servir aos amigos?
ELE — Vaidade! Quem tem amigos? E quem os
tivesse deveria torná-los ingratos? Atentai e vereis que é sempre isso o que se
recolhe dos favores prestados. O reconhecimento é um fardo e todo fardo deve
ser sacudido.
EU — Ter uma posição na sociedade e cumprir
os deveres?
ELE — Vaidade! Que importa que se tenha ou
não uma posição, desde que se seja rico, pois só se arranja uma posição para
isso. Cumprir os deveres? Aonde isso leva? Ao crime, à perturbação, à
perseguição. É assim que se progride? Fazer a corte, raios! Fazer a corte! Ver
os grandes, estudar seus gostos, prestar-se às suas fantasias, servir aos seus
vícios, aprovar suas injustiças. Eis o segredo.
EU — Cuidar da educação de seus filhos?
ELE — Vaidade! É tarefa de um preceptor.
EU — Mas, se o preceptor, convicto de vossos
princípios, negligenciar seus deveres, quem deverá ser castigado?
ELE — Palavra! Garanto que não serei eu!
Talvez, um dia, o marido de minha filha, ou a mulher de meu filho.
EU — Mas, se ambos caírem na orgia e no
vício?
ELE — Será uma consequência de sua posição.
EU — Se se desonrarem?
ELE — Faça o que fizer, o rico nunca se
desonra.”
“Louva-se a virtude, mas é odiada e dela se
foge.”
“Por que vemos frequentemente devotos tão
duros, tão irritados, tão insociáveis? Porque impuseram a si próprios uma
tarefa que não é natural; sofrem, e quem sofre faz os outros sofrerem também.”
“Só o ridículo e a loucura fazem rir.”
“O espírito e a arte têm seus limites, menos
para Deus e para alguns espíritos raros que veem a estrada alongar-se à medida
que avançam.”
“Os gênios leem pouco, praticam muito e se
fazem por si próprios.”
“É melhor escrever grandes coisas do que
executar pequenas.”
“Engolimos em grandes sorvos uma mentira que
nos lisonjeia; bebemos gota a gota uma verdade que nos amargura.”
“Sentir-me-ia humilhado se aqueles que falam
mal de tanta gente boa resolvessem falar bem de mim.”
“ELE — Não caio nunca, e por uma simples questão
de proporção, pois, para uma vez que se deve evitar o ridículo, felizmente há
cem outras em que é preciso lançar-se nele. Junto aos grandes não há melhor
papel do que o de um louco. Durante muito tempo houve o título de louco do rei.
Que eu saiba, nunca houve o de sábio do rei. Sou o louco de Bertin e de muitos
outros, o vosso talvez, neste momento. Ou quem sabe se vós sois o meu? Aquele
que fosse sábio não teria um louco; portanto, o que tem um louco não é sábio.
Ora, se não é sábio talvez seja louco, e talvez, se fosse rei, o louco de seu
louco. Além disso, lembrai-vos de que, num assunto tão controvertido como o dos
costumes, nada há que seja absoluta, essencial e geralmente verdadeiro ou
falso, mas que se deve ser aquilo que o interesse deseja que sejamos: bom ou
mau, sábio ou louco, decente ou ridículo, honesto ou vicioso. Se, por acaso, a
virtude tivesse conduzido à fortuna, eu teria sido virtuoso ou simulado a
virtude como um outro qualquer. Quiseram-me ridículo, assim me fiz. Quanto aos
vícios; a despesa ficou por conta da natureza. Quando digo vicioso, digo-o
apenas para falar vossa língua, pois, se viéssemos a nos explicar, poderia
ocorrer que chamásseis vício o que chamo virtude, e virtude o que chamo vício.”
“Os mendigos se reconciliam quando comem na
mesma gamela.”
“Se há um gênero onde é importante ser
sublime, este gênero é o mal. Cospe-se num pequeno gatuno, mas não é possível
recusar uma certa consideração por um grande criminoso: sua coragem espanta,
sua atrocidade arrepia. Estima-se muito a coerência do caráter.”
“Geralmente a grandeza de caráter resulta do
equilíbrio natural de várias qualidades opostas.”
“A criança como o homem, o homem como a
criança preferem divertir-se a instruir-se.”
“Os trouxas e os loucos se divertem uns com
os outros. Procuram-se. Atraem-se.”
“Se ao chegar não tivesse encontrado já
pronto o provérbio que diz que ‘o dinheiro dos trouxas é patrimônio dos
sabidos’, eu o teria inventado.”
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Diálogo entre
D’alembert e Diderot / O sonho de D’alembert / Continuação do diálogo (★★★☆ ☆)
“Nosso verdadeiro sentimento não é aquele no
qual jamais vacilamos; mas aquele ao qual mais habitualmente retornamos.”
“SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas o que é a
nossa duração comparada à eternidade dos tempos? Menos que a gota que peguei
com a ponta de uma agulha, comparada ao espaço ilimitado que me rodeia.
Sequência indefinida de animálculos no átomo que fermenta, a mesma sequência
indefinida de animálculos no outro átomo que se chama Terra. Quem conhece as
raças de animais que nos precederam? Quem conhece as raças de animais que
sucederão às nossas? Tudo muda, tudo passa, só o todo permanece. O mundo começa
e acaba incessantemente, está a cada instante no início e no fim; nunca houve
outro e nunca haverá outro. “Neste imenso oceano de matéria, não existe
molécula que se assemelhe a outra molécula, molécula que se assemelhe a si
própria por um instante: Rerum novus
nascitur ordo (Uma nova ordem de coisas nasce), eis sua inscrição
eterna...” Depois ajuntou, suspirando: “ó vaidade de nossos pensamentos! Ó pobreza
da glória e de nossos trabalhos! Ó miséria! Ó pequeneza de nossas concepções!
Não há nada sólido exceto beber, comer, viver, amar e dormir...”
“A conformação original se altera ou se
aperfeiçoa pela necessidade e pelas funções habituais. Andamos tão pouco,
trabalhamos tão pouco e pensamos tanto, que não desespero que o homem acabe
sendo (no futuro) apenas uma cabeça.”
“— É tão comum tomar qualidades naturais por
hábitos adquiridos e quase tão velhos como nós.
— E reciprocamente.”
“— Digo que o espírito monástico se conserva
porque o mosteiro se refaz pouco a pouco, e quando entra um novo monge,
encontra uma centena de velhos que o arrastam a pensar e a sentir como eles.
Uma abelha vai embora, sucede-lhe no cacho outra que logo se põe a par.”
“D’ALEMBERT. — Vós o credes?
BORDEU. — E sois vós quem me propondes
semelhante pergunta! Vós que, entregue a especulações profundas, passastes dois
terços de vossa vida a sonhar de olhos abertos e a agir sem querer; sim, sem
querer, bem menos que em vossos sonhos. Em vosso sonho comandais, ordenais,
sois obedecido; ficais descontente ou satisfeito, experimentais contradição,
deparais obstáculos, vós vos irritais, amais, odiais, censurais, ides, vindes.
No decurso de vossas meditações, mal vossos olhos se abriam de manhã quando,
presa novamente da ideia que vos preocupara na véspera, vós haveis vos vestido,
sentado à vossa mesa, meditado, traçado figuras, seguido os cálculos, almoçado,
retomado vossas combinações e às vezes deixado a mesa para verificá-las; vós
haveis falado a outrem, dado ordens à vossa criada, ceado, vós haveis vos
deitado, adormecido sem ter praticado o menor ato de vontade. Não fostes senão
um ponto; agistes mas não quisestes. Será que se quer, por si? A vontade nasce
sempre de algum motivo interior ou exterior, de alguma impressão presente, de
alguma reminiscência do passado, de alguma paixão, de algum projeto no futuro.
Depois disso, dir-vos-ei sobre a liberdade apenas uma palavra, é que a
derradeira de nossas ações é o efeito necessário de uma causa una: nós, muito
complicada, porém una.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Necessário?
BORDEU. — Sem dúvida. Tentai conceber a
produção de outra ação, supondo que o ser atuante seja o mesmo.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele tem razão.
Uma vez que eu ajo assim, aquele que pode agir de outro modo não é mais eu; e
assegurar que no momento em que faço ou digo uma coisa, posso dizer ou fazer
outra, é assegurar que eu sou eu e que eu sou um outro. Mas, doutor, e o vício
e a virtude? A virtude, esta palavra tão santa em todas as línguas, esta ideia
tão sagrada em todas as nações!
BORDEU. — Cumpre transformá-la na de
beneficência, e seu oposto na de maleficência. A gente nasce afortunada ou
desafortunadamente; somos irresistivelmente arrastados pela torrente geral que
conduz um à glória e outro à ignomínia.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E a autoestima, e
a vergonha e o remorso?
BORDEU. — Puerilidade fundada na ignorância e
na vaidade de um ser que se imputa a si próprio o mérito ou o demérito de um
instante necessário.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E as recompensas
e os castigos?
BORDEU. — São meios de corrigir o ser
modificável que se denomina mau, e encorajar o que se denomina bom.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E essa doutrina
toda nada tem de perigoso?
BORDEU. — Ela é verdadeira ou falsa?
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Creio que é
verdadeira.
BORDEU. — Isto quer dizer que pensais que a
mentira tem suas vantagens, e a verdade seus inconvenientes.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Assim penso.
BORDEU. — E eu também: mas as vantagens da
mentira são momentâneas, e as da verdade são eternas; mas as consequências
vergonhosas da verdade, quando ela as têm, passam depressa, e as da mentira só
terminam com esta.”
“Quem mistura o útil ao agradável obtém todos
os votos.” (Horácio, Arte Poética, v. 343)
“BORDEU. — Senhorita, poderíeis informar-me
que proveito e que prazer a castidade e a continência rigorosas produzem, seja
ao indivíduo que as pratica, seja à sociedade?
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Por Deus, nenhum.
BORDEU. — Logo, a despeito dos magníficos
elogios que o fanatismo lhes prodigalizou, a despeito das leis civis que as
protegem, nós as excluiremos do catálogo das virtudes, e conviremos que nada há
de tão pueril, de tão ridículo, de tão absurdo, de tão nocivo, de tão
desprezível, nada há de pior, à exceção do mal positivo, do que essas duas
raras qualidades...”
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