Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-585-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 270
“O filósofo
britânico Alfred North Whitehead (1861-1947) cunhou uma das citações mais
repetidas em salas de aula de filosofia do mundo inteiro, ao dizer: “a
caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é a de que ela
consiste em uma série de notas de pé de página à filosofia de Platão”
(Whitehead, Process and Reality,
1979, p. 39).
“A forma dialogal
da escrita de Platão não é inocente ou mero recurso de convencimento. Ela está
profundamente ligada ao que o autor entende como filosofia, isto é, um caminho dialético, em que os argumentos vão
sendo depurados até que se chegue a um ponto em que não estamos nos movendo nem
pelas tradições nem por valores subjetivos, e sim de forma exclusivamente
racional.”
“Gilles Deleuze
(1925-1995) e Felix Guattari (1930-1992), no livro O que é a filosofia? (1993), trabalham com a ideia de que a
filosofia, ao longo de seus milhares de anos, criou inúmeros “personagens
conceituais”, que põem em movimento os conceitos dentro do que chamam de “plano
de imanência” do autor. São como forças motrizes que nos fazem pensar, e o
guardião de Platão é uma das maiores potências de toda a história da filosofia.
O guardião é pensado como um soldado. A cidade cresce,
fica cada vez mais complexa e é necessário protegê-la. Entretanto, não se trata
de proteger apenas suas fronteiras, mas principalmente seu pensamento. Por
isso, esse soldado será o modelo de um homem educado pela filosofia, que
defende, sobretudo, os princípios éticos pautados na racionalidade.
Deste ponto em
diante, Platão foca sua atenção em como deve ser educado esse guardião,
referindo-nos, então, à paideia
platônica, isto é, um modelo de formação para o ser humano que Platão
considerava estar em acordo com a natureza racional que nos define.
Werner Jaeger
(1888-1961), com sua famosa obra Paideia
(2001), ficou conhecido por defender a tese de que Platão queria substituir
Homero como educador da Grécia. E, de fato, A
República é a defesa de que a
poesia e a religião, principais fontes da cultura grega, não eram suficientes
para formar o cidadão. Como você pode imaginar, essa era uma afirmação bastante
forte, que a grande maioria da população rechaçaria ainda hoje, mas que, ao
mesmo tempo, resume uma proposta de vida que é filosófica do início ao fim.
Além disso, é uma afirmação que pode ser justificada pela constatação de que
apenas o pensamento racional é um parâmetro adequado para a tomada de decisões
em conjunto, superando-se as diferenças culturais, individuais, e tornando
iguais todos os homens. Filosofia e justiça, nesse raciocínio, praticamente se
equivalem.”
“Depois de
empreender toda uma longa discussão a respeito da poesia como paideia, detalhando-se que tipos de
poesia devem existir ou não na cidade, surge a contestação de Adimanto de que,
daquela forma, os guardiões não seriam felizes. Sócrates argumenta – e o faz
mais de uma vez ao longo do livro – que ele está buscando aquilo que faça feliz
a toda a cidade, e não a cada indivíduo. Aqui podemos notar outra vez como
Platão se atém à proposta de buscar princípios éticos que transcendam a
subjetividade, ou seja, que ele trata a ética de forma exclusivamente
filosófica. Em continuação, Sócrates declara fundada a cidade e diz que, agora
sim, nela se podem ver as virtudes que a tornam justa. Toda essa imagem,
portanto, foi construída com o objetivo de encontrar os princípios filosóficos
da cidade justa, surgindo daí, no Livro IV, as virtudes cardeais que levarão à
definição de justiça (dikaiosyne).
Platão utiliza uma
ideia um pouco incomum para nós, hoje, mas que é primordial em seu pensamento:
a “natureza” das coisas. O filósofo
afirma que a natureza da alma é ser composta por três elementos, que se
costumam traduzir por “apetitivo”, “emocional” e “racional”, da mesma forma que
a cidade é composta por três classes às quais estas correspondem: os artífices,
os militares, e os guardiões. A cada um desses elementos da alma cabe uma
função, a saber: ao apetite, obedecer; às emoções, assistir; e à razão,
governar. As mesmas funções corresponderiam às classes da cidade. A toda essa
organização tripartida da alma e da cidade, Platão faz corresponder as
virtudes.
Cada uma dessas virtudes guia uma das partes da alma:
a sabedoria (sophía) é a virtude que
domina a racionalidade, a coragem (andreía)
guia as emoções, e a temperança (sóphrosyne)
incide sobre os apetites, amansando-os.
Cada uma dessas
virtudes corresponderia a certa classe de cidadãos. E da harmonia de todas
essas virtudes se dá a definição de justiça, ou seja, a dikaiosýne buscada por Platão desde o início da obra consiste em um
equilíbrio em que cada elemento cumpra bem sua função para que o todo funcione
em harmonia. A injustiça, consequentemente, é a desarmonia entre os elementos.”
“O philosophós, amigo da sabedoria, é
definido em contraposição ao philodóxos,
amigo da opinião. E aqui se percebe que o cerne da justificativa platônica para
sua proposta ética radica-se num novo pensamento sobre o conhecimento. Trata-se
da teoria das ideias, que é apresentada em duas imagens: (1) a linha dividida e
a (2) alegoria da caverna, nos livros VI e VII, respectivamente. Esse é, sem
dúvida, o ponto central de A República.
A cidade justa só é realizável se governada pela inspiração filosófica. E para
que isso aconteça, é preciso determinar exatamente o que é filosofia.
Platão diz
especificamente que a imagem que está construindo na alegoria da caverna
refere-se à natureza humana conforme ela é ou não submetida à paidéia (Platão, A República, 1987, passo 514a), portanto, esses argumentos
relativos à filosofia correspondem diretamente ao que Platão propõe como
formação para o homem. Para ser justo, o homem precisa alcançar um conhecimento
de certo tipo, não mais aquele valorizado pela tradição. Esse tipo de
conhecimento preconiza a possibilidade de se compreender a realidade em
apreensões unívocas, e isso é uma grande revolução para o pensamento e é, mais
especificamente, o que denominamos metafísica.”
“Uma das
características da metafísica inaugurada por Platão é justamente a
possibilidade de um pensamento que é, ao mesmo tempo, racional e teleológico, e
isso se torna de fato uma proposta ética de outro teor, ainda que se possa
dizer, irrealizável.”
“Assim como
Whitehead, citado no início deste texto, outros filósofos enxergam em Platão a
raiz cultural do Ocidente. Para esses pensadores, os propósitos fundamentais
platônicos, como a noção de que o homem é dotado de um pensamento racional,
capaz de se livrar das obscuridades do mundo dos sentidos, a proposta de que a
temperança (sophrosýne) poderia
impor-se sobre todas as desmedidas (a hýbris
grega) e a noção de que a alma é imortal, e tantos outros conceitos e valores
são fundamentais em todas as culturas cujo berço é reconhecidamente grego, isto
é, a Europa e o mundo por ela conquistado.
Nietzsche
(1844-1900), por exemplo, critica esse fato:
Esse
pensamento desrespeitoso, de que os grandes sábios são tipos da decadência, ocorreu-me primeiramente num caso em que o preconceito dos doutos e
indoutos se opõe a ele de modo mais intenso: eu percebi Sócrates e Platão como
sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega, como antigregos.
(Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, 2006,
p. 17)
Também Heidegger
aponta: “toda a filosofia ocidental é um platonismo. Metafísica, idealismo e
platonismo significam essencialmente a mesma coisa” (Heidegger, Nietzsche, 2007, p. 221). E isso não é
propriamente um elogio do filósofo.”
“A maneira como o
homem compreende o mundo sensível é o que Platão denomina dóxa, ou opinião. Aqui, é preciso compreender
que na medida em que as coisas se dão a nós por meio dos sentidos, não se pode
superar a multiplicidade das sensações, não se pode unificar as sensações sob
uma “percepção” (termo moderno que aqui usamos apenas para aproximar o
entendimento). Nisso consiste a crítica de Platão à dóxa. É um tipo de conhecimento que não alcança a unidade. Para a
sensação, cada objeto — por exemplo, uma caneta — é um objeto diferente,
interpretado individualmente numa soma de sensações humanas. Racionalmente,
porém, é possível pensar que tantas e tantas canetas correspondem a uma mesma
ideia, a uma unidade que as define, embora cada uma delas diferenças tenha particularidades.
Dessa maneira,
aquilo que Platão entende como objetos do mundo inteligível são as abstrações
que ultrapassam essa individualidade, que atingem uma unidade inteligível. Esse
tipo muito específico de conhecimento se chama epistéme. E só ele; em
oposição à dóxa, pode ser o conhecimento
verdadeiro. Essa unidade, como se pode perceber, é racional e Platão entende
que ela “ultrapassa” o mundo sensível, propondo a noção de forma, ou ideia, à qual
atribui um estatuto isto é, entende que elas “existam” de alguma maneira.
Quando Platão busca “a justiça em si” em detrimento
das coisas justas, ou “a beleza em si”, está propondo que se busque a ideia da
justiça ou da beleza. Só a epistéme
pode alcançá-las; por isso, antes de tudo, é preciso entender a necessidade de
uma mudança de mentalidade em relação ao que seja conhecimento, e é disso primordialmente que A República se ocupa.”
“Note que aqui
entra também outro pressuposto característico da filosofia de Platão (assumida
também por Aristóteles), que é o da diferença entre os tipos de ciência. Essas
ciências em que não cabe uma justificativa ontológica ainda não são a forma
última de se perguntar pelas coisas. Apenas a filosofia é a ciência que
pergunta o que justifica a realidade, ou como compreendê-la em uma perspectiva
de totalidade. (...)Trata-se de buscar as coisas em suas últimas justificações
e de chegar a uma espécie de intuição intelectual — o termo, mais uma vez, é
anacrônico e só pretende facilitar a compreensão. Trata-se mais exatamente de
uma “visão” da verdade inteligível.”
“O philosophós, ou seja, aquele que ama o
saber, ama-o de um modo completo e sabe que tipo muito específico de saber está
buscando. A filosofia é a única maneira de percorrer essa linha ascendente do
conhecimento, deixando para trás o “espetáculo do múltiplo” e a “opinião da
maioria”. Esse é o objetivo da paidéia
à qual o guardião — que nada mais é do que o filósofo — deve estar submetido.
Ele aprenderá, por intermédio dela, a enxergar com os olhos da alma em
detrimento dos do corpo, a relacionar-se com a realidade de uma forma nova,
filosófica, que para Platão é a única capaz de levar a uma vida mais ética e a
uma sociedade mais justa.”
“É preciso compreender que
Platão se movimenta em um cenário em que as questões são metafisicas, ontológicas.
Ao conhecer a ideia, conhece-se para além da experiência individual e com um
caráter absoluto, mas estamos sempre falando de algo que vai além do campo das
palavras.
Toda a história da
filosofia não passaria de notas de pé de página, como disse Vhitehead,
justamente pelo fato de Platão haver sido o criador da metafísica, palavra que parece definir a totalidade do pensamento ocidental.
Por isso o legado de Platão é incalculável.
A metafísica é,
dentro de todo o amplo espectro de estudos da filosofia, uma das áreas mais
férteis para confusões conceituais. Primeiro pela própria dificuldade de
tradução da palavra, pois o prefixo grego metá
significa “ao longo dê”, mas é entendido pela tradição filosófica ora com o
sentido de “depois” ora por “para além de” ou “ao longo de”.
Se a palavra for
traduzida com base no primeiro sentido, ela fala de um conhecimento que
ultrapassa o domínio da experiência humana, e nisso se confunde com o
sobrenatural e todas as afirmações da teologia. Se for tomada no segundo,
porém, faz pensar num conhecimento que ultrapassa o domínio da phýsis, indo além dela para explicá-la
em leis racionais e isso não está necessariamente ligado a uma ideia de transcendência
divina propriamente dita. Portanto, a metafisica está inscrita em intensas e
graves disputas de interpretação, e cada momento de sua história teve
consequências de grande importância no pensamento e no desenvolvimento das
sociedades ocidentais.
A mais óbvia delas
foi a cristianização dos pensadores gregos, Platão e Aristóteles. No caso de
Platão, isso se deu graças ao neoplatonismo de Plotino (204 d. C.-270 d.C.) e
de Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) e no caso de Aristóteles via São Tomás
de Aquino (1225-1274). Crenças como a de que o mundo das ideias existe na mente
divina ou de que o primeiro motor aristotélico corresponde exatamente ao Deus
cristão são, no mínimo, arbitrárias. Uma longa tradição repetiu essas ideias,
que se perdiam em larga medida das buscas originais de seus autores helenos.
Caso você não se
recorde, leia (ou releia) Meditações
Metafísicas, de René Descartes (1596-1650), e atente para o argumento da
cera proposto pelo filósofo na terceira meditação. Nele, Descartes nos faz acreditar
que, ao nos isentarmos dos sentidos, podemos captar de uma forma totalmente
pura, pela razão, a ideia da cera. E mais adiante, ele nos convence de que isso
só é assim porque Deus existe e nos dotou com a capacidade de “ver”
racionalmente. Com isso, podemos perceber que não apenas o cristianismo propriamente
dito emprestou as ideias de Platão incluindo-as em seu sistema, mas o próprio
modo de pensar dentro da filosofia se ateve a raízes platônicas já
transformadas pela tradição cristã.
Acreditamos que um
dos pontos mais importantes do ensinar filosofia é conduzir qualquer pessoa à
consciência de que o pensamento tem uma história e de que somos constituídos
por ela. Esse ponto é primordial, seja o leitor aluno de filosofia, seja apenas
interessado no assunto, é preciso compreender bem os gregos, e isso significa,
em grande medida, compreendê-los para além da sua interpretação canônica, instituída
pelo cristianismo medieval. Metafísica, ou ontologia, para os pensadores
gregos, significou algo muito distante do que disseram os intérpretes cristãos,
ou seja, tratava-se de uma busca muito concreta do conhecimento da realidade,
em uma perspectiva geral.
Como diz Kant (Crítica
da Razão Pura, 1996,
p. 37):
Ao primeiro a demonstrar o triângulo equilátero
(tenha se chamado Tales ou como se queira) acendeu-se uma luz, pois achou que
não tinha de rastear o que via na figura ou o simples conceito da mesma e como
que aprender disso as suas propriedades, mas que tinha de produzir (por construção)
o que segundo conceitos ele mesmo introduziu pensando e se apresentando a priori.
O que Kant aponta
nessa passagem é que no pensamento grego pela primeira vez se seguiu o caminho
de uma demonstração baseada apenas nas regras do pensamento humano, sem recurso
à fantasia ou ao sobrenatural, e sem reduzir-se à experiência como ela se dá em
cada caso individual. Regras lógicas, de acordo com as quais o pensamento
atinge caráter de necessário, sem juiz exterior, dão a esse pensamento validade
para além da experiência individual, e à razão, o lugar de sede do julgamento sobre
a realidade, por direito, sem necessidade de outros parâmetros.
A forma como Platão entende a ontologia provocou uma
grande mudança no pensamento grego, pois instituiu a atitude de quem se vê
capaz de alcançar racionalmente verdades gerais, ou universais.
Talvez devêssemos
fazer jus ao que Kant (1996, p. 241) disse sobre Platão, que ele “bem enxergou
a necessidade da capacidade cognitiva humana”, que, não se contentando em “soletrar
fenômenos segundo uma unidade sintética para poder lê-los como experiência”,
sente que precisa ir até o fim em suas conjecturas, ainda que isso atinja
objetos que não se dão à experiência sensorial. A motivação para a verdade, que
Kant também atribui ao homem, parece ter feito sentido para os gregos, por decorrer
da própria ideia de razão, ou seja, em termos kantianos, do homem como um ente
capaz de espontaneidade e não simples receptividade, um ente que ativamente
conhece a realidade e o faz baseando-se nos parâmetros de sua própria
capacidade.
Examinando as
possibilidades do pensamento, Platão percebe que há diferentes níveis de
relacionamento do homem com o real: o que considera apenas as aparências (em
termos mais atuais: a multiplicidade fenomenológica como se a ela não
subsistisse uma lei ou organização primordial) e o que se preocupa
fundamentalmente com o verdadeiro, com aquilo que define e impera em cada
objeto. Essa essência tem o sentido de algo que se pode conhecer para além da
experiência, pois, de fato, alguns conhecimentos são possíveis pela via
racional, independentemente da experiência e sobre eles sempre se pautou a
filosofia.
E com isso estamos
falando da elaboração mais original da metafísica, fonte de todos os
mal-entendidos entre Platão e a tradição platônica. Como assinala Kant, Platão
apesar de ter percebido o importante valor do conhecimento necessário e
independente da experiência, deduziu as ideias de maneira mística, ignorando as
condições do sensível e atribuindo realidade ontológica a tais formas. Nesse
ponto se baseia a ideia de metafisica como o conhecimento de um fundamento
suprassensível da realidade, um sobrenatural que dá estrutura e verdade a todo
o real.
Quando Heidegger
funde as ideias de metafísica, platonismo e idealismo, ele o faz justamente de
maneira a criticar que somos fruto de uma tradição de pensamento que desconhece
suas origens. A filosofia ocidental, com determinada forma de compreender a
verdade, teria procedido a cisões que Platão, a rigor, não fez. Basta que o
leitor volte à obra A República para
perceber que as ideias funcionam como um paradigma para o conhecimento das
coisas reais, e o peso dado à cisão entre os dois mundos é mais cristão que
platônico.”
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