Editora: Brasiliense
ISBN:
978-85-2950-042-3
Opinião:
★★★★☆
Páginas:
120
“Em
suma, Engels e Marx consideram que os três aspectos que são condições para que
haja história — força de produção, relações sociais e consciência — podem
entrar e efetivamente entram em contradição como resultado da divisão social do
trabalho material e intelectual porque, agora, o trabalho e a fruição, a
produção e o consumo aparecem como realmente são, isto é, cabendo a indivíduos
diferentes. Instalou-se para a própria consciência imediata dos homens a
percepção da desigualdade social: uns pensam, outros trabalham; uns consomem,
outros produzem e não podem consumir os produtos de seu trabalho.
Outra
contradição mais aguda surge ainda: a contradição entre os interesses de um
indivíduo ou de uma família particular e os interesses coletivos. No entanto,
diferentemente de Hegel, Marx e Engels demonstram que tais interesses não são
realmente coletivos ou comuns, mas apenas o sistema social de dependência
recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho, os meios e condições do
trabalho e os produtos do trabalho estão desigualmente distribuídos.
Existem
conflitos entre os proprietários e existem contradições entre os proprietários
e os não-proprietários. Há oposição entre os interesses dos proprietários e há
contradição entre os interesses de todos os proprietários e os de todos os não
proprietários. Os conflitos (entre proprietários) e a contradição (entre
proprietários e não proprietários) aparecem
para a consciência dos sujeitos sociais como se fossem conflitos entre o
interesse particular e o interesse comum ou geral. Na realidade, porém, há
antagonismos entre classes sociais particulares, pois onde houver propriedade
privada não pode haver interesse social comum.
“É
justamente desta contradição entre o interesse particular e o suposto interesse
coletivo que este último toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses
particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de comunidade ilusória,
mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar
ou tribal — tais como laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em maior
escala e outros interesses — e, sobretudo, como desenvolveremos adiante,
baseada nas classes sociais já condicionadas pela divisão social do trabalho,
que se isolam em cada um desses conglomerados humanos e entre as quais há uma
que domina sobre as outras todas (...) O poder social, isto é, a força
produtiva unificada multiplicada, que nasce da cooperação de vários indivíduos
exigida pela divisão do trabalho, aparece para esses indivíduos não como seu
próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja
origem e cujo destino ignoram e que, pelo contrário, percorre agora uma série
particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e
do agir dos homens e que, na verdade, dirige esse querer e esse agir”.
Assim
como da divisão entre trabalho material e intelectual nasce a suposição de uma
autonomia das ideias, como se fossem ou como se tivessem uma realidade própria
independente dos homens, assim também, da separação entre os homens em classes
sociais particulares com interesses particulares contraditórios, nasce a ideia
de um interesse geral ou comum que se encarna numa instituição determinada: o
Estado.
O
Estado aparece como a realização do
interesse geral (por isso Hegel dizia que o Estado era a universalidade da vida
social), mas, na realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais
forte e poderosa da sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência
de interesses de toda a sociedade.
O
Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o
interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das
particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses
particulares da classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da
política as relações de exploração que existem na esfera econômica.
O
Estado é uma comunidade ilusória. Isto não quer dizer que seja falso, mas sim
que ele aparece como comunidade porque é assim percebido pelos sujeitos
sociais. Estes precisam dessa figura unificada e unificadora para conseguirem
tolerar a existência das divisões sociais, escondendo que tais divisões
permanecem através do Estado. O Estado é a expressão política da sociedade
civil enquanto dividida em classes. Não é, como imaginava Hegel, a superação
das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras.
Como,
porém, o Estado não poderia realizar sua função apaziguadora e reguladora da
sociedade (em benefício de uma classe) se aparecesse como realização de
interesses particulares, ele precisa aparecer como uma forma muito especial de
dominação: uma dominação impessoal e anônima, a dominação exercida através de
um mecanismo impessoal que são as leis ou o Direito Civil. Graças às leis, o
Estado aparece como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em
lugar do Estado aparecer como poder social unificado aparece como um poder
desligado dos homens. Por isso também, em lugar de ser dirigido pelos homens,
aparece como um poder cuja origem e finalidade permanecem secretos e que
dirigem os homens. Enfim, como o Estado ganhou autonomia, ele parecer ter sua
própria história, suas fases e estágios próprios, sem nenhuma dependência da
história social efetiva.
Está
aberto o caminho para a ideologia política que explicará a sociedade através
das formas dos regimes políticos (aristocracia, monarquia, democracia,
ditadura, anarquia) e que explicará a história pelas transformações do Estado
(passagem de um regime político para outro).
A
divisão social, que separa proprietários e destituídos, exploradores e
explorados, que separa intelectuais e trabalhadores, sociedade civil e Estado,
interesse privado e interesse geral, é uma situação que não será superada por
meio de teorias, nem por uma transformação da consciência, visto que tais
separações não foram produzidas pela teoria nem pela consciência, mas pelas
relações sociais de produção e suas representações pensadas.
Assim,
a transformação histórica capaz de ultrapassar essas divisões e as contradições
que as sustentam depende de pressupostos (condições ou pré-condições) práticos e não teóricos. Esses
pressupostos, ou pré-condições, práticos são:
1)
surgimento da massa da humanidade como massa inteiramente destituída de
propriedade e em contradição com um mundo da cultura e da riqueza produzido por
essa massa que se encontra excluída da abundância por ela produzida; é
fundamental, diz Marx, que haja total desenvolvimento das forças produtivas
(capitalistas), isto é, que tenha sido produzido um mundo cultural e material
abundante, pois, sem isto, a massa revolucionária teria que recomeçar o
processo histórico partindo da carência e da escassez, da luta pela
sobrevivência material imediata, e seria obrigada a repor as divisões e
contradições que pretendia superar;
2)
que a divisão entre os proprietários privados das condições de produção e a
massa destituída seja um fenômeno universal, de modo que quando a massa
destituída de um país iniciar sua revolução seja acompanhada pela revolução de
todas as massas do planeta; em outras palavras, é preciso que o modo de
produção capitalista tenha se tornado um processo histórico mundial ou
universal para que uma revolução plena possa efetuar-se. O capitalismo como mercado mundial é, portanto, o
pressuposto prático do comunismo como sociedade na qual os indivíduos exercerão
o controle consciente dos poderes que parecem dominá-los de fora (Natureza,
Mercado, Estado).
A
massa dos explorados enfim compreenderá que esses poderes foram produzidos pela
práxis social e que, por serem
produtos da atividade histórica dos homens em condições determinadas, também
podem ser destruídos pela prática social dos homens em condições determinadas.
Até agora os homens fizeram a história, mas sem saber que a faziam, pois, ao
fazê-la em condições determinadas que não foram escolhidas por eles, tomavam
tais condições como poderes exteriores e dominadores que os compeliam a agir.
Com a revolução comunista, os homens saberão que fazem a história, mesmo que
não tenham escolhido as condições em que a fazem.
Sem
as condições materiais da revolução, é inútil a ideia de revolução, “já proclamada centenas de vezes”. Mas sem a
compreensão intelectual dessas condições materiais, a revolução permanece como
um horizonte desejado, sem encontrar práticas que a efetivem.
A
história não é o desenvolvimento das ideias, mas o das forças produtivas. Não é
a ação dos Estados e dos governantes, mas a luta das classes. Não é história
das mudanças de regimes políticos, mas a das relações de produção que
determinam as forças políticas da dominação. Assim sendo, qual é o palco onde
se desenvolve a história? A sociedade civil.
A
sociedade civil não é o aglomerado conflitante de famílias e de corporações
(sindicatos, trustes, cartéis, holdings,
oligopólios) que serão reconciliados graças à ação reguladora e ordenadora do
Estado enquanto expressão do interesse geral. A sociedade civil é o sistema de
relações sociais que se organizam na produção econômica, nas instituições
sociais e políticas e que são representadas ou interpretadas por um conjunto
sistemático de ideias jurídicas, religiosas, políticas, morais, pedagógicas,
científicas, artísticas, filosóficas.
A
sociedade civil é o processo de constituição e de reposição das condições
materiais de existência, isto é, da produção (trabalho, divisão do trabalho,
processo de trabalho, forma de distribuição e de consumo, circulação,
acumulação e concentração da riqueza), por meio das quais são engendradas as
classes sociais (exploradores e explorados, isto é, a contradição entre
proprietários e não proprietários). A relação entre as classes assim produzidas
é contraditória porque a condição necessária e suficiente para que haja
proprietários privados é a existência dos não proprietários. Ou seja, a
existência da classe dos proprietários depende inteiramente da existência da
classe dos não proprietários e esta última nasce do processo pelo qual alguns
proprietários conseguem expropriar todos os outros e conseguem reduzir todo o
restante da sociedade (escravos, servos, artesãos) à condição de assalariados.
Em uma palavra, no caso da sociedade civil capitalista, afirmar que a
existência dos proprietários (da classe capitalista) depende da exploração dos
não proprietários (trabalhadores assalariados) significa simplesmente o
seguinte: o capital é o trabalho não-pago
(a mais-valia). Temos uma contradição na medida em que a realidade do capital é
a negação do trabalho.
A
sociedade civil se realiza através de um conjunto de instituições sociais
encarregadas de permitir a reprodução ou a reposição das relações sociais —
família, escola, igrejas, polícia, partidos políticos, imprensa, meios de
informação, magistraturas, Estado, etc. Ela é também o lugar onde essas
instituições e o conjunto das relações sociais são pensados ou interpretados
por meio das ideias — jurídicas, pedagógicas, morais, religiosas, científicas,
filosóficas, artísticas, políticas, etc.
Produzida
pela divisão social do trabalho que a cinde em classes contraditórias, a
sociedade civil se realiza como luta de classes. A luta de classes não é apenas
o confronto armado das classes, mas está presente em todos os procedimentos
institucionais, político, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante
lança mão para manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo
de trabalho (separando os trabalhadores uns dos outros e separando a esfera de
decisão e de controle do trabalho da esfera de execução, deixando esta última
para os trabalhadores) e o modo de se apropriar dos produtos (pela exploração
da mais-valia e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que
produziram), até as normas do Direito e o funcionamento do Estado. Ela está
presente também em todas as ações dos trabalhadores da cidade e do campo para
diminuir a dominação e a exploração, indo desde a luta pela diminuição da
jornada de trabalho, o aumento de salários, as greves, a criação de sindicatos
livres até a formação de movimentos políticos para derrubar a classe dominante.
A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial,
sanitária e educacional, está na propaganda e no consumo, está nas greves e nas
eleições, está nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes,
policiais e povo, juízes e réus, patrões e empregados.
Se
a história é história da luta de classes, então a sociedade civil não é A Sociedade, isto é, uma espécie de
grande indivíduo coletivo, um organismo feito de partes ou de órgãos funcionais
que ora estão em harmonia e ora estão em conflito, ora estão bem regulados, ora
estão em crise. A sociedade civil concebida como um indivíduo coletivo é uma
das grandes ideias da ideologia burguesa para ocultar que a sociedade civil é a
produção e reprodução da divisão em classes e é luta das classes. Isto
significa que a sociedade não pode ser o sujeito da história, criando-se e
recriando-se a si mesma por passes de mágica. A história é “os indivíduos
fazendo-se uns aos outros, tanto física quanto espiritualmente”. Este “fazer-se-uns-aos-outros”
é a práxis social e significa:
1)
que as classes sociais não estilo feitas e acabadas pela sociedade, mas que
estão se fazendo umas às outras por sua ação e que esta ação produz o movimento
da sociedade civil;
2)
que o conjunto das práticas sociais, tanto materiais quanto espirituais,
fazendo os indivíduos existirem como seres contraditórios, os faz membros de
uma classe social, isto é, participantes de formas diferenciadas de existência
social, determinada pelas relações econômicas de produção, pelas instituições
sócio-políticas e pelas ideias ou representações. O sujeito da história,
portanto, são as classes sociais.
Ora,
Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua classe é uma
relação alienada. Ou seja, assim como a Natureza, a Sociedade e o Estado aparecem para a consciência imediata dos
indivíduos com os poderes separados e estranhos que os dominam e governam,
assim também a relação dos indivíduos com a classe lhes aparece imediatamente como uma relação com algo já dado e que os
determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e determinada. A classe ganha
autonomia com relação aos indivíduos, de modo que, em lugar de aparecer como
resultante da ação deles, aparece de maneira invertida, isto é, como causando
as ações deles.
“A
classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos
encontram suas condições de vida preestabelecidas e têm, assim, sua posição na
vida e o seu desenvolvimento pessoal determinado pela classe. Tornam-se
subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos
isolados à divisão do trabalho e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se
supera a propriedade privada e o próprio trabalho. Indicamos várias vezes que
essa subsunção dos indivíduos à classe determina e se transforma, ao mesmo
tempo, em sua subsunção a todo tipo de representações”.
Esta
última frase de Marx e de Engels é fundamental para compreendermos a relação
entre alienação e ideologia.
A
ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e
subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social
dos indivíduos. Ora, a partir do momento em que a relação do indivíduo com a
sua classe é a da submissão a condições de vida e de trabalho pré-fixadas, essa
submissão faz com que cada indivíduo não possa reconhecer-se como fazedor de
sua própria classe. Ou seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe decorre da atividade de seus membros. Pelo
contrário, a classe aparece como uma coisa em si e por si e da qual o indivíduo
se converte numa parte, quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino. A
classe começa, então, a ser representada pelos indivíduos como algo natural (e
não histórico), como um fato bruto que os domina, como uma “coisa” onde vivem.
A ideologia burguesa, através de uma ciência chamada Sociologia, transforma em
ideia científica ou em objeto científico essa “coisa” denominada “classe social”,
estudando-a como um fato e não como resultado da ação dos homens.
A
ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir ideias que
confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que
são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo
próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem e os preguiçosos, empobrecem.
Ou, então, faz com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida
social, permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de
melhorar — ocultando, assim, que os que trabalham não são senhores de seu
trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não dependem deles, mas de
quem possui os meios e condições do trabalho. Ou, ainda, faz com que os homens
creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são
iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos
dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes.
Marx
e Engels insistem em que não devemos tomar o problema da alienação como ponto
de partida necessário para a transformação histórica. Ou seja, não devemos
esperar que através da simples crítica da alienação haja uma modificação na
consciência dos homens e que, graças a essa modificação, que é uma mudança
subjetiva, haverá uma mudança objetiva. Insistem em que a alienação é um
fenômeno objetivo (algo produzido pelas condições reais de existência dos
homens) e não um simples fenômeno subjetivo, isto é, um engano de nossa
consciência.
A
alienação é um processo ou o processo social como um todo. Não é produzida por
um erro da consciência que se desvia da verdade, mas é resultado da própria
ação social dos homens, da própria atividade material quando esta se separa
deles, quando não podem controlá-la e são ameaçados e governados por ela. A
transformação deve ser simultaneamente subjetiva e objetiva: a prática dos homens
precisa ser diferente para que suas ideias sejam diferentes.
“Todas
as formas e todos os produtos da consciência não podem ser dissolvidos por
força da crítica espiritual (como pretendiam os ideólogos alemães), pela
dissolução dos fantasmas por ação da ‘autoconsciência’ ou pela transformação
dos ‘fantasmas’, dos ‘espectros’, das ‘visões’ (maneira pela qual os ideólogos
alemães descreviam a alienação). Só podem ser dissolvidos pela derrocada
prática das relações reais de onde emanam essas tapeações idealistas. Não é a
crítica, mas a revolução, a força motriz da história”.
Com
isto, Marx e Engels dão à teoria um sentido inteiramente novo enquanto crítica
revolucionária: a teoria não está encarregada de “conscientizar” os indivíduos,
não está encarregada de criar a consciência verdadeira para opô-la a
consciência falsa, e com isto mudar o mundo. A teoria está encarregada de
desvendar os processos reais e históricos enquanto resultados e enquanto
condições da prática humana em situações determinadas, prática que dá origem à
existência e à conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. A
teoria está encarregada de apontar os processos objetivos que conduzem à
exploração e à dominação e aqueles que podem conduzir à liberdade.
Percebemos,
então, que a teoria — ao contrário da ideologia — não está encarregada de tomar
o lugar da prática, fazendo a realidade depender das ideias. Também não está
encarregada de guiar a prática, fazendo com que a atividade histórica dependa
da consciência “verdadeira”. E também não está encarregada de se inutilizar
enquanto teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação prática
reproduz a prática alienada.
A
relação entre teoria e prática é revolucionária porque é dialética. Vimos que
dialética é o movimento das contradições e que a contradição é a existência de
uma relação de negação interna entre termos que só existem graças a essa
negação. Que significa dizer que a relação entre teoria e prática é dialética e
não ideológica (como aquela relação que mostramos ser feita pelos
positivistas)? A relação entre teoria e prática é uma relação simultânea e
recíproca por meio da qual a teoria nega a prática enquanto prática imediata,
isto é, nega a prática como um fato dado para revelá-la em suas mediações e
como práxis social, ou seja, como
atividade socialmente produzida e produtora da existência social. A teoria nega
a prática como comportamento e ação dados, mostrando que se trata de processos
históricos determinados pela ação dos homens que, depois, passam a determinar
suas ações. Revela o modo pelo qual criam suas condições de vida e são, depois,
submetidos por essas próprias condições.
A
prática, por sua vez, nega a teoria como um saber separado e autônomo, como
puro movimento de ideias se produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos.
Nega a teoria como um saber acabado que guiaria e comandaria de fora a ação dos
homens. E negando a teoria enquanto saber separado do real que pretende
governar esse real, a prática faz com que a teoria se descubra como conhecimento
das condições reais da prática existente, de sua alienação e de sua
transformação. Por isso Marx e Engels afirmam que conhecem um único tipo de
saber: a ciência da história.
“Toda
concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente a base real da
história (forças de produção, capitais, divisão social do trabalho,
propriedade, formas sociais de intercâmbio que cada geração encontra como
produto da geração precedente e que a atual reproduz e transforma, alterando a
forma da luta de classes), ou a tem considerado como algo secundário, sem
qualquer conexão com o curso da história. Isto faz com que a história deva
sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora dela. A produção da
vida real aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e
supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a Natureza é excluída da
História, o que engendra a oposição entre Natureza e História.
Consequentemente, tal concepção apenas vê na História as ações políticas dos
Príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e
vê-se obrigada a compartilhar, em
cada época, a ilusão dessa época. Por
exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente ‘políticos’
ou ‘religiosos’, embora a ‘política’ e a ‘religião’ sejam apenas formas
aparentes de seus motivos reais, então o historiador dessa época considerada
aceita essa opinião. A ‘imaginação’, a ‘representação’ que homens
historicamente determinados fizeram de sua práxis
real transforma-se, na cabeça do historiador, na única força determinante e
ativa que domina e determina a práxis
desses homens. Quando a forma sob a qual se apresenta a divisão do trabalho
entre os hindus e entre os egípcios suscita nesses povos um regime de castas
próprio de seu Estado e de sua religião, o historiador crê que o regime de
castas é a força que engendrou essa forma social. Enquanto os franceses e os
ingleses se atêm à ilusão política (isto é, tomam as formas e forças políticas
como determinantes do processo histórico), o que está certamente mais próximo
da realidade, os alemães se movem na esfera do “espírito puro” e faz da ilusão
religiosa a força motriz da história”.
Uma
vez postas como forças históricas motrizes àquelas forças (políticas,
religiosas, culturais, etc.) que, na verdade, são determinadas pelas forças
reais; todo o processo histórico fica invertido ou de ponta-cabeça. Assim,
acontecimentos históricos posteriores são convertidos na “finalidade” da
história anterior. É o que ocorre quando se explica a descoberta da América como
um acontecimento que teve por finalidade auxiliar o surgimento da Revolução
Francesa. Ou quando se explica o episódio da Inconfidência Mineira como tendo a
finalidade de preparar o da Independência.
Na
medida em que as forças reais, que explicam o processo de surgimento de um
acontecimento, permanecem ignoradas ou escondidas, o historiador-ideólogo
inventa causas e finalidades que acabam convertendo a história numa entidade
autônoma que possui seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando
os homens como seus instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da realidade
histórica e diante da ideia da
história.
É
assim, por exemplo, que a ideologia burguesa tende a explicar a história
através da ideia de progresso. Como a burguesia se vê a si mesma como uma força
progressista, porque usa as técnicas e as ciências para um aumento total do
controle sobre a Natureza e a sociedade, considera que todo o real se explica
em termos de progresso. O historiador-ideólogo constrói a ideia de progresso
histórico concebendo-o como a realização, no tempo, de algo que já existia
antes de forma embrionária e que se desenvolve até alcançar seu ponto final
necessário. Visto que a finalidade do processo já está dada (isto é, já se sabe
de antemão qual vai ser o futuro), e visto que o progresso é uma “lei” da
história, esta irá alcançar necessariamente o fim conhecido. Com isto, os
homens se tornam instrumentos ou meios para a “história” realizar seus fins
próprios e são justificadas todas as ações que se realizam “em nome do
progresso”.
Dessa
maneira, não só os acontecimentos históricos são explicados de modo invertido
(o fim explica o começo), mas tal “explicação” ainda permite que a classe
dominante justifique suas ações, fazendo-as aparecer como as “razões da
história”. Atribui-se à história uma racional idade que é apenas a legitimação
dos dominantes.
Se
a história é o processo prático pelo qual, homens determinados em condições
determinadas estabelecem relações sociais por meio das quais transformam a
Natureza (pelo trabalho) se dividem em classes (pela divisão social do trabalho
que determina a existência de proprietários e de não proprietários), organizam
essas relações através das instituições e representam suas vidas através das
ideias, e se a história é da luta de classes, luta que fica dissimulada pelas
ideias que representam os interesses contraditórios como se fossem interesses
comuns de toda a sociedade (através da ideologia e do Estado), então a história
é também o processo de dominação de uma parte da sociedade sobre todas as
outras.
Isto
significa que, em termos do materialismo histórico e dialético, é impossível
compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes,
pois a ideologia é um dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas
da luta de classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para
exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos
dominados.
A
peculiaridade da ideologia e que a transforma numa força quase impossível de
remover decorre dos seguintes aspectos:
1)
o que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as ideias existem
em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho
material e trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e
pensadores. Portanto, enquanto esses dois trabalhos estiverem separados,
enquanto o trabalhador for aquele que “não pensa” ou que “não sabe pensar”, e o
pensador for aquele que não trabalha, a ideologia não perderá sua existência
nem sua função;
2)
o que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto
é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais
de existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles,
mas, ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a
origem da vida social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes
(deuses, Natureza, Razão, Estado, destino, etc.), de sorte que as ideias
quotidianas dos homens representam a realidade de modo invertido e são
conservadas nessa inversão, vindo a constituir os pilares para a construção da
ideologia. Portanto, enquanto não houver um conhecimento da história real,
enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens,
enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica e sem pensamento,
a ideologia se manterá;
3)
o que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma classe
sobre as outras. Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de
ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a
ideologia tem por finalidade ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce
para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência
da ação de certas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a
Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo
e legal que se submetam. Ora, como a experiência vivida imediata e a alienação
confirmam tais ideias, a ideologia simplesmente cristaliza em “verdades” a
visão invertida do real. Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes
apareçam ideias “verdadeiras”. Seu papel também é o de fazer com que os homens
creiam que tais ideias representam efetivamente a realidade. E, enfim, também é
seu papel fazer com que os homens creiam que essas ideias são autônomas (não
dependem de ninguém) e que representam realidades autônomas (não foram feitas
por ninguém).
Assim,
por exemplo, na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma relação
social que assume formas, funções e sentidos diferentes tanto em decorrência
das condições históricas quanto em decorrência da situação de cada classe
social na sociedade. Pelo contrário, a família é representada como sendo sempre
a mesma (no tempo e para todas as classes) e, portanto, como uma realidade
natural (biológica), sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre
existiu e sempre existirá), moral (a vida boa, pura, normal, respeitada) e
pedagógica (nela se aprendem as regras da verdadeira convivência entre os
homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o respeito e temor dos filhos
pelos pais, com o amor fraterno). Estamos, pois, diante da ideia da família e não diante da realidade histórico-social da
família.
Ou,
então, quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as
condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens
em benefícios de uns poucos. Estamos diante da ideia de trabalho e não diante da realidade histórico-social do
trabalho.
Ou,
então, quando se diz que os homens são livres por natureza e que exprimem essa
liberdade pela capacidade de escolher entre coisas ou entre situações dadas,
sem que se analise quais coisas e quais situações são dadas para que os homens
escolham. Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente escolher o
que desejarem? O nordestino, vítima da seca e do proprietário das terras,
realmente “escolhe” vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? O peão
metalúrgico “escolheu” livremente fazer horas-extras depois de 12 horas de
trabalho? A menina grávida que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe”
fazer um aborto? A definição da liberdade como igual direito à escolha é a ideia burguesa da liberdade e não a
realidade histórico-social da liberdade.
Dissemos
que a ideologia é resultado da luta de classes e que tem por função esconder a
existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da
ideologia aumenta quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da
divisão social em classes e a luta de classes.”
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