Editora: Brasiliense
ISBN:
978-85-2950-042-3
Opinião:
★★★★☆
Páginas:
120
“Esses
vários aspectos do pensamento hegeliano (aqui grosseiramente resumidos)
constituem a dialética (palavra grega
derivada de dia-logos, isto é, a
palavra e o pensamento divididos em dois polos contraditórios), ou seja, a
história como processo temporal movido internamente pelas divisões ou negações
(contradição) e cujo Sujeito é o Espírito como reflexão. Essa dialética é
idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto também é o Espírito.
Ora, as obras do Espírito (a Cultura), embora apareçam como fatos e coisas, são
ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas produz ideias e é
ideia. O idealismo hegeliano consiste, portanto, em afirmar que a história é o
movimento de posição, negação e conservação das ideias, e essas são a unidade do
sujeito e do objeto da história, que é Espírito.
Vejamos
como opera a dialética hegeliana tomando um exemplo da Filosofia do Direito, quando Hegel expõe
o movimento de constituição da sociedade civil e do Estado.
O
Espírito começa em seu momento natural, isto é, como algo dado ou imediatamente
existente: trata-se da existência dos indivíduos como vontades livres que se
reconhecem como tais pelo poder que têm de apropriar-se das coisas naturais
através (pela mediação) do trabalho. Assim, no primeiro momento, existem os
indivíduos definidos como proprietários de seu corpo e das coisas de que se
apropriam. A regulação das relações entre os proprietários conduz ao aparecimento
do Direito, no qual o proprietário é definido como pessoa livre. A pessoa é,
portanto, o indivíduo natural que é livre porque sua vontade o faz ser
proprietário. As pessoas entram em relação por meio dos contratos (relação entre
proprietários) e pelo crime (quebra do contrato).
No
entanto, esses indivíduos naturais livres não são apenas proprietários. Isto é,
sua vontade livre não se relaciona apenas com as coisas exteriores
(propriedade) e com outros indivíduos exteriores (os proprietários
contratantes). Sua vontade livre é consciente de si e faz com que cada
indivíduo se relacione consigo mesmo, com sua interioridade ou consciência.
Esse indivíduo livre interior se chama sujeito. As relações entre os sujeitos
constituem a Moral.
Ora,
o Direito e a Moral estão em conflito. Ou seja, os interesses do proprietário
estão em conflito com os deveres do sujeito moral, pois o proprietário tem
interesse em ampliar sua propriedade espoliando e desapropriando outros
proprietários, tratando-os como se fossem coisas suas e não homens livres e
independentes. E o sujeito moral deve tratar os demais como homens livres e
independentes. Há, pois, uma contradição no interior de cada indivíduo entre sua
face-pessoa (proprietário) e sua face-sujeito (moral). Isto é, como
proprietário ele se torna não-moral e como sujeito ele se torna não-proprietário.
A
resolução dessa contradição faz-se em dois momentos: no primeiro surge a
família e no segundo surge a sociedade civil.
As
individualidades naturais imediatas são integradas numa realidade nova que faz
a mediação entre o indivíduo como pessoa e o indivíduo como sujeito. É a
família que concilia os interesses dos proprietários e os deveres dos sujeitos,
fazendo-os interesses coletivos da família e deveres comuns dos membros da
família (deveres paternos, maternos, fraternos e filiais). Surge uma vida
comunitária e Hegel a denomina: unidade do Espírito Subjetivo.
No
entanto, a existência de múltiplas famílias reabre a contradição. Essa, agora,
se estabelece entre o membro da família e o não-membro da família. A luta entre
as famílias constitui o primeiro momento da sociedade civil.
A
sociedade civil resolve as lutas familiares criando a diferença entre os
interesses públicos e os privados, e regulando as relações entre eles através
do Direito (público e privado). A sociedade civil é a negação da família. Isso não
significa que a família deixou de existir, significa apenas que a realidade da
família não depende dela própria, mas é determinada pelas relações da sociedade
civil. Isso significa que o indivíduo social não se define como membro da
família (como pai, mãe, filho, irmão), mas se define por algo que desestrutura
a família: as classes sociais.
A
sociedade civil é constituída por três classes, a primeira das quais se
encontra ainda amarrada à família, enquanto a terceira já não possui qualquer
relação com a vida familiar, mas é inteiramente definida pela vida social. A
primeira é aristocracia ou nobreza, proprietária da terra e que se conserva justamente
pelos laços de sangue e pela linhagem (por isso ainda está próxima da família).
A terceira, que Hegel denomina classe universal, é a classe média constituída
pelos funcionários do Estado (governantes, dirigentes, magistrados,
professores, funcionários públicos em geral). Entre essas duas classes, existe
uma, intermediária, e que é o coração da sociedade civil: a classe formal, isto
é, os indivíduos que vivem da indústria e do comércio, do trabalho próprio ou
do trabalho alheio. Formam as corporações (sindicatos) e seus interesses
definem toda a esfera da vida civil. Através (pela mediação) das classes
sociais, a sociedade civil nega o indivíduo isolado (pessoa e sujeito) e o
indivíduo como membro da família, fazendo-o aparecer como indivíduo membro da
sociedade, e pertencente a uma classe social. A unidade ou síntese do
proprietário, do sujeito e do membro da família chama-se, agora, o cidadão. Ora, entre os cidadãos (ou
seja, entre as classes sociais) existem conflitos e se reabre a contradição. Agora,
a contradição se estabelece entre os interesses de cada classe social e os das
outras, e entre os interesses dos próprios membros de uma classe social. Ou
seja, ressurge, de modo novo, a contradição entre o privado (cada classe) e o
público (todas as classes). A resolução dessa contradição é feita pelo Estado.
O
Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa realidade coletiva a
totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e
públicos. Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente real e somente nele
se define a existência social e moral dos homens. O Estado é o Espírito
Objetivo.
O
Estado é uma comunidade. Mas difere da comunidade familiar e da comunidade das
classes sociais (suas corporações), porque não possui nenhum interesse
particular, mas apenas os interesses comuns e gerais de todos. É uma comunidade
universal (isto é, seus interesses não sendo particulares, desta ou daquela
família, deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela classe, são interesses
universais). O Estado não é, pois, um dado imediato da vida social, mas um
produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito
Objetivo. O Estado é a Ideia política
por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito. Nele se harmonizam os
interesses da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade
e política).
Ora,
enquanto os ideólogos alemães se contentam em ridicularizar o sistema
hegeliano, permanecendo presos a ele sem o saber, Marx critica radicalmente o
idealismo hegeliano e por isso pode conservar sem risco muitas das
contribuições do pensamento de Hegel. Vejamos como se passa da dialética
idealista para a materialista.
Da
concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento
interno de produção da realidade cujo motor é a contradição. Porém Marx
demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo mesmo, entre sua face
subjetiva e sua face objetiva, entre sua exteriorização em obras e sua
interiorização em ideias: a contradição se estabelece entre homens reais em
condições históricas e sociais reais e se chama luta de classes.
A
história não é, portanto, o processo pelo qual o Espírito toma posse de si
mesmo, não é história das realizações do Espírito. A história é história do
modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência. É
história do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou
imediato dos bens naturais e pela procriação), como produzem e reproduzem suas
relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem
suas relações sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma da
propriedade, que constituem as formas das relações de produção). É também
história do modo como os homens interpretam todas essas relações, seja numa
interpretação imaginária, como na ideologia, seja numa interpretação real, pelo
conhecimento da história que produziu ou produz tais relações.”
“As
classes sociais não são coisas nem ideias, mas são relações sociais
determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais
de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da
propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio
das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado
dessas instituições através de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem
o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas
atividades econômicas, políticas e culturais.
A
dialética é materialista porque seu motor não é o trabalho do Espírito, mas o
trabalho material propriamente dito: o trabalho como relação dos homens com a
Natureza, para negar as coisas naturais enquanto naturais, transformando-as em
coisas humanizadas ou culturais, produtos do trabalho. Mas o que interessa
realmente à dialética materialista não é a simples relação dos homens com a
Natureza através (pela mediação) do trabalho. O que interessa é a divisão
social do trabalho e, portanto, a relação entre os próprios homens através do
trabalho dividido. Essa divisão começa no trabalho sexual de procriação, prossegue
na divisão de tarefas no interior da família, continua como divisão entre
pastoreio e agricultura e entre estes e o comércio, caminha separando
proprietários das condições do trabalho e trabalhadores avançam como separação
entre cidade e campo e entre trabalho manual e trabalho intelectual. Essas
formas da divisão social do trabalho, ao mesmo tempo em que determinam a
divisão entre proprietários e não proprietários, entre trabalhadores e
pensadores, determinam a formação das classes sociais e, finalmente, a
separação entre sociedade e política, isto é, entre instituições sociais e o
Estado.
O
motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de
trabalho, isto é, das condições de produção e reprodução da existência social
dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é,
pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de
trabalho e não proprietários (servos, escravos, trabalhadores assalariados).
Enfim,
da concepção hegeliana Marx também conserva o conceito de alienação, tendo como
referência às análises de Feuerbach sobre a alienação religiosa. Para
Feuerbach, a religião é a forma suprema da alienação humana, na medida em que
ela é a projeção da essência humana num Ser superior, estranho e separado dos
homens, um poder que os domina e governa porque não reconhecem que foi criado
por eles próprios.
Todavia,
Marx imprimirá grandes modificações nesse conceito. Contra Hegel, dirá que a
alienação não é do Espírito, mas dos homens reais em condições reais. Contra
Feuerbach dirá, em primeiro lugar, que não há uma “essência humana”, pois o
homem é um ser histórico que se faz diferentemente em condições históricas
diferentes; e, em segundo lugar, que a alienação religiosa não é a forma fundamental
da alienação, mas apenas um efeito de uma outra alienação real, que é a
alienação do trabalho. O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode
reconhecer-se no produto de seu trabalho; porque as condições desse trabalho,
suas finalidades reais e seu valor
não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do
trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no
seu próprio produto, não o veja como
resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder separado
do produtor e como um poder que o domina e ameaça.
A
elaboração propriamente materialista da alienação no modo de produção
capitalista é feita por Marx em O Capital.
Trata-se do fetichismo da mercadoria.
Que
é a mercadoria? Trabalho humano concentrado e não pago. Por depender da forma
da propriedade privada capitalista, que separa o trabalhador dos meios,
instrumentos e condições da produção, a mercadoria é uma realidade social. No
entanto, o trabalhador e os demais membros da sociedade capitalista não
percebem que a mercadoria, por ser produto do trabalho, exprime relações
sociais determinadas. Percebem a mercadoria como uma coisa dotada de valor de uso (utilidade) e de valor de troca (preço). Ela é percebida
e consumida como uma simples coisa.
Assim,
em lugar da mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto
relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome.
Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se fosse um dom natural
das próprias coisas. Basta entrarmos num supermercado nos sábados à tarde para vermos o espetáculo de pessoas tirando
de prateleiras mercadorias como se estivessem apanhando frutas numa árvore,
para entendermos como a mercadoria desapareceu enquanto trabalho concentrado e
não pago.
E
como o dinheiro também é mercadoria (aquela mercadoria que serve para
estabelecer um equivalente social geral para todas as outras mercadorias), tem
início uma relação fantástica das mercadorias umas com as outras (a mercadoria
$18,00 se relaciona com a mercadoria sabonete Gessy, a mercadoria $5.000,00 se
relaciona com a mercadoria menino-que-faz-pacotes, etc. etc.). As
coisas-mercadorias começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se
fossem sujeitos sociais dotados de vida própria (um apartamento estilo “mediterrâneo”
vale um “modo de viver”, um cigarro vale “um estilo de vida”, um automóvel zero
km. vale “um jeito de viver”, uma bebida vale “a alegria de viver”, uma calça
vale “uma vida jovem”, etc., etc.). E os homens-mercadorias aparecem como
coisas (um nordestino vale $20,00 à hora, na construção civil, um médico vale
$2.000,00 à hora, no seu consultório, etc.). A mercadoria passa a ter vida
própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sobre seus
próprios pés.
O
primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche (no sentido
religioso da palavra), uma coisa que existe em si e por si.
O
segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte: assim como o fetiche
religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos) tem poder sobre seus crentes ou
adoradores, os domina como uma força estranha, assim também age a mercadoria. O
mundo se transforma numa imensa fantasmagoria.
Como,
então, aparecem as relações sociais de trabalho? Como relações materiais entre
sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas. E Marx afirma que as
relações sociais aparecem tais como efetivamente são. Que significa dizer que a
aparência social é a própria realidade social? Significa mostrar que no modo de
produção capitalista os homens realmente são transformados em coisas e as
coisas são realmente transformadas em “gente”.
Com
efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho que
recebe uma outra coisa chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma
coisa chamada mercadoria que possui uma outra coisa, isto é, um preço. O
proprietário das condições de trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser
uma coisa chamada capital, que possui uma outra coisa, a capacidade de ter
lucros. Desapareceram os seres humanos, ou melhor, eles existem sob a forma de
coisas (donde o termo usado por Lucaks: reificação; do latim: res, que significa coisa).
Em
contrapartida, as coisas produzidas e as relações entre elas (produção,
distribuição, circulação, consumo) se humanizam e passam a ter relações
sociais. Produzir, distribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar,
trabalhar, todas essas atividades econômicas começam a funcionar e a operar
sozinhas, por si mesmas, com uma lógica que emana delas próprias,
independentemente dos homens que as realizam. Os homens se tornam os suportes
dessas operações, instrumentos delas.
Alienação,
reificação, fetichismo: é esse processo fantástico no qual as atividades
humanas começam a se realizar como se fossem autônomas ou independentes dos
homens e passam a dirigir e comandar a vida dos homens, sem que estes possam
controlá-las. São ameaçados e perseguidos por elas. Tornam-se objetos delas.
Basta pensar no trabalhador submetido às “vontades” da máquina regulada por um “cérebro
eletrônico”, ou no indivíduo que, jogando na bolsa de valores de São Paulo, tem
sua vida determinada pela falência de um banco numa cidade do interior da
Europa, de que nunca ouviu falar.
Quando
Marx afirma que as relações sociais capitalistas aparecem tais como são, que o
aparecer e o ser da sociedade capitalista se identificaram, ele o diz porque
houve uma gigantesca inversão na qual o social vira coisa e a coisa vira
social. É isto a realidade capitalista.
Uma
pergunta nos vem agora: por que os homens conservam essa realidade? Como se
explica que não percebam a retificação? Como entender que o trabalhador não se
revolte contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana,
mas ainda é explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago (a
mais-valia) é o que mantém a existência do capital e do capitalista? Como
explicar que essa realidade nos apareça como natural, normal, racional,
aceitável? De onde vem o obscurecimento da existência das contradições e dos
antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da existência das classes
sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras? A resposta a
essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia.”
“Os
homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais não porque tenham
consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem as condições de sua própria
existência material e espiritual. São o
que produzem e são como produzem.
(...)
A
divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a
manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes
formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou
meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, por sua vez, na desigual
distribuição do produto do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho
engendra e é engendrada pela desigualdade social ou pela forma da propriedade.
A
propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma
família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo. A
segunda forma da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade
privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a
estrutura da sociedade é constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e
escravos. Esta separação permite aos senhores se distanciarem da terra e dos
ofícios, que ficam a cargo dos escravos — esta separação leva os senhores a
viverem nas cidades e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o
campo, de onde resultarão lutas sociais e políticas. A terceira forma da
propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como propriedade privada
territorial trabalhada por servos da gleba, e como propriedade dos instrumentos
de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais das corporações que vivem nos
burgos (cidades medievais). A estrutura da sociedade cria os proprietários como
nobreza feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como
servos da terra enfeudada e como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a
eles, há uma figura social intermediária: o comerciante. As transformações
dessa estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do
trabalho, dá origem à forma da propriedade que conhecemos: a propriedade
privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho alcança seu ápice: de um
lado, os proprietários privados do capital (portanto dos meios, condições e
instrumentos da produção e da distribuição), que são também os proprietários do
produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou dos
trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de
trabalho, que vendem como mercadoria ao proprietário do capital. (...)
A
consciência, prossegue o texto de A
Ideologia Alemã, estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de
produção da existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as ideias
nascem da atividade material. Isto não significa, porém, que os homens
representem nessas ideias a realidade de suas condições materiais, mas, ao
contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na experiência imediata. Por esse motivo, as ideias tendem
a ser uma representação invertida do processo real, colocando como origem ou
como causa aquilo que é efeito ou consequência, e vice-versa.
Assim,
por exemplo, a Natureza, tal como se exprime nas ideias da religião natural,
não surge como relação dos homens com um meio trabalhado por eles, mas é
representada como um poder separado, estranho, insondável e que comanda de fora
as ações humanas.
Também
as relações sociais são representadas imediatamente pelas ideias de maneira
invertida. Com efeito, à medida que uma forma determinada da divisão social do
trabalho se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma
atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das
relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e, evidentemente, pela forma
da propriedade. Cada um não pode escapar da atividade que lhe é socialmente
imposta. A partir desse momento, todo o conjunto das relações sociais aparece
nas ideias como se fossem coisas em si, existentes por si mesmas e não como
consequência das ações humanas. Pelo contrário, as ações humanas são
representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como existindo por si
mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas ideias religiosas, se “humaniza”
ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é,
aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como resultado da
práxis humana. “Esta fixação da atividade social — esta consolidação de nosso
próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa de nosso controle,
que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos — é um dos
momentos fundamentais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos”.
A
forma inicial da consciência é, portanto, a alienação, pois os homens não se
percebem como produtores da sociedade, transformadores da natureza e inventores
da religião, mas julgam que há um alienus,
um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu e decidiu suas vidas e a forma
social em que vivem. Submetem-se ao poder que conferem a esse Outro e não se reconhecem
como criadores dele. E porque a alienação é a manifestação inicial da
consciência, a ideologia será possível: as ideias serão tomadas como anteriores
à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo
que comanda a ação material dos homens.
E
porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será
possível: as ideias serão tomadas como anteriores a práxis, como superiores e
exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material
dos homens.
A
divisão social do trabalho torna-se completa quando o trabalho material e o
espiritual separam-se.
Somente
com essa divisão “a consciência pode realmente imaginar ser diferente da
consciência da práxis existente, representar realmente algo, sem representar algo
real. Desde esse instante, a consciência está em condições de emancipar-se
do mundo e entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da
moral, etc., ‘puras’”.
Nasce
agora a ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de ideias ou
representações e das normas e regras como algo separado e independente das
condições materiais, visto que seus produtores — os teóricos, os ideólogos, os
intelectuais — não estão diretamente vinculados à produção material das condições
de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação
através de suas ideias. Ou seja: as ideias aparecem como produzidas somente
pelo pensamento, porque os seus pensadores estão distanciados da produção
material. Assim, em lugar de aparecer que os pensadores estão distanciados do
mundo material e por isso suas ideias revelam tal separação, o que aparece é
que as ideias é que estão separadas do mundo e o explicam. As ideias não
aparecem como produtos do pensamento de homens determinados — aqueles que estão
fora da produção material direta — mas como entidades autônomas descobertas por
tais homens.
As
ideias podem parecer estar em contradição com as relações sociais existentes,
com o mundo material dado, porém essa contradição não se estabelece realmente
entre as ideias e o mundo, mas é uma consequência do fato de que o mundo social
é contraditório. Porém, como as contradições reais permanecem ocultas (são as
contradições entre as relações de produção ou as forças produtivas e as
relações sociais), parece que a contradição real é aquela entre as ideias e o
mundo.”
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