Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-618-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
“A
verdade é sempre revolucionária.” (Antonio Gramsci)
“É
possível a objetividade nas ciências sociais? Trata-se de uma objetividade do
mesmo tipo que a das ciências naturais, como afirmam os positivistas? Não é a
ciência social necessariamente “engajada”, quer dizer, ligada ao ponto de vista
de uma classe social? Como conciliar esse caráter “partidário” com o
conhecimento objetivo da verdade?
Essas
questões se encontram no centro do debate metodológico na sociologia, na
história, na economia política, na antropologia, na ciência política e na
epistemologia há mais de um século. Tentaremos mostrar porque somente o
marxismo é capaz de trazer uma solução radical e coerente a esse problema
(mesmo se nos é necessário reconhecer, que nesse sentido, os textos dos autores
marxistas só nos oferecem os elementos iniciais), solução, cuja primeira
condição para que ela seja possível, é a ruptura epistemológica total com o
positivismo.
I — O positivismo
A
ideia central da corrente positivista é de uma simplicidade evangélica: nas
ciências sociais, como nas ciências da natureza, é necessário afastar os
preconceitos e as pressuposições, separar os julgamentos de fato dos
julgamentos de valor, a ciência da ideologia. A finalidade do sociólogo ou do
historiador deve ser a de atingir a mesma neutralidade serena, imparcial e
objetiva do físico, do químico e do biólogo. Deixemos a palavra com o “Grand Ancêtre”, Augusto Comte:
“Eu
entendo por física social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos
fenômenos sociais, considerados dentro do mesmo espírito que o dos fenômenos
astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, quer dizer, sujeitos a leis
naturais invariáveis, cuja descoberta é a finalidade especial dessas pesquisas”
(1). “Sem admirar nem maldizer os fatos políticos e vendo neles essencialmente,
como em toda outra ciência, simples sujeitos de observação, a física social
considera cada fenômeno sob o duplo ponto de vista elementar de sua harmonia
com os fenômenos coexistentes e do seu encadeamento com o estado anterior...” (2).
O
positivismo comtiano está, portanto, fundamentado sobre duas premissas
essenciais, estreitamente ligadas:
1)
A sociedade pode ser epistemologicamente assimilada à natureza (o que nós
chamaremos de “naturalismo positivista”); na vida social reina uma harmonia
natural.
2)
A sociedade é regida por leis naturais, quer dizer, leis invariáveis,
independentes da vontade e da ação humana.
Por
essas premissas se conclui que o método nas ciências sociais pode e deve ser o
mesmo que o das ciências da natureza, com os mesmos métodos de pesquisa e
sobretudo com o mesmo caráter de observação “'neutra” objetiva e desligada dos
fenômenos.
As
implicações ideológicas conservadoras, reacionárias e contrarrevolucionárias
dessa concepção são evidentes e aliás explicitamente formuladas por Comte, cuja
franqueza não é um dos seus méritos menores: posto que as leis sociais são leis
naturais, a sociedade não pode ser transformada: contra os sonhos
revolucionários utópicos e negativos, o positivismo enaltece a aceitação
passiva do status quo social:
“(O
positivismo) tende profundamente, por sua natureza, a consolidar a ordem pública,
pelo desenvolvimento de uma sábia resignação (...). Evidentemente, não pode
existir verdadeira resignação, quer dizer disposição permanente para suportar
com constância, e sem nenhuma esperança de compensação, quaisquer males
inevitáveis a não ser como consequência de um profundo sentimento das leis
invariáveis que regem todos os diversos gêneros dos fenômenos naturais.
Portanto é exclusivamente à filosofia positiva que se relaciona uma tal
disposição, a qualquer assunto que ela se aplique, e por conseguinte, com
relação também aos males políticos”. (3)
Esse
trecho, verdadeira joia do naturalismo positivista, é um dos raros momentos
onde o discurso sociológico burguês se manifesta em toda a sua pureza, por
assim dizer em seu estado selvagem. Baseado nele, podemos apreender melhor o
sentido verdadeiro da palavra “positivo”, empregada por Comte para distinguir,
ou melhor, opor sua doutrina às perigosas teorias negativas, críticas, destrutivas, dissolventes, subversivas, em uma
palavra, revolucionárias, da
filosofia das Luzes, da Revolução Francesa e do socialismo. (4)”
1. A.
Comte. “Considérations philosophiques sur les sciences et les savants”, in Politique d'Auguste Comte, Colin,
Paris, p. 71.
2. Cours de Philosophie Positive,
Schleicher Fréres Editeurs, Paris, 1908, tomo IV, p. 214.
3. idem,
p. 100.
4. cf.
Comte, Discours sur l’esprit positif, 10/ 18, p. 73.
“O
erro fundamental do positivismo é, pois, a incompreensão da especificidade
metodológica das ciências sociais com relação às ciências naturais,
especificidade cujas causas principais são:
1.
O caráter histórico dos fenômenos sociais, transitórios, perecíveis,
susceptíveis de transformação pela ação dos homens.
2.
A identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento.
3.
O fato de que os problemas sociais suscitam a entrada em jogo de concepções
antagônicas das diferentes classes sociais.
4.
As implicações político-ideológicas da teoria social: o conhecimento da verdade
pode ter consequências diretas sobre a luta de classes.
Essas
razões (estreitamente ligadas entre si) fazem com que o método das ciências
sociais se distinga do científico-naturalista não somente no nível dos modelos
teóricos, técnicas de pesquisa e processos de análise, mas também e
principalmente no nível da relação com
as classes sociais. As visões do mundo, as “ideologias” (no sentido amplo
de sistemas coerentes de ideias e de valores) das classes sociais modelam de
maneira decisiva (direta ou indireta, consciente ou inconsciente) as ciências
sociais, colocando assim o problema de sua objetividade em termos totalmente
distintos das ciências da natureza.
A
realidade social, como toda realidade, é infinita. Toda ciência implica uma
escolha, e nas ciências históricas essa escolha não é um produto do acaso, mas
está em relação orgânica com uma certa perspectiva global. As visões do mundo
das classes sociais condicionam, pois, não somente a última etapa da pesquisa
científica social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas a
escolha mesma do objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é
acessório, as questões que colocamos à realidade, numa palavra, a problemática da pesquisa.”
“Numa
passagem bem conhecida da Miséria da
Filosofia,
Marx constata que a burguesia tinha proclamado com razão que as instituições da
feudalidade eram históricas, ultrapassadas, arcaicas; enquanto essa mesma
burguesia se obstina em apresentar as instituições da ordem capitalista como
naturais e eternas. “Assim, houve história, mas não há mais”, acrescenta
ironicamente Marx. A burguesia revolucionária tinha percebido e denunciado o
caráter histórico e transitório do sistema feudal; é somente o proletariado que
é capaz de perceber e denunciar a historicidade do sistema burguês.”
“A
tese defendida por Schaff subestima a
especificidade do ponto de vista do proletariado com relação ao das classes
revolucionárias do passado (essencialmente a burguesia ascendente):
1.
A burguesia revolucionária tinha interesses particulares a defender, diferentes
do interesse geral das massas populares: ela queria ao mesmo tempo a revolução
antifeudal e sua dominação como classe exploradora; o que torna necessária a
ocultação ideológica (consciente ou não) de seus verdadeiros fins e do
verdadeiro sentido do processo histórico.
O
proletariado, em compensação, classe universal cujo interesse coincide com o da
grande maioria e cuja finalidade é a abolição de toda dominação de classe, não
é obrigado a ocultar o conteúdo histórico de sua luta; ele é, por conseguinte,
a primeira classe revolucionária cuja ideologia tem a possibilidade objetiva de ser transparente.
Não
é, pois, absolutamente um acaso se o proletariado — ao contrário da burguesia
revolucionária — apresenta abertamente sua revolução como sendo realizada, não
em nome de pretensos “direitos naturais” ou de supostos “princípios eternos da
Liberdade e da Justiça”, mas em nome de seus interesses de classe. Uma
comparação entre o Manifesto Comunista e a Declaração dos Direitos do
Homem de 1789 é altamente instrutiva a esse respeito!
2.
A burguesia pôde alcançar o poder sem uma compreensão clara do processo
histórico, sem uma consciência precisa do sentido dos acontecimentos, levada
pela “astúcia da razão” do desenvolvimento econômico-social. O conhecimento
científico do movimento de liberação não era uma condição de sua vitória, e a
automistificação ideológica caracterizou em geral seu comportamento como classe
revolucionária.
O
proletariado, em compensação, só pode tomar o poder e transformar a sociedade
por um ato deliberado e consciente. O conhecimento objetivo da
realidade, da estrutura social, da conjuntura politica, é por conseguinte uma
condição necessária de sua prática revolucionária; ele corresponde pois a seu interesse
de classe. O socialismo será científico ou não o será! (42)”
41. Schaff. A., Histoire et Vérité, Ed. Anthropos, Paris,
1971, p. 314.
42. Ver a esse respeito Lukács, G., Geschichte und Klassenbewusstein, Luchterand,
1968, p. 246, 243, 399.
“O
ponto de vista do proletariado não é uma condição suficiente para o
conhecimento da verdade objetiva, mas é o que oferece maior possibilidade de
acesso a essa verdade. Isso porque a verdade é para o proletariado um meio de
luta, uma arma indispensável para a revolução. As classes dominantes, a
burguesia (e também os burocratas, num outro contexto) têm necessidade de
mentiras para manter seu poder. O proletariado revolucionário tem necessidade
da verdade...”
“Mesmo
que um pensador ou político não pertença, pessoalmente,
a uma determinada camada social — e seja desvinculado a ponto de se incluir
realmente naquilo que Mannheim denominava “intelligenzia flutuante” — as suas
concepções sociais e políticas inserem-se de forma mais ou menos orgânica em
uma das visões do mundo que corresponde às classes sociais de sua época,
inserção essa que obedece a condicionamentos objetivos (vínculos profissionais,
dependência econômica, contiguidade social) ou subjetivos.”
“O
capitalismo é um sistema onde “o processo de produção domina os homens, e não
os homens o processo de produção”; é um modo de produção onde “o trabalhador
não existe senão para as necessidades de valorização da riqueza dada, e não,
pelo contrário, a riqueza objetiva para as necessidades de desenvolvimento do
trabalhador. Assim como, na religião, o homem é dominado pela obra de seu
cérebro, ele é, na produção capitalista, dominado pela obra de sua própria mão”.
Marx mostra como o comportamento atomístico dos homens na economia mercantil
tem como resultado necessário a forma “alienada” (entfremdete), “autônoma”
(Verselbstandigte) e independente de sua ação consciente que tomam as relações
sociais de produção, os meios de produção e os produtos em geral; graças à
anarquia do mercado capitalista, o movimento social dos homens toma a forma de
um movimento de coisas, que controla os homens em vez de ser controlado por
eles (24).”
24. “Kapital
I”. Werke 23. pp. 89, 95, 108, 455,
649: “Kapital III”. Werke 25, pp.
247, 838, etc.
“Ocorre
o mesmo para o valor (“clássico”, se o for) da liberdade. Para o humanismo burguês, ela é a liberdade do indivíduo
como átomo isolado, o que significa, no nível econômico, o livre jogo das
forças do mercado. Para Marx, “liberdade” significa essencialmente duas coisas:
—
o desenvolvimento das faculdades humanas: desenvolvimento limitado, deformado e
mutilado pela economia capitalista;
—
o controle racional e consciente dos homens sobre a natureza, a produção e a
vida social em geral, o que implica, bem entendido, a abolição do mercado
capitalista.”
“O
socialismo é para Marx a possibilidade objetiva de uma sociedade onde os
valores humanistas são realizados, uma sociedade de “homens livres” — quer
dizer uma sociedade onde os homens livremente associados controlem, segundo um
plano concebido de forma consciente, o processo da vida social (29).
O
modo de produção socialista é pois o que abole o fetichismo e a alienação, na
qual as relações dos homens com os produtos de seu trabalho são transparentes,
e onde a produção é racionalmente planificada pela comunidade dos produtores.
Ele é também o modo de produção que permite aos homens o desenvolvimento livre,
pleno e “múltiplo” (Vollseitig) de suas capacidades e, em seu estágio superior
— cuja redução da jornada de trabalho é a primeira condição — o desenvolvimento
e o enriquecimento das faculdades humanas como finalidade em si (30).
“A
acusação de fatalismo que se levantou algumas vezes contra Rosa Luxemburgo não
é justificada, pois um dos leitmotivs
de seus escritos é justamente a recusa “de esperar com os braços cruzados que a
história nos traga seus frutos maduros”. Mas a formulação teórica rigorosa do
problema aparece em seus escritos durante a guerra, principalmente a “brochura
Junius”. Quero falar da célebre fórmula “socialismo ou barbárie” que aparece
numa passagem absolutamente notável, um dos raros textos marxistas no século XX
onde a dialética histórica é posta em seus verdadeiros termos: “os homens não
fazem arbitrariamente sua história, mas são eles que a fazem. O proletariado
depende para sua ação do grau de maturidade atingido pelo desenvolvimento
social, mas o desenvolvimento social não pode passar sem o proletariado: o
proletariado é ao mesmo tempo sua energia e sua causa, como seu produto e
consequência. (...) A vitória final do proletariado socialista... não pode se
realizar se de toda a massa das condições materiais acumuladas pela história
não jorrasse a faísca animadora da vontade consciente da grande massa popular.
(...) Friedrich Engels disse uma vez: a sociedade burguesa se encontra diante
de um dilema: ou o progresso para o socialismo ou a regressão para a barbárie...
Encontramo-nos atualmente exatamente como Friedrich Engels havia previsto. Há
uma geração, há 40 anos, diante da escolha: ou triunfo do imperialismo e queda
de toda civilização como na antiga Roma, despovoamento, destruição,
degenerescência, um vasto cemitério, ou a vitória do socialismo, quer dizer a ação
consciente de luta do proletariado internacional contra o imperialismo e seu
método — a guerra. Eis o dilema da história mundial, uma alternativa na qual os
pratos da balança oscilam diante da decisão do proletariado consciente” (16).
O
que é importante aqui não é a exatidão ou não da profecia — aliás terrivelmente
confirmada na Alemanha: o malogro da revolução socialista em 1919 conduziu diretamente ao triunfo da barbárie nazista — mas o princípio
metodológico que o socialismo não é um resultado fatal e automático do
desenvolvimento histórico, mas sim uma possibilidade
objetiva. As condições econômico-sociais traçam os limites do campo do
possível (p. ex. o socialismo não é uma possibilidade objetiva no século XVI);
mas a decisão entre as diversas possibilidades objetivas depende da
consciência, da vontade e da ação
dos homens.
Para
falar a verdade, Engels não escreveu “socialismo ou barbárie”; mas se encontra
em Anti-Duhring uma passagem (a qual
se referia provavelmente Rosa Luxemburgo) onde aparece essa ideia crucial do
socialismo como possibilidade a qual se opõem outras possibilidades: “as forças
produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista moderno, assim como o
sistema e repartição dos bens que ele criou, entraram em contradição flagrante
com o modo de produção mesmo, e isto a um tal grau que se torna necessária uma
mudança do modo de produção e de repartição eliminando todas as diferenças de
classes, se não quisermos ver toda
sociedade moderna perecer” (17). O mérito de Rosa Luxemburgo foi o de
apanhar essa problemática, presente mas não desenvolvida em Marx e Engels, e
lhe dar toda sua significação teórica.
Como
transformar a possibilidade objetiva em ato? A resposta de Rosa Luxemburgo é
explicativa nessa mesma passagem da “brochura Junius”: a práxis revolucionária.
A práxis é o elo dialético entre o passado e o futuro, entre as possibilidades
abertas pelo processo histórico e sua realização. Os homens fazem sua história,
em limites impostos pelo desenvolvimento econômico e social, numa situação
dada, em condições determinadas, mas são eles que a fazem — por sua práxis
revolucionária, ao mesmo tempo causa
e consequência do processo
histórico.
Por
outro lado, pela teoria da práxis como unidade dialética do objetivo e do
subjetivo, das condições econômicas e da vontade consciente, como mediação pela qual a classe em si se
torna para si, Rosa Luxemburgo pode ultrapassar
(Aufheben) o dilema fixo e metafísico entre o moralismo abstrato de Bernstein e
o economicismo mecânico de Kautski. Enquanto para o primeiro, a mudança “subjetiva”,
moral e espiritual dos homens (do povo) é a condição do advento da “justiça
social”, para o segundo é a evolução econômica objetiva que conduz fatalmente
ao socialismo. A posição dialética de Rosa Luxemburgo é a de Marx na terceira
tese sobre Feuerbach: na práxis revolucionária a mudança das circunstâncias
coincide com a mudança (subjetiva) dos homens. Em seu célebre panfleto sobre a
revolução russa de 1905, Rosa Luxemburgo mostra a significação política
concreta dessa tese: foi durante a greve de massa contra o absolutismo, através
da prática direta da luta de classes, que se despertou pela primeira vez, “como
por uma corrente elétrica”, o sentimento e a consciência de classe em milhões e
milhões de trabalhadores.”
16. La crise
de la social-démocratie (1916), in Scritti Scelti, pp. 446-448.
17.
Engels. Anti-Duhring, Ed. Sociates,
Paris, 1950, p. 189, sublinhado por nós. M.L.
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