quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Pequeno manual do materialismo dialético (Parte I) – V. Podossetnik e O. Yakhot

Editora: Argumentos
Tradução: Daniel Campos
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 122 

“A experiência quotidiana nos ensina que, para compreendermos corretamente o que se passa no mundo que nos cerca, devemos nos guiar por um sistema realmente científico de interpretação da vida, do mundo em seu conjunto, de nosso lugar no universo e dos fenômenos e acontecimentos. O homem precisa de tal sistema de apreciação do mundo, de tal compreensão do mundo, não somente para explicar as causas dos acontecimentos em geral, como também para determinar seu próprio lugar no mundo e saber como pode influenciar ativamente tais acontecimentos, tornar-se um participante ativo da luta emancipadora que se trava em nossos dias. Em outras palavras: para compreendermos os acontecimentos que se passam em torno de nós, devemos nos guiar por uma concepção correta do mundo, que contenha a soma total das interpretações da vida e do mundo em seu conjunto. A filosofia nos dá precisamente tal conhecimento. E isto quer dizer que os construtores de uma nova vida também precisam, tanto quanto do ar que respiram, de conhecimentos filosóficos, além de outros conhecimentos. Quem estuda a filosofia cultiva a curiosidade intelectual, amplia seu horizonte mental e adquire uma atitude consciente em face de tudo que se passa no mundo que nos cerca. Não é sem razão que a palavra “filosofia”, no grego antigo, significa amor à sabedoria, aos conhecimentos.
Não devemos nos esquecer, contudo, que nem toda filosofia assegura uma interpretação científica do mundo, uma concepção científica. Alguns filósofos, especialmente dos países imperialistas, deturpam os fatos que ocorrem no mundo. Isto quer dizer que nem toda filosofia pode servir de guia para a vida, porque nem todas as interpretações do mundo são corretas. A interpretação científica do mundo é fruto de uma filosofia científica. A experiência mostra que somente adquirindo um conhecimento filosófico científico, o homem chega a uma firme convicção e defende com confiança os interesses de seu povo, e a liberdade e independência de seu país.”


“Ao passo que a física, a astronomia, a biologia e outras ciências estudam leis que regem apenas uma parte dos fenômenos da natureza, a filosofia estuda as leis mais gerais, que regem todos os fenômenos do mundo, e de acordo com as quais o mundo se desenvolve. É por isso que a filosofia é a ciência das leis mais gerais do desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento humano. Seria errôneo, contudo, disso deduzir que a filosofia pode se desassociar das outras ciências, ou que estas, por sua vez, possam se desassociar da filosofia. Somente quando se baseia, em suas conclusões, nas conquistas de outras ciências, a filosofia pode constituir uma interpretação do mundo avançada, progressista. A filosofia marxista-leninista é, precisamente, tal filosofia. Está estreitamente relacionada com outras ciências; baseia-se nas últimas conquistas científicas e, por sua vez, assegura à ciência contemporânea a mais avançada concepção filosófica e os mais avançados métodos de cognição, e concorre para que sejam alcançados novos conhecimentos indispensáveis ao homem.”


“A filosofia sempre se baseia nos interesses daqueles a quem serve.”


“Em via de regra, o materialismo sempre defendeu o interesse das forças progressistas, ao passo que o idealismo, com poucas exceções, sempre se colocou ao lado dos interesses das forças reacionárias.”


“Cada ciência tem seu método de investigar os fenômenos. A biologia contemporânea, por exemplo, emprega os métodos de observação, experiência, etc. Cada ciência distinta, contudo, aplica o método de investigação apenas a fenômenos distintos, em cada um de seus ramos do conhecimento. A tarefa da filosofia consiste em mostrar o caminho, o método de investigação, não somente de fenômenos distintos da natureza e da sociedade, como de todos os fenômenos do mundo. Isto significa que a tarefa da filosofia consiste em oferecer um método filosófico e de cognição que possa servir de guia a todas as ciências, além de seus respectivos métodos.
Quais os métodos de entendimento do mundo que foram elaborados pela filosofia, no decorrer de sua história? Existem dois métodos filosóficos, duas maneiras de apreciar os fenômenos. Um deles exige que todas as coisas e fenômenos sejam levados em consideração em seu contínuo desenvolvimento e mudança. É o método dialético. A palavra “dialética” tinha, antigamente, um sentido diferente do que tem hoje. Os antigos pensadores gregos chamavam de dialética o meio de se estabelecer a verdade por meio de argumentos, de se verificar a verdade pela discussão. Atualmente, entende-se por dialética um método filosófico de cognição da realidade, de acordo com o qual tudo no mundo se desenvolve e se modifica. Como disse o velho filósofo grego Heráclito, tudo flui, tudo muda.
O outro método filosófico exige que examinemos todas as coisas e fenômenos como se fossem fossilizadas, imutáveis, imóveis. Este método é chamado metafísico.”


“Coube ao gênio de Marx encontrar e salvar, escondido nos ensinamentos dialéticos idealistas de Hegel, o núcleo racional de sua dialética. Esse núcleo consistia na afirmativa de que tudo no mundo se encontra em estado de mudança e desenvolvimento e que as contradições profundas constituem a origem do desenvolvimento. A fim, porém, de separar essa doutrina progressista do desenvolvimento de seu recipiente idealista, tornava-se necessário alterar radicalmente a dialética de Hegel de maneira a adaptá-la a um padrão materialista e dar-lhe uma forma acorde com a ciência contemporânea. E isso somente poderia ser feito tomando-se por base as realizações da ciência e da prática revolucionária.”


“A doutrina da matéria constitui a pedra angular do materialismo. A Vida, a prática quotidiana, nos convencem de que o mundo existe objetivamente, independentemente do homem, de sua consciência, de suas sensações, de seu desejo. Isto também está provado pela ciência, que demonstrou que o universo existia muito antes do advento do homem e de todos os organismos vivos, o que significa que existia independentemente deles. (...) A objetividade do mundo, isto é, sua existência fora e independentemente da consciência, implica ser ele material.
Estamos cercados por uma quantidade infinita de objetos e fenômenos. Árvores, pedras, grãos de areia, o Sol, animais, mares e desertos, estrelas e planetas e muitas outras coisas constituem o nosso ambiente. Designamos todas essas coisas por uma só palavra: “matéria”. As palavras empregadas desse modo – no caso em foco “matéria” – são chamadas de conceitos.
Alguns conceitos abrangem ampla variedade de sujeitos ou fenômenos, outros uma variedade menor. Assim, o conceito “coisa” é mais amplo que os conceitos “pena” ou “mesa”.
Existe o mais amplo conceito de todos? Sim, existe. Se o conceito abrange todos os sujeitos e fenômenos, partindo de um grão de areia e chegando até o cérebro humano, tal conceito seria então o mais amplo.
Tal conceito é “matéria”. Como se vê, “matéria” é um conceito como “coisa”, porém é muito amplo, o mais amplo de todos os conceitos. Distingue-se dos conceitos mais comuns porque exprime características essenciais e gerais, não somente de determinados grupos de coisas, mas de todas as coisas e todos os fenômenos do mundo, de tudo que nos cerca. Esses conceitos mais amplos são também chamados de categorias filosóficas.
Quais são, então, essas propriedades gerais e essenciais inerentes a todas as coisas? Antes de mais nada, todas elas são materiais, existem objetivamente, isto é, fora da consciência humana e independente dela.”


Indissolubilidade da Matéria e do Movimento
Se um objeto estiver em um determinado lugar, ele não se move por si mesmo. Assim, por exemplo, uma pedra não muda de posição enquanto alguém não a move. Se alguém, contudo, penetrasse em seu interior, observaria que ali há movimento. Há moléculas, átomos, elétrons, que, como é sabido, existem em todos os corpos, estão em constante movimento, e prossegue sem interrupção o processo de deterioração, sob a influência da umidade, do sol e do vento. Uma casa, por exemplo, não fica imóvel, mas se move juntamente com a Terra em torno do Sol. Podemos estar sentados sem nos mexermos, mas dentro de nós o sangue está circulando e complexas transformações estão ocorrendo em nosso organismo. Novas células nascem, velhas células morrem. E também isso é movimento.
Vejamos, por exemplo, o calor: é o resultado do movimento de um grande número de moléculas. Quando a água é esquentada, sua temperatura sobe devido ao movimento de suas moléculas. Não se trata, porém, de um simples movimento mecânico. É algo de novo, de mais complicado. A corrente elétrica é um movimento de elétrons. E a reação química é uma forma de movimento, uma combinação de íons, um processo ainda mais complicado. Os seres vivos também estão em um estado de constante movimento. Na sociedade humana ocorrem mudanças constantemente. Os sistemas sociais se modificam. As próprias pessoas mudam, assim como sua disposição moral e sua maneira de interpretar os acontecimentos passados, etc.
Que conclusão poderemos, pois, tirar do que acaba de ser exposto? A de que existem no universo formas de movimento. Em primeiro lugar, há o movimento das partículas de matéria ou corpos, isto é, a forma mecânica de movimento. Em segundo lugar, os processos térmicos, elétricos, ou forma física do movimento. Em terceiro lugar, as reações químicas, combinação ou separação de íons, a forma química do movimento. Em quarto lugar, as mudanças que ocorrem nos organismos vivos: a forma biológica de movimento. Em quinto lugar, a forma social de movimento, isto é, as mudanças que ocorrem na vida social.
Engels observou que o movimento abrange todas as mudanças e processos que ocorrem no universo, desde o mais simples movimento até o pensamento. Disso se deduz que o movimento é qualquer mudança da matéria em geral.
Poderia a matéria encontrar-se em um estado em que não pudesse ocorrer mudança de qualquer espécie? De modo algum. Ocorriam mudanças na matéria mesmo naquela idade remota em que nem o homem nem os animais habitavam a Terra, em que não havia células vivas. Na realidade, os corpos consistem de átomos e moléculas, que estão constantemente em movimento. Não existiu, não existe e jamais existirá um único corpo tão compacto que seja absolutamente imóvel. E há mais: se existiram átomos, moléculas e elétrons, também deviam se manifestar as reações químicas. Assim, também existia a forma química de movimento na matéria.
Disso se deduz que jamais houve uma situação em que existisse a matéria sem movimento. Por isso é que se diz que o movimento é uma forma de existência, uma forma de ser da matéria. O movimento é uma propriedade integral da matéria. Não existe matéria sem movimento; a matéria só existe em movimento.
Implica tal fato a negação do repouso pelo materialismo dialético? Não. Existe o repouso na natureza, mas é relativo. Queremos dizer com isto que não existe fenômeno em que tudo estaria em repouso, em que não houvesse movimento de modo algum.
Se um corpo está em repouso, trata-se de um repouso relativo a alguma outra coisa. Assim, por exemplo, quando um trem se encontra em movimento, podemos estar em repouso em relação ao trem, mas no mesmo estado de movimento que o próprio trem. A concepção dialética do repouso é essencialmente diferente da concepção metafísica. Esta última considera o repouso como a ausência de qualquer movimento. O materialismo dialético opõe-se a tal concepção. O que tem significação decisiva na natureza é o movimento, é o desenvolvimento, é a mudança, embora exista um repouso relativo.”


Pensamento e Linguagem
Frequentemente, ficamos admirados com o comportamento do macaco. Por exemplo: é colocada, diante do macaco, uma banana, dificilmente alcançada, porém, porque há um fogo aceso diante dela. O macaco, contudo, “aprende” que é possível tirar água de um pequeno barril que se encontra próximo, apagar o fogo e pegar a banana. O macaco é, ainda, colocado em uma nova situação: sobre uma jangada em um rio, na qual a banana é colocada diante do fogo e um pequeno barril de água a uma distância relativamente grande. O problema é o mesmo: apagar o fogo para pegar a banana. O macaco pode apanhar a água perto, pois há a água do rio em torno da jangada. No entanto, faz um grande esforço para alcançar o barril, a fim de tirar exatamente “aquela” água.
A experiência mostra que o macaco não tem noção de “água”. Suas propriedades gerais não lhe são conhecidas. Sua maneira de raciocinar está diretamente relacionada com os objetos que o cercam. Além disso, ele se vê impotente sem tal relação direta. Isto quer dizer que o macaco só “raciocina” a respeito dos objetos que estão diante dele. Em caso contrário, é incapaz de “raciocinar”.
No homem, porém, a maneira de pensar é qualitativamente diferente. Os objetos lhe tornam familiares e ele estuda suas propriedades nos processos de produção, trabalho e atividade científica. Sabe que a água do barrilzinho, do rio, de um poço, do mar, etc., possui uma propriedade comum; apagar o fogo, por exemplo. Cria o conceito de “água”. Não se trata da água de um barril, do mar ou do rio, mas de “água” em geral”. Trata-se de um conceito geral. O homem faz abstração dos objetos concretos para as propriedades, que são gerais.
Quando nos referimos ao conceito “árvore” em geral”, temos no espírito as propriedades gerais que caracterizam qualquer árvore e não somente a árvore que cresce diante de nossa janela. Trocamos as árvores concretas por uma abstração; generalizamos. Por isso o conceito é chamado de noção abstrata. Esta é feição característica do pensamento humano – o raciocínio abstrato – que fica além da capacidade dos animais.
O que nos permite abstrair, isto é, distinguir do próprio objeto as suas feições principais? Essa possibilidade nos é dada pelas palavras, pela fala. A palavra “árvore” indica-nos que se trata das árvores em geral e não de uma determinada árvore apenas. Em suma: o pensamento abstrato só pode ser expressado por meio de palavras.
Desde a infância, a consciência do homem se forma com base nas palavras ou linguagem, através das quais expressamos os nossos pensamentos. Nesse processo, vai aparecendo pouco a pouco aquilo que é uma característica apenas do homem: o pensamento se torna intimamente relacionado com a fala. Estabelece-se a unidade orgânica, inseparável, da linguagem e do pensamento.
Engels observou que a linguagem articulada promoveu o maior desenvolvimento do cérebro humano. Sob que influências isso se deu?
O exemplo seguinte ajudar-nos-á a encontrar uma resposta correta. Há, na história, alguns episódios bem conhecidos de crianças “criadas” em covis de lobos. Um caso destes ocorreu na Índia em 1956. Uma loba levou consigo uma menina que ainda não tinha três anos de idade. Alguns anos mais tarde, a criança foi encontrada. Andava de quatro, imitava os gritos dos animais, mas, naturalmente, não sabia falar. Nada há de surpreendente nisso. A criança imitava os animais em tudo. Há, porém, um pormenor interessantíssimo no caso. Por mais que lhe fosse ensinado, a criança não aprendeu a falar. A consciência humana não foi restabelecida. A menina não se adaptou às novas condições e morreu. Este exemplo mostra como a educação na infância desempenha um formidável papel no desenvolvimento da personalidade humana.
Aqui se apresenta um problema. A criança nasceu com um cérebro humano normal. Seu cérebro era evidentemente tão velho quanto a sua idade. Por que sua capacidade de raciocinar se atrofiou tão desenganadamente? Patenteia-se que não é bastante para o homem ter um espírito são para possuir a consciência humana. Deve, além disso, viver em sociedade, na coletividade. Fora da coletividade não há raciocínio humano. O raciocínio é fruto da vida do homem em sociedade. O raciocínio, por um lado, só surge quando o homem reflete a natureza e, por outro lado, participa de algumas relações definidas com outros homens, no trabalho, na atividade produtiva. O trabalho fez o homem e a sociedade humana. Foi precisamente no trabalho, na atividade produtiva, que se desenvolveu o cérebro humano, a consciência do homem. Por esse motivo é que Marx observou que a consciência, desde o princípio, tem sido sempre um produto social e assim continuará a ser, enquanto existir a humanidade. A consciência é o produto da vida do homem em sociedade. É um fenômeno social.
Isto quer dizer que a consciência não pode existir fora da sociedade, pelo mesmo motivo que a fala e a linguagem não podem existir fora da sociedade. A fala articulada e a linguagem surgem como recurso necessário à troca de pensamentos no intercâmbio social entre os homens.
Apenas através das palavras pode o pensamento tornar-se real. Enquanto se encontra no espírito do homem, é como se fosse morto, inacessível a outras pessoas. Por isso é que Marx salientou que a linguagem é a realidade direta do pensamento. Isto quer dizer que o pensamento só existe na linguagem, só se faz sentir através da linguagem, em um “envoltório” material. Mesmo quando não expressamos nossos pensamentos em voz alta, nós os representamos por palavras, damos-lhe um revestimento material, “conversamos com os nossos botões”, como se costuma dizer. Graças à linguagem, os pensamentos não somente assumem uma forma, como podem ser transmitidos a outras pessoas.”


1. O que é uma Lei?
Tomemos o exemplo mais simples a fim de compreendermos o que chamamos de lei. Se lançarmos uma pedra para o ar, certamente ela cairá na terra. O mesmo acontece com uma seta disparada por um arco.
Que fenômeno é esse? Como se dá? Antes de mais nada, devemos prestar atenção ao fato de que, neste caso particular, não estamos tratando com fenômenos que possam ocorrer ou deixar de ocorrer, mas com fenômenos que forçosamente terão que ocorrer. Qualquer objeto atirado ao ar terá inevitavelmente que cair na terra sob o empuxo da gravidade. Isto implica, porém, a existência de uma rigorosa disposição ou sucessão de causa e efeito. Quando, em nossa atividade prática, encontramos fenômenos dessa espécie, dizemos que há uma conexão regular, essencial, entre os fenômenos.
A lei exprime justamente essa relação regular e profunda. Em outras palavras: uma lei é uma relação entre coisas e fenômenos, produzida não por circunstâncias acidentais, externas e transitórias, mas por uma inter-relação interna de fenômenos naturais. A lei não reflete todas as relações, mas apenas as relações fundamentais e decisivas. (...)
Na vida prática, a palavra “lei” é usada em outro sentido. Por exemplo: este ou aquele governo adota uma nova constituição, a lei fundamental do País. Trata-se de uma lei jurídica. Quando, porém, falamos de lei filosófica, estamos nos referindo não às leis criadas pelo homem, mas a lei que existem objetivamente, por si mesmas, na natureza e na sociedade.”


Lei da transição da Mudança Quantitativa para a Qualitativa
(...) Que é a qualidade e que é a quantidade?
Todas as coisas têm suas próprias características específicas, pelas quais as reconhecemos: Contemplando o ambiente que nos cerca, verificamos que qualquer coisa – tinteiro, árvore, animal ou qualquer outro objeto – possui sinais, aspetos ou marcas que a distingue das outras coisas.
Por que dizemos que este objeto é um lápis? Porque em minha frente vejo uma haste de grafite colocada dentro de madeira, que posso usar para escrever, pintar ou desenhar. Estas são as principais propriedades da coisa que determinei. Revelei, assim, as feições que o tornam o que é: suas propriedades, suas qualidades.
Assim, qualidade é a soma total interior (isto é, relacionada com o próprio objeto) das feições essenciais de um objeto, graças à qual o objeto adquire sua identidade e é distinguido de outros objetos.
Qual é o principal elemento pelo qual podemos definir a qualidade? Vamos dar um exemplo. Uma moça comprou uma garrafa de leite no armazém e, a caminho deixou-a, acidentalmente, cair no passeio. A garrafa, porém, não se quebrou, mas pulou como uma bola. O incidente nos interessa e verificamos que ele diz respeito à qualidade de um novo material chamado “vidro inquebrável”. E chegamos à conclusão: este material é de uma nova qualidade.
Graças à descoberta das propriedades, descobrimos uma nova qualidade. É sempre o que ocorre. Se estudamos a qualidade de um metal, por exemplo, isto quer dizer que verificamos suas propriedades: sua cor, sua tendência à oxidação ou não, sua densidade, seu peso atômico, sua dureza ou maciez, etc. Tendo verificado tais coisas, ficamos conhecendo a sua natureza íntima, isto é, sua qualidade.
Assim, uma propriedade é a feição de uma coisa, uma faculdade para caracterizar a coisa, uma peculiaridade. A soma total dessas peculiaridades interiores da coisa é a sua qualidade. Isto quer dizer que a qualidade se revela através das propriedades.
Habitualmente, um objeto possui não apenas uma, porém muitas propriedades. Por isso é impossível confundir-se a qualidade com a propriedade. Qualidade é a unidade intrínseca, a soma total de suas propriedades. Isto quer dizer que não é somente uma propriedade isolada que exprime a qualidade de uma coisa, mas que todas as propriedades se juntam para isso. Um metal pode perder sua cor, isto é, uma de suas propriedades, mas continuar a ser um metal. Quando perde todas as propriedades, ou pelo menos suas principais propriedades, então perde também sua qualidade.
Os objetos e fenômenos não são caracterizados apenas por sua qualidade, mas também por sua quantidade. Não é difícil compreender tal coisa, se nos lembrarmos de que, em conexão com os problemas da qualidade dos objetos (o que eles possuem em si mesmos) temos sempre diante de nós o problema de sua quantidade (quantos são eles? qual o seu tamanho, o seu volume, etc.).
São altamente variadas as características quantitativas de objetos e fenômenos, porque a quantidade é expressada de várias maneiras. Se, por exemplo, estamos interessados na quantidade de cabeças de gado – camelos, carneiros, cabras, zebus – nós as caracterizamos sob a forma de números: 10, 100, 1.000, etc. Se tivermos de saber a quantidade de arroz ou de amendoim colhida em um ano em comparação com o ano anterior, podemos nos valer de percentagens, toneladas, etc.
Assim, quantidade é a definibilidade dos objetos e fenômenos, caracterizada pelo número, tamanho, peso, volume, etc.
Quando a qualidade de um objeto muda, o próprio objeto muda. Mas uma mudança de quantidade pode acarretar a mudança do próprio objeto? Vejamos.
Muitos dos leitores sabem como é construída uma represa para controlar o curso de um rio. Os construtores atiram ao rio enormes blocos de pedra. Quando são lançadas as primeiras pedras, ainda não existe a represa. Esta não surge nem mesmo depois da segunda e da terceira tentativa. Mas, afinal, tal quantidade de pedra é lançada ao rio que influencia decisivamente o fluxo da água. Mais algumas pedras e o rio está represado. Com pedras separadas, construiu-se uma represa.
Que aconteceu, na verdade? Enquanto as mudanças quantitativas não atingiram o limite decisivo, pareciam não influenciar a formação de uma nova qualidade (neste caso, a represa). Logo, porém, que alcançaram o limite crucial, a mudança afeta a qualidade da coisa ou fenômeno.
Em que consiste, pois, uma medida?
Basta olharmos o mundo para verificarmos que as coisas e fenômenos invariavelmente existem mais ou menos com medidas definidas. Algumas pedras, por exemplo, podem ser grandes, outras pequenas, mas todas as pedras têm tamanhos definidos. Jamais se viu uma pedra de um quilômetro de altura. Neste caso, tratar-se-ia de um rochedo. Assim, todas as coisas no mundo têm medidas inerentes: determinada qualidade tem uma quantidade correspondente mais ou menos definida e não qualquer ordem de quantidade. As pessoas são ou altas, ou baixas ou de altura média. Seu peso também varia. Mas todas as pessoas têm peso, altura, etc. definidos. Nunca se viu um homem com 5 metros de altura ou com o peso de uma tonelada, por exemplo. Tal quantidade (uma tonelada) é incompatível com uma determinada qualidade (ser humano). O mesmo se dá com outros objetos. Todos eles possuem qualidades definidas, às quais correspondem não quaisquer quantidades, não quantidades meramente acidentais, porém quantidades mais ou menos definidas. As coisas sempre têm sua medida.
Vê-se, pelo que foi dito, que medida é a conformidade, a unidade inter-relacionada dos aspetos quantitativo e qualitativo de um objeto. Todo objeto tem sempre uma qualidade, à qual corresponde uma quantidade definida.
Daí se tira uma importante conclusão: se ocorrem em um objeto mudanças quantitativas, estas não podem influenciar a qualidade, enquanto não atingirem os limites da medida. Dentro desses limites, os objetos parecem se comportar com indiferença às mudanças quantitativas, parecem não levá-las em consideração. Logo, porém, que a medida é ultrapassada, as mudanças quantitativas começam a se refletir no estado qualitativo do objeto. A quantidade transforma-se em qualidade.
As mudanças quantitativas acumulam-se pouco a pouco; a princípio, não afetam o estado qualitativo do objeto. Depois, é atingido um ponto em que as mudanças quantitativas acumuladas provocam mudanças na qualidade. Os exemplos mencionados anteriormente se enquadram precisamente neste caso. Quando os químicos aprenderam a criar polímeros e a produzir novas substâncias, novas qualidades, basearam-se precisamente na lei dialética da transição da quantidade para a qualidade.
Não se deve esquecer que não são somente as mudanças quantitativas que se transformam em mudanças qualitativas, mas que o contrário também se dá. Mudanças qualitativas podem se transformar em mudanças quantitativas.
Suponhamos que o homem consiga criar uma nova variedade de amendoim. Trata-se de uma nova qualidade. Essa nova variedade produz mais óleo que as variedades comuns. Consequentemente, temos uma mudança qualitativa que se torna uma mudança quantitativa. A quantidade se transforma em qualidade e vice-versa.
Assim, a essência da lei das mudanças quantitativas que se tornam mudanças qualitativas consiste no fato de que mudanças quantitativas inicialmente pequenas, imperceptíveis, vão se acumulando e, finalmente, atingem a uma fase em que se tornam mudanças qualitativas radicais, em consequência das quais a antiga qualidade desaparece e surge uma nova qualidade, e esta, por sua vez, acarreta novas mudanças quantitativas.
Como, porém, ocorre a transição das mudanças quantitativas para as qualitativas?
Evidentemente, o leitor já teve ocasião, muitas vezes, de ver a água entrar em ebulição. Inicialmente, a água apenas se esquenta. Mais tarde, a temperatura se eleva, digamos, a 50, 60 ou 70 graus. A água, porém, ainda permanece água. Em verdade que as modificações já começaram, mas ainda não são suficientemente grandes para fazer com que a água perca a sua qualidade. Assim acontece até 99 graus. Quando, porém, a temperatura da água se eleva mais um grau, imediatamente a água “ferve”, isto é, transforma-se em vapor. Muda-se o estado qualitativo da água.
Nestes exemplos, podemos ver, claramente, como a quantidade se transforma em qualidade. No começo, o processo é lento, vagaroso: ocorrem mudanças quantitativas preparatórias. Quando, porém, tais mudanças se acumularam suficientemente, ocorrem mudanças qualitativas rápidas, abruptas. Essa transição é chamada salto. Isto quer dizer que, num determinado ponto, o desenvolvimento quantitativo vagaroso é interrompido e chega o momento em que ocorre a transição para uma nova qualidade, transição que já não é lenta e gradual. A transição para uma nova qualidade é feita por um salto. Por isso é que Lenine definiu o salto como o ponto de passagem decisivo da velha qualidade para a nova, como o ponto crítico do desenvolvimento.
Pelo que acima foi dito, já ficou claro que o processo de desenvolvimento se faz em duas fases, tem duas formas: mudanças qualitativas lentas, insignificantes, e mudanças qualitativas rápidas, radicais. As lentas mudanças quantitativas, sempre conservam, dentro dos limites das velhas medidas, a velha qualidade. Ainda não há, então, mudanças radicais nos objetos ou fenômenos. Ocorrem mudanças chamadas que podem ser chamadas de evolutivas. A evolução é um desenvolvimento suave, gradual, vagaroso, que conduz a uma nova qualidade sem quaisquer saltos abruptos.
O desenvolvimento relacionado com a ruptura radical do velho, acompanhado de uma transformação abrupta qualitativa das relações sociais, das ideias científicas, da técnica, etc., é chamado desenvolvimento revolucionário.
Não se deve esquecer, porém, que o conceito “evolução” é frequentemente deturpado pelos metafísicos.
Alguns metafísicos afirmam que o desenvolvimento só se procede de forma evolucionista, sem quaisquer saltos, e que só ocorrem no mundo mudanças quantitativas. Para eles, nada há de qualitativamente novo na natureza. Este ponto de vista é chamado evolucionismo vulgar, porque interpreta a evolução grosseiramente, vulgarmente, deturpadamente. Os adeptos dessa concepção negam a necessidade da luta revolucionária contra o imperialismo e o colonialismo.
Não menos prejudicial é outro ponto de vista metafísico, característico dos anarquistas e dos aventureiros “esquerdistas” em geral, que nega o processo evolucionista, o processo de mudanças quantitativas, e só admite “saltos”, “explosões revolucionárias”, sem uma fase preparatória de desenvolvimento, sem uma gradual acumulação de forças.
O materialismo dialético, opondo-se a pontos de vista metafísicos tão unilaterais, baseia-se no fato de que existe uma profunda conexão entre os aspetos evolutivo e revolucionário do processo de desenvolvimento, que torna inconcebível um dos processos sem o outro: não são possíveis mudanças qualitativas, revolucionárias, sem as mudanças quantitativas, evolutivas, e sem as mudanças qualitativas, revolucionárias, não pode haver novas medidas nem novas fases e, portanto, não pode haver desenvolvimento.”

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