Editora: Intersaberes
ISBN: 978-85-8212-487-1
Outros autores: Cristian J. Salaini, Débora Allebrandt, Nádia Elisa Meinerz e Nilson
Weisheimer
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 176
Sinopse: A obra
aprofunda a discussão sobre as desigualdades de gênero, raça e etnia. O tema é
complexo e atual, e neste livro o leitor encontra reflexões sobre crenças
preconceituosas, ações discriminatórias, rotulações pejorativas e condutas
excludentes. Por fim, são abordadas as formas de combate às desigualdades
sociais.
“Desigualdade social é um fenômeno social,
cultural e histórico exterior ao indivíduo, não sendo, portanto, determinado
por condições naturais, biológicas ou por herança genética. Desse modo, é necessário
ter presente que ninguém nasce desigual, mas, com grande frequência, as pessoas
nascem em condições desiguais.
Segundo o sociólogo Guilherme A. Galliano1,
quando falamos de desigualdade social, estamos nos referindo ao fato de
existirem hierarquias entre pessoas e grupos sociais, nas quais os indivíduos que
ocupam posições superiores possuem vantagem em relação aos que ocupam posições
inferiores. Essas vantagens ou privilégios dizem respeito às formas de acesso e
distribuição de bens socialmente valorizada – a propriedade, o capital, o poder
e a informação, por exemplo. Essa distribuição é sempre ordenada por norma, o
que a torna um componente da estrutura de grupos e sociedades.
Tal como aqui propomos, a desigualdade social
refere-se à existência de privilégios na distribuição de bens sociais, possuindo
certas características básicas que passaremos a descrever:
1. A
desigualdade é um fenômeno social – As desigualdades de gênero, raça e
etnia não são fatores biológicos ou naturais, mas sim artificiais, no sentido
de serem uma criação humana.
2. A desigualdade
é um fenômeno onipresente – Pode ser verificado em todas as sociedades
humanas.
3. A
desigualdade adquire diferentes configurações – As desigualdades mudam de
forma e de conteúdo em cada época histórica e tipo de sociedade.
4. A
desigualdade influencia as condições de vida das pessoas e dos grupos sociais
– Isso implica reconhecer que as desigualdades potencializam conflitos e
contradições entre pessoas e coletividades distintas.”
“Mecanismos
de manutenção das desigualdades sociais
Conforme Galliano (1981), algumas normas que
ordenam a distribuição de bens sociais consistem em leis e regras formais, como
a legislação eleitoral, mas há outras informais e bastante difusas, como a moda
e as regras de etiqueta. Elas geralmente atendem aos interesses daqueles que as
estabelecem. Os predicados sujeitam-se às normas por causa das sanções que
garantem a coercitividade destas, isto é, a sua obediência deve-se ao receio de
ser penalizado ou constrangido pelos demais.”
“Formas
de explicação sociológica das desigualdades sociais
De acordo com Galliano (1981), as formas de
explicação sociológica das desigualdades sociais podem ser divididas em três
tipos: a concepção dicotômica, os esquemas de graduação e o esquema funcional.
A concepção dicotômica vê a exploração
econômica como o principal fator de desigualdade. Nessa perspectiva, os
indivíduos que detêm os meios de produção – burgueses – têm acesso privilegiado
aos bens sociais, em detrimento daqueles que não detêm tais meios – os
operários. Um exemplo de explicação sociológica nesses termos é a interpretação
de Karl Marx.
Nos esquemas de graduação, um fator (a renda)
ou a combinação de fatores (renda, tipo de trabalho e grau de instrução) são
empregados para explicar as desigualdades socais. De acordo com esse ponto de
vista, esses elementos são determinantes no que se refere ao acesso a bens
sociais. A interpretação de Max Weber é um modelo dessa concepção.
No esquema funcional, a divisão social do
trabalho é vista como a geradora das desigualdades sociais. A diferenciação e a
especialização no âmbito do trabalho produzem desigualdades entre os membros de
sociedades que antes realizavam as mesmas tarefas. Um exemplo da aplicação
desse esquema é a interpretação de Émile Durkheim.”
“Outro marco no surgimento dos estudos sobre
mulheres foi o livro O segundo sexo,
de Simone de Beauvoir (1949), publicado entre as décadas de 1940 e 1950. Em uma
célebre frase, que é tomada ainda hoje como referência tanto na academia quanto
no movimento social organizado, a autora resume sua proposição: “A gente não
nasce mulher, torna-se mulher”a.
Nesse sentido, a desigualdade entre homens e
mulheres não pode ser pensada como algo que nasce com os indivíduos, e sim como
fruto de uma imposição própria da vida em sociedade. Nessa mesma época, a
antropóloga Margareth Mead3 publicou sua tese sobre a inexistência
de uma relação entre o sexo biológico e o temperamento do indivíduo, com base
no estudo de três diferentes grupos culturais.
Entre os grupos pesquisados por ela estavam
os Arapesh da Montanha, cujo temperamento de homens e mulheres era igualmente
dócil e carinhoso. Tanto os homens como as mulheres cuidavam de maneira muito
afetuosa das crianças, de tal forma que elas eram o centro da vida na aldeia.
Já entre os Mundugmor, tanto homens quanto mulheres eram extremamente
agressivos e belicosos, não havendo espaço na sua cultura para manifestações de
carinho ou afeto. As crianças, nas aldeias Mundugmor, viviam por sua própria
conta, de tal modo que ninguém lhes dava atenção. Ao contrário, muitas vezes
elas eram trocadas e vendidas para os inimigos em troca de outros prisioneiros
adultos.
Um terceiro grupo pesquisado pela autora, à
semelhança da nossa sociedade, apresentava uma diferenciação de temperamentos
relacionada ao sexo. No entanto, ao contrário do que se passa conosco, entre os
Tchambuli são os homens que tomam conta da casa e das crianças, tendo um temperamento
mais dócil e afetuoso, enquanto que as mulheres são mais ativas em relação à
produção dos meios de subsistência, responsabilizando-se pelo comércio com as
outras tribos.”
a: Para uma discussão crítica sobre o mito do
matriarcado, ver Bamberger2, que, deixando de lado a discussão sobre
a existência ou não de tal regime devido à inexistência de provas históricas,
chama a atenção para a forma como os mitos sobre o matriarcado reforçam a tese
da superioridade masculina.
“Rosaldo4, por meio de revisão
crítica dos estudos antropológicos em sociedades não ocidentais, constata que,
em todos os povos, em maior ou menor medida, os homens desempenham papéis de
maior valor cultural e detêm sempre alguma autoridade sobre as mulheres.
Buscando uma resposta para a diferenciação
universal dos papéis sexuais, a autora propõe uma explicação embasada na
hierarquização social do espaço ocupado em diferentes sociedades por homens e
mulheres. Segundo a autora, em virtude do seu papel de mãe, a mulher estaria
mais relacionada à esfera doméstica, enquanto o homem possuiria uma
participação mais efetiva na esfera pública. Nesse sentido, os homens são mais
valorizados socialmente porque se ocupam de uma esfera social relacionada ao
poder e à autoridade. Os exemplos etnográficos apresentados servem também para
relativizar a divisão entre o doméstico e o público, já que o grau dessa
oposição é variável conforme o contexto cultural. Rosaldo chega à conclusão de
que a desigualdade entre homens e mulheres é menor nos grupos em que o homem
participa ativamente das tarefas domésticas.
Outra tese relevante, apresentada nessa
coletânea, é esboçada por Nancy Chodorow, com base na reflexão sobre a
socialização diferenciada de homens e mulheres. Segundo Chodorow5,
as mulheres são socializadas no ambiente doméstico, em companhia das mulheres
mais velhas, as quais lhes transmitem desde cedo uma série de características
maternais. Nesse sentido, desde criança as mulheres aprendem as atividades do
ambiente doméstico, tornando-se “pequenas mães”. Já a experiência de
socialização dos homens é radicalmente oposta.
Os meninos precisam aprender a ser homens
longe do ambiente doméstico, procurando companhias horizontais (meninos de sua
idade) e estabelecendo laços públicos. Isso resulta em diferenças marcantes na
psicologia masculina e feminina. Da mesma forma, a partir dessa socialização, o
status social — a forma como cada
sexo é reconhecido socialmente — das mulheres é um status atribuído, enquanto o dos homens é um status conquistado.
Sherry Ortner também propõe uma explicação
para a desigualdade com base nos papéis sociais que eram atribuídos a cada
sexo. Para Ortner6, enquanto a mulher desempenha funções tidas como
instintivas (procriar, cuidar, nutrir a prole), ela é percebida como mais
próxima de um estado de natureza. Enquanto isso, o homem é pensado como mais
próximo da cultura, porque a ele são delegadas as funções de transformação da
natureza em prol da vida em sociedade. Nessa equação, o polo valorizado é o da
cultura e da capacidade de transcender as condições naturais e modificá-las ao
seu propósito.”
“Outro autor que concorda com a tese de que a
dominação masculina é um componente estrutural da sociedade é Pierre Bourdieu.
Para Bourdieu7, tanto o homem quanto a mulher são produtos da
dominação masculina à medida que ela cria expectativas sociais, às quais ambos
estão sujeitos. Isso quer dizer que os homens também estão subjugados a uma
série de expectativas de gênero, tais como o uso da força, o papel de
provedores do lar, a imposição de atividade e constante disposição sexual, a
recriminação de qualquer demonstração de emoção ou afetividade.
Grande parte dos homens está muito longe de
corresponder a essas expectativas e sofre com a necessidade de fazê-lo. Essas
imposições sociais são muito fortes porque são incorporadas pelos sujeitos por
meio da socialização e passam a ser vistas como naturais. Pelo fato de homens e
mulheres se socializarem e serem socializados pelos mesmos princípios, não há
como considerar uns mais vítimas do que outros. (...)
Além disso, Bourdieu (1999) argumenta que a
dominação masculina é uma forma de dominação eminentemente simbólica. Como tal,
ela só pode ser exercida com a colaboração dos dominados. Nesse sentido, é
preciso indicar o papel das próprias mulheres no reconhecimento dessa dominação
masculina como legítima, à medida que elas também reproduzem as mesmas normas
que as oprimem na socialização de seus filhos, tanto homens quanto mulheres. Um
bom exemplo disso é a dupla moral sexual que perpassa, ainda hoje, grande parte
da sociedade brasileira: para o homem, valoriza-se e espera-se que tenha o
maior número possível de relações sexuais com diferentes parceiras; para a
mulher, esse tipo de prática é altamente recriminado. Tanto a regra da
virgindade e da fidelidade conjugal para a mulher quanto o incentivo das
relações sexuais para os homens são padrões morais compartilhados por homens e
mulheres. Não é apenas o homem que vai recriminar uma mulher que tem múltiplos
parceiros, mas também as próprias mulheres. Da mesma forma, elas também
valorizam a virilidade e a capacidade de conquista dos homens.
Considerando-se ainda o papel fundamental das
mulheres como mães na socialização das crianças, pode-se dizer que elas atuam
na reprodução dessa dupla moral sexual em relação aos seus filhos e filhas.
Nesse sentido, a dominação masculina se perpetua na nossa sociedade porque tem
as próprias mulheres como aliadas.”
“A maior parte dos escritos sobre violência
de gênero aborda a questão da violência doméstica. Tais estudos foram
extremamente significativos para a consolidação de um campo de estudos sobre as
mulheres e as condições de opressão feminina no Brasil. Ao longo dos últimos 40
anos, essa temática foi alvo de uma série de pesquisas acadêmicas que
procuraram explorar tanto as dimensões físicas quanto simbólicas de situações
empíricas de violência perpetuadas contra mulheres dentro de suas casas. Essas
pesquisas tinham como principal objetivo demonstrar que os fenômenos de
violência não estavam relacionados apenas às características individuais dos
agressores, mas refletiam uma ordem social mais ampla, que rege as relações
entre homens e mulheres.
Uma das referências mais importantes para a
consolidação desse campo foi a da socióloga Heleieth Saffioti e suas
elaborações sobre conceito de patriarcado. Para Saffioti8, nossa
sociedade é perpassada por uma ordem patriarcal de gênero, que pressupõe um
projeto de dominação-exploração por parte dos homens sobre as mulheres.
A violência de gênero é uma prática
autorizada, ou pelo menos tolerada socialmente, de punição a qualquer forma de
desvio ou subversão das normas de gênero patriarcais. Ou seja, a capacidade de
mando dos homens e o requisito de obediência das mulheres só funcionam à medida
que são auxiliados pela violência física e simbólica. Isso porque a ideologia
patriarcal não é suficiente para garantir a obediência dos dominados, sendo que
o patriarca, ou alguém em seu nome, deve fazer valer a sua vontade por meio da
violência.
Ainda segundo essa autora, a violência de
gênero abrange como vítimas as mulheres, as crianças e os adolescentes de ambos
os sexos, e é, em geral, perpetrada por agressores homens, ou mesmo por
mulheres que desempenham a função patriarcal no lugar deles. Nesse sentido,
quando as mulheres praticam a violência, não o fazem em seu nome, pois, como
categoria social, elas estão destituídas de um projeto de dominação-exploração
dos homens.”
“O sociólogo alemão Max Weber9
(1864-1920) mostrou que a raça, como determinante de uma aparência exterior
herdada e transmissível pela hereditariedade, não interessa por si mesma ao
pesquisador. Ela só adquire importância quando é sentida subjetivamente como
uma característica comum e constitui, por essa razão, uma fonte da atividade
comunitária, isto é, de uma ação social que repousa no sentimento dos
participantes de pertencer ao mesmo grupo.
O parentesco, ou as diferenças físicas, não
funda a atração ou a repulsa entre as coletividades. É por meio do
estabelecimento de relações de dominação de um grupo sobre o outro que esses
elementos são socialmente levados em consideração. Em outras palavras, a
atração ou a repulsa são socialmente construídas pelo emprego dos mais diversos
elementos.
Para Weber, tanto as disposições raciais
quanto as adquiridas pelos hábitos de vida podem dar lugar a relações sociais
comunitárias, não havendo, portanto, necessidade de operar-se uma distinção
fundamental entre elas. Sendo assim, a raça, do mesmo modo que os costumes,
pode atuar como uma das forças possíveis na formação de comunidades. Os
contrastes porventura existentes têm de ser conscientemente percebidos como
tais pelos agentes para criar nos participantes um sentimento de comunidade e
relações associativas fundadas explicitamente nessas diferenças.
Ainda de acordo com Weber (2000), o grupo
étnico se define a partir da crença subjetiva na origem comum, não sendo
possível procurar sua fonte na posse de traços, quaisquer que sejam eles. O
sociólogo ressalta a importância de um interesse comum que induz a ação
comunitária política, sendo esta última que gera a ideia de uma comunidade de
sangue. O conteúdo de uma comunidade étnica é a crença em uma honra, ou seja, a
convicção da excelência de seus próprios costumes e da inferioridade dos
outros.
Em suma, o que distingue, para Weber, a
pertença racial da pertença étnica, é que a primeira estaria efetivamente
fundada numa comunidade de origem, num parentesco biológico efetivo, ao passo
que a segunda estaria baseada na crença do sentimento e da representação
coletiva da existência de uma comunidade de origem. No entanto, a pertença
racial não seria condição suficiente para a produção de relações comunitárias.
Tal característica precisaria ser socialmente levada em consideração nas
interações entre os grupos e mobilizada politicamente para fomentar sentimentos
e ações comunitárias. Nessa perspectiva, não são as características físicas que
determinam comportamentos ou a existência de grupos, e sim os sentidos
socialmente construídos e compartilhados nas relações.
Desse modo, percebemos um importante
deslocamento nos termos do debate sobre raça e etnicidade. Não se trata mais de
uma simples oposição entre coletividades formadas por características
morfológicas e psicológicas e outras compostas por características culturais —
agora ambos os elementos não representam nada por si mesmos e podem configurar
comunidades étnicas.”
“Embora sejam conceitos correlacionados,
preconceito e discriminação não têm o mesmo significado. Enquanto o preconceito
corresponde a um juízo de valor antecipado, a discriminação é o ato de
estabelecer diferenças, distinções e separações. Em outras palavras, ela é a
materialização do preconceito.”
“Qual critério devemos utilizar para definir
se a distribuição de renda numa sociedade é mais ou menos justa? A distância de
valores entre os que ganham mais e os que ganham menos? A renda média por
indivíduo ou família? Deveríamos dar mais peso à desigualdade existente nos
estratos de renda mais baixos ou mais altos? Todas essas indagações demonstram
que não estamos diante de uma questão meramente técnica, mas eminentemente
política, isto é, do que a sociedade considera relevante.
Dessa forma, como nos lembra Miller10,
se a igualdade de oportunidades parece ser um ideal amplamente compartilhado no
pensamento do século XX, a igualdade de renda é um tema muito mais controverso.
Pensadores conservadores alegam que a busca da igualdade é incompatível com a
liberdade, pois ela coloca em risco as bases da economia de mercado e é um
esforço inútil, já que novas formas de desigualdade certamente irão surgir para
substituir as que foram suprimidas.
Um exemplo disso pode ser encontrado no campo
do conhecimento. Não saber ler e escrever implica um acesso muito restrito aos
bens sociais. Tal desigualdade vem sendo fortemente combatida por meio de
políticas estatais no campo da educação.
No entanto, com o surgimento de novas
tecnologias de informação, começou a se produzir uma nova desigualdade entre
aqueles que as dominam e os que não conseguem fazê-lo. Os pensadores liberais
dão maior peso à igualdade de oportunidades e só aprovam a igualdade de renda
na forma de um nível mínimo de provisão, ao qual cada pessoa teria direito. O
salário mínimo, por exemplo, seria um mecanismo para garantir essa renda básica
a cada trabalhador.
Apenas na tradição socialista a igualdade de
renda se tomou um valor fundamental. Contudo, muitos socialistas argumentam em
favor da maior igualdade de situação material e poucos são a favor da completa
igualdade, concepção presente apenas na perspectiva comunista.
Os socialistas das democracias ocidentais, em
geral, são comprometidos com um ideal de igualdade social que tem os seguintes
parâmetros: as diferentes recompensas que as pessoas recebem devem corresponder
às reais diferenças de esforços e capacidades; ninguém deve ter um padrão de
vida abaixo de um mínimo prescrito, e o âmbito da desigualdade não deve ser tão
grande a ponto de dar origem a divisões de classe.
Esse último aspecto é importante, já que,
numa sociedade em que as pessoas se encontram divididas entre si por barreiras
de classe social, é pouco provável que elas compreendam e sintam solidariedade
pela situação das outras.
Outra questão importante é saber se até mesmo
uma ideia moderada de igualdade como esta é viável em uma sociedade moderna.
Supondo-se que o mercado continue a desempenhar um papel central na produção e
na distribuição de bens e serviços, parece inevitável que desigualdades
substanciais continuem a surgir dos sucessos e fracassos das pessoas na
concorrência econômica. É muito difícil controlar diretamente tais
desigualdades.
O filósofo político norte-americano Michael
Walzer11 elaborou uma proposta denominada igualdade complexa. Segundo esse autor, a sociedade moderna
incorpora certo número de esferas de distribuição em que diferentes bens são
alocados de acordo com os critérios vigentes naquele campo específico. Se as
fronteiras entre as esferas forem respeitadas, o destaque de uma pessoa na
esfera econômica pode ser compensado pelo de outra na esfera social, ou de uma
terceira no campo político. Desse modo, o pluralismo social poderia levar a um
tipo de igualdade em que nenhuma pessoa superasse decisivamente outra. No
entanto, a posição econômica exerce muita influência nas sociedades atuais, em
especial na capacidade de uma pessoa obter outros bens sociais: como reputação,
poder político, educação, entre outros.”
“De acordo com o etnólogo Carlos Moore
Wedderburn12, o conceito de ação afirmativa teve sua origem na
Índia, logo após a Primeira Guerra Mundial, antes mesmo que esse país se
tornasse independente do Império Britânico. No ano de 1919, Bhimrao Ramji
Ambedkar (1891-1956), jurista, economista, historiador e membro de uma casta
considerada “intocável” propôs a representação diferenciada dos segmentos
populacionais designados e considerados como inferiores na sociedade indiana.
Para ele, isso significava instituir políticas públicas diferenciadas e
constitucionalmente protegidas em favor da igualdade para todos os segmentos
sociais.
Como nos lembra Wedderburn (2005), o sistema
de castas indiano é uma milenar estrutura de opressão, embutida nos conceitos
religiosos do hinduísmo. Ele se organiza em torno de conceitos de superioridade
e inferioridade, de pureza e impureza, que envolvem critérios religiosos e
sociorraciais.
Historicamente, tal sistema se articula em
torno de quatro castas formais, das quais as três primeiras são consideradas
superiores e a quarta, inferior, pois, segundo o hinduísmo, foi criada por Deus
para servir às três castas superiores.
Ao longo do tempo, esse sistema se tornou
mais complexo, com a criação de múltiplas castas subalternas fora do sistema
formal, designadas intocáveis. Estas, conforme a religião hindu, por serem poluídas,
devem obediência e sujeição a todas as demais castas, inclusive à casta
inferior. Ainda existem populações tribais conhecidas como tribos
estigmatizadas, que vivem fora do sistema de castas, relegadas ao último
estágio de inferioridade.
Ainda segundo esse autor, visando romper com
esse sistema milenar, Ambedkar apresentou aos órgãos coloniais britânicos a
demanda pela representação eleitoral diferenciada em favor das classes
oprimidas. Esse ato tornou-se um dos principais motivos dos embates ideológicos
que emergiram entre os nacionalistas indianos.
Mahatma Mohandas Gandhi (1869-1948), promotor
da luta pela independência da Índia e pertencente a uma casta superior, opôs-se
à noção de ação afirmativa porque acreditava que qualquer tentativa de mudar o
status quo entre as castas, por meio de mecanismos legais, dividiria o país e
levaria a uma guerra civil entre as castas superiores e inferiores, provocando
o massacre destas últimas. Ele defendia que somente uma mudança de mentalidade
das castas superiores e a independência da Índia libertariam as castas
inferiores. Gandhi, inclusive, ameaçou suicidar-se em público se a Grã-Bretanha
adotasse os mecanismos de ações afirmativas em favor dos “intocáveis”.
Conforme Wedderburn, Ambedkar argumentava que
seria impossível desmantelar o sistema de castas sem a adoção de medidas
específicas que favorecessem a mobilidade social dos segmentos oprimidos. Como
os dirigentes nacionalistas precisavam da totalidade do apoio dos indianos para
alcançar a independência da nação, viram-se obrigados a ceder a várias
exigências de Ambedkar, que reivindicava a inclusão de instrumentos de ação
afirmativa na constituição da Índia independente. Em 1950, ele próprio redigiu
a parte da Carta Magna indiana referente a essas questões. Os seus artigos 16 e
17 proíbem a discriminação com base na raça, casta e descendência, abolem a
intocabilidade e instituem um sistema de ações afirmativas denominado reserva, ou representação seletiva, nas assembleias legislativas, na
administração pública e nas redes de ensino.
Tais políticas, como aponta o autor
(Wedderburn, 2005), foram fortemente combatidas pelas castas superiores, mas,
apesar disso, o Estado tentou reforçá-las aumentando, em 1980, e dez anos
depois, os percentuais das cotas de participação. Após décadas de ofensivas
destinadas a derrubar as políticas de ação afirmativa e retirá-las da
constituição, os políticos de ultradireita passaram a reclamar a implantação de
cotas em favor das castas superiores.
Como o caso da Índia, analisado por
Wedderburn, demonstra, as políticas de ação afirmativa, ao contrário do que
geralmente se acredita, não se iniciaram nos Estados Unidos nos anos 1960, mas
emergiram a partir das lutas pela descolonização após a Segunda Guerra Mundial,
quando foram aplicadas com a denominação de indigenização
ou nativização. (...)
Na perspectiva desse autor (Wedderburn,
2005), como resultado da luta da comunidade negra estadunidense por direitos
civis, desencadeada nos anos 1950, os Estados Unidos incorporaram, na década
seguinte, à sua legislação e prática social, mecanismos que surgiram do
contexto de descolonização do mundo afro-asiático. A oficialização das
políticas de ação afirmativa para esse segmento desencadeou novas ideias e
propostas que permitiram reivindicações de outros grupos discriminados dentro
do país, como os nativos estadunidenses, as mulheres, os idosos, os deficientes
físicos, os homossexuais, os imigrantes, entre outros.
Para Wedderburn, a experiência dos negros
estadunidenses reforçou, tanto nos EUA quanto em outros países da Europa, a
luta das mulheres pela igualdade em todas as esferas da vida pública e privada.
A mobilização específica destas popularizou o conceito de políticas públicas de
ação afirmativa e, em especial, do mecanismo de cotas como um dos seus
principais instrumentos.”
1: Introdução à sociologia, 1981.
2: O mito do matriarcado, 1979.
3: Sexo e temperamento, 2000.
4: A mulher, a cultura e a sociedade, 1979.
5: Estrutura familiar e personalidade
feminina, 1979.
6: Está a mulher para o homem assim como a
natureza para a cultura?, 1979.
7: A dominação masculina, 1999.
8: Contribuições feministas para o estudo
da violência de gênero, 2001.
9: Economia e sociedade, 2000.
10: Igualdade, 1996.
11: Spheres of justice, 1983.
12: Do marco histórico das políticas
públicas de ações afirmativas, 2005.
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