Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-60281-49-7
Opinião: ★★★★☆
Tradução:
Paulina Wacht e Ari Roitman
Páginas: 608
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Sinopse: Este é um dos livros mais
importantes de Mario Vargas Llosa, um épico latino-americano em que ele reconta
a Guerra de Canudos — conflito que está entre os mais dramáticos da história do
Brasil — , com toda a genialidade que o consagrou como um dos grandes autores
de língua espanhola da atualidade. A pesquisa para o livro demandou um esforço
concentrado. Impressionado com a leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha,
Vargas Llosa se embrenhou em arquivos históricos no Rio de Janeiro e em
Salvador, viajou pelo sertão da Bahia e de Sergipe e criou um a obra que, hoje,
é reconhecida como o seu tour de force. "Peregrinei por todas as vilas
onde, segundo a lenda, o Conselheiro pregou", escreve ele, "e nelas
ouvi os moradores discutindo ardorosamente sobre Canudos, como se os canhões
ainda trovejassem no reduto rebelde e o Apocalipse pudesse acontecer a qualquer
momento naqueles desertos salpicados de árvores sem folhas, cheias de
espinhos". Em A guerra do fim do mundo, o autor dá uma nova dimensão à
figura de Antônio Conselheiro, esse homem de túnica roxa e olhos que “flamejavam
com um fogo perpétuo”, capaz de levar uma multidão de fiéis até os limites da
loucura e, finalmente, à morte.
“O homem
era alto e tão magro que parecia estar sempre de perfil. Sua pele era escura,
seus ossos, proeminentes, e seus olhos flamejavam com um fogo perpétuo. Usava
sandálias de pastor e a túnica roxa que lhe caía sobre o corpo lembrava o
hábito daqueles missionários que, vez por outra, visitavam as vilas do sertão
batizando multidões de crianças e casando os pares amancebados. Era impossível
saber sua idade, sua procedência, sua história, mas havia algo na sua expressão
tranquila, nos seus costumes frugais, na sua imperturbável seriedade que, antes
mesmo de começar a dar conselhos, atraía as pessoas.
Aparecia
de repente, a princípio sozinho, sempre a pé, coberto da poeira do caminho, de
tantas em tantas semanas, ou meses. Sua silhueta longilínea se recortava na luz
crepuscular ou nascente quando atravessava a única rua do povoado, a passos
largos, com uma espécie de urgência. Avançava decidido entre cabras que
chocalhavam, entre cachorros e crianças que abriam passagem e o observavam com
curiosidade, sem responder aos cumprimentos das mulheres que já o conheciam e
faziam reverências e corriam para lhe trazer jarros de leite de cabra e pratos
de farinha e feijão. Mas ele não comia nem bebia nada antes de chegar à igreja
da vila e constatar, mais uma vez, uma de tantas vezes, que estava em ruínas,
descascada, com as torres semidestruídas, as paredes esburacadas, os pisos
levantados, os altares roídos pelos vermes. Seu rosto se ensombrecia com uma
dor de retirante a quem a seca matou os filhos e animais e privou de bens, e
agora precisa abandonar sua casa, os ossos dos seus mortos, para fugir, fugir,
sem saber para onde. Às vezes chorava, e no pranto o fogo negro dos seus olhos
recrudescia em terríveis cintilações. Começava logo a rezar. Mas não como rezam
os outros homens ou mulheres: deitava-se de bruços na terra ou nas pedras ou
nas lajes lascadas, bem diante de onde era ou tinha sido ou deveria ser o
altar, e orava, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta, uma, duas horas,
observado com respeito e admiração pelos moradores. Rezava o credo, o pai-nosso
e as ave-marias conhecidos, e também outras rezas que ninguém tinha ouvido
antes mas que, ao longo dos dias, dos meses, dos anos, as pessoas iriam
memorizando. Onde está o padre?, ouviam-no perguntar, por que não há um pastor
aqui para o rebanho? Pois não encontrar um sacerdote nas vilas o afl igia tanto
como o abandono das moradas do Senhor.
Só
depois de pedir perdão ao Bom Jesus pelo estado de sua casa ele aceitava comer
e beber alguma coisa, apenas uma amostra do que os moradores do lugar insistiam
em oferecer, mesmo nos anos de escassez. Aceitava dormir embaixo de um teto, em
alguma das moradias que os sertanejos punham à sua disposição, mas raramente
era visto deitado na rede, no catre ou no colchão de quem lhe oferecia
hospedagem. Deitava-se no chão, sem nenhuma coberta, e, apoiando no braço sua fervilhante
cabeleira cor de azeviche, dormia algumas horas. Sempre tão poucas, que era o
último a se deitar e, quando os vaqueiros e pastores mais madrugadores saíam
para o campo, já o viam, trabalhando na restauração das paredes e dos telhados
da igreja.
Dava
seus conselhos ao entardecer, quando os homens voltavam da roça, as mulheres
tinham terminado seus afazeres domésticos e as crianças já estavam dormindo.
Falava nos descampados lisos e pedregosos que há em todos os povoados do sertão,
no cruzamento das ruas principais, e que poderiam ser chamados de praças se
tivessem bancos, coretos, jardins ou se ainda conservassem os que tiveram algum
dia e foram destruídos pelas secas, pelas pragas, pela negligência. Falava na hora
em que o céu do Norte do Brasil, antes de fi car escuro e estrelado, cintila
entre fl ocosas nuvens brancas, cinzentas ou azuladas e se vê lá no alto, sobre
a imensidão do mundo, um vasto fogo de artifício. Falava na hora em que se
acendem as fogueiras para espantar os insetos e fazer a comida, quando o calor
sufocante diminui e sopra uma brisa que deixa as pessoas com mais ânimo para
suportar a doença, a fome e os padecimentos da vida.
Falava
de coisas singelas e importantes, sem olhar especialmente para nenhuma das pessoas
que o cercavam, ou melhor, olhando, com seus olhos incandescentes, através da
aglomeração de velhos, mulheres, homens e crianças, para algo ou alguém que só
ele podia ver. Coisas que se entendiam, porque eram obscuramente sabidas desde
tempos imemoriais e absorvidas junto com o leite materno. Coisas atuais,
tangíveis, cotidianas, inevitáveis, como o fim do mundo e o Juízo Final, que
podiam acontecer, talvez, antes que o povoado reconstruísse a capela
desmoronada. Como ia ser quando o Bom Jesus visse o desleixo com que cuidaram
da sua casa? O que diria do comportamento dos pastores que, em vez de ajudar os
pobres, raspavam seus bolsos cobrando pelos serviços da religião? Será que as
palavras de Deus podiam ser vendidas, não deviam ser dadas de graça? Que
desculpa dariam ao Pai os religiosos que, apesar do voto de castidade,
fornicavam? Podiam, por acaso, inventar mentiras para Aquele que lê pensamentos
como o rastreador lê na terra as pegadas da onça? Coisas práticas, cotidianas, familiares,
tais como a morte, que leva à felicidade se entrarmos nela de alma limpa, como
numa festa. Os homens eram animais? Se não fossem, deviam atravessar essa porta
engalanados com seu melhor traje, em sinal de reverência Àquele que iam
encontrar. Falava do céu e também do inferno, a morada do Cão, forrada de
brasas e cascavéis, e de como o Demônio podia se manifestar em inovações de
aparência inofensiva.
Os
vaqueiros e peões do interior o ouviam em silêncio, intrigados, atemorizados,
comovidos, e da mesma maneira o ouviam os escravos e os libertos dos engenhos
do litoral e as mulheres, pais e filhos de uns e de outros. Ocasionalmente,
alguém — mas era raro, porque sua seriedade, sua voz cavernosa ou sua sabedoria
os intimidava — o interrompia para esclarecer alguma dúvida. O século iria terminar?
O mundo chegaria a 1900? Ele respondia sem olhar, com uma segurança tranquila
e, muitas vezes, com enigmas. Em 1900 as luzes se apagariam e choveriam
estrelas. Mas, antes, iam ocorrer fatos extraordinários. Um silêncio acompanhava
a sua voz, e nele se ouviam o crepitar das fogueiras e o zumbido dos insetos
que as chamas devoravam, enquanto os presentes, prendendo a respiração, faziam
um esforço antecipado de memória para recordar o futuro. Em 1896 mil rebanhos
correriam da praia para o sertão, e o mar viraria sertão e o sertão, mar. Em
1897 o deserto se cobriria de grama, pastores e rebanhos se misturariam e, a
partir de então, haveria um único rebanho e um único pastor. Em 1898 os chapéus
aumentariam e as cabeças diminuiriam, e em 1899 os rios ficariam vermelhos e um
novo planeta cruzaria o espaço.
Era
preciso, então, preparar-se. Tinham que restaurar a igreja e o cemitério, a
construção mais importante depois da casa do Senhor, pois era a antecâmara do
céu ou do inferno, e destinar o tempo restante ao essencial: a alma. Por acaso
o homem ou a mulher iam para o outro lado usando saias, vestidos, chapéus de
feltro, sapatos de cordão e todos aqueles luxos de lã e de seda que o Bom Jesus
nunca vestiu?
Eram
conselhos práticos, singelos. Quando o homem ia embora, falavam dele: que era
santo, que tinha feito milagres, que tinha visto a sarça ardente no deserto,
como Moisés, e que uma voz lhe revelara o nome impronunciável de Deus. E
comentavam seus conselhos. Assim, antes do final do Império e depois de
proclamada a República, os habitantes de Tucano, Soure, Amparo e Pombal os
ouviam; e, mês após mês, ano após ano, foram ressuscitando das ruínas as
igrejas do Bom Conselho, de Geremoabo, de Massacará e de Inhambupe; e, seguindo
seus ensinamentos, surgiram muros e nichos nos cemitérios de Monte Santo, de
Entre Rios, de Abadia e de Barracão, e a morte foi celebrada com enterros
dignos em Itapicuru, Cumbe, Natuba, Mocambo. Mês após mês, ano após ano, as noites
de Alagoinhas, Uauá, Jacobina, Itabaiana, Campos, Itabaianinha, Geru, Riachão,
Lagarto, Simão Dias foram se povoando de conselhos. Todos consideravam que eram
bons conselhos, e por isso, a princípio em um, depois noutro e afinal em todos
os vilarejos do Norte, o homem que os dava, embora seu nome fosse Antônio
Vicente e seu sobrenome Mendes Maciel, começou a ser chamado de Conselheiro.”
“Quando Lelis Piedades, o advogado do barão de Canabrava, mandou um
ofício ao tribunal de Salvador informando que a fazenda de Canudos tinha sido
invadida por meliantes, o Conselheiro já estava lá havia três meses. Pelo
sertão correu a notícia de que nesse lugar, cercado de morros pedregosos,
chamado de Canudos por causa dos cachimbos de caniço que o povo do lugar fumava
no passado, o santo que tinha peregrinado mundo afora durante um quarto de
século estava instalado agora. O local era conhecido pelos boiadeiros, pois os
rebanhos costumavam pernoitar às margens do (rio) Vaza-Barris. Nas semanas e
meses seguintes viram-se grupos de curiosos, de pecadores, de doentes, de
vagabundos, de fugitivos que, vindo do norte, do sul, do leste e do oeste,
dirigiam-se a Canudos com o pressentimento ou a esperança de que ali encontrariam
perdão, refúgio, saúde, felicidade.
Na manhã seguinte à sua chegada, o
Conselheiro começou a construir um Templo que, disse, seria todo de pedra, com
duas torres muito altas, e consagrado ao Bom Jesus. Decidiu que fosse erigido
em frente à velha igreja de Santo Antônio, capela da fazenda, “Que os ricos
levantem as mãos”, dizia, pregando à luz de uma fogueira, no povoado
incipiente. “Eu levanto. Porque sou filho de Deus, Ele me deu uma alma imortal
que pode merecer o céu, a verdadeira riqueza. Levanto porque o Pai me fez pobre
nesta vida para ser rico na outra. Que os ricos levantem as mãos!” Nas sombras
crepitantes emergia então, dentre os farrapos e os couros e as blusas puídas de
algodão, um bosque de braços. Rezavam antes e depois dos conselhos e faziam
procissões entre as moradias inacabadas e os refúgios de lona e tábuas em que
dormiam, e a noite sertaneja os ouvia aclamando a Virgem e o Bom Jesus e
gritando abaixo o Cão e o Anticristo. Um homem de Mirandela que soltava fogos
de artifício nas feiras — Antônio Fogueteiro — foi um dos primeiros romeiros, e
a partir de então se queimavam castelos de fogos e se estouravam rojões nas
procissões de Canudos.
O Conselheiro dirigia os trabalhos do templo,
assessorado por um mestre-pedreiro que o ajudara a restaurar muitas capelas e a
construir, desde os alicerces, a igreja do Bom Jesus, em Crisópolis, e escolhia
os penitentes que iriam quebrar pedras, peneirar areia ou buscar madeira. Ao
entardecer, depois de um jantar frugal — se não estivesse jejuando — que consistia
numa côdea de pão, alguma fruta, um punhado de farinha e uns goles d’água, o
Conselheiro dava boas-vindas aos recém-chegados, exortava os outros a serem
hospitaleiros e, após o credo, o pai-nosso e as ave-marias, sua voz eloqüente
pregava a austeridade, a mortificação, a abstinência, e compartilhava visões
que se pareciam com as histórias dos trovadores. O fim estava próximo, podia-se
ver isto como se via Canudos lá do Alto da Favela. A República ia continuar
mandando hordas com fardas e fuzis para tentar prendê-lo e impedir que se
dirija aos necessitados; por mais sangue que fizesse correr, porém, o Cão não
morderia Jesus. Haveria um dilúvio, depois um terremoto. Um eclipse deixaria o
mundo em trevas tão absolutas que tudo teria que ser feito no tato, como fazem
os cegos, enquanto a batalha retumbava ao longe. Milhares de pessoas morreriam
de pânico. Entretanto, ao se dissiparem as brumas, num amanhecer diáfano, as
mulheres e os homens veriam ao seu redor, nas colinas e montanhas de Canudos, o
exército de dom Sebastião. O grande rei teria derrotado as ninhadas do Cão,
limpando o mundo para o Senhor. Eles veriam dom Sebastião, com sua armadura
faiscante e sua espada; veriam seu rosto bondoso, adolescente, que sorriria do
alto da sua cavalgadura ajaezada de ouro e diamantes, e o veriam afastar-se,
cumprida a missão redentora, para voltar com seu exército ao fundo do mar.
Os curtidores, os lavradores, os curandeiros,
os mascates, as lavadeiras, as parteiras, as mendigas que tinham chegado a
Canudos após muitos dias e noites de viagem, trazendo seus bens numa carroça ou
no lombo de um jegue, e que agora estavam ali, encolhidos na sombra, ouvindo e
querendo acreditar, sentiam os olhos úmidos. Rezavam e cantavam com a mesma
convicção que os peregrinos mais antigos; aqueles que não sabiam aprendiam
rapidamente as preces, os cantos, as verdades. (...)
Não
faltava o que comer. Havia cereais, legumes, carnes, e, como o Vaza-Barris
tinha água, podia-se plantar. Os que chegavam traziam provisões, e de outros
povoados costumavam receber aves, coelhos, porcos, grãos, cabritos. O
Conselheiro pediu a Antônio Vilanova que armazenasse os mantimentos e controlasse
sua distribuição entre os necessitados. Sem instruções específicas, mas de
acordo com os ensinamentos do Conselheiro, a vida foi se organizando, mas não
sem tropeços. O Beatinho se encarregava de instruir os romeiros que chegavam e
de receber seus donativos, desde que não fossem em dinheiro. Tinham que ir
gastar em Cumbe ou Juazeiro os réis da República, escoltados por João Abade ou
Pajeú, que sabiam brigar, comprando coisas para o Templo: pás, picaretas, fios
de prumo, madeira de qualidade, imagens de santos e crucifixos. A mãe Maria
Quadrado guardava numa urna os anéis, brincos, broches, colares, prendedores de
cabelo, moedas antigas ou simples enfeites de barro e osso que os romeiros
ofereciam, e esse tesouro era exibido na igreja de Santo Antônio toda vez que o
padre Joaquim, de Cumbe, ou algum outro pároco da região ia rezar missa,
confessar, batizar ou casar os moradores. Esses dias eram sempre de festa. Dois
foragidos da justiça, João Grande e Pedrão, os homens mais fortes do lugar,
dirigiam as equipes que arrastavam pedras das canteiras dos arredores até o
Templo. Catarina, a esposa de João Abade, e Alexandrinha Correa, uma mulher de
Cumbe que tinha fama de fazer milagres, preparavam comida para os trabalhadores
da construção. A vida estava longe de ser perfeita e sem complicações. Embora o
Conselheiro pregasse contra o jogo, o cigarro, o álcool, havia gente que
jogava, fumava e bebia cachaça e, quando Canudos começou a crescer, surgiram
confusões por um rabo-de-saia, roubos, bebedeiras e até facadas. Mas essas
coisas aconteciam em escala menor que em outras partes e na periferia desse
centro ativo, fraterno, fervilhante, ascético que eram o Conselheiro e os seus
discípulos.
O
Conselheiro não proibia as mulheres de se enfeitarem, mas disse inúmeras vezes
que quem cuida muito do corpo pode descuidar da alma e que, como Lúcifer, a
aparência bonita costuma ocultar um espírito sujo e nauseabundo: as cores foram
desaparecendo dos vestidos das jovens e das velhas, os vestidos foram se
alongando até os tornozelos, subindo até os pescoços e se alargando até
parecerem hábitos de freiras. Além dos decotes, desapareceram os enfeites e até
as fitas que prendiam os cabelos, que agora ficavam soltos ou escondidos
embaixo de lenços. Às vezes havia incidentes com as “madalenas”, as perdidas
que, apesar de terem chegado a Canudos à custa de muitos sacrifícios e de terem
beijado os pés do Conselheiro implorando perdão, eram hostilizadas por muitas
mulheres intolerantes que queriam obrigá-las a usar pentes com espinhos, como
prova de arrependimento.
Mas,
de modo geral, a vida era pacífica e reinava um espírito de colaboração entre
os moradores. Uma fonte de problemas era o inaceitável dinheiro da República:
se surpreendessem alguém utilizando-o em qualquer transação, os homens do
Conselheiro lhe tiravam tudo o que tivesse e expulsavam de Canudos. O comércio
era feito com as moedas que tinham a efígie do imperador dom Pedro ou da sua
filha, a princesa Isabel, mas, como elas eram escassas, generalizou-se a
permuta de produtos e de serviços. Trocavam-se alpargatas por rapadura,
galinhas por tratamentos de ervas, farinha por ferraduras, telhas por tecidos,
redes por facões e o trabalho, em roças, casas, currais, era retribuído com
trabalho. Ninguém cobrava pelo tempo e o esforço dedicados ao Bom Jesus. Além
do templo, também se construíam as moradias que depois seriam chamadas de casas
de saúde, onde davam alojamento, comida e cuidados aos doentes, anciãos e
órfãos. A princípio Maria Quadrado comandava essa tarefa, mas quando foi
construído o Santuário — uma casinha de barro, dois quartos, teto de palha —,
para que o Conselheiro pudesse descansar por algumas horas dos romeiros que o
acossavam sem parar, e a Mãe dos Homens se dedicou exclusivamente a ele, as
casas de saúde ficaram por conta das Sardelinhas — Antônia e Assunção —,
mulheres dos Vilanova. Houve pendências pelas terras cultiváveis, próximas ao
Vaza-Barris, que os romeiros já estabelecidos em Canudos foram ocupando e que
eram disputadas por outros. Antônio Vilanova, o comerciante, dirimia essas
rivalidades. Ele, por orientação do Conselheiro, distribuiu lotes para fazer as
casas dos recém-chegados, mandou cercar terras para os animais que os fiéis
mandavam ou traziam de presente, e fazia as vezes de juiz quando surgiam conflitos
sobre bens e propriedades. Não havia muitos, na verdade, porque as pessoas não
iam para Canudos atraídas pela cobiça ou pela ideia de prosperidade material. A
comunidade vivia entregue a ocupações espirituais: orações, enterros, jejuns,
procissões, a construção do templo do Bom Jesus e, principalmente, os conselhos
do entardecer, que podiam se prolongar até tarde da noite, durante os quais
tudo se interrompia em Canudos.”
“Na
minha carta anterior eu lhes falei, companheiros, de uma rebelião popular no
interior do Brasil cuja existência soube por uma testemunha preconceituosa (um
capuchinho). Hoje posso fazer um relato melhor sobre Canudos, pelo depoimento
de um homem que veio da revolta e está percorrendo a região, sem dúvida, com a
missão de recrutar adeptos. Posso, também, dar uma notícia animadora: houve um
choque armado e os jagunços derrotaram cem soldados que pretendiam chegar a
Canudos. Não estão se confirmando os indícios revolucionários? De certo modo,
sim, mas de maneira relativa, a julgar por esse homem, que transmite uma
impressão contraditória sobre esses irmãos: intuições certeiras e ações
corretas convivem neles com superstições inverossímeis.
Escrevo
de uma vila cujo nome não devem saber, uma terra onde as servidões morais e
físicas das mulheres são extremas, pois são oprimidas pelo patrão, pelo pai,
pelos irmãos e pelo marido. Aqui, o fazendeiro escolhe as esposas dos seus
empregados e as mulheres são surradas no meio da rua por pais irascíveis ou
maridos bêbados, diante da indiferença geral. Um motivo de reflexão,
companheiros: é importante que a revolução não suprima apenas a exploração do
homem pelo homem, mas também a exploração da mulher pelo homem, e estabeleça,
junto com a igualdade de classes, a igualdade de sexos.
Soube
que o emissário de Canudos tinha chegado a este lugar por intermédio de um guia
que é também onceiro, ou caçador de suçuaranas (belos trabalhos: explorar o
mundo e acabar com os predadores do rebanho), graças ao qual também consegui
vê-lo. O encontro ocorreu num curtume, entre couros secando ao sol e crianças
que brincavam com lagartixas. Meu coração bateu forte ao ver o homem: baixo e
maciço, com a palidez entre amarela e cinzenta que os mestiços herdaram dos
seus ancestrais indígenas e uma cicatriz na cara que me revelou, à simples
vista, seu passado de capanga, bandido ou criminoso (em todo caso, vítima,
pois, como explicou Bakunin,
a sociedade prepara os crimes e os criminosos são apenas os instrumentos para
executá-los). Usava uma roupa de couro — como fazem os boiadeiros para cavalgar
na campina espinhenta —, estava de chapéu e com uma espingarda. Seus olhos eram
fundos e astutos, e suas maneiras, oblíquas, evasivas, como é frequente aqui.
Ele não quis conversar a sós. Tivemos que falar diante do dono do curtume e de
sua família, que comiam no chão, sem olhar para nós. Eu disse a ele que sou um
revolucionário e que há muitos companheiros no mundo que aplaudem o que eles
fizeram em Canudos, isto é, tomar as terras de um senhor feudal, estabelecer o
amor livre e derrotar uma tropa. Não sei se me entendeu. As pessoas do interior
não são como na Bahia, onde a influência africana deu loquacidade e exuberância
ao povo. Aqui os rostos são inexpressivos, máscaras cuja função parece ser
ocultar os sentimentos e os pensamentos.
Perguntei
se eles estavam preparados para novos ataques, pois a burguesia reage com
ferocidade quando alguém atenta contra a sacrossanta propriedade privada. O
homem me deixou gelado ao murmurar que o dono de todas as terras é o Bom Jesus
e que, em Canudos, o Conselheiro está construindo a maior igreja do mundo.
Tentei explicar que não era por construírem igrejas que o poder tinha mandado
soldados atacá-los, mas o homem respondeu que sim, que era justamente por isso,
pois a República quer exterminar a religião. Estranha diatribe a que ouvi,
companheiros, contra a República, proferida com uma tranquila segurança, sem
sombra de paixão. A República quer oprimir a Igreja e os fiéis, acabar com
todas as ordens religiosas como já fez com a Companhia de Jesus, e a prova mais
flagrante desse projeto é o fato de ter instituído o casamento civil, coisa
escandalosa e ímpia quando já existe o sacramento do matrimônio criado por
Deus.
Imagino
a decepção de muitos leitores e suas suspeitas, ao lerem o parágrafo anterior,
de que Canudos, como a Vendée durante a Revolução, é um movimento
reacionário, inspirado pelos padres. Não é tão simples, companheiros. Já sabem,
pela minha última carta, que a Igreja condena o Conselheiro e Canudos e que os
jagunços tomaram as terras de um barão. Perguntei ao homem de cicatriz se os
pobres do Brasil viviam melhor durante a monarquia. Ele respondeu no ato que
sim, pois a monarquia tinha abolido a escravidão. E me explicou que o Diabo,
por intermédio dos maçons e dos protestantes, derrubou o imperador Pedro II
para restaurá-la. Isso mesmo: o Conselheiro inculcou em seus homens a ideia de que
os republicanos são escravagistas. (Uma maneira sutil de ensinar a verdade,
certo?, pois a exploração do homem pelos donos do dinheiro, base do sistema
republicano, não é menos escravista que a feudal.) O emissário foi categórico:
“Os pobres sofreram muito, mas agora acabou: nós não vamos responder às
perguntas do censo porque o que eles querem é identificar os libertos para
acorrentá-los de novo e devolvê-los aos seus donos. Em Canudos ninguém paga os
impostos da República porque não a reconhecemos e não admitimos que ela assuma
as funções que são de Deus.” Que funções, por exemplo? “Casar as pessoas ou
receber o dízimo”. Perguntei como faziam em Canudos com o dinheiro e ele
confirmou que só aceitavam as cédulas com o rosto da princesa Isabel, isto é, dinheiro
do Império, porém, como quase não existem mais, na verdade a moeda está
desaparecendo. “Não precisamos, porque em Canudos os que têm dão aos que não
têm e os que podem trabalhar trabalham pelos que não podem”.
Eu
disse a ele que abolir a propriedade e o dinheiro e estabelecer uma comunidade
de bens, seja em nome do que for, mesmo em nome de abstrações estimulantes, é
uma coisa ousada e valiosa para os deserdados do mundo, um começo de redenção
para todos. E que essas medidas vão desencadear, mais cedo ou mais tarde, uma
dura repressão contra eles, pois a classe dominante jamais permitirá que tal
exemplo se estenda: neste país há pobres suficientes para ocupar todas as
fazendas. O Conselheiro e seus seguidores têm consciência das forças que estão
instigando? Olhando nos meus olhos, sem piscar, o homem recitou frases
absurdas, uma das quais reproduzo como amostra: os soldados não são a força e
sim a fraqueza do governo; quando for necessário as águas do rio Vaza-Barris se
transformarão em leite e suas barrancas em cuscuz de milho, e os jagunços
mortos ressuscitarão para estar vivos quando chegar o exército do rei Dom
Sebastião (um rei português que morreu na África, no século XVI).
Não
serão esses diabos, imperadores e fetiches religiosos peças de uma estratégia
que o Conselheiro usa para impulsionar os humildes no caminho de uma rebelião
que, se vamos aos fatos — e não às palavras —, é acertada, pois levou-os a se
insurgirem contra a base econômica, social e militar da sociedade classista?
Não serão os símbolos religiosos, míticos, dinásticos etc. os únicos capazes de
sacudir a inércia das massas, submetidas durante séculos à tirania
supersticiosa da Igreja, e por isso o Conselheiro os utiliza? Ou tudo isso será
uma simples obra do acaso? Nós sabemos, companheiros, que o acaso não existe na
história e que, por mais arbitrária que pareça, sempre há uma racionalidade
encoberta atrás da aparência mais confusa. Será que o Conselheiro tem ideia do
transtorno histórico que está provocando? Trata-se de um intuitivo ou de um
espertalhão? Nenhuma hipótese é descartável, muito menos a de um movimento
popular espontâneo, não premeditado. A racionalidade está gravada na cabeça de
todo homem, mesmo na do mais inculto, e, em certas circunstâncias, pode
levá-lo, por entre as nuvens dogmáticas que turvam seus olhos ou os
preconceitos que obscurecem seu vocabulário, a agir na direção da história.
Alguém que não era um dos nossos, Montesquieu, escreveu que a ventura ou a
desventura consistem numa certa disposição dos nossos órgãos. Pois a ação
revolucionária também pode nascer desse mandato dos órgãos que nos governam,
antes mesmo que a ciência eduque a mente dos pobres. Será isto o que está
acontecendo no sertão baiano? Só vai ser possível verificar na própria Canudos.
Até a próxima, ou até sempre.”
“O Conselheiro parecia, por ora,
mais preocupado em apressar a construção do Templo do Bom Jesus do que com a
guerra. Continuava dirigindo os trabalhos desde o amanhecer, mas estes se
atrasavam por culpa das rochas: era preciso trazê-las de pedreiras cada vez
mais distantes, e subi-las nas torres era tarefa difícil, durante a qual, às
vezes, as cordas arrebentavam e os enormes blocos esmagavam andaimes e
operários. E, às vezes, o santo mandava derrubar um muro já acabado e
construí-lo mais à frente, ou retificar umas janelas porque uma inspiração lhe dizia
que não estavam orientadas na direção do amor. Era visto andando entre as
pessoas, cercado pelo Leão de Natuba, o Beatinho, Maria Quadrado e as beatas do
Coro, que não paravam de bater palmas para espantar as moscas que o
perturbavam. Diariamente chegavam a Canudos três, cinco, dez famílias ou grupos
de peregrinos, com seus minúsculos rebanhos de cabras e suas carroças, e
Antônio Vilanova conseguia um espaço vazio naquele labirinto de casas para que
construíssem a sua. Toda tarde, antes dos conselhos, o santo recebia os
recém-chegados no Templo ainda sem telhado. Eram levados pelo Beatinho, através
da massa de fiéis, e, embora o Conselheiro não concordasse, dizendo “Deus é
outro”, todos se jogavam aos seus pés para beijá-los ou tocar na sua túnica enquanto
ele os abençoava, com um olhar que dava a impressão de estar sempre olhando
para o além. Em dado momento, interrompia a cerimônia de boas-vindas,
levantava-se, e então lhe abriam passagem até a escadinha que levava aos
andaimes. Pregava com uma voz rouca, sem se mexer, falando sobre as questões de
sempre: a superioridade do espírito, as vantagens de ser pobre e frugal, o ódio
aos infiéis e a necessidade de salvar Canudos para que fosse refúgio dos
justos.
Todos
o ouviam ansiosos, convencidos. Agora a religião preenchia seus dias. À medida
que surgiam, as ruazinhas tortuosas eram batizadas numa procissão com o nome de
algum santo. Havia, por toda parte, nichos e imagens da Virgem, do Menino, do
Bom Jesus e do Espírito Santo, e cada bairro e cada ofício construía altares
para seu santo protetor. Muitos dos recém-chegados mudavam de nome, para
simbolizar assim a nova vida que iam começar. Mas às vezes costumes duvidosos
se enxertavam nas práticas católicas, como plantas parasitas. Por exemplo,
alguns mulatos ficavam dançando enquanto rezavam e se dizia que, sapateando com
frenesi na terra, acreditavam que expulsariam os pecados com o suor. Os negros
foram se agrupando no setor norte de Canudos, um quarteirão de choças de barro
e sapê que, mais tarde, seria conhecida como Mocambo. Os índios de Mirandela,
que inesperadamente vieram se instalar em Canudos, preparavam à vista de todos
umas infusões de ervas que exalavam um cheiro forte e os deixavam em êxtase.
Além dos romeiros, vieram, naturalmente, milagreiros, mascates, aventureiros,
curiosos. Nos barracos encaixados uns nos outros viam-se mulheres que liam as
mãos, velhacos que se jactavam de falar com os mortos e cantadores que, como
aqueles do Circo do Cigano, ganhavam a vida cantando romanceiros ou enfiando
alfinetes no corpo. Certos curandeiros apregoavam a cura de todos os males com
beberagens de jurema e manacá, e alguns beatos, tomados pelo delírio de
contrição, declamavam seus pecados em voz alta e imploravam penitências aos
ouvintes. Um grupo de Juazeiro começou a praticar em Canudos os ritos da
Irmandade dos Penitentes daquela cidade: jejum, abstinência sexual, flagelações
públicas. Embora o Conselheiro estimulasse a mortificação e o ascetismo — o
sofrimento, dizia, robustece a fé —, afinal ficou alarmado e pediu ao Beatinho
que filtrasse os romeiros para evitar que com eles entrassem a superstição, o
fetichismo ou qualquer sacrilégio disfarçado de devoção.
A
diversidade humana coexistia em Canudos sem violência, em meio a uma
solidariedade fraternal e um clima de exaltação que os escolhidos não conheciam
até então. Sentiam-se verdadeiramente ricos por serem pobres, filhos de Deus,
privilegiados, como lhes dizia toda tarde o homem de túnica esburacada. Em seu
amor por ele, aliás, desapareciam todas as diferenças que podiam separá-los:
quando se tratava do Conselheiro, essas mulheres e homens, que a princípio eram
centenas e começavam a ser milhares, tornavam-se um único ser, submisso e
reverente, disposto a dar tudo o que tinham por aquele que soube se aproximar
da sua prostração, da sua fome e dos seus piolhos para infundir esperanças e
deixá-los orgulhosos do próprio destino. Apesar da multiplicação de habitantes,
a vida não era caótica. Os emissários e romeiros traziam gado e provisões, os
currais estavam tão repletos quanto os depósitos e o Vaza-Barris, felizmente,
tinha água para as hortas. Enquanto João Abade, Pajeú, José Venâncio, João
Grande, Pedrão e outros preparavam a guerra, Honório e Antônio Vilanova
administravam a cidade: recebiam as oferendas dos romeiros, distribuíam lotes,
alimentos e roupas, e cuidavam das casas de saúde para os doentes, anciãos e
órfãos. Eram eles que recebiam as denúncias quando havia disputas por questões
de propriedade.”
Um comentário:
A parte II do cap. 2, relatando um debate na assembleia é MUITO bem escrita. Não trouxe pra cá por conta do tamanho, mas é esplendorosamente irônica.
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