quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Dialética da Natureza (Parte I), de Friedrich Engels

Editora: Boitempo

ISBN: 978-65-5717-023-6

Tradução: Nélio Schneider

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 400

Sinopse: Durante o século XIX, o progresso científico e tecnológico trouxe importantes conquistas no campo das ciências naturais: o nascimento da química moderna, a teoria evolutiva de Darwin, a descoberta por Pasteur e outros do mundo microbiano. Nesse contexto, Engels procura com sua Dialética da natureza oferecer de uma só vez, ao marxismo uma concepção materialista da natureza elaborada, e às ciências um modelo filosófico a partir do qual se guiar.

Confrontando tendências anticientíficas em vigor entre os próprios cientistas – materialismo vulgar, metafísica, idealismo, agnosticismo, mecanicismo, espiritualismo –, Engels expõe alguns dos principais conceitos da tradição dialética, articulando-os e aplicando-os com rigor a diversos campos do conhecimento. Deixa-se ver assim não apenas a enorme erudição de seu autor, mas também a profundidade do compromisso do marxismo com o desenvolvimento científico. Entre diversas passagens célebres, cultuadas e criticadas, tem papel de destaque a impressionante elaboração sobre a função do trabalho no processo de hominização, que encerra o livro.

Obra póstuma e inacabada, a influência da Dialética da natureza pode ser notada desde sua primeira publicação, seja nos escritos de figuras proeminentes do movimento operário e do marxismo soviético, seja em controvérsias decisivas do chamado marxismo ocidental. Além disso, vem sendo amplamente recuperada pela ecologia marxista contemporânea. Portanto, é incontornável não apenas para quem busca entender a história de formação do marxismo, mas também para quem deseja conhecer os caminhos abertos por ele na atualidade.



(As inserções entre colchetes ([]), redigidas pelo tradutor e pela edição, acrescentam termos faltantes no texto ou o complementam para melhor compreensão. As anotações reproduzidas entre chaves ({}), por sua vez, foram feitas por Engels no manuscrito. Todas as notas de rodapé numeradas são de autoria do tradutor, elaboradas com base na edição alemã e em pesquisas próprias. As notas de rodapé marcadas com asterisco foram incluídas por Engels, e as notas à margem do texto reproduzem anotações do autor na lateral do manuscrito. Frases incompletas se mantiveram conforme o original.)

 

 

“A existência normal dos animais é dada nas condições simultâneas em que vivem e às quais se adaptam – as do ser humano, assim que este se diferencia do animal no sentido estrito, nunca antes existiram e deverão ser elaboradas pelo desenvolvimento histórico futuro. O ser humano é o único animal capaz de sair por esforço próprio da condição meramente animal – sua condição normal é condição adequada à sua consciência, a ser criada por ele mesmo.”

 

 

“A ciência natural moderna foi a única que logrou implementar um desenvolvimento científico, sistemático e global, em contraposição às intuições geniais dos antigos sobre a filosofia da natureza e às descobertas dos árabes, que foram extremamente importantes, mas esporádicas e, em grande parte, desapareceram sem produzir resultados. A moderna investigação científica da natureza é datada, a exemplo de toda a história mais recente, daquela época portentosa que nós, alemães, de acordo com a desgraça nacional2 que então se abateu sobre nós, chamamos de Reforma, os franceses chamam de Renascença e os italianos de Cinquecento, época que nenhuma dessas denominações é capaz de expressar adequadamente. Trata-se da época que se inicia na segunda metade do século XV. O reinado, apoiando-se nos burgueses citadinos, deu cabo do poder da nobreza feudal e fundou as grandes monarquias assentadas essencialmente no nacionalismo, nas quais se desenvolveram as modernas nações europeias e a moderna sociedade burguesa; os burgueses e a nobreza ainda se engalfinhavam quando a guerra camponesa alemã anunciou profeticamente as futuras lutas de classes, trazendo ao palco não só os camponeses revoltados – o que nada tinha de novo – mas, na esteira deles, os rudimentos do atual proletariado com a bandeira vermelha na mão e a exigência da comunhão de bens nos lábios3. Os manuscritos resgatados [antes] da queda de Bizâncio4, as estátuas antigas desenterradas das ruínas de Roma fizeram surgir diante do Ocidente surpreso um novo mundo, o da Antiguidade grega; à vista dos seus luminares desapareceram os fantasmas da Idade Média; a Itália viveu um florescimento inesperado da arte, que se manifestou como um reflexo da Antiguidade clássica e nunca mais foi alcançado. Na Itália, na França, na Alemanha, surgiu uma nova literatura, a primeira literatura moderna, logo depois a Inglaterra e a Espanha viveram sua idade literária clássica. Os limites do antigo orbis terrarum [globo terrestre] foram ultrapassados e a Terra começou a ser propriamente descoberta, lançaram-se os fundamentos para o posterior comércio mundial e a transição do artesanato para a manufatura, que, por sua vez, constituiu o ponto de partida para a grande indústria moderna [resultado: domínio da burguesia]. A ditadura espiritual da Igreja foi vencida; em sua maior parte, os povos germânicos dispersaram-se de vez e acolheram o protestantismo, enquanto entre os romanos um livre pensamento bem-humorado, emprestado dos árabes e nutrido pela filosofia grega recém-descoberta, criava raízes e preparava o materialismo do século XVIII.

Foi a maior revolução progressista já vivida pela humanidade até então, uma era que precisou de gigantes e gerou gigantes, gigantes na capacidade de pensar, na paixão e no caráter, gigantes em versatilidade e erudição. Os homens que fundaram o moderno domínio da burguesia eram tudo menos burgueses tacanhos. Ao contrário, o caráter aventureiro da época os bafejou em maior ou menor medida. Naquela época, não houve praticamente nenhum homem importante que não tivesse feito longas viagens, que não falasse quatro ou cinco idiomas, que não brilhasse em várias especialidades. Leonardo da Vinci foi não só um grande pintor mas também um grande matemático, um grande mecânico e um grande engenheiro, ao qual os mais diversos ramos da física devem importantes descobertas; Albrecht Dürer foi pintor, calcogravurista, escultor, arquiteto, e ainda inventou um sistema de fortificação cujas ideias foram retomadas muito tempo depois por [Marc-René de] Montalembert e pela fortificação alemã mais recente. Maquiavel foi estadista, historiador, poeta e, ao mesmo tempo, o primeiro escritor militar digno de menção da época mais recente. Lutero lavou o estábulo de Áugias5 não só da Igreja mas também da língua alemã, criou a prosa alemã moderna6 e compôs texto e melodia daquele coral convicto da vitória que se tornou a Marselhesa do século XVI7. É que os protagonistas daquele tempo ainda não haviam sido escravizados pela divisão do trabalho, cujo efeito limitante e unilateral percebemos com grande frequência em seus sucessores. Mas é particularmente próprio deles que quase todos tenham vivido e atuado no movimento da época, na luta prática, tomando partido e participando da luta, seja com a palavra e a escrita, seja com a espada, alguns com ambas. Daí a plenitude e a força de caráter que fazem deles homens íntegros. Estudiosos trancados em seu escritório são exceção: ou eram pessoas do segundo e terceiro escalões ou filisteus precavidos que não queriam se arriscar.

Naquele tempo, a investigação científica da natureza também se movia em meio à revolução generalizada, e do começo ao fim ela própria foi revolucionária, pois tinha de conquistar seu direito à existência. De mãos dadas com os grandes italianos, dos quais se data a filosofia mais recente, ela alimentou as fogueiras e os cárceres da Inquisição com seus mártires. É sintomático que os protestantes se tenham antecipado aos católicos na perseguição à livre investigação científica da natureza. Calvino mandou [Miguel] Serveto para a fogueira quando ele estava prestes a descobrir o trajeto da circulação sanguínea, com o requinte de tê-lo mantido vivo, assando por duas horas; a Inquisição pelo menos se contentou em simplesmente queimar Giordano Bruno8.

O ato revolucionário pelo qual a investigação científica da natureza declarou sua independência e, de certo modo, repetiu Lutero queimando a bula papal9 foi a publicação da obra imortal com a qual Copérnico, mesmo timidamente e já em seu leito de morte, desafiou a autoridade eclesiástica para o duelo a respeito das coisas naturais10. Foi naquela data que a pesquisa da natureza começou a se emancipar da teologia, embora a discussão sobre demandas recíprocas particulares se arraste até hoje e em algumas cabeças não esteja nem perto de chegar a uma conclusão. Porém, a partir daquele momento, o desenvolvimento das ciências avançou a passos largos e ganhou força, pode-se dizer que na proporção do quadrado da distância (temporal) de seu ponto de partida. É como se a intenção fosse demonstrar que, dali por diante, valeria para o sumo produto da matéria orgânica, ou seja, para o espírito humano, a lei inversa à do movimento vigente para a matéria inorgânica.

A tarefa principal nesse primeiro período recém-iniciado da ciência natural era dar conta do material mais imediato. Na maioria das disciplinas, foi preciso partir do material bruto. A Antiguidade deixara como legado Euclides e o sistema solar ptolemaico; os árabes, a notação decimal, os rudimentos da álgebra, os números modernos e a alquimia; a Idade Média cristã, absolutamente nada. Nessas condições, a ciência mais elementar da natureza, a mecânica dos corpos terrestres e celestes, assumiu necessariamente a liderança e, ao lado dela e a seu serviço, a descoberta e o aperfeiçoamento dos métodos matemáticos. Nesse campo, realizaram-se coisas grandiosas. Ao final do período marcado por [Isaac] Newton11 e [Carlos] Lineu12, encontramos os ramos da ciência de certa maneira finalizados. Os métodos matemáticos mais essenciais foram fixados em seus traços básicos; a geometria analítica primorosamente por [René] Descartes13, os logaritmos por Neper14, o cálculo diferencial e integral por [Gottfried Wilhelm von] Leibniz e talvez Newton15. O mesmo vale para a mecânica dos corpos fixos, cujas leis principais foram esclarecidas de uma vez por todas16. Por fim, na astronomia do sistema solar, Kepler descobriu as leis do movimento planetário17 e Newton as formulou sob as leis universais do movimento da matéria. Os demais ramos da ciência natural estavam muito distantes até mesmo de uma finalização provisória como essa. A mecânica dos corpos líquidos e gaseiformes foi elaborada somente mais para o fim desse período. [Torricelli por ocasião da contenção dos rios alpinos18] A física propriamente dita ainda não passara da fase rudimentar, com exceção da óptica, cujos progressos excepcionais foram provocados pela necessidade prática da astronomia. A química acabara de se emancipar da alquimia por meio da teoria flogística19. A geologia ainda não ultrapassara o estágio embrionário da mineralogia; portanto, a paleontologia ainda não podia existir. Por fim, a área da biologia ainda se ocupava essencialmente da coleta e do primeiro exame da quantidade colossal de material tanto do campo da botânica e da zoologia como do campo da anatomia e do campo propriamente fisiológico. [Ainda não se falava de anatomia comparativa, distribuição climat[ológica], geografia animal e vegetal.] Praticamente não se podia falar ainda de comparação das formas de vida, de investigação de sua disseminação geográfica, de suas condições de vida climatológicas etc. Nessa altura, apenas a botânica e a zoologia chegaram a uma finalização aproximada com Lineu.”

3 Sobre isso, ver Friedrich Engels, Der deutsche Bauernkrieg (MEGA 2 I/10) [ed. bras.: As guerras camponesas na Alemanha, trad. equipe da editora, São Paulo, Grijalbo, 1977].

4 Ainda antes da queda de Bizâncio (ocorrida em 1453), alguns humanistas italianos, como Guarino Veronese, Giovanni Aurispa e Francesco Filelfo, trazem da Grécia numerosos manuscritos, preservando-os assim da destruição. Em meados do século XV, boa parte da literatura grega nas áreas da filosofia, da história e da poesia é traduzida para o latim, principalmente em Florença (Marsílio Ficino e Pico della Mirandola), Roma (Enea Silvio, Poggio Bracciolini, Filelfo e Lorenzo Valla) e Pádua (Pietro Pomponazzi). Humanistas alemães e holandeses também participaram da missão de traduzir os autores gregos e latinos clássicos: Erasmo de Roterdã, Rodolfo Agrícola, Johann Reuchlin e Willibald Pirckheimer. A emigração e a fuga de eruditos gregos para o Ocidente quando Bizâncio foi tomada pelos turcos em 1453 fizeram com que voltassem a ser conhecidos sobretudo os escritos de Platão, Aristóteles e Epicuro.

5 Mitologia grega: referência a um dos doze trabalhos impostos a Hércules, limpar o estábulo do rei Áugias de Eleia.

6 Lutero deu uma contribuição decisiva para a criação da prosa alemã moderna com a sua tradução da Bíblia para o alemão. A primeira tradução completa da Bíblia em língua alemã foi publicada em 1534 e, até 1546, ano da morte de Lutero, teve dez reedições.

7 Referência ao canto coral “Ein feste Burg ist unser Gott” [Nosso Deus é castelo forte], que Heinrich Heine chamou de “hino de Marselha da Reforma” (“Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland, em Der Salon, v. 2 (Hamburgo, Hoffmann und Campe, 1835), p. 80). Mais tarde, Engels chama o coral luterano de “Marselhesa da guerra dos camponeses” (carta a Hermann Schlüter, de 15 de maio de 1885).

8 O médico e teólogo espanhol Miguel Serveto foi queimado com requintes de crueldade por ordem do reformador João Calvino em 1553, em Genebra. Giordano Bruno foi queimado pela Inquisição católica em 1600, depois de passar oito anos na prisão.

9 Em dezembro de 1520, na cidade universitária de Wittenberg, Martinho Lutero queimou publicamente a bula papal em que era ameaçado de excomunhão caso não retirasse as críticas que fizera à Igreja. O conflito teve início com a publicação de 95 teses acadêmicas em 31 de outubro de 1517, em Wittenberg, para discussão nas universidades.

10 No dia de seu falecimento, 24 de maio de 1543, Nicolau Copérnico recebeu o primeiro exemplar impresso do seu agora famoso livro De revolutionibus orbium coelestium [Da revolução das órbitas celestes], no qual fundamentou o sistema heliocêntrico. No prefácio dirigido ao papa Paulo III, ele diz que manteve a obra escondida por quase quarenta anos e só concordou em publicá-la por insistência de seus amigos Nikolaus von Schönberg e Tiedemann Giese.

11 Em sua obra Philosophiae naturalis principia mathematica (nova ed., Glasgow, John Wright, 1822, 4 v. [ed. bras.: Princípios matemáticos de filosofia natural, trad. André Koch Assis e Fábio Duarte Joly, São Paulo, Edusp, 2012]), Isaac Newton, partindo da teoria de Copérnico, fundamenta a mecânica como teoria dinâmica unitária para a Terra e o cosmo, como síntese das leis do movimento dos planetas de Kepler e dos conhecimentos de Galilei sobre o movimento das massas terrestres.

12 Com sua obra Systema naturae, sive Regna tria naturae systematice proposita per classes, ordines, genera et species (Leiden, J. Haak, 1735), Carlos Lineu criou o primeiro sistema botânico completo, em que fez uma reordenação dos reinos mineral e animal, resultado de 220 anos de esforços em torno da formulação de princípios válidos de classificação das múltiplas formas da vida vegetal e animal. Ele introduziu a nomenclatura binária e agrupou todos os organismos em categorias hierarquizadas (espécies, gêneros, ordens, classes, reinos).

13 René Descartes tem importância fundamental para a ciência do século XVII. Deu sua contribuição não só como filósofo mas também como matemático e físico. Na matemática, fundamentou a geometria analítica.

14 Trata-se do escocês John Napier, que publicou em 1614, em Edimburgo, uma tabela de logaritmos que rapidamente se disseminou.

15 Hoje está praticamente assegurado que Gottfried Wilhelm von Leibniz e Isaac Newton inventaram o cálculo diferencial e integral, baseados nos trabalhos de muitos antecessores, entre os quais Galileu Galilei, Christiaan Huygens, Pierre de Fermat, Bonaventura Cavalieri e Isaac Barrow. Leibniz foi o primeiro a publicar, embora anos antes Newton já dispusesse dos cálculos.

16 Essas leis principais são os três axiomas de Newton que fundamentam toda a mecânica clássica.

17 Referência às três leis de Kepler, publicadas em Astronomia nova (Praga, 1609) e Harmonices mundi (Linz, 1619).

18 Ver sobre isso carta de Engels a Walther Borgius, de 25 de janeiro de 1894: “Se a técnica, como o sr. diz, depende em grande parte do estado da ciência, então esta depende muito mais do estado e das necessidades de técnica. Se a sociedade tem uma necessidade técnica, isso faz a ciência avançar muito mais do que dez universidades. Toda a hidrostática (Torricelli etc.) foi suscitada pela necessidade de regular as torrentes nas montanhas da Itália nos séculos XVI e XVII. Só passamos a saber algo racional a respeito da eletricidade desde que se descobriu sua aplicabilidade técnica. Na Alemanha, infelizmente o pessoal se habituou a escrever a história das ciências como se elas tivessem caído do céu”.

19 A teoria do flogisto foi fundamentada em torno de 1700 por Georg Ernst Stahl e dizia que todos os materiais inflamáveis contêm uma substância imponderável que abandona o material durante a queima. Essa teoria serviu de base para o desenvolvimento da química no século XVIII e só foi superada no final do mesmo século por Antoine-Laurent de Lavoisier, quando este descobriu que a queima é produzida pela ligação de oxigênio com outros materiais.

 

 

“E assim retornamos ao modo de ver as coisas dos grandes fundadores da filosofia grega, a saber, que a existência da natureza em sua totalidade, do menor ao maior, dos grãos de areia até os sóis, dos protistas até o ser humano, dá-se no perene surgir e desaparecer, no fluxo incessante, no movimento e na mutação incansáveis. Mas há uma diferença essencial: o que no caso dos gregos era intuição genial, no nosso caso é resultado de pesquisa rigorosamente científica em conformidade com a experiência e, por conseguinte, apresenta-se de forma muito mais determinada e clara.”

 

 

“Com o ser humano ingressamos na história. Os animais também têm história, a de sua ascendência e desenvolvimento gradativo até o seu estado atual, mas essa história é feita para eles e, não obstante eles próprios dela participarem, ela transcorre sem que saibam e queiram. Os humanos, em contraposição, quanto mais se distanciam do animal em sentido estrito, tanto mais eles próprios fazem sua história, com consciência, tanto menor se torna a influência de efeitos imprevistos e forças não controladas sobre essa história, tanto mais precisamente o desfecho histórico corresponde ao fim anteriormente estabelecido. Mas, se aplicarmos esse critério à história humana, inclusive à dos povos mais desenvolvidos do presente, descobriremos que ainda existe uma desproporção colossal entre as metas propostas e os resultados alcançados, que predominam os efeitos imprevistos, que as forças sem controle são muito mais poderosas do que as que foram postas em movimento de acordo com um plano. E isso não poderá ser diferente enquanto exatamente a atividade histórica mais essencial dos humanos, aquela que os alçou da animalidade à humanidade, aquela que constitui a base material de suas outras atividades, a saber, a produção que visa suprir suas necessidades vitais, ou seja, hoje em dia a produção social, estiver sujeita às vicissitudes de interferências não intencionais de forças sem controle e cumprir sua finalidade apenas excepcionalmente, realizando com muito mais frequência exatamente o seu oposto. Nos países industrializados mais avançados, dominamos as forças da natureza e as coagimos a servir aos humanos; assim, multiplicamos ao infinito a produção, de modo que agora uma criança produz mais do que antes produziam cem adultos. E qual é a consequência disso? Aumento de sobretrabalho e aumento da miséria das massas, e a cada dez anos uma grande quebradeira. Darwin não se deu conta da sátira amarga que escreveu sobre os humanos, e especialmente sobre os seus conterrâneos, ao demonstrar que a livre concorrência, a luta pela existência que os economistas celebram como conquista histórica suprema, constitui o estado normal do reino animal. Somente uma organização consciente da produção social, na qual se produz e se distribui de acordo com um plano, poderá alçar os humanos também em termos sociais acima do resto do mundo animal, como a produção em geral fez com os humanos em termos específicos. O desenvolvimento histórico torna tal organização diariamente mais incontornável, mas também diariamente mais possível. A partir dela se datará uma era histórica em que os próprios humanos e com eles todos os ramos de sua atividade, principalmente também a ciência da natureza, receberão um impulso que porá em densas sombras tudo o que se conseguiu até agora46.”

46 As ideias sobre a história humana são desenvolvidas por Engels em outros escritos: Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft (MEGA 2 I/27), p. 223-36 [ed. bras.: Anti-Dühring, cit., p. 289-303]; “Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie”, Die Neue Zeit, Stuttgart, v. 4, 1886, p. 198-209.

 

 

“O pensamento teórico de cada época e, portanto, também o da nossa é um produto histórico que, em diferentes épocas, assume formas muito diferentes e, desse modo, conteúdos muitos diferentes. A ciência do pensar é, portanto, como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do desenvolvimento histórico do pensamento humano. E isso é importante também para a aplicação prática do pensamento em campos empíricos. Pois, em primeiro lugar, a teoria das leis do pensamento de modo nenhum é uma “verdade eterna” estabelecida de uma vez por todas, como imagina o entendimento filistino quando ouve a palavra “lógica”. Desde Aristóteles até hoje, a própria lógica formal é um campo de acirrados debates e, até hoje, mesmo a dialética só foi investigada mais aprofundadamente por dois pensadores, Aristóteles e Hegel. Mas a dialética, precisamente, é a mais importante forma de pensamento para a atual ciência natural, porque ela é a única que oferece a analogia e, desse modo, o método explicativo para os processos de desenvolvimento que ocorrem na natureza, para os nexos maiores, para as transições de um campo de investigação para outro.”

 

 

Entre os gregos – justamente por ainda não terem partido para a sua decomposição, para a sua análise –, a natureza ainda é vista em sua totalidade, em seus grandes traços. A interconexão global dos fenômenos naturais não é demonstrada em seus detalhes, mas é, para os gregos, resultado da contemplação direta. Nisso reside a insuficiência da filosofia grega, razão pela qual teve mais tarde de ceder espaço para outras maneiras de ver as coisas. Nisso, porém, reside também a sua superioridade em comparação com todos os seus posteriores adversários metafísicos. No confronto com os gregos, a metafísica teve razão no detalhe, enquanto os gregos tiveram razão nos grandes traços em confronto com a metafísica. Essa é uma das razões pelas quais somos forçados a retornar reiteradamente, tanto na filosofia quanto em tantos outros campos, às realizações daquele pequeno povo, cujo talento e atividade universais lhe asseguraram um lugar na história do desenvolvimento da humanidade que nenhum outro povo jamais poderá reivindicar. A outra razão, porém, é que, nas múltiplas formas da filosofia grega, já se encontram, em estado embrionário, em surgimento, quase todas as concepções posteriores. Por conseguinte, a ciência natural teórica é igualmente forçada a retornar aos gregos, caso queira acompanhar a história do surgimento e do desenvolvimento de seus atuais enunciados universais10. E esse reconhecimento conquista cada vez mais espaço. Cada vez mais raros são os pesquisadores da natureza que, ao lidar eles próprios com rejeitos da filosofia grega, por exemplo, a atomística, como se fossem verdades eternas, desdenham com soberba baconista os gregos porque estes não tinham uma ciência natural empírica. Seria de desejar que esse reconhecimento avançasse para uma real tomada de conhecimento da filosofia grega.”

10 Ver Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política (trad. Nélio Schneider, São Paulo/Rio de Janeiro, Boitempo/ Editora da UFRJ, 2011), p. 63-5. Ver Friedrich Engels, Anti-Dühring, cit., p. 48-51.

 

 

“Sobretudo é preciso constatar que aqui não se trata de modo nenhum de uma defesa do ponto de partida hegeliano, a saber, que o espírito, o pensamento, a ideia são o original e o mundo real é apenas um decalque da ideia. Feuerbach já havia desistido disso. Entrementes, todos concordamos que, no campo científico como um todo, seja na natureza, seja na história, se deve partir dos fatos dados, ou seja, na ciência natural, das diferentes formas concretas e das formas de movimento da matéria; e que, portanto, também na ciência natural teórica, os nexos não devem ser formulados e introduzidos nos fatos, mas devem ser descobertos a partir deles e, quando descobertos, devem ser demonstrados pela experiência, na medida do possível.”

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