sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Como enfrentar o ódio: a internet e a luta pela democracia (Parte I), de Felipe Neto

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★☆

Link para compra: Clique aqui

Análise em vídeo: Clique aqui

ISBN: 978-85-359-3891-3

Páginas: 376

Sinopse: Ainda em 2009, Felipe Neto se tornou um fenômeno da internet no país. Seu conteúdo, agressivo mas bem-humorado, se direcionava inicialmente às tendências da época, mas logo se voltou também à política, em especial ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT). No entanto, com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, a crescente aproximação da extrema direita ao poder e o recrudescimento de discursos de ódio contra minorias, Felipe passou a questionar suas convicções.

Em Como enfrentar o ódio, ele retrata seu processo de tomada de consciência política ― tão semelhante ao de milhões de brasileiros ― e o papel do ódio em sua vida, primeiro como força propulsora de sua carreira e depois como ferramenta de que ele próprio se tornou vítima, em especial durante o governo de Jair Bolsonaro. Entrelaçando sua história aos principais acontecimentos dos últimos quinze anos e oferecendo uma perspectiva única sobre a internet e seu papel na manipulação dos usuários, Felipe nos convida a usar a boa comunicação para combater o obscurantismo, o retrocesso e o ódio que assola a sociedade.



“(...) É assim que o assassinato de reputações muitas vezes funciona: bombardeiam o alvo sem parar, até que as pessoas se cansem e presumam que ele não merece ser levado a sério.”

 

 

“Quase toda pessoa que acredita na meritocracia tem isso em comum. Quando consegue sucesso, o mérito se deve inteiramente a seu esforço. Contudo, quando fracassa, o meritocrata é o primeiro a não assumir a culpa. Foram os impostos, foi a burocracia, foi esse Estado inchado, foram os outros. Mas quando outra pessoa fracassa, nesse caso a culpa é só dela.”

 

 

“Em retrospecto, parece inegável que em geral a grande mídia carregou nas tintas, deu pouca importância ao contraditório, a contextos específicos e à história. Forjou uma narrativa maniqueísta que, ao demonizar o PT, se mostraria bastante perniciosa para a política brasileira. (...)

Não quero atacar ou questionar o papel da imprensa, que trabalha jogando luz no que se desconhece ou é escuso, sobretudo quando o assunto é de interesse de toda a sociedade. Depois do que vivemos nos últimos anos, ficou mais do que provado que a existência de uma imprensa livre é essencial para a democracia, e devemos continuar lutando por ela. Por outro lado, ela não está isenta de críticas. Hoje, é possível ver que a mídia não atuou com imparcialidade ao noticiar os acontecimentos. O mesmo ocorreu à época da corrupção das empreiteiras (empresas de construção, como a Odebrecht), que todo mundo sabia que funcionavam como uma máfia. A ruidosa cobertura dada às negociatas ligava-as ao governo petista. Essa máfia, porém, não era uma novidade: ela havia surgido décadas antes, durante a ditadura militar.8

Nenhum presidente enfrentou o poder das empreiteiras, mas o que saltava aos olhos era que a bola da vez era o PT, então a culpa só podia ser do partido. A comunicação institucional da esquerda brasileira perdia território, a passos largos, para um ódio descomunal alimentado por uma elite controladora, manipuladora e sedenta de poder.”

8. Mariana Schreiber, “Pagamento de propinas por empreiteiras se consolidou durante ditadura, diz historiador”. bbc News Brasil, 16 dez. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38337544>. Acesso em: 5 jun. 2024.

 

 

A mudança foi acontecendo gradativamente. É muito difícil dinamitar as colunas que sustentam tudo aquilo em que acreditamos, isso requer tempo, estudo e vontade. Contudo, mesmo com muita leitura, o ódio pelo PT permanecia intacto dentro de mim.

Quanto mais estudava, mais eu começava a me identificar com ideais defendidos pela esquerda, mas que agora eu associava ao “progressismo”. Eu era um progressista. Defendia os direitos humanos, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, as cotas, os auxílios governamentais, a luta diária pela diminuição da desigualdade, a exclusão da religião em decisões político-sociais. Sob o escudo do progressismo, eu não precisava me reconhecer de esquerda. Afinal, cresci sabendo que a esquerda era um desvio de caráter, uma doença social, um câncer no mundo. Tudo bem, eu era progressista, não de esquerda.

Em oposição aos progressistas estão os conservadores, que defendem a tradição. É comum conservadores brasileiros advogarem, por exemplo, pela não intervenção do Estado na economia, mas defenderem que o Estado deve sim impor preceitos e valores cristãos se a maioria da população segue o cristianismo. Os conservadores no Brasil pregam mais preceitos morais, muito embora a moralidade não tenha qualquer definição específica, o que acaba resultando em uma confusão absoluta, em que um homem é capaz de gritar na rua contra um homossexual por considerá-lo imoral, mas trair a esposa com prostitutas no fim de semana.

Os conservadores tendem a defender a manutenção daquilo que consideram tradicional, como os valores associados à família — defendem os costumes e as convenções sociais. No Brasil, costumam ser “liberais na economia e conservadores nos costumes”, aplicando os princípios teóricos do liberalismo parcialmente — apenas no que diz respeito à política econômica. Buscam o encolhimento do Estado, salvo quando ele serve para salvar da falência algum bilionário, e nesses momentos são os primeiros a gritar que o Estado deve intervir.”

 

 

Quem é esse maluco?

Foi em março de 2011 que tomei conhecimento da existência de Jair Bolsonaro, então deputado federal do Rio de Janeiro. Eu morava no bairro das Laranjeiras e assistia ao CQC na minha televisão de 55 polegadas, um dos primeiros luxos que eu me dera de presente. O programa misturava jornalismo com comédia — se, por um lado, noticiavam grandes escândalos e denúncias, por outro, se divertiam, e nos divertiam, aproximando câmeras e microfones do rosto dos políticos para pegá-los desprevenidos.

Naquela noite, o CQC anunciou que o deputado Bolsonaro, então filiado ao Partido Progressista (que de progressista não tinha nada), participaria do quadro “O Povo Quer Saber”, com perguntas do público. Eu não o conhecia e me sentia desatualizado da política, mas resolvi assistir. Bolsonaro foi apresentado como um político polêmico, famoso por não ter papas na língua, lutar pelo militarismo e ser contra os direitos de pessoas homossexuais. Pelo visto, era só mais um conservador querendo atenção, do qual a televisão se aproveitava para gerar audiência.

Fui até a cozinha, que era integrada à sala e de onde era possível seguir o programa. Enquanto mexia na geladeira, ouvi uma senhora perguntar: “Está com saudades do Lula?”. Dei um sorrisinho. O que aquele político de direita teria a dizer sobre Lula, o terrível e malfadado Lula?

“Não, de jeito nenhum, né? Tenho saudade de pessoas sérias, como Médici”, foi a resposta.

O sorriso sumiu do meu rosto e corri de volta para a sala. Não era possível que uma emissora de TV aberta estivesse veiculando aquilo. E a dinâmica continuou:

“Do que você tem mais saudade da ditadura?”

“Do respeito, da família, da segurança, da ordem pública e das autoridades que exerciam a autoridade sem enriquecer.”

A garrafa de água de plástico caiu da minha mão.

A entrevista prosseguiu, e eu assisti, boquiaberto, ao show de horrores que impactaria milhões de brasileiros nos dias seguintes. Teve pergunta sobre bomba atômica (“Só é respeitado quem tem o poder de intimidar”), a postura dele caso encontrasse o filho fumando maconha (“Daria umas porradas nele”), a possibilidade de ter um filho gay (“Isso nem passa pela minha cabeça, porque tiveram uma boa educação”) ou de participar de um desfile gay (“Acredito em Deus, tenho a família e a família tem que ser preservada a qualquer custo”), cotas (“Não entraria num avião pilotado por um cotista e nem aceitaria ser operado por um médico cotista”). O pior estava guardado para o final, quando a cantora Preta Gil perguntou a Bolsonaro qual seria a reação dele se o filho se apaixonasse por uma mulher negra:

“Ô Preta, eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco, meus filhos foram muito bem-educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu”, bradou Bolsonaro.

Sim, ele havia entendido errado a pergunta. Em vez de “pessoa negra”, ele havia entendido “pessoa gay” e a associou a “promiscuidade” e “falta de educação”.

A confusão ajudou a entrevista a viralizar e aumentou a popularidade de Bolsonaro, que ganhou mais uma cobertura no programa seguinte. Apesar das piadinhas — “ele é doido” e “o Bolsonaro é tão louco que o gabinete dele é todo acolchoado” —, o CQC não se deu ao trabalho de fazer qualquer crítica ou correção àquele discurso.

Quem transmite uma ideia perigosa deve providenciar a imediata reparação do dano que ela pode causar. Em uma apresentação televisiva de um grupo circense com um engolidor de espadas ou um cuspidor de fogo, é preciso zelar por uma comunicação explícita que indique que os telespectadores não devem repetir aquilo em casa e que se trata de ações de extremo perigo executadas por profissionais treinados. Eu não posso gravar vídeos no meu canal fazendo brincadeiras com facas, sob o risco de a plataforma removê-los por incentivar a prática de ações perigosas.

Mas esses mesmos princípios não vigoram quando a comunicação envolve racismo, xenofobia, homofobia, misoginia e outros comportamentos nocivos à sociedade. Sob a alegação de uma suposta “liberdade de expressão”, permitimos que atrocidades sejam ditas com a máscara da “opinião” e não cobramos dos veículos transmissores a obrigatoriedade dos avisos, alertas e correções necessários. Não que a entrevista com Bolsonaro devesse ter si­do censurada, não é por aí, mas acredito que o bom jornalismo deve fazer intervenções que questionem o entrevistado, que o confrontem com os impropérios que ele diz.

Bolsonaro se deliciou com a repercussão dos dois programas do CQC. Apesar de se eleger deputado desde 1990, ele nunca havia tido tamanha projeção. Integrava o que os jornalistas chamam de “baixo clero”, ou seja, políticos inexpressivos. Sua atuação como parlamentar era pífia, com apenas dois projetos aprovados ao longo da carreira, um sobre isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados e outro que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, o charlatanismo conhecido como a “pílula do câncer”. Entre os não aprovados, há maldades como proibir o uso do nome social para travestis e transexuais nos boletins de ocorrência e instituições de ensino e homenagens duvidosas, como nomear uma faixa do território marítimo de “Mar Presidente Médici — Amazônia Azul”.

Nos corredores de Brasília, era conhecido por empregar funcionários-fantasma, bem como seus filhos, para a prática do crime que se popularizou como “rachadinha”. O político Ciro Gomes comentou essa peculiaridade de Jair Bolsonaro em 2022: “Quem conhecia o Bolsonaro como eu, que fui contemporâneo dele como deputado federal, sabia: Bolsonaro roubava o dinheiro da gasolina, roubava o dinheiro de funcionário-fantasma, o nome da funcionária era Natália, e eu tenho aqui os documentos, por isso é que ele não me processa”.17

Portanto, quando o CQC deu a Bolsonaro a oportunidade de aparecer como um personagem popular, ele a agarrou com unhas e dentes, empenhado em se pintar de verdadeiro defensor da moralidade brasileira, enquanto emitia opiniões que poucas pessoas tinham a coragem, ou a burrice, de levar a público.

Entre 2011 e 2018, Jair Bolsonaro participou dezenas de vezes de grandes programas superpopulares e de grande audiência como principal convidado, como CQC, SuperPop, Pânico na Band e Casos de Família.

Em 6 de abril de 2011, manifestantes foram até a Câmara dos Deputados protestar contra as falas do político no CQC. Um dos cartazes o retratou com o bigode de Hitler. Outro estampou uma foto do líder nazista — com a suástica —, com a cabeça trocada pela de Bolsonaro, que comentou: “Muito bonito o cartaz”. Quando lhe perguntaram o que sentia ao ser retratado com o bigode de Hitler, ele respondeu: “Ficaria bravo se tivesse brinquinho, batom na boca e eles usassem isso em uma passeata gay”.18

Mais uma vez, sua resposta viralizou. Pessoas inconformadas repercutiam aquela fala à exaustão, exigindo que algo fosse feito contra alguém capaz daquela declaração homofóbica. Outras apenas riam e frisavam o quanto aquele homem era maluco.

No mesmo dia, grupos neonazistas saíram em defesa de Jair Bolsonaro, contra “a opressão da esquerda que queria silenciá-lo”. Uma manifestação de apoio ao deputado foi marcada no vão do Museu de Arte de São Paulo, o Masp. O ato foi promovido nas redes sociais, administrado pelo movimento neonazista “White Pride World Wide” (Orgulho Branco Pelo Mundo). No post principal, o organizador dizia: “Vamos dar o nosso apoio ao único deputado que bate de frente com esses libertinos e comunistas!!! Será um manifesto cívico, portanto, levem a família, esposas e amigos”.19

O ato ocorreu três dias depois, com confronto entre os manifestantes e estudantes e ativistas defensores dos direitos da pauta LGBTQIAPN+. A polícia precisou intervir. Entre os neonazistas, a maioria carecas e encapuzados, havia um homem que já tinha sido preso por arremessar uma bomba em direção a uma Parada Gay.20

Era uma época em que o apoio a Jair Bolsonaro ainda era considerado um disparate, apenas neonazistas e skinheads tinham coragem de endossá-lo publicamente. Contudo, as ideias que ele defendia viralizavam na sociedade brasileira e logo aquele apoio deixaria de ficar restrito a extremistas simpatizantes do nazismo.

Sem se dar conta, Bolsonaro tinha dado o passo definitivo rumo à glória. Aquele era o homem que em 2010 havia dito, em programa da TV Câmara: “Se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, [ele] leva um couro, muda o comportamento dele”.21 No ano seguinte, em entrevista à revista Playboy, falou: “Prefiro que [um filho meu] morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”.22 Ainda na mesma entrevista, disse: “O cara vem pedir dinheiro para mim para ajudar os aidéticos. A maioria é por compartilhamento de seringa ou homossexualismo. Não vou ajudar porr* nenhuma! Vou ajudar o garoto que é decente”.23

Após anos proferindo atrocidade atrás de atrocidade, Jair Bolsonaro, transformado em um personagem folclórico, caricatural, começava a ser visto como uma opção viável pelo povo brasileiro. Ele nunca teve inteligência para prever isso, apenas se deixou levar. E o que era para ter sido interpretado como monstruoso muita gente viu como cômico, histriônico, mero exagero cênico.

Qual foi a reação dos apresentadores da bancada do CQC depois da primeira entrevista com Bolsonaro? Não foi chamar o deputado de criminoso, protótipo de ditador fascista, nem jogar uma pá de cal nas sementes da extrema direita que ele havia plantado.

Não.

Foi chamá-lo de “doido”.

“Bolsonaro é doido.”

“Nossa, ele é mesmo muito louco.”

“Tu viu a última do Bolsonaro?”

“Confesso que eu dei muita risada dele dessa vez.”

“Hahahaha, que figura.”

Tudo começa assim.”

17. José Casado, “Ciro Gomes: ‘Bolsonaro roubava dinheiro da gasolina, tenho documentos’”. Veja, 9 mar. 2022. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/ciro-gomes-bolsonaro-roubava-dinheiro-da-gasolina-tenho-documentos>. Acesso em: 5 jun. 2024.

18. Robson Bonin, “‘Ficaria bravo se tivesse brinquinho’, diz Bolsonaro sobre cartaz nazista”. G1, 6 abr. 2011. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2011/04/ficaria-bravo-se-tivesse-brinquinho-diz-bolsonaro-sobre-cartaz-nazista.html>. Acesso em: 5 jun. 2024.

19. “Neonazistas ajudam a convocar ‘ato cívico’ pró-Bolsonaro em São Paulo”. uol, 6 abr. 2011. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/04/06/neonazistas-ajudam-a-convocar-ato-civico-pro-bolsonaro-em-sao-paulo.htm>. Acesso em: 5 jun. 2024.

20. “Protestos Bolsonaro - 09/04/2011”. Jornal da Gazeta, YouTube, 11 abr. 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-TuAq1MzEhc>. Acesso em: 5 jun. 2024.

21. “Palmada muda filho ‘gayzinho’, declara deputado federal”. Folha de S.Paulo, 26 nov. 2010. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2611201025.htm>. Acesso em: 5 jun. 2024.

22. “Bolsonaro: ‘prefiro filho morto em acidente a um homossexual’”. Terra, 8 jun. 2011. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexual,cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 5 jun. 2024.

23. “Bolsonaro em 25 frases polêmicas”. CartaCapital, 29 out. 2018. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas>. Acesso em: 5 jun. 2024.

 

 

Surge um líder para a extrema direita

Em abril de 2016, no meio do segundo mandato de Dilma Rousseff, os deputados federais foram convocados para votar o impeachment da presidenta. Cada um era chamado para declarar seu voto ao microfone, ao som de aplausos ou vaias, em um cenário lamentável. Quando chegou a vez de Bolsonaro, ninguém tinha a menor dúvida. Seria um sonoro “sim”. Mas o que surpreendeu foi seu discurso: “Perderam em 64”, ele disse, referindo-se ao golpe militar brasileiro. “Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve. Contra o comunismo. Pela nossa liberdade. Contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff!”.

Durante o período da ditadura militar, foi criado o DOI-Codi, um órgão de repressão política que podia dar cabo de quaisquer “esquerdistas”, fazendo-os desaparecer da noite para o dia, matando-os ou levando-os a porões escuros, de onde saíam — quando saíam — ou num caixão, ou traumatizados para o resto da vida. Os anos entre 1970 e 1974, sob o comando do sanguinário Emílio Garrastazu Médici, foram os mais brutais. Justamente o período em que um novo coronel assumiu o posto de chefe do DOI-Codi do II Exército (São Paulo): Carlos Alberto Brilhante Ustra, o mais cruel e sádico torturador e assassino da ditadura militar.

Amelinha Teles, sobrevivente dos porões do DOI-Codi, sequestrada de 28 de dezembro de 1972 a 14 de fevereiro de 1973, disse: “Eu vi o Ustra torturando a minha irmã grávida de oito meses. Eu vi o Ustra torturando meu marido até entrar em coma […]. As torturas eram do espancamento, do arrancar sua roupa, palmatórias. As palmatórias vão batendo na sua pele, é uma madeira com buraquinhos que vão suspendendo sua pele e vai arrebentando, é como se estivesse passando uma lixa grossa na pele. Choques elétricos, pau de arara, afogamento. […] Meus filhos foram levados pra dentro de uma sala de tortura e eu nua, urinada, vomitada, pelas mãos do Ustra. Eu olhava pros meus filhos e via que eles queriam me abraçar, mas não tinham condições. Primeiro porque eu estava presa na cadeira do dragão, uma cadeira que eles te amarram todo e começam a dar choque no seu corpo, vagina, ânus, seios, boca, ouvidos […]. Eu lembro da minha filha perguntando ‘por que o pai ficou verde?’ — porque ele entrou em coma e ficou verde — e ‘por que você ficou azul?’. Eu olho pro meu corpo e vejo que eu estou toda cheia de hematomas, azulados e roxeados. Minha filha tinha cinco anos e meu filho tinha quatro anos”.24

Em julho de 1971, o coronel Ustra torturou o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, de 22 anos, deixando-o agonizando em uma cela solitária até a morte. Então fraudou a causa do óbito, dizendo que o rapaz havia cometido suicídio, jogando-se debaixo de um caminhão numa estrada.25

Segue o relato de Cristina Moraes de Almeida: “Eu comecei a me encolher. Ele puxou a perna, rasgando minha calça. Ele pega uma furadeira, e me furou daqui até aqui, com uma furadeira. Elétrica. Furadeira. Eu não vi mais nada. […] Nove meses sem caminhar. […] Furaram o osso. Furaram derme, epiderme, o osso”.26

Gilberto Natalini, poeta e médico: “Tiraram a minha roupa e me obrigaram a subir em duas latas. Conectaram fios ao meu corpo e me jogaram água com sal. Enquanto me dava choques, Ustra me batia com um cipó e gritava pedindo informações. […] A tortura comprometeu minha audição. Mas as marcas que ela deixou não são só físicas, mas também psicológicas”.27

Em 1974, a educadora Darcy Andozia foi presa: “Quando cheguei ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), dei de cara com meu filho, que tinha um ano e oito meses à época, e com a babá dele. Ele tinha um corte na boca e chorava muito. Mais tarde, descobri que o corte era resultado de um ta­pa que ele havia levado de um policial que se irritou com o choro. Ele passou o dia inteiro na cela sem comida”.28

Andozia foi posta numa cela ao lado daquela em que prenderam seu bebê: “Eu ouvia os policiais gritando com ele e dizendo: ‘Viu como sua mãe não te ama? Você está sozinho aqui, com fome. É culpa dela que você está assim’. Do outro lado, eu chorava com as pernas encolhidas entre os braços. Doeu em mim também, mas isso ecoou na cabeça do Cacá [seu filho] a vida toda, até ele desistir de viver”. Cacá se matou aos 39 anos.

Outros relatos de vítimas de Ustra e seus comparsas incluem a penetração de objetos de madeira no ânus das vítimas e estupro de mulheres, prática corriqueira. Também é de conhecimento público que Ustra se comprazia em inserir ratos ou insetos vivos na vagina e no ânus das vítimas. Por vezes, obrigava as vítimas a comer os insetos.29 Em 1970, Dilma Rousseff tinha 22 anos e foi presa, sendo levada aos porões do DOI-Codi. Ela passou três anos em cárcere no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais.

“Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu. […] Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz [capitão do DOI-Codi de São Paulo] completou o serviço com um soco, arrancando o dente”, relatou ela em 2001. Em sua prisão em São Paulo foi torturada por 22 dias: “Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. […] Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito. […] Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban […], uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam”.

Dilma disse que nunca mais foi a mesma pessoa: “Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. […] As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”.30

O coronel Ustra viveu até os 83 anos. Morreu em 2015 de uma pneumonia em decorrência da luta contra o câncer. Ao longo da vida, chegou a declarar que morreria sem ser julgado e condenado. O livro Brasil: Nunca mais mostra que ao menos 502 pessoas foram torturadas no local comandado por Ustra.31

Um ano antes de sua morte, Ustra foi reconhecido oficialmente pelo Superior Tribunal de Justiça como um torturador, mas ele nunca cumpriu pena.

Morreu de maneira serena, com a presença da família, após décadas de conforto, com uma bela aposentadoria. O Exército Brasileiro realizou uma solenidade militar oficial como homenagem póstuma.32

Esse homem era (e ainda é) o maior ídolo de Jair Messias Bolsonaro.”

24. “Amelinha Teles talks about Brilhante Ustra”. plus55 - Your Bridge to Brazil, YouTube, 19 abr. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=x-wBY6JFZ-U>. Acesso em: 6 jun. 2024.

25. “Luiz Eduardo da Rocha Merlino”. Memórias da Ditadura. Disponível em: <https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/luiz-eduardo-da-rocha-merlino/>. Acesso em: 6 jun. 2024.

26. Jânio de Oliveira Freime, “Confira relatos de vítimas torturadas pelo coronel Ustra, o sádico da ditadura militar”. Aventuras na História, 7 out. 2019. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/conheca-5-relatos-de-vitimas-de-tortura-do-dr-tibirica.phtml>. Acesso em: 6 jun. 2024.

27. Luís Barrucho, “‘Enquanto me dava choques, Ustra me batia com cipó e gritava’, diz torturado aos 19 anos”. BBC News Brasil, 19 abr. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160419_torturado_ustra_bolsonaro_lgb>. Acesso em: 6 jun. 2024.

28. Jacqueline Elise e Talyta Vespa, “Elas são torturadas”. Universa, UOL, 31 mar. 2019. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/vitimas-da-ditadura/>. Acesso em: 6 jun. 2024.

29. André Nogueira, “Horror e abuso de poder: Coronel Ustra, o maior torturador da ditadura militar”. Aventuras na História, 15 set. 2019. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-horror-e-abuso-de-poder-coronel-ustra-o-maior-torturador-do-pais.phtml>. Acesso em: 6 jun. 2024.

30. “Jornais mostram detalhes de tortura sofrida por Dilma em Minas”. G1, 18 jun. 2016. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2012/06/jornais-mostram-detalhes-de-tortura-sofrida-por-dilma-em-minas.html>. Acesso em: 6 jun. 2024.

31. Lucas Ferraz, “Morte de coronel Ustra confirmou sua convicção de que nunca seria punido”. Folha de S. Paulo, 15 out. 2015. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/10/1694254-morre-coronel-ustra-ex-chefe-do-doi-codi-durante-a-ditadura.shtml>. Acesso em: 6 jun. 2024.

32. Renato Oliveira, “Homenagem do Exército a coronel Ustra em Santa Maria gera indignação”. Correio do Povo, 29 out. 2015. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/homenagem-do-ex%C3%A9rcito-a-coronel-ustra-em-santa-maria-gera-indigna%C3%A7%C3%A3o-1.186322>. Acesso em: 6 jun. 2024.

 

 

“Nunca, em toda a minha vida, qualquer um que tivesse me conhecido acreditaria que eu declararia voto em um candidato do PT. Meu ódio contra aquela figura havia começado como um pequeno tijolo e se transformara em uma fortificação indestrutível, rodeada de um fosso cheio de crocodilos e guardas armados até os dentes com granadas e fuzis. Mas, dados os acontecimentos recentes, eu tinha mais dúvidas do que certezas a respeito do partido, de Lula e de Dilma.

Nunca, nem uma única vez, eu me vi ameaçado pelo governo petista, mesmo com as centenas de ataques e xingamentos que proferi contra Lula e Dilma. Nunca senti que minha vida estivesse em risco, ou minha liberdade. E olha que eu havia publicado posts suficientes para responder a diversos processos. Ainda assim, mesmo com os milhões de visualizações, os políticos e o partido nunca moveram um único dedo contra mim. Talvez eles não fossem os vilões que desde criança me disseram que eram.

Eu evitava ao máximo pensar no assunto, mas toda vez que ele surgia em alguma conversa, ou eu lia algo a respeito na internet, sentia um negócio impossível de controlar lá no fundo do cérebro: e se eu estive errado a vida inteira?

Não. Impossível. Melhor não pensar nisso.

Segui em frente. Vi Bolsonaro ser eleito e demonstrei publicamente toda a minha indignação contra aquele Brasil que estava se delineando. O que isso suscitou foi o mais puro e legítimo ódio contra um ser humano que a internet é capaz de promover. Em pouquíssimo tempo, logo após a publicação do meu tuíte em apoio a Haddad, comecei a receber muito mais mensagens de ódio e ameaças à minha integridade física e liberdade que eu jamais havia recebido em oito anos de ofensas ao PT.

Ao publicar aquele post, eu não havia mencionado o nome de Bolsonaro. Só havia dito “autoritarismo nunca mais”, o que foi o suficiente para marcar um alvo no meio da minha testa. Um alvo que permanece até hoje, já perdi a esperança de que desapareça.

Aquela foi minha primeira percepção de que o bolsonarismo não era só um grupo de pessoas perdidas, seduzidas por teorias da conspiração e sedentas por soluções fáceis vindas de um líder carismático neofascista. Não, o bolsonarismo estava articulado, montado e esquematizado por meio de grupos de aplicativos de mensagens e redes sociais. Sua capacidade de congregar o ódio de milhões de pessoas estava tão estabelecida que bastava um único post para acionar um efeito cascata.”

Nenhum comentário: