sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Como enfrentar o ódio: a internet e a luta pela democracia (Parte II), de Felipe Neto

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★☆

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ISBN: 978-85-359-3891-3

Páginas: 376

Sinopse: Ver Parte I



Enquanto não houver regulamentação sobre os algoritmos, as plataformas continuarão repetindo o mesmo padrão. Por que elas se preocupariam em não recomendar conteúdo radicalizante? Elas perderiam dinheiro. É ingênuo acreditar que as plataformas vão agir para a desradicalização de seus algoritmos de recomendação. Enquanto a estratégia for deixar as próprias empresas se autorregularem, nada irá mudar.

Por que a extrema direita domina as redes digitais, então? Parte dessa resposta é justamente porque os algoritmos das plataformas se beneficiam desse conteúdo extremista para deixar as pessoas mais tempo conectadas, intensificando a recomendação dessas publicações e a criação e aumento do interesse por esse tipo de assunto.

E por que o conteúdo de extrema direita é tão atraente? Seria natural imaginar que a humanidade tem discernimento para não cair em armadilhas que a induzam a comportamentos que ponham em risco sua existência. Se fôssemos seres pensantes com alta capacidade cognitiva e blindados para discursos imbecis, repudiaríamos de imediato um vídeo pregando que os pais não vacinem seus filhos porque as vacinas fazem parte de um conluio governamental para controle da população. Mas isso não acontece.

A atração exercida por conteúdos de extrema direita nasce de uma combinação entre a natureza humana, a estrutura capitalista e a falha organizacional e estratégica na comunicação progressista e dos grupos moderados.

Primeiro, nós temos uma marcante tendência à curiosidade. A psicóloga Denise Ramos, professora de pós-graduação em psicologia da PUC-SP, afirma: “O desejo de conhecer faz parte da nossa estrutura psicológica. Queremos saber o que está além daquilo que estamos vendo”.5 Somos inerentemente curiosos, alguns mais, outros menos.

Também queremos pertencer a um grupo. Em 1995, os psicólogos Roy F. Baumeister e Mark R. Leary desenvolveram a “hipótese do pertencimento”6 e concluíram que o ser humano possui a necessidade de manter um relacionamento estável com um grupo de indivíduos. Essa necessidade de pertencimento vai além de se ver rodeado de pessoas e diz respeito a se sentir acolhido e compreendido, o que em geral nasce de um processo de identificação entre pares. É fácil ver isso no cotidiano, e o leitor já deve ter passado por situações como estas: você sente uma empatia maior por uma pessoa que acabou de conhecer apenas por descobrir que ela torce pelo mesmo time que você, ou tem o mesmo nome, ou a mesma religião, ou é do mesmo signo do zodíaco.

Temos ainda a necessidade de dar sentido à vida. Platão definia o “homem” como “um ser em busca de significado”. É essa busca por sentido que fundamenta vários aspectos da humanidade, em especial quando falamos das religiões e da fé em algo “além da vida”. Queremos que nossa existência seja mais do que apenas um conjunto de células que entrarão em decomposição após a morte. Essa necessidade do “sentido” vai além, ultrapassa aspectos sobrenaturais e invade nosso cotidiano, causando em muitas pessoas uma ansiedade provocada pelas perguntas: “O que eu estou fazendo com a minha vida e de que forma posso colocá-la a serviço de um bem maior?”.

Finalmente, observa-se uma crescente intolerância ao tédio. Em Nação dopamina, Anna Lembke traz um choque de realidade a respeito da dependência do cérebro por dopamina, também liberada pelo vício em aparelhos móveis, que nos mantêm hipnotizados enquanto rolamos linhas do tempo intermináveis de conteúdos recomendados. “O smartphone é a agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada”, ela sustenta.7

Além de a busca por dopamina atuar como uma porta de entrada para o usuário viciado cair em conteúdos de extrema direita, a necessidade dela também reflete a incapacidade humana de lidar com tudo que é tedioso. Ficar sem nada para fazer, apenas existir olhando para o vazio, gera mais e mais ansiedade. Muitas pessoas sonham com uma vida mais venturosa, distante das trivialidades do cotidiano. Não é possível que a vida seja só isso, deve haver algo mais… Bem, esse discurso é um prato cheio para todo tipo de conspiração mirabolante, o que a extrema direita soube explorar muito bem.”

5. “Por que somos curiosos?”. Revista Fleury, São Paulo, n. 38, 27 dez. 2017. Disponível em: <https://www.fleury.com.br/noticias/por-que-somos-curiosos-revista-fleury-ed-38>. Acesso em: 6 jun. 2024.

6. Roy F. Baumeister e Mark R. Leary, “The Need to Belong: Desire for Interpersonal Attachments as a Fundamental Human Motivation”. Psychological Bulletin, Washington, v. 117, n. 3, pp. 497-529, 1995. Disponível em: <http://persweb.wabash.edu/facstaff/hortonr/articles%20for%20class/baumeister%20and%20leary.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2024.

7. Anna Lembke, Nação dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar. Belo Horizonte: Vestígio, 2022, p. 12.

 

 

A extrema direita não existe sem as teorias da conspiração, pois elas sustentam o interesse de seus participantes. Sem elas, a radicalização digital seria muito mais difícil. É uma estratégia complexa, mas que entrega sedução, pertencimento, acolhimento, vida com propósito, luta, aguçamento da curiosidade, sensação de ser mais inteligente, busca por um bem maior e o calor da fé.

É difícil a esquerda fazer frente a isso, sobretudo se ela ainda patina para encontrar a forma e o tom mais adequados para se comunicar — e se conectar — com a população. Não raro os discursos de oposição soam teóricos ou complexos demais, além de muitas vezes apresentarem soluções demoradas para problemas urgentes. A direita, por sua vez, oferece um discurso indignado com o qual parte da população logo se identifica.

Também é impossível desconsiderar o papel do sistema capitalista tardio, que subtrai do pai e da mãe de família o tempo necessário para poder focar em si e estudar, ler, se abastecer de bons conteúdos, boa informação e cultura. Quanto mais uma sociedade está desconectada do conhecimento, da informação e da literatura, mais propensa ela estará para a sedução das teorias conspiratórias.

E que tempo sobra para alguém que precisa enfrentar duas horas de trans­porte público para chegar ao trabalho, seguidas de nove horas de labuta e mais duas horas para voltar para casa? No que esse pai de família vai acreditar mais rápido: que bandido bom é bandido morto, ou que os alicerces que fundamentam a existência do crime passam pela cultura do ódio, da marginalização, do racismo e da perpetuação da violência? Como uma mãe de família trabalhando nessas condições vai acreditar que, para diminuir o crime, é preciso investir muito dinheiro público para melhorar os presídios e erradicar a cultura prisional de formação de novos criminosos?

A extrema direita é fácil de entender, simples de explicar e promete resultados imediatos, que ela nunca consegue entregar quando é alçada ao poder. Mas aí é só continuar culpando a esquerda por obstruir o governo e impedir que as medidas certas sejam tomadas. Munido de teorias da conspiração e frases de efeito, você está pronto para o jogo. E se falar bem, tiver carisma e treinar seus discursos ao melhor estilo de um pastor evangélico, você ainda pode virar um grande influenciador da extrema direita e ser eleito para algum cargo no Congresso. Quem sabe, um dia, até vire presidente.”

 

 

Desde que me posicionei, ainda no segundo turno, tinha certeza de que mais comunicadores viriam a público contra Bolsonaro, mesmo o adversário sendo o PT. Mais adiante, comecei meu enfrentamento direto contra o bolsonarismo, publicando textos e vídeos abertamente críticos. Deixei claro o repúdio dos países democratas àquele pleito que elegera um crápula sem nenhum caráter para o cargo político mais importante da nação. E tinha a certeza de que outros grandes influenciadores e artistas estavam comigo.

Salvo honrosas exceções, não estavam. Numa indesculpável demonstração de covardia, a maioria dos influenciadores digitais brasileiros optou pelo silêncio. Por egoísmo e medo, os que se calaram agiram pensando nas próprias vantagens, pois não queriam ter de lidar com a evasão de seguidores e as críticas nas redes sociais. Essas razões venais pesavam mais que a defesa dos direitos humanos e do pacto civilizatório que rege nossa coexistência. Para esses indivíduos, a manutenção de seguidores bolsonaristas teve muito mais importância que a luta contra a barbárie.

Vários usaram as mesmas desculpas para justificar o silêncio: “Eu não entendo de política, preferi não comentar” ou “Como eu não estudei os candidatos, achei melhor ficar em silêncio”. Muitos se acovardaram ficando em cima do muro, posição que não descontenta ninguém, não faz perder seguidor nem desagrada patrocinadores.

Os nomes que se calaram eram de longe os mais influentes. Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto QualiBest, em 2018 o maior influenciador do país era Whindersson Nunes, junto de Bianca Andrade, Hugo Gloss, Gabriela Pugliesi, Neymar e Camila Coelho.2 Nenhum deles se posicionou de maneira contundente sobre o bolsonarismo naquele período. Neymar ainda viria a se tornar garoto-propaganda de Jair Bolsonaro.

Na categoria música, os nomes mais influentes, segundo a pesquisa, eram Anitta, Jorge e Mateus, Luan Santana, Ivete Sangalo e Wesley Safadão. Nenhum deles se posicionou de maneira contundente sobre o bolsonarismo naquele período.

Em moda e beleza: Bianca Andrade, Camila Coelho e Mari Maria. Nenhuma delas se posicionou de maneira contundente sobre o bolsonarismo naquele período.

Em saúde e fitness: Gabriela Pugliesi, Juju Salimeni, Gracyanne Barbosa e Felipe Franco. Nenhum deles se posicionou de maneira contundente sobre o bolsonarismo naquele período. Felipe Franco depois se tornaria grande apoiador de Bolsonaro.

Em entretenimento e cultura, aparecíamos eu e Hugo Gloss, um personagem de Bruno Rocha que tampouco se posicionou de maneira contundente sobre o bolsonarismo naquele período.

Em games e jogos: BRKSEDU, Zangado e Coisa de Nerd. Apenas os influenciadores do canal Coisa de Nerd lutaram contra o bolsonarismo naquele período. Tratava-se do casal Leon e Nilce.

Da lista de quase trinta dos maiores influenciadores do Brasil em 2018, apenas quatro enfrentaram a extrema direita naquele ano: eu, Felipe Castanhari e o casal Leon e Nilce Moretto. Contudo, com Castanhari produzindo conteúdo de nicho na categoria educação e Leon e Nilce na categoria jogos, eu acabava me tornando o alvo principal.

No dia 30 de novembro de 2018, quando Jair Bolsonaro já estava eleito, Anitta confessou a um canal de TV chileno: “Tive medo de me posicionar”.3

Whindersson Nunes chegou a ser confrontado em Portugal, numa entrevista publicada no dia 21 de fevereiro de 2019, com Bolsonaro já presidente. A entrevistadora Stefani Costa perguntou ao humorista se ele ainda preferia não falar ou fazer piadas sobre política, e o contrapôs ao brilhante humorista Marcelo Adnet, cujos conteúdos não evitavam a política. A resposta de Whindersson foi: “Eu via muito o que acontecia com o Adnet. A galera ameaçou o cara de morte, tá ligado? Eu tô vindo aqui fazer show em Portugal, poxa, são muitas pessoas aqui, e eu acho que de um show de uma hora e tanto, que eu tenho tanta história legal e muito engraçada pra contar, eu acho que… Eu, se eu tivesse na plateia… É o tipo de coisa que eu não gosto de assistir, entendeu? Tipo assim, pessoas que falam sobre isso não são as pessoas que eu sigo, então eu não mexo muito com isso, não”. Ele depois ainda diz: “Imagina se uma pessoa com voz bem grande apoia uma pessoa que você não curte”.4

A fala de Whindersson evidencia seus medos: ser ameaçado e desagradar parte de seu público. Retomo Clóvis de Barros Filho: “Tem gente que espera que você seja ‘x’ e tem gente que espera que você seja o contrário de ‘x’. E você, para vender para os dois, você se adapta. Moral líquida. Ética à la carte. Valores customizados. Quem você é? Não sei. Estou esperando a chegada do próximo cliente. E assim você vende para todo mundo”.5

Essa, para mim, é a definição daquele que se esconde na hora de lutar pelos valores humanos em troca de dinheiro, seguidores e tranquilidade. Moral líquida. Ética à la carte. Valores customizados.

Não se pode combater o ódio sem os reforços de quem impacta a opinião pública. A única forma de vencer o ódio é começando por esse pacto civilizatório, que deve existir entre todos os integrantes conscientes da sociedade, unindo veículos de imprensa, a Suprema Corte na defesa da Constituição, influenciadores offline e digitais, artistas e a sociedade civil, seja ela de esquerda, centro ou direita, que preza pelos direitos humanos.

Nada disso aconteceu em 2018.”

2. Instituto Qualibest, “Influenciadores digitais”, jul. 2018. Disponível em: <https://www.institutoqualibest.com/wp-content/uploads/2018/07/InstitutoQualiBest_Estudo_InfluenciadoresV4.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2024.

3. “Anitta fala de política e desabafa sobre Bolsonaro”. OFuxico, Terra, 30 nov. 2018. Disponível em: <https://ofuxico.com.br/noticias/anitta-fala-de-politica-e-desabafa-sobre-bolsonaro/>. Acesso em: 7 jun. 2024.

4. “Whindersson Nunes: ‘A política já ‘acabou’ com a minha vida uma vez’”. Hedflow, YouTube, 21 fev. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C2XLcukCbU0>. Acesso em: 7 jun. 2024.

5. Instagram de Clóvis de Barros Filho, 2024. Disponível em: <https://www.instagram.com/reel/C4bXy6YPZGi/>. Acesso em: 7 jun. 2024.

 

 

Em outubro de 2018, antes das eleições, fui surpreendido quando, ao entrar na internet, me deparei com milhares de publicações no Twitter e comentários nas minhas redes sociais. Todos eles me cobravam a mesma coisa:

“E aí, vai apagar seu canal quando?”

“Vai apagar o canal seu otário? Hahahahahaha”

“Agora quero ver ter coragem de apagar o canal como prometeu!”

Intrigado, fui fuçar a internet. Logo encontrei uma publicação no Facebook com a legenda: “Pelo menos uma notícia boa”, seguida de um print de um vídeo do meu canal, com o título: se Bolsonaro ganhar, apago o canal.

Fiquei estarrecido. Eram milhares de compartilhamentos debochando e gritando que agora eu teria que apagar o canal. Mesmo seguidores que me admiravam me perguntavam: “Felipe, é verdade que você vai apagar o canal? Por favor não faça isso”.

O print era falso. Não havia vídeo nenhum com aquele título.

Aquele era o início do pesadelo que se tornaria a minha vida dali em diante. O tal “Gabinete do Ódio” estava oficialmente trabalhando contra mim, havia pessoas fabricando prints falsos, notícias fraudulentas e todo tipo de montagem a meu respeito, visando destruir minha reputação e fazer com que não se levasse em conta qualquer palavra minha, principalmente sobre política.

O conteúdo fraudulento se espalhava numa velocidade que eu jamais tinha visto na internet.”

 

 

“No início, como o bolsonarismo ainda não tinha adesão popular expressiva, a criação desses grupos ficou a cargo dos próprios líderes e de uma agência que trabalhou para Jair Bolsonaro por quase dois anos. Um dos responsáveis por esse trabalho explicou para O Globo como o esquema operava. O clã Bolsonaro enviava para a agência listas com números de telefones celulares, que eram divididos em grupos específicos, como jovens, mulheres, pobres, evangélicos. Então a agência concebia os grupos nos aplicativos e adicionava os números, e as pessoas eram surpreendidas com a inclusão automática e uma mensagem de boas-vindas. Quando o grupo atingia um número satisfatório de participantes ativos, o criador entregava a administração a um dos participantes, e o trabalho estava concluído com aquelas centenas de pessoas.25

Isso foi repetido milhares de vezes, registrando grupos que atendiam diretamente ao que o Gabinete do Ódio postava. Se o Gabinete decidisse que era hora de divulgar uma mentira contra Fernando Haddad, os grupos eram acionados e recebiam as instruções de como publicar determinado vídeo ou imagem. Imagine milhares de grupos, cada um com centenas de pessoas, pipocando mensagens diretamente nas mãos de pessoas que eram transformadas em soldados virtuais.

A prova do vínculo dos chefes do bolsonarismo com a criação de grupos ficou clara no dia 19 de outubro de 2019, quando Flávio Bolsonaro foi a público gritar que sua conta no WhatsApp havia sido banida. Ele postou: “A perseguição não tem limites! Meu WhatsApp, com milhares de grupos, foi banido do nada, sem nenhuma explicação! Exijo uma resposta oficial da plataforma”.26

A resposta veio. No mesmo dia o WhatsApp informou que havia banido contas vinculadas às empresas acusadas de enviar mensagens em massa relacionadas às campanhas políticas nas eleições daquele ano. Pena que a empresa devolveu o acesso à conta três dias depois, confirmando a postura conivente que adotou por bastante tempo. Os líderes não precisavam mais sujar as mãos, o bolsonarismo havia se alastrado tanto que a sociedade começara a gerar outros milhares de grupos que atendiam aos interesses do Gabinete do Ódio.

Os grupos funcionavam em camadas. No topo da pirâmide estava o Gabinete, comandando quem seria o alvo da vez e a estratégia de ação. Em seguida vinham os grupos secundários — de alguma forma vinculados aos líderes —, que recebiam os comandos que deveriam ser repassados para os milhares de grupos abertos, que por sua vez recebiam centenas de pessoas da sociedade civil. Era um verdadeiro “efeito cascata”.

Em outubro de 2019, o repórter Fred Melo Paiva se infiltrou em dois grandes grupos bolsonaristas do WhatsApp e registrou a experiência em uma matéria tragicômica.27 Uma das mensagens, postada no grupo “MG MILITANTES B17”, dizia: “bomba. Olha aí o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) recebendo propina, ele mesmo que chamou o Ministro Sergio Moro de ladrão. Divulguem sem dó pra esse bandido safado perder o mandato. Isso a Globo ainda não mostrou é em primeira mão. Divulguem”. A mensagem era seguida de um vídeo de um senhor aleatório, filmado por uma câmera escondida, enfiando dinheiro na cueca. Não era Glauber Braga, obviamente. (...)

Eram tantos grupos, mas tantos que era quase impossível detectar a origem de um disparate. Para se ter ideia, aquela sobre Glauber Braga foi publicada por uma senhora de idade no interior de Minas Gerais. O número decerto era clonado, ou a senhora era só mais uma disseminadora de fake news que havia recebido o conteúdo de outro grupo.

Esses grupos foram a maior fonte de mentiras e disseminação de ataques de ódio que a internet brasileira já presenciou.”

25. Gabriel Ferreira e João Pedro Soares, “Como funciona a máquina de WhatsApp que pode eleger Bolsonaro”. O Globo, 24 out. 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/epoca/como-funciona-maquina-de-whatsapp-que-pode-eleger-bolsonaro-23180627>. Acesso em: 7 jun. 2024.

26. “Flávio Bolsonaro foi banido do WhatsApp por ‘comportamento de spam’; conta já foi desbloqueada, diz senador eleito”. G1, 19 out. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2018/noticia/2018/10/19/flavio-bolsonaro-foi-banido-do-whatsapp-por-comportamento-de-spam-conta-ja-foi-desbloqueada.ghtml>. Acesso em: 7 jun. 2024.

27. Fred Melo Paiva, “Repórter mostra como opera o ‘exército’ de Bolsonaro no WhatsApp”. CartaCapital, 14 out. 2019. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/reporter-mostra-como-opera-o-exercito-de-bolsonaro-no-whatsapp/>. Acesso em: 7 jun. 2024.

 

 

Em dezembro de 2019, renovaram-se as esperanças (para parte da população…) de ver a Justiça atuar sobre Flávio Bolsonaro, quando o Ministério Público do Rio de Janeiro cumpriu 24 mandados de busca e apreensão em investigação sobre a rachadinha.69 Um dos locais verificados foi uma franquia da loja de chocolates Kopenhagen, da qual Flávio Bolsonaro era sócio junto com outro empresário.

O caso, contudo, caminhou de maneira exaustivamente lenta. Parecia combinado para nos fazer esquecer das acusações e focar em outras pautas. Tanto que somente oito meses depois foi revelado que entre 2015 e 2018 a loja de Flávio Bolsonaro havia recebido diversos depósitos sucessivos em dinheiro vivo e com o mesmo valor.70

Na época, pela lei brasileira, qualquer depósito acima de 10 mil reais deveria ser reportado às autoridades, para se comprovar que não havia lavagem de dinheiro. Dos mais de 1500 depósitos em dinheiro vivo, apenas um superou esse valor. Todos foram feitos no mesmo período em que Queiroz recebia parte dos salários dos supostos funcionários-fantasmas.

Já nos dois primeiros meses de operação da loja de chocolates, Flávio fez uma retirada de lucro de 180 mil reais, enquanto seu sócio não fez retirada alguma. As investigações também já haviam concluído que, apenas em junho e julho de 2017, Flávio recebera 48 depósitos em dinheiro vivo, cada um deles de 2 mil reais e todos realizados no autoatendimento da agência bancária que ficava na Assembleia Legislativa do Rio, exatamente onde o gabinete de Flávio funcionava.

Não é preciso ser nenhum gênio para somar dois mais dois e ver que Fabrício Queiroz operava o esquema, recolhendo a rachadinha dos funcionários de Flávio Bolsonaro, que por sua vez lavava o dinheiro usando a Kopenhagen de fachada.”

69. Carlos Brito, Elza Gimenez e Giovani Rossini, “Fabrício Queiroz e ex-assessores de Flávio Bolsonaro são alvos de busca em investigação sobre rachadinha”. G1, 18 dez. 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/12/18/mprj-cumpre-mandados-em-enderecos-de-fabricio-queiroz.ghtml>. Acesso em: 8 jun. 2024.

70. Arthur Guimarães, Felipe Grandin e Paulo Renato Soares, “Loja de chocolates de Flávio Bolsonaro recebeu depósitos sucessivos em dinheiro e com mesmo valor entre 2015 e 2018”. G1 Rio de Janeiro, 20 ago. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/08/20/loja-de-chocolates-de-flavio-bolsonaro-recebeu-1512-depositos-em-dinheiro-entre-2015-e-2018.ghtml>. Acesso em: 8 jun. 2024.

 

 

“O maior problema era o que fazer no curto prazo, uma vez que as publicações continuavam a todo vapor e as redes sociais em geral só derrubavam conteúdos sob decisão judicial. Até que um juiz decidisse, o estrago teria sido definitivo.

Marquei conversas com executivos do Facebook, Instagram e YouTube no Brasil. Mostrei a gravidade daquela montagem e como ela me pintava como um pedófilo de maneira criminosa, misturando piadas sexuais do passado com imagens do presente. Aquilo punha em risco não apenas a minha reputação, mas a minha vida. Eu precisava da ajuda deles para derrubar o material.

Todos ficaram chocados com o conteúdo.

Todos disseram que não poderiam fazer nada. (...)

Há anos as plataformas repetem os mantras “não podemos fazer nada” e “criem leis e aí poderemos agir”. Ou seja, pedem regulamentação para terem um norte do que fazer em situações como a minha. Porém, quando qualquer país esboça um projeto de regulamentação, essas mesmas plataformas acionam lobistas e investem milhões para jogar os políticos e a população contra qualquer projeto que tente legislar sobre elas.”

 

 

“A partir do dia 11 de março, o país mudou. Milhões de pessoas passaram a compreender a gravidade da situação e o risco real a que estávamos submetidos. Aqueles que podiam, como era o meu caso, deram início ao processo de isolamento social.

Foi quando entendemos que o Brasil havia sido um dos países que mais tiveram tempo de se programar e agir antes da chegada do vírus. Os Estados Unidos, por exemplo, tiveram seu primeiro caso relatado em 21 de janeiro. A França, em 24 de janeiro. O vírus só chegou ao Brasil em 26 de fevereiro. Mais de um mês é uma janela de tempo crucial no enfrentamento a uma doença com potencial de milhões de mortes, mas o governo brasileiro optou por não fazer nada durante esse período, mesmo tendo acesso a mais informações do que a população geral.

Donald Trump revelaria ao jornalista Bob Woodward que sabia do perigo da covid-19 desde o início de fevereiro, mas preferiu minimizar a gravidade da doença para não gerar pânico.2 Bolsonaro decidiu adotar uma postura ainda pior. Muito, muito pior.

Durante todo aquele tempo, nenhum aeroporto foi fechado, nenhum protocolo de proteção foi estabelecido, nenhum comitê foi montado, nenhum plano foi criado para atender aos trabalhadores pobres e desempregados. A primeira morte pelo vírus ocorreu no dia 12 de março. E esse foi só o começo.

Ao longo de sua gestão na pandemia, Bolsonaro chamou o vírus, que viria a matar mais de 700 mil brasileiros, de “gripezinha”3 e encorajou a população a evitar o isolamento social, em nome da economia. Quando questionado sobre número de vítimas, se defendeu dizendo que não era “coveiro”.4 Fez piada com a vacina que viria a salvar o Brasil e desestimulou a imunização.5 Tudo isso sendo reverberado pelos muitos parlamentares e influenciadores à época aliados ao presidente, que se juntaram ao coro negacionista. O presidente e seu séquito focaram em minimizar o medo, incentivando pessoas a viver como se nada estivesse acontecendo. Bolsonaro instituiu uma política de morte e caos.”

2. “Trump admitiu a jornalista que sabia da gravidade da Covid-19, mas decidiu minimizar os riscos ao público”. G1, 9 set. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/09/09/trump-sabia-da-gravidade-da-covid-19-mas-decidiu-minimizar-osriscos-publicamente-diz-livro.ghtml>. Acesso em: 10 jun. 2024

3. “2 momentos em que Bolsonaro chamou covid-19 de ‘gripezinha’, o que agora nega”. bbc News Brasil, 27 nov. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536>. Acesso em: 10 jun. 2024.

4. Pedro Henrique Gomes, “‘Não sou coveiro, tá?’, diz Bolsonaro ao responder sobre mortos por coronavírus”. G1, 20 abr. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml>. Acesso em: 10 jun. 2024.

5. “De ‘jacaré’ a ‘vacina do Doria’: Relembre frases de Bolsonaro sobre vacinação”. A Gazeta, 19 jan. 2021. Disponível em: <https://www.agazeta.com.br/es/politica/de-jacare-a-vacina-do-doria-relembre-frases-de-bolsonaro-sobre-vacinacao-0121>. Acesso em: 10 jun. 2024

 

 

No dia 8 de abril, Bolsonaro fez um pronunciamento oficial em que, pela primeira vez, recomendou diretamente o uso de cloroquina — ou hidroxicloroquina, um medicamento utilizado para o combate de doenças como malária e lúpus — para o que ele viria chamar de “tratamento precoce”.6 Naquela mesma semana, o Brasil registraria oitocentos óbitos pela covid-19.

A partir daquele mês, o investimento em cloroquina se tornaria uma das principais e únicas ações do governo no “enfrentamento” à pandemia. Porém, e é muito importante ressaltar, em nenhum momento o remédio teve qualquer comprovação científica contra o vírus. Justamente por isso houve muita resistência do ministro da Saúde à época, Luiz Henrique Mandetta, que discordava de forma veemente do tal tratamento precoce. Desde o início ele tentou pautar o ministério para recomendar o isolamento e o uso de máscaras, além de não incluir no protocolo a administração de cloroquina na fase inicial.

Durante esse período, Bolsonaro foi muito além do que se imaginava. Ele tentou interferir no Ministério da Saúde e incluir na bula da cloroquina a eficácia contra a covid-19. Isso seria revelado pelo próprio Mandetta na CPI da Covid, no ano seguinte.7

A situação só piorava, e o Brasil caminhava a passos largos para uma explosão do vírus como poucos países experimentaram. Ainda assim, Bolsonaro se mostrava irredutível. Continuava contra o isolamento e o uso de máscaras, e a favor da cloroquina como cura. Qualquer um que o desautorizasse seria removido de seu governo. Foi o que aconteceu com Mandetta, demitido no dia 16 de abril. Em seu lugar entrou Nelson Teich, um médico oncologista experiente.8

No dia 28 de abril, o país já somava mais de 5 mil mortes. Em uma coletiva em frente ao Palácio, uma jornalista afirmou: “A gente ultrapassou o número de mortos da China por covid-19”.

Bolsonaro respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”.9

6. “Bolsonaro volta a defender cloroquina em novo pronunciamento em rede nacional”. bbc News Brasil, 8 abr. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52224256>. Acesso em: 10 jun. 2024.

7. Dante Accioly, “Mandetta revela ‘gabinete paralelo’ e tentativa de mudar bula da cloroquina”. Agência Senado, 28 maio 2021. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/05/28/mandetta-revela-gabinete-paralelo-e-tentativa-de-mudar-bula-da-cloroquina>. Acesso em: 10 jun. 2024.

8. Pedro Rafael Vilela, “Bolsonaro anuncia Nelson Teich como ministro da Saúde”. Agência Brasil, 16 abr. 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-04/bolsonaro-anuncia-nelson-teich-como-ministro-da-saude>. Acesso em: 11 jun. 2024.

9. “‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; ‘Sou Messias, mas não faço milagre’”. G1, 28 abr. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml>. Acesso em: 11 jun. 2024.

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