quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Essencial (Parte II), de Padre Antônio Vieira

Editora: Companhia das Letras / Penguin Classics

ISBN: 978-85-63560-28-5

Organização e introdução: Alfredo Bosi

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 760

Sinopse: Ver Parte I



“Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas, e o matemático que tem lido quantos escreveram não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as veem, e muito poucos as medem.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“As palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavra de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavra de Deus, antes podem ser palavra do demônio. Tentou o demônio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei.44 Esta sentença era tirada do capítulo oitavo do Deuteronômio. Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo 90, diz-lhe desta maneira: Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis.45 Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras, que os anjos te tomarão nos braços para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido: e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que tomadas no sentido em que Deus as disse são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje Lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-O no monte, tentou-O no Templo: no deserto tentou-O com a gula, no monte tentou-O com a ambição, no Templo tentou-O com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, se não a Cristo, a sua fé.”

44 Mt 4,4 [(...) “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.”].

45 Sl 90,11-12 [“pois ele ordenou aos seus anjos que guardem você em seus caminhos. Eles o levarão nas mãos, para que seu pé não tropece numa pedra]. cf. Mt 4,5-6 [“Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: “Se tu és Filho de Deus, joga-te para baixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra”.”] e Lc 4,9-11 [“Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: «Se tu és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado’. E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra’.”].

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Unidas as almas aos corpos e restituídos os homens à sua antiga inteireza, os bem ressuscitados alegres, os mal ressuscitados tristes, começarão a caminhar todos para o lugar do Juízo. Será aquela a vez primeira em que o gênero humano se verá a si mesmo, porque se ajuntarão ali os que são, os que foram, os que hão de ser, e todos pararão no vale de Josafá. Se o dia não fora de tanto cuidado, muito seria para ver os homens grandes de todas as idades juntos. Mas vejo que me estão perguntando como é possível que uma multidão tão excessiva como a de todo o gênero humano, os homens que se continuaram desde o princípio até agora, e os que se irão multiplicando sucessivamente até ao fim do mundo: como é possível que aquele número inumerável, aquela multidão quase infinita de homens caiba em um vale? A dúvida é boa, queira Deus que o seja a resposta. Primeiramente digo que nisto de lugares há grande engano, cabe muito mais nos lugares do que nós cuidamos. No primeiro dia da criação criou Deus o Céu e a Terra e os elementos, e é certo em boa filosofia que não ficou nenhum vácuo no mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que não havia já lugar para caber mais nada, ao terceiro dia vieram as ervas, as plantas, e as árvores; e com serem tantas em número e tão grandes, couberam todas. Ao quarto dia veio o Sol, e sendo aquele imenso planeta cento e sessenta e seis vezes maior que a Terra, coube também o Sol: vieram no mesmo dia as estrelas tantas mil, e cada uma de tantas mil léguas, e couberam as estrelas. Ao quinto dia vieram as aves ao ar, e couberam as aves: vieram os peixes ao mar, e com haver neles tantos monstros de disforme grandeza couberam os peixes. No sexto dia vieram os animais tantos e tão grandes à Terra, e couberam os animais: finalmente veio o homem, e foi o homem o primeiro que começou a não caber; mas se não coube no Paraíso, coube fora dele.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“Demais desta razão geral, que há da parte do lugar, há outras duas da parte das pessoas; uma da parte dos bons, outra da parte dos maus. Os bons poderão caber ali em muito pouco lugar, porque terão o dote da sutileza. Entre os quatro dotes gloriosos há um que se chama sutileza, o qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados, que todos quantos se hão de achar no Dia do Juízo podem caber neste lugar onde eu estou, sem me tirarem dele. Cá no mundo também há este dote da sutileza, mas com mui diferentes propriedades. A sutileza do Céu introduz a um sem afastar a outro; as sutilezas do mundo todo seu cuidado é afastar aos outros para se introduzir a si. Por isso não há lugar que dure, nem lugar que baste. Muito é que Jacó e Esaú não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não coubessem em uma cidade; muito mais é que Saul e Davi não coubessem em um reino: mas o que excede toda a admiração é que Caim e Abel não coubessem em todo o mundo. E por que não cabiam dous homens em tão imenso lugar? Pior é a causa que o caso. Caim não cabia com Abel, porque Abel cabia com Deus. Em um homem cabendo com seu senhor, logo os outros não cabem com ele. Alguma vez será isto soberba dos Abéis, mas ordinariamente é inveja dos Cains. Se é certo que com a morte se acaba a inveja, facilmente caberemos todos no Dia do Juízo. Quereis caber todos? Não acrescenteis lugares, diminuí invejas. Este é o dote da sutileza dos bons.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“O Dia do Juízo mostrará que a santidade não consiste no nome senão nas obras.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“Sabei cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam os reis são as que se contêm nos relatórios das sentenças: lede, agora, o relatório da sentença do Dia do Juízo e notai o que diz: Discedite a me, maledicti, in ignem aeternum:16 Ide, malditos, ao fogo eterno. E por quê? Non dedistis mihi manducare, non dedistis mihi potum, non collegistis me, non cooperuistis me, non visitastis me.17 Cinco cargos, e todos omissões: porque não destes de comer, porque não destes de beber, porque não recolhestes, porque não visitastes, porque não vestistes. Em suma, que os pecados que ultimamente hão de levar os condenados ao Inferno, são os pecados de omissão. Não se espantem os doutos de uma proposição tão universal como esta; porque assim é verdadeira em todo o rigor da teologia. O último pecado e a última disposição por que se hão de condenar os precitos, é a impenitência final; e a impenitência final é pecado de omissão. Vede que cousas são omissões, e não vos espantareis do que digo. Por uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contrição perde-se uma alma; dai conta a Deus de uma alma, por uma omissão.

Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se uma viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um Estado: dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião perde-se um negócio, por um negócio perde-se um reino: dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros! Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento: e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão, matam de um golpe uma monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais perigosos de todos os pecados.

A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo: e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa; ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este pecado. (...)

Mas por que se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus: os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores: por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já que assim o querem: o mal é que se perdem a si e perdem a todos; mas de todos hão de dar conta a Deus. Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado: porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje: porque fizeram depois o que se havia de fazer agora: porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão de ser as consciências dos que governam, em matérias de momentos. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que mal, também se restitui; o tempo não tem restituição alguma.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

16 Mt 25,41 [(...) “Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.”].

17 Mt 25,42-3 [“Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar”].

 

 

“Todos ou quase todos os que governam, são causas gravemente culpáveis de graves danos, e nenhum ou quase nenhum restitui o que pode: logo nenhum ou quase nenhum dos que governam, se pode salvar. Colhe bem a consequência? Pois ainda mal, porque a segunda premissa, de que só se podia duvidar, está tão provada na experiência. Eu vi governar muitos, e vi morrer muitos: nenhum vi governar que não fosse causa culpável de muitos danos, nenhum vi morrer que restituísse o que podia: Sou obrigado, secundam praesentem justitiam, a crer que todos estão no Inferno. Assim o creio dos mortos, assim o temo dos vivos.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“Quando iam saber do Batista, quem era, perguntam-lhe: Vós quem sois, e vós quem dizeis que sois; porque os homens quando testemunham de si mesmos, uma cousa é o que são, e outra cousa é o que dizem. Ninguém há neste mundo que se descreva com a sua definição: todos se enganam no gênero e também nas diferenças. Que diferentes cousas são ordinariamente o que dizeis de vós, e o que sois? E o pior é que muitas vezes não são cousas diferentes: porque o que sois é nenhuma cousa, e o que dizeis são infinitas cousas. Nesta matéria de vós quem sois, todo homem mente duas vezes; uma vez mente-se a si, e outra vez mente-nos a nós: mente-se a si, porque sempre cuida mais do que é; e mente-nos a nós, porque sempre diz mais do que cuida. Bem distinguiram logo os embaixadores o Tu quis es do Quid dicis de te ipso; e quando iam perguntar ao Batista o que era, perguntaram o que era, e o que dizia; porque ninguém há tão reto juiz de si mesmo que ou diga o que é, ou seja o que diz.”

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Os ditames práticos devem-se mudar todas as vezes que se mudam as circunstâncias.”

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Conhecem-se os verdadeiros profetas pelos olhos, porque o ver é o fundamento de profetizar. Os profetas na Escritura chamam-se videntes: os que veem. Só os que veem são profetas. Assim como a mais nobre profecia sobrenatural consiste na visão, assim a mais certa profecia natural consiste na vista. Só quem viu pode profetizar naturalmente com certeza. E a razão é muito clara. A profecia humana consiste no verdadeiro discurso; o discurso verdadeiro não se pode fazer sem todas as notícias; e todas as notícias só as pode ter quem viu com os olhos. Nenhuma cousa houve mais assentada na Antiguidade que ser inabitável a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provavam, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África e da América, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um só dia de vista que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação. Os discursos de quem não viu são discursos; os discursos de quem viu são profecias.”

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era Messias, nem Elias, nem profeta; pediram-lhe, finalmente, que pois eles não acertavam a perguntar, lhes dissesse ele quem era. A esta instância não pôde deixar de deferir o Batista. E que vos parece que responderia? Ego sum vox clamantis in deserto:50 Eu sou uma voz que clama no deserto. Verdadeiramente não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que fazia, então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o que o Batista fazia no deserto, era dar vozes e clamar; mas se os embaixadores perguntavam ao Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o que fazia; porque cada um é o que faz, e não é outra cousa. As cousas definem-se pela essência: o Batista definiu-se pelas ações; porque as ações de cada um são a sua essência. Definiu-se pelo que fazia para declarar o que era.

Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de ponderar. O Batista perguntado se era Elias respondeu que não era Elias: Non sum. E Cristo no capítulo onze de São Mateus disse, que o Batista era Elias: Joannes Baptista ipse est Elias.51 Pois se Cristo diz que o Batista era Elias, como diz o mesmo Batista que não era Elias! Nem o Batista podia enganar, nem Cristo podia enganar-Se: como se hão de concordar logo estes textos? Muito facilmente. O Batista era Elias, e não era Elias; não era Elias, porque as pessoas de Elias e do Batista eram diversas; era Elias, porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modéstia do Batista disse que não era Elias, pela diversidade das pessoas; a verdade de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade das ações. Era Elias, porque fazia ações de Elias. Quem faz ações de Elias, é Elias; quem fizer ações de Batista, será Batista; e quem as fizer de Judas, será Judas. Cada um é as suas ações, e não é outra cousa. Oh que grande doutrina esta para o lugar em que estamos! Quando vos perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações. O que fazeis, isso sois, nada mais.

50 Jo 1,23.

51 Mt 11,14.

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Onde há bons e maus, há que louvar e que repreender.”

(Sermão de Santo Antônio aos peixes)

 

 

“A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens.”

(Sermão de Santo Antônio aos peixes)

 

 

“Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer, e o que tem.”

(Sermão de Santo Antônio aos peixes)

 

 

“Ouvi uma verdade de Sêneca, que por ser de um gentio folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há cousa para conosco mais vil que nós mesmos.”

(Sermão da primeira domingo da Quaresma)

 

 

“O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz: que entre os tais reinos e as covas dos ladrões (a que o santo chama latrocínios) só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios ou ladroeiras grandes, e os latrocínios ou ladroeiras são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: “Basta, Senhor, que eu porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades, e interpretar as significações, a uns e outros, definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem, et piratam, quo regem animum latronis, et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estoico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloquentes mudos, que mais ofendem os reis com o que calam que com o que disserem; porque a confiança com que isto se diz, é sinal que lhes não toca, e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala, é argumento de que se ofenderão, porque lhe pode tocar. (...)

Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas cousas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.”

(Sermão do bom ladrão)

 

 

“Por mar padecem os moradores das Conquistas a pirataria dos corsários estrangeiros, que é contingente; na terra suportam a dos naturais, que é certa e infalível. E se alguém duvida qual seja maior, note a diferença de uns a outros. O pirata do mar não rouba aos da sua república; os da terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas mãos juraram homenagem: do corsário do mar posso-me defender; aos da terra não posso resistir: do corsário do mar posso fugir; dos da terra não me posso esconder: o corsário do mar depende dos ventos; os da terra sempre têm por si a monção: enfim o corsário do mar pode o que pode, os da terra podem o que querem, e por isso nenhuma presa lhes escapa. Se houvesse um ladrão onipotente, que vos parece que faria a cobiça junta com a onipotência? Pois é o que fazem estes corsários.”

(Sermão do bom ladrão)

 

 

“Ora suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse: perguntar-me-eis, e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó; em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó: dá um pé de vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo; anda, corre, voa; entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo toma, tudo cega, tudo penetra; em tudo e por tudo se mete, sem aquietar nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento: cai o pó, e onde o vento parou, ali fica; ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Qui pulvis es: o vento é a nossa vida: Quia ventus est vita mea.5 Deu o vento, levantou-se o pó: parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.”

(Sermão da Quarta-feira de cinzas)

 

 

“Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dous infernos um nesta vida, outro na outra.”

(Sermão vigésimo sétimo do Rosário)

 

 

“Um pigmeu sobre um gigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos reconhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que nós pudéramos ver sem eles; mas nós, como viemos depois deles, e sobre eles por benefício do tempo, vemos hoje o que eles viram, e um pouco mais. O último degrau da escada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e estar em cima dos demais, para que dele se possa alcançar o que dos outros se não alcançava.”

(Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo)

 

 

“E que faz Deus, ou pode fazer, para que umas palavras tão expressas e uma profecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma nuvem (como dizíamos) entre a profecia e os olhos, e com este véu, ou sobre os olhos ou sobre a profecia, o claro, por claríssimo que seja, fica escuro.

Quando queremos encarecer uma cousa de muito clara, dizemos que é clara como água, porque não há cousa mais clara; e contudo essa mesma água (como discretamente advertiu Davi), com uma nuvem diante, é escura: tenebrosa aqua in nubibus aeris. Em havendo nuvem em meio, até a água é escura, e tais são as profecias, por claras e claríssimas que sejam. Por isso pedia o mesmo Davi a Deus que lhe tirasse o véu dos olhos, para que pudesse conhecer as maravilhas de seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo mirabilia de lege tua. Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ou se não querem entender, porque as queremos ver por entre nuvens e com véu sobre os olhos! Peço e protesto a todos os que lerem esta História, ou que tirem primeiro o véu de sobre os olhos, ou que a não leiam. (...)

Descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor, porque vemos mais de perto; e que trabalhamos menos, porque achamos os impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados; vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à vista, e tudo isto por benefício do tempo, ou, para o dizer melhor, por providência do Senhor dos tempos.”

(Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo)

 

 

“Na verdade, o que é o mundo, senão adorar a sério as coisas vãs e as verdadeiras e celestes ridicularizar?”

(A chave dos profetas)

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