quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

USA (02): 1919, de John dos Passos

Editora: Benvirá

ISBN: 978-85-64065-41-3

Tradução: Marcos Santarrita

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 512

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Sinopse: Misturando ficção com fatos históricos, 1919 apresenta os reflexos dos movimentos que alteravam a paisagem sociopolítica dos Estados Unidos no começo do século XX: o modo como os socialistas comemoraram a vitória da Revolução Russa (1917), a repressão da polícia, como o presidente Woodrow Wilson criticava a esquerda norte-americana que adotava a política de não participação na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a consequente marginalização dessa mesma esquerda na sociedade.

Segundo livro da trilogia USA, 1919 dá continuidade à composição do painel político e social dos Estados Unidos, iniciado em Paralelo 42 e que se completa com O grande capital. Uma época de grande ebulição, marcada por guerras e revoluções e pelas oportunidades que se criavam. Neste livro, é possível acompanhar o desenvolvimento de muitos personagens que estavam em Paralelo 42, bem como conhecer novos atores. Por meio deles, John dos Passos mostra a repercussão da Primeira Guerra e da Revolução Russa na vida norte-americana.

Admirado desde sua publicação, em 1932, pelas inovações literárias que apresenta, 1919 é também um romance que carrega muitas das crenças dos anos de depressão que se seguiram.



“no banco de madeira roncantesacolejante do trem noturno chacoalhando pela meia-noite afora subia dos alojamentos de terceira classe para tomar um hausto de vento do Atlântico no navio ondulante (a moça suíça de rosto oval e o marido eram meus amigos) ela tinha olhos ligeiramente saltados e uma maneira um pouco rabugenta de dizer Zut alors e lançar-nos um sorrisozinho um peixe para um leão-marinho que aquecia nossa escuridão      quando o funcionário da imigração veio pegar o passaporte dela não pôde mandá-la para Ellis Island la gripe espagnole ela estava morta

 

lavava aquelas janelas

K. P.*

limpava as velas de ignição com um canivete

A.W.O.L.**

moía rosas Beleza Americana para reduzi-las a pó na cama daquela prostituta (a noite nublada ardia com proclamações da Liga dos Direitos do Homem) o cheiro de almôndegas de explosivos fortes soltando éclats cantantes em meio à adocicada nauseante grandiloquência dos mortos em decomposição

 

amanhã eu esperava seria o primeiro dia do primeiro mês do primeiro ano”

* Kitchen Police ou Kitchen Patrol: polícia da cozinha ou patrulha da cozinha. Quando, por punição ou qualquer outra razão (como ser contratado), o civil ou militar é colocado para realizar qualquer tarefa na cozinha que não seja especificamente cozinhar (esfregar o chão, descascar batatas, lavar louça, etc.). [N. T.]

** Absolut Without Oficial Leave: Ausente sem licença oficial, meio caminho para a deserção. [N. T.]

 

 

Playboy

Jack Reed*

era filho de um delegado federal, destacado cidadão de Portland, Oregon.

Era um garoto amável

por isso os pais o mandaram a uma escola no Leste

e a Harvard.

 

Harvard impunha o “a” aberto e proporcionava aqueles contatos tão úteis na vida posterior e à boa prosa inglesa... se o porco-espinho não pode ficar culto em Harvard, então não pode

mesmo e os Lowell só falam com os Cabot e os Cabot

e a Antologia de Poemas de Oxford.

Reed era um rapaz amável, não era judeu nem socialista e não vinha de Roxbury; era robusto ambicioso tinha apetite por tudo: um homem vem a gostar de muitas coisas na vida.

Reed era um homem; gostava de homens gostava de mulheres gostava de comer e escrever e de noites nubladas e de beber e de noites nubladas e de nadar e de futebol e de verso rimado e de ser chefe de torcida orador ela turma formar clubes (não os mais requintados, não gostava muito de clubes requintados) (...)

Jack Reed queria viver numa barrica e escrever poemas;

mas vivia encontrando operários vagabundos sujeitos fortes dos quais gostava azarados desempregados por que não a revolução?

Não podia concentrar-se em sua obra com tanta gente azarada;

não aprendera na escola a Declaração da Independência de cor? Reed era um homem do Oeste e as palavras tinham peso; quando dizia alguma coisa, encostado com um colega no bar do Harward Club, falava sério das solas dos pés às ondas do cabelo desgrenhado (não gostava muito do Harvard Club nem do Dutch Treat Club nem do respeitável Bohemia de Nova York).

 

Vida, liberdade e a busca da felicidade;

não havia muito disso nas fábricas de seda quando,

em mil novecentos e treze,

ele foi a Paterson para escrever sobre a greve, os operários têxteis desfilando espancados pelos policiais, os grevistas na cadeia; antes que desse pela coisa era um grevista desfilando espancado pelos policiais na cadeia;

não deixou o editor pagar sua fiança, aprenderia mais com os grevistas na cadeia.

Aprendeu bastante para levar o desfile da Greve de Paterson ao Madison Square Garden.

Aprendeu a esperança de uma nova sociedade onde ninguém seria azarado,

por que não a revolução?

 

O Metropolitan Magazine enviou-o ao México

para escrever sobre Pancho Villa.

Pancho Villa ensinou-o a escrever e as montanhas esqueletos e os altos cactos e os trens blindados e as bandas tocando nas pequenas plazas cheias de mocinhas morenas com xales azuis

e a maldita poeira e o silvo dos tiros de fuzis

na noite enorme do deserto, e os pardos peões de voz baixa morrendo de fome matando pela liberdade

por terra por água por escolas.

O México ensinou-o a escrever.

Reed era um homem do Oeste e as palavras tinham peso.

 

A guerra foi uma explosão que mandou pelos ares todas as lanternas de Diógenes;

os homens de bem começaram a juntar-se para pedir metralhadoras. Jack Reed foi o último daquela grande raça de correspondentes de guerra que driblaram a censura e arriscaram suas peles por uma história.

Jack Reed foi o melhor escritor americano de sua época, se alguém quisesse saber sobre a guerra podia ler sobre ela nos artigos que ele escrevia sobre o front alemão,

a retirada Sérvia,

Salonica;

por trás das linhas no cambaleante império do tsar,

escapando da polícia secreta,

cadeia em Cholm.

 

Os mandachuvas não o deixaram ir para a França porque diziam que uma noite nas trincheiras alemãs brincando com a guarnição boche ele puxara o cordão de um canhão huno apontado para o coração da França... coisa de playboy mas afinal que importância tinha quem disparava os canhões ou para que lado eles apontavam? Reed estava com os rapazes que eram mandados para o inferno,

com os alemães os franceses os russos os búlgaros os sete alfaiatezinhos do Gueto de Salonica,

e em mil novecentos e dezessete

estava com os soldados e camponeses

na Petrogrado de outubro:

Smolny,

Dez dias que abalaram o mundo;

 

nada mais do pitoresco México de Villa, nada mais daquela coisa de playboy do Harvard Club, planos para teatros gregos, versos rimados, boas histórias de um velho correspondente de guerra,

isso não tinha mais graça

era sinistro.”

*: o autor se refere à John Reed, jornalista e escritor, dentre outros, do livro 10 dias que abalaram o mundo, ao qual ele se refere no texto. John Reed foi um dos únicos estadunidenses a ser enterrados na Necrópole da Muralha do Kremlin.

 

 

“— Céus, eu bem que ia fazer um cara feliz se tivesse a chance – disse ela e caiu no choro.”

 

 

“— Companheiros, isto não é nenhuma guerra. É um hospício.”

 

 

“— Se você estivesse aqui uma semana atrás, Anne Elizabeth, teria visto uma verdadeira nevasca.

— Eu pensava que neve era como nos cartões de Natal disse Esther Wilson, uma garota de aparência interessante, com olhos negros e rosto comprido e uma voz grave que soava meio trágica. — Mas era apenas ilusão, como um monte de coisas.

— Nova York não é lugar para ilusões — disse Ada com aspereza.

— Tudo me parece mais ou menos uma ilusão — disse Filha, olhando para fora da janela do táxi.”

 

 

“— Que adianta ter uma Liga das Nações se ela vai ser dominada pela Grã-Bretanha e suas colônias? — perguntou o sr. Rasmussen com mau humor.

— Mas não acha que qualquer liga é melhor que liga nenhuma? — perguntou Eveline.

— Não é o nome que importa, é quem está levando o seu por baixo que conta — disse Robbins.

— É uma observação muito cínica — disse a mulher da Califórnia. — E isso não é hora de cinismo.

— Esta é a hora — disse Robbins — em que se a gente não fosse cínico teria de dar um tiro na cabeça.”

 

 

“— Talvez fosse preciso a guerra pra nos ensinar a viver — ele disse. — Andávamos interessados demais em dinheiro e coisas materiais, os franceses foram necessários para mostrar como viver.”

 

 

“— O presidente vai reconhecer os sovietes? — Dick viu-se perguntando em voz baixa.

— Estou indo pra lá... Acho que ele vai mandar uma missão não oficial. Depende um pouco do petróleo e do manganês... Antes, era o Rei Carvão, mas agora é o Imperador Petróleo e a srta. Manganês, rainha consorte do aço. Está tudo na república rosa da Geórgia... Espero chegar lá breve, dizem que têm o melhor vinho e as mais belas mulheres do mundo. Deus do céu, tenho de chegar lá... Mas o petróleo... Diabos, é isso que seu maldito idealista Wilson não consegue entender, que enquanto o enchem de grandes banquetes no Palácio de Buckingham, o alegre exército britânico velho está ocupando Mosul, o rio Karum, a Pérsia... agora os boatos dizem que estão em Baku... a futura metrópole petrolífera do mundo.

— Eu achava que os campos de petróleo de Baku estavam secando.

— Não creia nisso... Acabo de falar com um sujeito que esteve lá... um sujeito esquisito, Rasmussen, você devia conhecê-lo.

Dick perguntou se não tinham bastante petróleo em sua terra. Robbins deu um murro na mesa.

— Nunca se tem o bastante de qualquer coisa... esta é a primeira lei da termodinâmica. Eu jamais tive uísque bastante... você é um cara jovem, algum dia teve rabo de saia bastante? Bem, a Standard Oil e a Royal Dutch-Shell também jamais terão petróleo bruto bastante.”

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