Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-107-2
Tradução: Clóvis Marques
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 370
Sinopse: Em A
ilusão neoliberal, o economista francês René Passet analisa questões
centrais de nosso tempo e mostra que é possível a construção de uma sociedade
mais justa e igualitária. René Passet pergunta e responde por que é urgente
inverter a tendência liberal vigente e recolocar o homem no centro de toda
atividade econômica. Segundo Passet, a partir do momento em que a informação
assumiu o papel de energia como combustível do desenvolvimento, um novo tipo de
economia surgiu, modificando nossas relações com o tempo, com o espaço e com a
sociedade. Apesar das mudanças, muita coisa continuou igual. As ditas “novas” ideias
e responsabilidades políticas continuaram relacionadas a conceitos antigos,
persistindo em crenças de um sistema que se pretende liberal.
Em A ilusão neoliberal Passet alerta que tanto a
direita quanto a esquerda apelam para as mesmas fórmulas. Ambas abrigam
receitas de desregulamentação, submissão às leis de mercado e produtividade
desenfreada para compor realidades ilusórias com bolsas em alta, crescimento
repartido, regressão de desemprego, etc. René Passet mostra como esse falso
sistema de desenvolvimento produz efeitos terríveis em uma sociedade – cada vez
mais a humanidade está dividida por desigualdades crescentes. Até mesmo a vida
se inscreve no campo do mercantilismo, o que o autor chama de marchandization.
Um livro essencial para compreender e combater os novos tempos e que demonstra
como a ação possibilita a construção de uma outra sociedade. Passet indaga por
que nós devemos pensar e agir de outra forma, e analisa em que sentido o
computador e a informática constituem uma revolução cultural ainda mais
importante que a da máquina a vapor. A ilusão neoliberal ilumina
questões centrais das transformações do nosso tempo, conectando-as às suas
ramificações econômicas, sociais, ambientais e humanas.
Economista especializado em desenvolvimento, René Passet
é professor na Universidade Paris-1-Panthéon-Sorbonne e presidente do Conselho
Científico da ATTAC (Association pour une Taxation des Transactions Financières
pour l”“Aide aux Citoyen). Publicou, entre outras obras, L’économique et le
vivant, premiada pela Académie des Sciences Morales et Politiques, e Une
économie de rêve.
“A ilusão neoliberal mostra que a ação pública é
possível, que a economia pode estar a serviço da vida, dos seres humanos.” - Le
Monde Diplomatique.
“A melhor síntese da doutrina antiglobalização produzida
na língua francesa.” – Libération.
“Há dez mil anos, quando nossos ancestrais
iam progressivamente deixando sua existência nômade de coletores-caçadores-pescadores
para se sedentarizar, realizavam um ato de cujo alcance não suspeitavam:
inauguravam uma fase da existência humana baseada na domesticação das energias.
O terreno que delimitavam para nele cultivar a planta ou alimentar o animal
passaria a ser sistematicamente usado como receptor e conversor de energia
solar. A partir deste ato fundador, todas as grandes revoluções da humanidade –
moinho de vento, moinho d’água, arado, energias fósseis ou nucleares – teriam
fundamentos energéticos.2 Até a conquista do carvão, a partir do
século XVIII, a radiação solar repetida ao longo dos dias e das estações o
fluxo – é que vai regular as atividades humanas.
A passagem para as energias fósseis
representa uma primeira ruptura: o deslocamento do fluxo para a estocagem. O
carvão continua sendo energia solar, mas estocada nos vegetais das eras
geológicas. Está aí, disponível, e podemos usufruir dele em função das
necessidades. É uma forma de libertação: as atividades humanas libertam-se dos
ritmos da natureza para obedecer apenas a si mesmas. E também uma limitação –
que demorará a ser percebida, pois as reservas pareciam imensas –, já que o
estoque existe em quantidade finita e não se renova; é, portanto, esgotável. A
libertação dos ritmos, por outro lado, cria novos problemas de assimilação dos
dejetos, que não existiam na época em que os movimentos da natureza
determinavam os das atividades humanas.
A passagem para o nuclear reforça esta
ruptura, pondo à disposição dos homens uma fonte de energia ligada à liberação
das forças que cimentam a matéria e que não é mais de origem solar.
A virada que estamos enfrentando anuncia-se
ainda mais decisiva: com o computador; a informação, a humanidade sai dessa
fase de seu desenvolvimento baseada na energia para engajar-se numa outra,
dominada pelas forças do imaterial. Não surpreende que o navio sacoleje e
sejamos obrigados por vezes a nos agarrar ao mastro.
Estamos exatamente no meio do caminho, como
ilustra a anedota contada por Michel Richonnier:3 “Ilha de Terceira,
Arquipélago dos Açores. Um encontro inesperado entre Georges Pompidou e Richard
Nixon. Este atravessou o Atlântico a bordo do avião presidencial Spirit of 76,
modesto quadrimotor subsônico. Georges Pompidou, por sua vez, fretou o
protótipo 001 do Concorde. Diante do mundo inteiro, o magnífico pássaro
anglo-francês relega ao segundo plano a águia americana... Ao despedir-se de
seu interlocutor, no fim do encontro dos Açores, Richard Nixon lançou a Georges
Pompidou um lacônico ‘I saw your Concorde!’. E o que foi tomado então como um
cumprimento certamente ocultava uma feroz ironia... Meses antes, a empresa
Intel desenvolvera o primeiro microprocessador da história, verdadeiro cérebro
de computador do tamanho de uma unha, componente mais espetacular de uma nova
revolução tecnológica.
Este encontro ilustra a sobreposição de duas
fases da evolução humana: de um lado, o apogeu – vale dizer, ao mesmo tempo, o
esboço do declínio – de um crescimento de base energética, inaugurado pela
máquina a vapor, prolongado pela eletricidade, o petróleo, e hoje simbolizado
pela central nuclear; de outro, a emergência de uma fase dominada pelo
imaterial.”
2: Em duas ocasiões, contudo, em sociedades
dependentes dos fluxos energéticos, a informação revelou seu poder de transformação
do mundo: em 700 antes de Jesus Cristo, na Grécia, após três mil anos de
tradição oral, o surgimento do primeiro alfabeto efetivamente utilizado dava à
linguagem escrita sua autonomia, possibilitando o discurso conceitual graças ao
qual o pensamento humano alcançaria, na Grécia antiga, o desabrochar que
conhecemos; no século XV, a impressão gráfica facultaria uma difusão do saber
que constituiria outra virada da história humana.
A diferença em relação à mutação
contemporânea está no fato de a humanidade sair hoje de sua fase de
desenvolvimento energético, e de estarmos assistindo a uma autêntica passagem
de bastão da energia para a informação como motor da evolução social.
3:
Michel Richonnier. Les Métatnorphoses de
l’Europe, Flammarion, Paris, 1985. Este livro,
escrito para durar, ainda é atual.
“Tentando fazer-se passar por um pensamento,
o que se impõe é uma ideologia. A ortodoxia do sistema exprime-se através do “pensamento
único”, para retomar a expressão de Ignacio Ramonet:19 “Este moderno
dogmatismo” constitui “a tradução, em termos ideológicos de pretensão
universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, especialmente as
do capital internacional20”, servidas por escribas cuja importância
provém das forças ante as quais se curvam.
Periodicamente, os quinhentos iniciados da “seita”
fundada por Friedrich von Hayek, um dos aiatolás do liberalismo contemporâneo,
reúnem-se no monte Peregrino em meio a uma aura de mistério. Em Davos,
sacerdotes e fiéis celebram seu ofício, explicam com segurança o porquê dos
acontecimentos – como a crise do Sudeste asiático – que não haviam sido capazes
de prever no ano anterior e definem as estratégias para os anos vindouros. Por
algum estranho decreto da Providência, nenhum deles carece de dinheiro para
fazê-lo. Em ambos os casos, a escolha da Suíça como sede do encontro – país das
contas numeradas e paraíso dos capitais de todas as procedências – parece
altamente simbólica.
O dogma não está inscrito em nenhum código.
Não corresponde exatamente a nenhuma escola acadêmica de pensamento, embora se
defina por um liberalismo duvidoso. Flutua no espírito do tempo sob a forma de
afirmações constantemente reiteradas e marteladas. Esse permanente martelar faz
as vezes de demonstração, tão grande é a força de afirmações que se pretendem
evidentes. De tudo isto ressaltam certos temas que exprimem a ideologia das
forças dominantes: “A economia leva a melhor sobre a política [...] a economia
situa-se [portanto] no posto de comando, uma economia livre, naturalmente, do
obstáculo do social; o mercado, ídolo cuja mão invisível corrige as arestas e
as disfunções do capitalismo, e especialmente os mercados financeiros, cujos
sinais orientam e determinam o movimento geral da economia; a concorrência e a
competitividade que estimulam e dinamizam as empresas, levando-as a uma
permanente e benéfica modernização; a livre troca sem limites, fator de
desenvolvimento ininterrupto do comércio e, portanto, das sociedades; a
globalização tanto da produção manufaturada quanto dos fluxos financeiros; a
divisão internacional do trabalho, que modera as reivindicações sindicais e
reduz os custos salariais; a moeda forte, fator de estabilização; a
desregulamentação; a privatização; a liberalização etc. Cada vez menos Estado,
uma arbitragem constante em favor dos rendimentos do capital em detrimento
daqueles do trabalho. E uma indiferença em relação ao custo ecológico.21”
Livre de qualquer intervenção perturbadora,
deixando que as coisas fluam espontaneamente, quaisquer que sejam as consequências
– entre elas o esmagamento do fraco pelo forte – esta economia exprimiria
espontaneamente as leis da natureza:22 “Não se pode fazer nada, meu
amigo, e deves submeter-te.” Os sacrifícios que eles impõem e dos quais se
eximem não se devem, portanto, à malícia dos homens nem aos vícios do sistema,
mas à natureza das coisas. A evidência de seu “bom senso” é esmagadora: como
qualquer dona-de-casa, um país não pode viver por muito tempo além de seus
recursos (ninguém os ouviu jamais queixar-se de que ele viva “aquém”, o que no
entanto acontece quando seu comércio exterior é superavitário), os encargos
sociais e os salários pagos pelas empresas prejudicam a competitividade, e
logo, também, o nível de emprego; pois é para seu próprio bem que se pede a cada
um que reduza seu padrão de vida e seus “benefícios” – como dizem eles –
sociais. Nada disto lhes diz respeito. Não lhes ocorreria, por exemplo, que,
reduzindo em apenas 10% sua renda, aqueles dentre eles que ganham mil vezes o
salário médio de seus operários financiariam a criação de cem empregos sem
aumentar a massa salarial. Assim, simplesmente pelo gesto magnânimo. Em
compensação, vejam como exultam quando apertam o torniquete sobre os mais
humildes, em geral depois de providenciarem generosos aumentos para si
próprios: é tão bom poder exibir tanto poder. “A infelicidade particular”, já
dizia Pangloss, o filósofo de Voltaire, no século XVIII, “faz a felicidade
geral, de modo que quanto mais infelicidades particulares houver, melhor
estarão as coisas.23” Todos os Pangloss de nosso tempo o proclamam:
a miséria dos humildes é o preço da prosperidade geral, e isto é muito bom. Não
é culpa deles se a infelicidade particular cabe a você e a felicidade geral, a
eles. As coisas são assim, e você simplesmente tirou o número errado.
Eles se dizem liberais, pois precisam de uma
bandeira e de uma razão social, mas continuam nos enganando. Que “liberalismo”
é este no qual uma centena de novos “senhores do mundo”, grandes capitães de
transnacionais, dominam o planeta?24 Que concepção é esta segundo a
qual os Estados25 devem entregar às empresas as chaves do setor
público e da proteção social, acompanhadas – certamente em nome do risco
inerente a toda concorrência – de garantias de lucros, sob pena de serem
levados aos tribunais? Não é o liberalismo dos pais da pátria: em 1776, Adam
Smith denunciava sem meias palavras a exploração do fraco pelo poderoso: “Os
rendimentos e o lucro devoram os salários, e as classes superiores da nação
oprimem a inferior26”; não parece Marx?”
19: Ignacio Ramonet, “La pensée unique”, Le Monde diplomatique,
janeiro de 1995.
20: Suas fontes principais”, acrescenta
Ignacio Ramonet. “são as grandes instituições econômicas e monetárias – Banco
Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico, Acordo Geral de Tarifas e Comércio, Comissão
Europeia, Banco da França etc. – que através de seu financiamento, arregimentam
a serviço de suas ideias em todo o planeta numerosos centros de pesquisa,
universidades, fundações, que por sua vez apuram e disseminam a boa palavra.
Esse discurso anônimo é retomado e reproduzido pelos principais órgãos de
informação econômica – The Wall Street
Jornal, Financial Times, The Economist,
Far Eastern Economic Review, Les Échos, Agência Reuters etc. – não
raro de propriedade de grandes grupos industriais ou financeiros. Por toda
parte, faculdades de ciências econômicas, jornalistas, articulistas e políticos
reiteram os principais mandamentos dessas novas tábuas da lei”.]
21: Ignacio Ramonet, “La pensée unique”, art.
cit.
22: Cette nouvelle loi de la gravitation, le
marché”: Alain Minc, La Mondialisation heureuse, Plon, Paris, 1997.
23: Voltaire, Candide ou I’optimisme, cap. IV.
24: Ver o relatório sobre investimentos
internacionais em 1998 publicado pela Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento (CNUCED), 27 de setembro de 1999.
25: Era o que constava do projeto de Acordo
Multilateral de Investimentos (AMI) sorrateiramente negociado à sombra da OCDE,
e também o que se tramava nos bastidores da “rodada do milênio” que naufragou
em Seattle.
26: Adam Smith, Richesse des
nations, 1776.
“Toda interpretação da economia repousa
necessariamente numa concepção do mundo, do homem e da sociedade. A ciência
econômica nunca foi tão grande quanto no momento em que soube associar em um
mesmo pensamento uma filosofia do mundo, uma sociologia e – naturalmente – um
olhar sobre as coisas que lhe são próprias. É o caso dos fisiocratas do século
XVIII, com sua concepção da ordem natural, dos primeiros clássicos – Smith,
Stuart Mill, como se sabe, eram tanto filósofos quanto economistas, e o
primeiro chegou a escrever uma obra de astronomia –, de Marx, cuja economia
repousa inteira sobre uma filosofia dialética associada a uma permanente
atenção aos avanços científicos de sua época; é também o caso dos maiores
neoclássicos – um Walras, por exemplo, que claramente baseia sua concepção da
economia “pura” na mecânica newtoniana. Só os ruminadores medíocres são capazes
de considerar suficientes os pequenos mecanismos cujas engrenagens empenham-se
incansavelmente em descrever.”
“Existem apenas, portanto, percepções
subjetivas do mundo; tantas percepções quantos são os indivíduos. E a ciência
consiste em fazer com que tudo isto dialogue. Para isto, ela se dota de regras,
ou, se preferirem, de precauções, permitindo definir o campo de um discurso no
qual é possível entrar em acordo sobre determinadas coisas, ou então opor-se...
falando a mesma língua. Neste sentido, o principal critério – proposto em 1959
pelo filósofo austríaco Karl Popper2 – é o do discurso exposto à refutação. Refutação, e não verificação, pois uma
afirmação como “Sendo todas as condições iguais, as mesmas causas produzem os
mesmos efeitos” não pode ser verificada (seria necessária uma infinidade de
experiências), mas se for falsa, é possível criar um protocolo que a conteste;
em compensação, a declaração de que o vermelho é mais (ou menos) belo que o
azul, assim como tudo mais que é afeto a valores socioculturais, depende do
julgamento de cada um, escapando portanto a este critério. Este é apenas,
diz-nos Popper, um “critério de demarcação” – e nada mais: significa que a
hipótese não verificada não é verdade científica, mas pertence ao campo do discurso científico, pois é
refutável.
Munidos, portanto, de nossos pífios
instrumentos, partimos à conquista de um mundo que em todos os sentidos
ultrapassa nossas pobres capacidades mentais. Para interpretá-lo, criamos
convenções simplificadoras que em grande parte determinam as conclusões a que
chegaremos; elaboramos conceitos que são apenas representações, e não as coisas
em si mesmas (“o conceito de cão não late...”). Reivindicar o monopólio da
ciência significa ignorar isto, e transformar uma busca que se nutre da
diversidade num confronto de verdades definitivas que se anulam reciprocamente;
significa situar-se fora do campo científico.
É natural, portanto, que o olhar lançado à
economia dependa de nossa concepção do mundo. Nossas convenções, nossas
representações apoiam-se necessariamente na experiência vivida quotidianamente
de nossa relação com o universo que nos cerca; elas expressam a representação
que temos dele e nossa visão dos diferentes campos que o constituem. A teoria
econômica, como qualquer outra, é o reflexo de uma época e de um meio cujo
conhecimento permite compreender e ao mesmo tempo relativizar o alcance das
construções intelectuais deles derivados. E é sem dúvida isto que incomoda os
arautos de um dogma universalmente e atemporalmente verdadeiro. Adotando este
ponto de vista, eles teriam de reconhecer que sua economia permanece aferrada a
uma concepção mecanicista do mundo, hoje amplamente superada.
Para avaliar o desempenho, eles observam a
máquina – o equilíbrio orçamentário, a estabilidade dos preços, a taxa de
crescimento do PIB, o saldo da balança comercial, tudo aquilo que chamam de “fundamentos
essenciais” – e não o grau de realização dos objetivos humanos para os quais
ela deveria funcionar. Quando o sábio aponta o dedo para o céu, o néscio olha
para o dedo, diz o provérbio chinês. (...)
Atividade calculada de transformação da
natureza, tendo como objetivo a satisfação das necessidades humanas, (a
economia) significa antes de mais nada ação. Constituem-na três esferas: uma
esfera natural que transformamos, uma esfera econômica na qual se efetua esta
transformação e uma esfera humana para a qual ela se efetua.
A natureza não se apresenta nas formas que
permitiriam satisfazer diretamente as necessidades dos homens. Seus recursos,
dizia Henri Guitton, “são demasiadamente numerosos ou insuficientemente
numerosos; não se encontram no lugar ideal nem no tempo ideal, no momento
desejado; não têm a forma desejada [ ...l. A atividade econômica é, assim, a
forma da atividade humana através da qual os homens lutam para reduzir a
inadaptação da natureza a suas necessidades4.” Mais lacônico, Henri
Laborit5 gostava de observar que não basta, para nos alimentarmos,
abrir a boca na direção dos fótons solares, dos quais entretanto nos vêm, em
última análise, todo alimento. “Só podemos mandar na natureza obedecendo a ela”,
dizia Francis Bacon em 1620.6 Entretanto, em sentido inverso,
obedecendo a ela é que podemos adaptá-la a nossas finalidades: é usando as leis
da gravidade e da resistência do ar que conseguimos voar; da obediência às leis
naturais à resignação social que nos pretendem impingir há todo um mundo.”
2: Karl Popper. The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson, Londres, 1959;
tradução francesa, La Logique de la
découverte, Payot, Paris, 1973, prefácio de Jacques Monod. Este critério
não está muito distante do que foi preconizado por Descartes, segundo quem só
são aceitáveis as hipóteses que, tendo superado o teste da dúvida sistemática,
podem ser consideradas indubitáveis.
4: Henri Guitton, Économie
politique, t. I, Dalloz. Paris, 1961.
5: Henri Laborit, La Nouvelle
Grille, Laffont, Paris, 1974.
6: Francis Bacon, Novum Organum, 1620.
“A eficácia, por definição, é “o que produz o
efeito esperado” (Larousse)? O desempenho de um sistema só pode ser definido,
portanto, pelo grau de realização da finalidade a que deve servir. Que pode
significar então a medida do desempenho econômico independentemente de suas
finalidades humanas?”
“Thomas Kuhn32 tinha razão: a
ciência não avança por acúmulo de conhecimentos, mas por transformação do olhar
que se lança às coisas; os mesmos cientistas, observando o mesmo céu com os
mesmos instrumentos, não veem os mesmos fenômenos antes e depois de Copérnico.
Desgraçados aqueles que não sabem questionar-se.”
32: Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, Flammarion, col. “Champs”,
Paris, 1983.
“Os especialistas encontram dificuldade para
definir o critério a partir do qual poderíamos afirmar que surgiu o primeiro
homem. A linguagem? Mas várias espécies animais trocam informações às vezes
bastante diversificadas. A ferramenta? Mas numerosos animais utilizam – e às
vezes fabricam – instrumentos para alcançar, remexer, quebrar, superar
obstáculos. Em compensação, todos os cientistas reconhecem que a criatura que
enterra seus mortos, homenageia-os, cercando-os de alimentos e objetos
familiares e ornamentando as paredes das grutas com representações, aquela
mesma que busca em sua vida algo que esteja além de si mesma, esta é uma
criatura autenticamente humana. Sem dúvida alguma, em meio a tudo que vive e
respira neste planeta, o homem caracteriza-se pela necessidade de sentido.”
“Na dialética marxista, o que é inelutável é
que do conflito entre o capitalismo e sua contradição – que ele próprio produz
– surgirá a síntese, que não será a simples vitória do proletariado sobre o
capitalismo que o engendra, mas a superação de ambos na sociedade comunista.
Submetido ao sentido da história, o
homem nem por isto deixa de ser um ator dela. É certo que não pode tudo: “Os
homens fazem sua própria história, mas sobre a base de condições dadas”; mas “a
doutrina materialista segundo a qual os homens são produtos das circunstâncias
e da educação esquece que são precisamente os homens que transformam as
circunstâncias.57” Sem esta importante margem de liberdade
individual, as teorias marxistas da “praxis” (atividade em vista de um
resultado) e da luta de classes seriam incompreensíveis. Este homem não é
talvez um ator da história, mas
certamente é um ator na história.
Paradoxalmente, Marx e Engels são nitidamente menos materialistas e
deterministas que os “liberais” que lhes aplicam estes dois qualificativos.”
57: Karl Marx, Thèses sur Feuerbach, 1845.
“Quando surge nos anos 50 o fenômeno da
automação, a questão da evolução do computador para o gigantismo ou a
miniaturização logo é colocada, com as consequências socioeconômicas
decorrentes: de um lado, Big Brother
e a concentração; de outro, milhares de centros de decisão e a sobrevivência
das pequenas ou médias estruturas. Os argumentos técnicos a favor de uma ou
outra evolução são igualmente convincentes. Pelo fim dos anos 60, a empresa
IBM, que domina o mercado e parece ter as chaves do futuro, dá preferência aos
equipamentos mais portentosos. Ninguém podia então prever que quatro
engenheiros dissidentes da ATT se associariam para criar uma pequena empresa de
onze pessoas, Intel, da qual sairia o microprocessador, que revolucionaria o
mundo.
Chamamos de ponto crítico o ponto de equilíbrio de forças a partir do qual um
fenômeno menor e rigorosamente imprevisível mudará o rumo da história em
direção a um ramo da bifurcação dos
possíveis, e não em direção a outro. “Só existe ciência do geral”, dizia
Aristóteles; mas eis que com o ponto crítico o singular entra no campo
científico.
Esta concepção está carregada de
consequências. Para começar, a todo momento, o futuro é feito de vários
possíveis, sendo impossível dizer a
priori qual prevalecerá. Quando uma situação se realiza, é em seguida a uma
série de acontecimentos nos quais imprevisto e inelutável se combinam: a virada
da história em cada ponto crítico se faz de maneira aleatória, mas cada
orientação abre um encadeamento de consequências que se desenrolam
necessariamente; Braudel, por exemplo, mostra como a adoção – provavelmente por
um pequeno número de homens – do arroz no Extremo Oriente e do trigo no
Ocidente teve consequências enormes e duradouras para a utilização dos solos, a
possibilidade de praticar a criação de gado e portanto para o desenvolvimento
dessas duas regiões. Nesses encadeamentos, o tempo é irreversível, pois o acaso
não desfaz em sentido inverso o que fez. A história factual não está em
absoluto fadada a desaparecer: só podemos nos dar conta do surgimento de uma
situação analisando a sucessão de acontecimentos aleatórios e de consequências
necessárias que a ela conduziram.
Esta articulação de indeterminismos e
determinismos constitui a própria condição de toda liberdade humana. Os primeiros
condicionam a possibilidade de escolha, e os segundos, a existência de um
objeto da escolha: como dizia ironicamente Henri Laborit, para saltar livremente de paraquedas, é preciso
primeiro ser capaz de optar por não saltar; mas também é necessário que existam
leis da queda dos corpos e da resistência do ar, caso contrário a aventura só
pode acabar mal.
Nesta concepção, o homem é plenamente ator da história, e em dois níveis:
– no ponto crítico, para começar, onde a ação
de alguns, e às vezes de um só, pode mudar o curso dos acontecimentos; é este o
papel das minorias que estão na origem das revoluções, dos profetas, dos
grandes cientistas, de alguns políticos (para o melhor e para o pior...); os
economistas reconhecerão aqui o empreendedor de Schumpeter, cuja inovação,
tendo rompido o circuito da repetição rotineira, desencadeia um fenômeno de
imitação em blocos agregados do qual surgirá um novo equilíbrio, até que uma
nova ordem inovadora... Encarada neste nível, a possibilidade de uma ação do
homem sobre a história tem algo de estimulante, mas também de desesperador, na
medida em que afeta apenas um número muito restrito de atores; nem todo mundo,
com efeito, está em condições de candidatar-se ao papel do herói de Carlyle...
– em compensação, todos têm a possibilidade –
logo, a responsabilidade – de agir sobre o meio de propagação sem o qual a
ruptura no ponto crítico não surtiria efeito; sem um meio transmissor, a
invenção mais genial não se torna inovação: existem no palácio dos doges em
Veneza antepassados de nossas metralhadoras modernas, ainda reluzentes embora
fabricadas no Renascimento, pois nunca chegaram a ser usadas num meio mais
receptivo ao veneno individual (encantos do “pequeno artesanato”) do que aos
massacres em série dos quais não se privaria o futuro; e de dois indivíduos
efetuando tentativas comparáveis: um, Krutchev, enfrentando ausência de
resposta do meio, logo se vê descartado, absorvido, digerido, sem conseguir
alterar duradouramente o curso das coisas, ao passo que o outro, Gorbachev,
desencadeia – sem dúvida muito além de suas expectativas – um movimento
irreversível que varre o sistema e também a ele próprio; acontece que a ação
sobre o meio de propagação está ao alcance de todos, são a ação quotidiana, a
repetição, a defesa incansável dos valores que transformam o meio; neste
sentido, “os pequenos, os obscuros, os sem graduação” identificados por Edmond
Rostand são autênticos atores da história; qual a importância, face a esta, do
vistoso cavaleiro medieval, em comparação com o mongezinho anônimo que, na
penumbra de sua cela, arranhando incansavelmente seu pergaminho, transmitia a
mensagem antiga?
Somos todos, portanto, atores da história;
atores, entretanto, como nos ensinam os sistemas sensíveis a suas condições
iniciais, de uma história suscetível de ganhar impulso e escapar a todo
controle: “Os homens”, dizia ainda Braudel, “fazem a história e a história os
arrasta.” E com efeito, no mundo contemporâneo, no qual o desenvolvimento dos
meios de comunicação apaga o tempo e a distância, o menor acontecimento é
vivido em tempo real em todos os pontos do planeta. Este mundo torna-se uma
gigantesca caixa de ressonância. À possibilidade de agir associa-se um
imperativo de vigilância.”
50: Albert Jacquard, Inventer l’homme, Complexe, Bruxelas, 1985.
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