terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Crítica do programa de Gotha, de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-189-5

Seleção, tradução e notas: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 144

Sinopse: Em 1875, Marx encaminhou à cidade de Gotha um conjunto de observações críticas ao programa do futuro Partido Social-Democrata da Alemanha, resultado da unificação dos dois partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, dirigida por Ferdinand Lassalle, e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores, dirigido por Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e August Bebel, socialistas próximos de Marx.

O projeto de programa proposto no congresso de união privilegiava as teses de Lassalle, o que suscitou críticas virulentas de Marx em forma de carta direcionada aos dirigentes. Sua oposição devia-se não à fusão dos partidos – quanto a isso era da opinião de que ‘cada passo do movimento real é mais importante do que uma dezena de programas’ –, mas ao estatismo exacerbado que ganhara espaço nas diretrizes do novo partido.

Nem a favor do poder absoluto do Estado proposto por Lassalle, nem da ausência de Estado proposta pelos anarquistas: a proposição de Marx era a ‘ditadura revolucionária do proletariado’, forma de Estado que teria lugar durante o período de transformação revolucionária que conduziria ao advento da sociedade comunista. Segundo ele, as cooperativas ‘só têm valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses’.

Essas glosas marginais sobre o Programa de Gotha somente foram publicadas em 1891, muito depois da morte de Marx, por Friedrich Engels, na revista socialista Die Neue Zeit, dirigida por Karl Kautsky. Ao longo do século XX, esse conjunto disperso de notas tornou-se documento coerente de combate contra o socialismo aliado ao Estado.

Novas luzes também são lançadas sobre outros temas: ‘Se lermos esse documento à luz dos debates do século XXI, alguns de seus aspectos ganham novo interesse no contexto dos atuais debates sobre a ecologia. É o caso da afirmação categórica de que o trabalho não é o único gerador de riqueza, a natureza o é tanto quanto ele. Assim, a crítica de muitos ecologistas a Marx – só o trabalho é fonte de valor – revela-se um mal-entendido: o valor de uso, que é a verdadeira riqueza, também é um produto da natureza’, afirma o sociólogo Michael Löwy no prefácio da primeira edição em língua portuguesa de Crítica do Programa de Gotha, pela Boitempo. Com amplo material complementar, como diversas cartas de Karl Marx e Friedrich Engels, incluindo a famosa carta deste a August Bebel, de março de 1875, analisada por Lenin em O Estado e a revolução (1917), esta edição situa o texto em seu contexto histórico e traz um dos pronunciamentos mais detalhados de Marx sobre assuntos revolucionários, tendo em vista o comunismo. O volume inclui também as atas do Congresso de Gotha, documentos raríssimos e de grande valor para estudiosos do marxismo. Outra novidade é a inclusão dos comentários de Marx ao livro Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin, redigidos na mesma época de Crítica do Programa de Gotha. Nesses escritos, Marx rebate as críticas de Bakunin sobre o suposto estatismo marxista e sua proximidade com Lassalle.


 

“Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas.”

 

 

“O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana.

Essa frase pode ser encontrada em todos os manuais infantis e está correta, desde que se subentenda que o trabalho se realiza com os objetos e os meios a ele pertinentes. Mas um programa socialista não pode permitir que tais fraseologias burguesas possam silenciar as condições que, apenas elas, dão algum significado a essas fraseologias. Apenas porque desde o princípio o homem se relaciona com a natureza como proprietário, a primeira fonte de todos os meios e objetos de trabalho, apenas porque ele a trata como algo que lhe pertence, é que seu trabalho se torna a fonte de todos os valores de uso, portanto, de toda riqueza. Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força sobrenatural de criação; pois precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas do trabalho. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, só pode viver com sua permissão.”

 

 

“O trabalho só se torna fonte da riqueza e da cultura como trabalho social ou, o que dá no mesmo, na e por meio da sociedade.”

 

 

“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”.”

 

 

“A distribuição dos meios de consumo é, em cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção; contudo, esta última é uma característica do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, baseia-se no fato de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente da condição pessoal de produção, da força de trabalho. Estando assim distribuídos os elementos da produção, daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual. O socialismo vulgar* (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição.

* Assim Marx e Engels chamam o socialismo eclético, que Engels, por exemplo, identifica no socialismo francês daqueles anos (cf. infra, nota 9) e que se concentrava sobretudo na exigência de uma distribuição “mais justa” do produtos do trabalho, sem considerar suficientemente o nexo essencial entre a distribuição e as relações de produção, elemento central da teoria marxiana. (N. T.)

9 Em sua obra A subversão da ciência pelo sr. Eugen Düring [Anti-Düring], publicada em 1878, em Leipzig, Engels caracterizava o socialismo francês da época “como uma espécie de socialismo eclético e medíocre”, que, “comportando nuances extremamente variadas, apresenta uma mistura das mais opacas omissões críticas, sentenças econômicas e ideias do futuro da sociedade de diversos fundadores de seitas”. (N. E. A.)

 

 

“No Manifesto Comunista, diz-se:

De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.*

A burguesia é concebida aqui como classe revolucionária – como portadora da grande indústria – em face da aristocracia feudal e das classes médias, que desejam conservar todas as posições sociais criadas por modos de produção ultrapassados. Elas não formam, portanto, juntamente com a burguesia, uma só massa reacionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista, o qual a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “quando [as camadas médias] se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado”**.

Desse ponto de vista, é também um absurdo dizer que as classes médias, “juntamente com a burguesia” e, sobretudo, com a aristocracia feudal, “formam uma só massa reacionária” diante da classe trabalhadora.

Por acaso, nas últimas eleições, gritou-se aos artesãos, aos pequenos industriais etc. e aos camponeses: “Comparados a nós, vocês formam, juntamente com a burguesia e a aristocracia feudal, uma só massa reacionária”?

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, tanto quanto seus fiéis sabem os escritos sagrados que ele produz. Portanto, quando ele o falsificou de modo tão grosseiro, foi apenas com o objetivo de enfeitar sua aliança com os adversários absolutistas e feudalistas contra a burguesia***.

No parágrafo em questão, aliás, sua sentença oracular é introduzida arrastada pelos cabelos, sem qualquer conexão com a distorcida citação dos Estatutos da Internacional. Não passa, aqui, de uma impertinência e, em verdade, uma impertinência do tipo que não desagrada nem um pouco ao sr. Bismarck, uma dessas grosserias baratas de cujo comércio vive o Marat de Berlim11.”

* São Paulo, Boitempo, 1998, p. 49. (N. E.)

** Idem. (N. E.)

*** Cf. supra, p. 26, nota 3. (N. T.)

11 Wilhelm Hasselmann. (N. E. A.)

 

 

“Desde a morte de Lassalle, impôs-se em nosso partido o ponto de vista científico de que o salário não é o que aparenta ser, isto é, o valor do trabalho ou seu preço, mas apenas uma forma disfarçada do valor ou preço da força de trabalho. Com isso, foi descartada toda a concepção burguesa do salário até hoje, assim como toda a crítica a ela dirigida, e ficou claro que o trabalhador assalariado só tem permissão de trabalhar para sua própria vida, isto é, para viver, desde que trabalhe de graça um determinado tempo para o capitalista (por isso, também para aqueles que, juntamente com ele, consomem a mais-valia); que o sistema inteiro da produção capitalista gira em torno do aumento desse trabalho gratuito graças ao prolongamento da jornada de trabalho ou do crescimento da produtividade, uma maior pressão sobre a força de trabalho etc.; que, por conseguinte, o sistema do trabalho assalariado é um sistema de escravidão e, mais precisamente, de uma escravidão que se torna tanto mais cruel na medida em que as forças produtivas sociais do trabalho se desenvolvem, sendo indiferente se o trabalhador recebe um pagamento maior ou menor. (...)

No lugar da vaga fraseologia que conclui o parágrafo – “pela eliminação de toda desigualdade social e política” –, dever-se-ia dizer que, com a abolição das diferenças de classes, desaparece por si mesma toda desigualdade social e política delas derivada.”

 

 

“Tornar o Estado “livre” não é de modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da estreita consciência do súdito. No Império alemão, o “Estado” é quase tão “livre” quanto na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela, e ainda hoje as formas de Estado são mais ou menos livres, de acordo com o grau em que limitam a “liberdade do Estado”.”

 

 

“Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão? Essa pergunta só pode ser respondida de modo científico, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema.

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Mas o programa é alheio tanto a esta última quanto ao futuro ordenamento estatal da sociedade comunista.”

 

 

“Dever-se-ia ter deixado de lado todo esse palavreado sobre o Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado em sentido próprio. O Estado popular foi sobejamente jogado em nossa cara pelos anarquistas, embora já o escrito de Marx contra Proudhon*e, mais tarde, o Manifesto Comunista digam de maneira explícita que, com a instauração da ordem socialista da sociedade, o Estado dissolve-se por si só e desaparece. Não sendo o Estado mais do que uma instituição transitória, da qual alguém se serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isso, nossa proposta seria substituir, por toda parte, a palavra Estado por Gemeinwesen**, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune***.

“Eliminação de toda desigualdade social e política”, em vez de “superação de toda distinção de classe”, é também uma expressão muito duvidosa. De um país para outro, de uma província para outra e até mesmo de um lugar para outro, sempre existirá certa desigualdade de condições de vida, que poderá ser reduzida a um mínimo, mas nunca completamente eliminada. Os habitantes dos Alpes terão sempre condições de vida diferentes das dos povos das planícies. A representação da sociedade socialista como o reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade, igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase de desenvolvimento, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso, descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão.” (Friedrich Engels)

* Referência à obra A miséria da filosofia (São Paulo, Expressão Popular, 2009), de Marx, publicada em 1847. (N. T.)

** Comunidade. (N. T.)

*** Comuna. (N. T.)

 

 

“Em geral, importa menos o programa oficial de um partido do que seus atos. Mas um novo programa é sempre uma bandeira que se hasteia publicamente e a partir da qual o mundo exterior julga o partido.”

 

 

“Se duas frações se unem, não se põe no programa de união aquilo que é controverso.” (Friedrich Engels)

 

 

“O todo é no mais alto grau desordenado, confuso, sem unidade, ilógico e vergonhoso. Se na imprensa burguesa houvesse um único cérebro crítico, ele teria esquadrinhado esse programa frase por frase, buscando em cada uma o conteúdo real, destacando sensivelmente o absurdo da coisa, demonstrando as contradições e as patacoadas econômicas (por exemplo, que hoje os meios de trabalho são “monopólio da classe capitalista”, como se não houvesse proprietários fundiários, ou a ideia da “libertação do trabalho”, em vez da classe trabalhadora, uma vez que o trabalho propriamente dito é bastante livre hoje em dia!) e levando todo o nosso partido ao mais terrível ridículo. Em vez disso, os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas essa circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa. Enquanto nossos oponentes e também os trabalhadores atribuírem a esse programa os nossos pontos de vista, poderemos silenciar sobre isso.” (Friedrich Engels)

 

 

“A mim, pessoalmente, isso só pode ser de uma forma: nenhum partido, em nenhum país, pode me condenar ao silêncio quando estou decidido a falar. Mas eu gostaria de sugerir a vocês que refletissem se não fariam melhor sendo um pouco menos melindrosos e, na ação, menos prussianos. Vocês – o partido – precisam da ciência socialista, e esta não pode viver sem liberdade de movimento. Para isso, é preciso tolerar as inconveniências, e isso se faz mantendo a compostura, sem vacilar.” (Friedrich Engels)

 

 

Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores* (excertos)

Considerando,

 

Que a emancipação das classes trabalhadoras tem de ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras;

Que a luta pela emancipação das classes trabalhadoras significa não a luta por privilégios e monopólios, mas por iguais direitos e deveres e pela abolição de todo domínio de classe;

Que a sujeição econômica do homem que trabalha para o monopolizador dos meios de trabalho, isto é, das fontes de vida, repousa no âmago da servidão em todas as suas formas, de toda miséria social, degradação mental e dependência política;

Que a emancipação econômica das classes trabalhadoras é, portanto, o grande fim ao qual todo movimento político deve estar subordinado como meio;

Que todos os esforços visando esse grande fim falharam até hoje por falta de solidariedade entre as várias divisões do trabalho em cada país e pela ausência de um vínculo fraternal entre as classes trabalhadoras dos diferentes países;

Que a emancipação do trabalho não é uma emancipação local nem nacional, mas um problema social que abrange todos os países em que existe a sociedade moderna e depende, para sua solução, da confluência prática e teórica de todos os países avançados;

Que o atual reavivamento das classes trabalhadoras nos países mais industrializados da Europa, ao mesmo tempo que representa uma nova esperança, traz uma advertência solene contra a recaída em velhos erros e conclama para a combinação imediata dos movimentos ainda desconexos;

 

Por essas razões:

A Associação Internacional dos Trabalhadores foi fundada.

 

Ela declara:

Que todas as sociedades e indivíduos que a ela aderirem reconhecerão a verdade, a justiça e a moralidade como base de sua conduta uns para com os outros e para com cada homem, sem considerações de cor, credo ou nacionalidade;

Que não reconheçam nenhum direito sem deveres, nem deveres sem direitos;

E, nesse espírito, as seguintes regras foram traçadas:

1. Essa Associação é estabelecida para proporcionar um meio central de comunicação e cooperação entre sociedades operárias de diferentes países que visam a mesma finalidade, isto é, a proteção, o avanço e a completa emancipação das classes trabalhadoras. (...)

 

Art. 7a. Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo num partido político particular, o qual se confronta com todos os partidos anteriores formados pelas classes possuidoras.

Essa unificação do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e seu fim último – a abolição das classes.

A união das forças dos trabalhadores, que já é obtida mediante a luta econômica, tem de tornar-se, nas mãos dessa classe, uma alavanca em sua luta contra o poder político de seus exploradores.

Como os senhores do solo e do capital se servem de seus privilégios políticos para proteger e perpetuar seus monopólios econômicos, assim como para escravizar o trabalho, então a conquista do poder político torna-se uma grande obrigação do proletariado.”

* Marx esboçou os Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores entre 21 e 27 de outubro de 1864. Os excertos aqui apresentados são o texto aprovado na conferência de Londres da Associação Internacional dos Trabalhadores. O artigo 7a, uma afirmação categórica – contra o anarquismo – da importância do caráter político do movimento operário, foi aprovado no congresso de Londres como “resolução” e acrescentado aos Estatutos da Internacional em setembro de 1872, no congresso de Haia. Este, palco da luta final entre marxistas e bakuninistas, culminou na expulsão do líder máximo dos anarquistas dos quadros da Internacional. (N. T.)

 

 

Programa de Erfurt (1891)

O desenvolvimento econômico da sociedade burguesa conduz, com necessidade natural, à ruína da pequena empresa, assentada sobre a propriedade privada dos meios de produção pelo trabalhador. Ela separa o trabalhador de seus meios de produção e o transforma num proletário sem posses, enquanto os meios de produção se tornam o monopólio de um número comparativamente pequeno de capitalistas e grandes proprietários fundiários.

Essa monopolização dos meios de produção é acompanhada da eliminação das pequenas empresas fragmentadas por empresas colossais, da transformação da ferramenta em máquina, do gigantesco crescimento da produtividade do trabalho humano. Mas todas as vantagens dessa transformação são monopolizadas pelos capitalistas e grandes proprietários fundiários. Para o proletariado e para as camadas médias em declínio – pequeno-burgueses, camponeses –, elas significam o aumento crescente da insegurança de sua existência, da miséria, da opressão, da servidão, da humilhação e da exploração.

Quanto maior o número de proletários, mais maciço o exército de trabalhadores excedentes, mais brutal a oposição entre exploradores e explorados, mais aguda a luta de classe entre burguesia e proletariado que divide a sociedade moderna em dois quartéis inimigos e constitui a característica comum de todos os países industrializados.

O abismo entre possuidores e não possuidores torna-se ainda mais profundo com as crises inerentes à essência do modo de produção capitalista, crises que se tornam cada vez mais abrangentes e devastadoras, ultrapassando a tal ponto a insegurança geral própria das condições normais da sociedade que a propriedade privada dos meios de produção torna-se inconciliável com sua utilização conforme a um fim e com seu pleno desenvolvimento.

A propriedade privada dos meios de produção, que outrora foi o meio de assegurar ao produtor a propriedade de seu produto, tornou-se hoje o meio de expropriar os camponeses, os artesãos e os pequenos comerciantes e conferir aos não trabalhadores – capitalistas, grandes proprietários fundiários – a posse do produto dos trabalhadores. Apenas a transformação da propriedade privada capitalista dos meios de produção – solo, subterrâneos e minas, matérias-primas, ferramentas, máquinas, meios de transporte – em propriedade social e a transformação da produção de mercadorias em produção socialista, realizada para e pela sociedade, podem ter como efeito que a grande empresa e a produtividade sempre crescente do trabalho social se convertam, para as classes até então exploradas, de fonte de miséria e opressão em fonte da mais alta prosperidade e pleno e harmônico aperfeiçoamento.

Tal transformação social significa a libertação não só do proletariado, mas do gênero humano, que padece sob as atuais condições. Mas ela só pode ser obra da classe trabalhadora, uma vez que todas as outras classes, apesar dos conflitos de interesses entre si, encontram-se sobre o solo da propriedade privada dos meios de produção e têm como meta comum a manutenção das bases da sociedade atual.

A luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista é necessariamente uma luta política. A classe trabalhadora não pode conduzir suas lutas econômicas nem desenvolver seus direitos políticos sem tomar posse do poder político.

Fazer da luta da classe trabalhadora uma luta consciente e uniforme e indicar a ela seu escopo inexorável – tal é a tarefa do Partido Social-Democrata.

Os interesses da classe trabalhadora são os mesmos em todos os países com modo de produção capitalista. Com a expansão do intercâmbio mundial e da produção para o mercado mundial, a situação dos trabalhadores de cada um desses países torna-se cada vez mais dependente da situação dos trabalhadores nos outros países. A libertação da classe trabalhadora é assim uma obra da qual participam, em igual medida, os trabalhadores de todos os países civilizados. Ciente disso, o Partido Social-Democrata da Alemanha sente-se e declara-se em união com os trabalhadores conscientes de sua classe em todos os países.

O Partido Social-Democrata da Alemanha luta, portanto, não por novos privilégios e imunidades de classe, mas pela abolição do domínio de classe e das próprias classes e por iguais direitos e iguais deveres para todos, sem distinção de sexo e ascendência. Partindo dessa concepção, ele combate na sociedade atual não apenas a exploração e a opressão do trabalhador assalariado, mas toda forma de exploração e opressão, seja ela voltada contra uma classe, um partido, um sexo ou uma raça.

 

Partindo desses princípios, o Partido Social-Democrata da Alemanha exige imediatamente:

 

1. Sufrágio universal, igual e direto, com voto secreto garantido a todos os membros do Império maiores de 20 anos, sem distinção de sexo, para todas as eleições e votações. Sistema eleitoral proporcional e, até que este seja introduzido, nova divisão legal dos distritos eleitorais após cada senso populacional. Intervalo eleitoral de dois anos. Realização das eleições e votações num dia oficial de folga. Recompensa para o representante eleito. Supressão de todas as limitações aos direitos políticos, a não ser em casos de interdição.

2. Legislação direta pelo povo, com direito a proposição e veto. Autodeterminação e autoadministração do povo no Império, no Estado, na província e no município. Eleição das autoridades pelo povo; responsabilidade e punibilidade das autoridades. Aprovação anual dos impostos.

3. Instrução para defesa geral. Milícia popular no lugar do exército permanente. Decisão sobre guerra e paz mediante representação popular. Mediação de todos os conflitos internacionais por tribunais de arbitragem.

4. Abolição de todas as leis que limitam ou suprimem a livre expressão da opinião e o direito de associação e reunião.

5. Anulação de todas as leis que prejudicam a mulher em benefício do homem, seja numa relação de direito público, seja de direito privado.

6. Declaração da religião como questão privada. Abolição de toda aplicação de recursos públicos para fins religiosos ou eclesiásticos. As comunidades eclesiásticas e religiosas devem ser consideradas associações privadas que tratam seus assuntos de modo totalmente independente.

7. Secularização das escolas. Frequentação obrigatória das escolas primárias públicas. Gratuidade do ensino, dos materiais didáticos e da alimentação nas escolas primárias, assim como nos estabelecimentos públicos de ensino superior, para aqueles estudantes que, graças à sua capacidade, são considerados aptos a uma educação ulterior.

8. Gratuidade da justiça e da assistência jurídica. Jurisdição mediante juízes eleitos pelo povo. Apelação em causas penais. Indenização para os inocentes injustamente acusados, presos e condenados. Abolição da pena capital.

9. Gratuidade da assistência médica, inclusive obstetrícia e medicamentos. Gratuidade dos sepultamentos.

10. Imposto de renda e de patrimônio progressivos para o custeio de todos os gastos públicos, numa medida tal que estes possam ser cobertos pelos impostos. Imposto de herança gradualmente progressivo de acordo com o volume da herança e do grau de parentesco. Abolição de todos os impostos indiretos, tarifas alfandegárias e demais medidas político-econômicas que sacrificam os interesses da coletividade aos interesses de uma minoria privilegiada.

 

Para a proteção da classe trabalhadora, o Partido Social-Democrata da Alemanha exige imediatamente:

 

1. Uma legislação eficaz de proteção dos trabalhadores, nacional e internacional, sobre os seguintes fundamentos:

a) Consolidação de uma jornada normal de trabalho de oito horas no máximo;

b) Proibição do trabalho remunerado para crianças menores de catorze anos;

c) Proibição do trabalho noturno, a não ser para aqueles ramos da indústria que, em virtude de sua natureza, requerem trabalho noturno por razões técnicas ou em nome do bem-estar público;

d) Um período de descanso de no mínimo 36 horas por semana para cada trabalhador;

e) Proibição do pagamento dos trabalhadores com mercadorias.

2. Vigilância de todos os estabelecimentos industriais, investigação e regulação das relações de trabalho na cidade e no campo mediante uma secretaria do trabalho do Império, secretarias distritais do trabalho e câmaras do trabalho. Rigorosa higiene industrial.

3. Equiparação legal dos trabalhadores agrícolas e empregados domésticos com os trabalhadores da indústria; eliminação dos Regulamentos da Criadagem*.

4. Asseguramento do direito de associação.

5. Assunção por parte do Império da seguridade total do trabalhador, com a cooperação ativa dos trabalhadores em sua administração.”

* Leis prussianas que regulavam – e asseguravam – a submissão do criado ao patrão. As leis da criadagem só foram abolidas na Alemanha em 1918, juntamente com a introdução do voto feminino. (N. T.)

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