quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Hegel e a liberdade dos modernos (Parte I), de Domenico Losurdo

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-709-5

Tradução: Diego Silveira Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 472

Sinopse: Hegel e a liberdade dos modernos recupera a discussão dos principais princípios políticos e filosóficos por trás do liberalismo contemporâneo. Por meio de uma interpretação revolucionária do pensamento de G. W. F. Hegel, Domenico Losurdo (1941-2018), um dos maiores hegelianos da atualidade, demonstra como o filósofo da dialética estava totalmente engajado nas controvérsias políticas de seu tempo.

Nesta obra de fôlego, Losurdo revela como as questões abordadas por Hegel no século XIX reverberam em muitas das principais preocupações políticas da atualidade, como comunidade, nação, liberalismo, Estado e liberdade. Partindo do exame de todo o corpus de Hegel, sua análise desmonta o dualismo entre intepretações ‘conservadoras’ e ‘liberais’ do filósofo alemão, e assim fornece uma discussão renovada a respeito da relação entre a filosofia política de Hegel e o pensamento de Karl Marx e de Friedrich Engels.

 

“O intérprete moderno faria bem em evitar assumir uma postura de profeta, como se a verdade, o significado autêntico da filosofia de Hegel, tivesse permanecido escondido para todos e inacessível por mais de um século e meio para se revelar, de repente e de modo fulgurante, a um estudioso afortunado e genial, estudioso que é, naturalmente, o último a aparecer em ordem temporal. Vêm à mente as palavras com que Engels descreve a postura dos profetas religiosamente inspirados, que anunciam o advento de uma nova ordem social, livre, por fim, dos velhos erros: “O que faltava era o gênio individual que agora entrou em cena e reconheceu a verdade […]. Esse gênio poderia muito bem ter nascido quinhentos anos antes e, nesse caso, teria poupado à humanidade quinhentos anos de erros, lutas e sofrimentos”[86]. Em nosso caso, a economia de anos consentida pela nova e inédita interpretação de Hegel seria inferior, apesar de considerável, mas permaneceria de qualquer forma imutável o essencial, isto é, a postura de profeta.”

[86] Friedrich Engels, “Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft”, cit., p. 191-2 [ed. bras.: Anti-Dühring, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2015, p. 47-8].

 

 

“O contratualismo protoburguês é a legitimação do monopólio político dos proprietários e a consagração explícita da subordinação do poder político à defesa dos interesses da propriedade. E, se é assim, o contratualismo protoburguês tem pouco ou nada a ver com o “contratualismo” hodierno (assim como é configurado por Bobbio), no âmbito do qual o Estado tem a ambição de se colocar como órgão de mediação entre as várias classes, entre os diversos e contrapostos sujeitos sociais. Deve-se discutir até que ponto tal ambição se realiza, mas permanece o fato de que ela, de qualquer forma, pressupõe no Estado um mínimo de transcendência em relação aos diversos e contrastantes interesses. Desse ponto de vista, ao menos no que se refere a suas ambições declaradas, o Estado burguês moderno está muito mais próximo da teoria hegeliana do que do contratualismo protoburguês. Ou melhor, o contratualismo de tipo feudal ou protoburguês continua a se manifestar nos atos de força ou nas ameaças de atos de força com que, não poucas vezes, os grupos privilegiados reagiram ou reagem a intervenções sobre o direito de propriedade, sobre as relações de propriedade e produção, intervenções consideradas não liberais e despóticas.

Sim, a hodierna democracia parlamentar é constituída de tratativas e de barganhas, mas não é preciso confundir duas definições de contrato totalmente heterogêneas. Examinando o desenvolvimento das contradições entre norte e sul que levaram mais tarde à eclosão da Guerra de Secessão, Tocqueville nos fornece um exemplo esclarecedor de “contratualismo” no mundo contemporâneo. Eis o modo em que os futuros secessionistas definem sua postura em relação às leis da União tidas como inaceitáveis: “A constituição é um contrato em que os Estados aparecem como soberanos. Agora, toda vez que intervém um contrato entre partes que não reconhecem um árbitro comum, cada uma delas mantém o direito de julgar por si mesma a extensão de suas obrigações”[32]. O “contrato” implica, então, o direito de veto das partes contratantes; nesse sentido, a lei é desprovida de um caráter obrigatório enquanto, mesmo depois da promulgação, depende, para a execução, do beneplácito das partes, que têm o direito de verificar sua conformidade ao contrato estipulado. Portanto, as partes contratantes são, em última instância, soberanas ou reivindicam uma substancial soberania; assim ocorria no período medieval, assim ocorria nos clássicos do protoliberalismo e assim ocorre nos Estados Unidos quando da secessão do sul. Contra esse contratualismo, polemiza Hegel, mas também o liberal Tocqueville, que observa com desânimo o esfacelamento dos poderes da União por obra dos contratualistas-secessionistas do sul.

Bobbio, por sua vez, fala de contratualismo moderno no sentido que o Estado, antes de proceder com uma eventual intervenção legislativa, se esforça em levar em consideração os interesses das várias partes em causa, as estimula e as pressiona para que negociem; ou seja, desempenha um papel ativo de mediação. No entanto, uma vez promulgada, a lei não passa a depender sistematicamente do beneplácito das partes em causa. A radical diversidade desse segundo tipo de contratualismo, em relação ao primeiro, emerge do texto do próprio Bobbio: o Estado é “o mediador e o garante das negociações” entre os diferentes sujeitos políticos e sociais. Então, o Estado, mais do que ser uma das partes contraentes, é o garante das superpartes das contratações entre os diversos sujeitos políticos e sociais. E não é só isso. Bobbio ainda escreve sobre as modalidades de funcionamento do “contrato” no nível político-parlamentar: “Um partido que não tem votos suficientes para levar seus representantes ao Parlamento é um partido que não é legitimado para tomar parte nas tratativas e no contrato social e, portanto, não tem poder contratual”[33]. O Estado não apenas é superpartes, mas define, em cada circunstância, também as partes autorizadas a participar da tratativa.

Deve-se acrescentar que não há nenhum tipo de polêmica com esse segundo tipo de contratualismo por parte de Hegel, o qual, aliás, exige que as várias corporações, associações e comunidades locais estejam diretamente presentes na Câmara baixa, de modo a expressar seus reais interesses e permitir que o aparato governamental e estatal proceda com uma mediação autêntica e eficaz (Rph., § 308*). Seria o alargamento da rede de tratativas e mediações a prova da inatualidade da polêmica anticontratualista de Hegel? Hoje, porém, o Estado democrático-parlamentar não é mais, não pode mais ser, o mero conjunto de vigias da propriedade privada teorizado pelo protoliberalismo, o simples “guarda noturno” dos bens dos proprietários denunciado pelo hegeliano Lassalle[34]. Esse contratualismo entrou em crise no momento em que, por meio de ásperas e complexas lutas, os não proprietários impuseram ao Estado toda uma série de outros deveres, com intervenções diretas no campo econômico-social, percebidas pelos proprietários como alargamento indevido da esfera de atividades do Estado para além das tarefas contratualmente definidas. É dessa nova situação que surge a exigência de um constante e difícil trabalho de mediação entre as partes sociais.

Do ponto de vista de Hegel, no entanto, é exatamente nesse trabalho de mediação que se dá a realização do universal. O Estado se constitui como comunidade ética na medida em que não se preocupa apenas com a segurança da propriedade, mas também, como veremos, com a garantia do sustento, do “bem-estar” dos indivíduos, do “direito ao trabalho” e até com o “direito à vida”, na medida em que reconhece cada cidadão como titular de direitos inalienáveis – logo, irrenunciáveis e fora da esfera do contrato. Com Hegel, os direitos inalienáveis tendem a assumir um conteúdo material. A condição do faminto é comparada à do escravo, e eis que se impõe uma intervenção pública que garanta de maneira concreta o direito inalienável à liberdade. Tal intervenção implica inevitavelmente uma restrição imposta ao mercado e à esfera do contrato. A cada intervenção com que o Estado proibiu ou regulamentou o emprego de crianças nas fábricas (intervenção explicitamente requerida por Hegel), reduziu o horário de trabalho etc., os setores mais retrógrados do capitalismo sempre responderam com altos gritos de protesto pela violação da liberdade de contrato: basta ler, nas páginas de O capital, a história das lutas que acompanharam a limitação, por lei, da jornada de trabalho a dez horas. No que diz respeito à Prússia de Hegel, ou aquela imediatamente posterior à sua morte, o patronato esbraveja contra “hegelianos” e “socialistas”, que, desprovidos do “espírito prático dos liberais”, eram culpados de pretender recorrer à intervenção “artificial” do Estado para limitar o emprego de mulheres e crianças nas fábricas e “organizar o trabalho”[35].”

[32] Alexis de Tocqueville, “De la démocratie en Amérique”, I (1835), em Œuvres complètes (org. Jacob-Peter Mayer, Paris, Gallimard, 1951 e seg.), p. 408.

[33] Norberto Bobbio, Il contratto sociale oggi, cit., p. 25 e 39-40.

*: Rph. III = Philosophie des Rechts. Die Vorlesung von 1819-1820 in einer Nachscrift, organizada por Dieter Henrich, Frankfurt, 1983.

[34] Ferdinand Lassalle, “Das Arbeitprogramm” (1862-1863), em Gesammelte Reden und Schriften (org. Eduard Bernstein, Berlim, P. Cassirer, 1919-1920), v. II, p. 195-6.

[35] Assim se expressa o grande capitalista e liberal renano David Hansemann, cujas palavras são reportadas por Jacques Droz, Le libéralisme rhénan (1815-1848) (Paris, Sorlot, 1940), p. 242-3.

 

 

“A liberdade formal é o momento do consenso subjetivo e, nesse sentido, não tem nenhum significado negativo em Hegel, ou melhor, constitui um momento essencial do mundo moderno, da liberdade moderna: “A liberdade formal é a elaboração e a realização das leis” (Ph. G., p. 927*). Na Inglaterra, “a liberdade formal, na discussão de todos os negócios de Estado, tem lugar em sumo grau”; não se trata de um juízo negativo, pois o que Hegel aprecia na Inglaterra é exatamente “o Parlamento aberto ao público, o hábito das reuniões públicas em todas as classes, a liberdade de imprensa”. Essas, no entanto, eram apenas as condições favoráveis para realizar “os princípios franceses da liberdade e da igualdade” (Ph. G., p. 934). A liberdade formal é a condição para a realização da liberdade “objetiva ou real”. Nesse âmbito estão inseridas a liberdade da propriedade e a liberdade da pessoa. Cessa, com isso, toda não liberdade do vínculo feudal, caem todas as normas derivadas desse direito, os dízimos, os impostos. “Da liberdade real fazem parte também a liberdade dos ofícios, isto é, o fato de ser concedido ao homem usar suas forças como quiser, e o livre acesso a todos os cargos estatais” (Ph. G., p. 927). Assim, liberdade formal e liberdade substancial não são em si termos contraditórios: A liberdade tem em si uma dupla determinação. Uma concerne ao conteúdo da liberdade, à sua objetividade, à própria coisa. A outra concerne à forma da liberdade, em que o sujeito se sabe ativo, porque a exigência da liberdade é que o sujeito se sinta nela satisfeito e assim assuma a própria tarefa, sendo seu interesse que a coisa se realize. (Ph. G., p. 926) A liberdade formal deveria ser o veículo da liberdade real. Quando isso se verifica, temos o livre querer da liberdade, isto é, a adesão e o consenso consciente em relação às instituições político-sociais que realizam a liberdade objetiva. No concreto de determinada situação histórico-política, porém, a liberdade formal pode entrar em colisão com a liberdade real. De fato, “os momentos da liberdade real […] não repousam sobre o sentimento, porque o sentimento deixa existir até a servidão da gleba e a escravidão, mas sobre o pensamento e sobre a autoconsciência que o homem tem da própria essência espiritual” (Ph. G., p. 927). A imprevisibilidade de sentimentos, hábitos e tradições pode fazer com que falte consenso para a liberdade real; a liberdade formal pode negar a liberdade real e se agarrar a instituições que sejam a negação da liberdade. Um exemplo particularmente ostensivo, do ponto de vista de Hegel, é a Polônia: as contínuas discussões da Dieta, com certeza, são um momento de liberdade formal, que, entretanto, nesse caso específico, é utilizada para perpetuar o poder extraordinário dos barões e a servidão da gleba, ou seja, para perpetuar a não liberdade. Colisão análoga, ainda que menos dura e de caráter mais limitado, verifica-se na Inglaterra. A liberdade formal não está em discussão; no entanto, a Idade Média e o feudalismo foram apenas parcialmente comprometidos: “No conjunto, a constituição inglesa permaneceu a mesma desde os tempos do domínio feudal e se funda quase exclusivamente sobre velhos privilégios”. Em teoria, a tradição liberal que carregava em seu passado poderia permitir que a Inglaterra realizasse de forma mais ágil do que outros países “liberdade e igualdade”, a liberdade real; mas, por uma série de razões históricas (orgulho nacionalista etc.), ocorreu o contrário, e não por acaso a Inglaterra dirigiu todas as coalisões contra os franceses (Ph. G., p. 934). E, como se não bastasse, a aristocracia que arrancou da Coroa a “liberdade formal” se serve dela para impedir reformas antifeudais incisivas, para criar obstáculos ou para bloquear o processo de realização da “liberdade objetiva”, isto é, do “direito racional” (Enc., § 544 A**).

Finalmente, pode-se verificar que momentos essenciais da liberdade real são impostos do alto, com uma série de reformas que ferem a tradição feudal e estabelecem liberdade da pessoa e liberdade da propriedade (esta última é, assim, libertada dos vínculos feudais), mas a esse desenvolvimento da liberdade real não corresponde, ou corresponde só parcialmente e com atraso, o desenvolvimento da liberdade formal. É essa a situação da Alemanha e, em particular, da Prússia, que foi se configurando a partir das reformas da era Stein-Hardenberg. Com tais reformas, a liberdade objetiva começa a penetrar (segundo Engels, o início da revolução burguesa na Prússia e na Alemanha tem início a partir delas)[55], mas a liberdade formal não caminha no mesmo passo: Frederico Guilherme III não mantém suas promessas de renovação constitucional, embora Hegel continue a esperar que a liberdade formal alcance o mesmo nível da liberdade substancial, mais uma vez com o processo de reforma pelo alto, mesmo que estimulado por baixo por uma restrita opinião pública de intelectuais e funcionários “iluminados” – e iluminados graças também à difusão da “filosofia”.

É interessante notar que a distinção entre liberdade formal e substancial está presente, de alguma forma, na própria tradição liberal, mas com significado diferente e contraposto àquele que acabamos de ver. Segundo Montesquieu,

em um Estado existem sempre pessoas ilustres de nascimento, riquezas e honras: se elas fossem confundidas com o povo e só tivessem uma voz, assim como os outros, a liberdade comum seria então sua escravidão, e elas não teriam interesse algum em defende-la, pois a maior parte das resoluções seria contrária a elas.[56]

Cabe observar que Montesquieu desenvolve essas considerações no capítulo dedicado à constituição da Inglaterra para ressaltar o papel positivamente exercido pela aristocracia nesse país. É justamente pelo peso do privilégio feudal que Hegel considera formal a liberdade inglesa que ignora a universalidade dos princípios e, em última análise, a igualdade. Para Tocqueville, ao contrário, é nivelamento igualitário que pode esvaziar a liberdade. Liberdade formal e liberdade substancial são por vezes definidas de maneira radicalmente antitética; contudo, é indubitável que essa distinção está presente em ambas as tradições de pensamento aqui confrontadas.”

*: Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, organizada por Georg Lasson, Leipzig, 1930.

**: Enciclopedia delle scienze filosofiche in compendio.

56 Charle-Louis de Secondat de Montesquieu, De l’Esprit des lois, XI, 6.

 

 

“O individualismo por sua natureza não é revolucionário”. (Wilhelm von Humboldt)

 

 

“De tal maneira — nota o jovem hegeliano Karl Marx — os defeitos objetivos de uma instituição são imputados a indivíduos para, sem melhoramento essencial, insinuar a aparência de um melhoramento”[25]. O problema perde sua dimensão objetiva, a atenção é retirada da coisa para se concentrar na pessoa. “No exame da situação estatal somos facilmente tentados a negligenciar a natureza objetiva das relações e explicar tudo a partir da vontade das pessoas agentes”. No entanto, uma correta análise política exige que se identifiquem “relações”, Verhältnisse — o termo, como já vimos, remete diretamente a Hegel — “lá onde, à primeira vista, parecem agir apenas pessoas”[26].

Por comparar o rei a um pingo no “i”, por desvalorizar o indivíduo até de um nível mais alto, na pessoa do monarca, Hegel é considerado por Haym em irremediável contraposição à inspiração de fundo do liberalismo moderno. Mais uma vez, porém, vem à tona a inconsistência da alternativa liberal/conservador, pois Haym indica no individualismo a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a “revolução”. É verdade que, por um lado, o autor de Hegel e seu tempo denuncia o autor por ele investigado como um teórico do absolutismo, mas isso se encaixa no tópos liberal, já visto, que busca  assimilar sob a égide do absolutismo tudo o que não se encaixa na tradição liberal propriamente dita.

 

3. Instituições e questão social

É certo que o individualismo liberal não tem a configuração irredutivelmente intimista própria dos teóricos da reação. Ao menos em sua fase revolucionária, é obrigado a reivindicar leis e instituições que garantam objetivamente a liberdade do indivíduo; mas, com um dos olhos voltado para a miséria da massa, já tende a dissolver a questão social em um problema concernente, exclusivamente ou em primeiro lugar, ao indivíduo, a um problema que não chama tanto em causa a configuração objetiva das relações jurídicas e sociais, como a capacidade, as atitudes, bem como a disposição de ânimo do indivíduo aflito pela pobreza. E isso, para Hegel, é absurdo: “Todos os indivíduos, o coletivo é algo bem diferente dos indivíduos isolados” (Rph., III, p. 154). E dessa observação poderia se aproximar aquela feita algumas décadas mais tarde pelo jovem Engels, para quem o “socialismo” repousa “sobre o princípio da não imputabilidade dos indivíduos”[27], entenda-se, no plano político. A objetividade da questão social não pode emergir sem que a atenção se desloque do indivíduo para as instituições político-sociais.

Mais uma vez, pode ser útil uma comparação com a tradição liberal: partamos de um contemporâneo de Hegel. Para Von Humboldt, deve ser rechaçada com firmeza a visão de que o Estado deve se preocupar positivamente com o bem-estar dos cidadãos. Não, ele tem apenas a tarefa negativa de garantir a segurança e, portanto, a autonomia da esfera privada: “A felicidade a que o homem se destina não é senão aquela que lhe dá a sua força”, sua capacidade[28]. Contrariamente a tantas representações consolidadas, é essa visão liberal que — fazendo coincidir riqueza e mérito individual, atribuindo ao indivíduo a responsabilidade exclusiva de seu insucesso — desemboca na consagração ideológica do status quo, senão para as instituições políticas, pelo menos no que diz respeito às relações sociais e de propriedade. Justamente porque coloca em dúvida essa espécie de harmonia preestabelecida entre mérito e posição social do indivíduo, Hegel destaca as tarefas positivas da comunidade política para resolver ou atenuar o drama da miséria. Segundo a tradição do liberalismo político e econômico, o fim do direito e da vida em sociedade é “a tranquila segurança (Sicherheit) da pessoa e da propriedade; esse objetivo não é posto em discussão por Filosofia do direito, que, porém, dele aproxima, significativa e polemicamente, a garantia ou a “segurança (Sicherung) da subsistência e do bem-estar (Wohl) do indivíduo, isto é, do bem-estar (Wohl) particular” (Rph., 230). Aquela “felicidade” que, segundo Humboldt, remetia apenas à iniciativa e à responsabilidade do indivíduo agora, após ter conquistado uma configuração menos intimista e mais material e objetiva, depois de ter se tornado Wohl, “bem-estar” ligado não a um indefinível estado de ânimo, mas, em primeiro lugar, à “segurança da subsistência”, esse Wohl não só constitui uma “determinação essencial” (V. Rph., III, p. 689-90*) no plano da vida em sociedade, mas exige ser “tratado e realizado enquanto direito” (Rph., 230).

A miséria já se configura em Hegel como uma questão social, que não é explicável simplesmente por suposta preguiça ou por outras características do indivíduo reduzido à miséria. Nítida é a diferenciação em relação a Locke. Segundo este último, o indivíduo pode sempre se dirigir à natureza para assegurar a sobrevivência. De fato, por mais povoado que o mundo pareça”, há sempre terra pronta a dar frutos “em uma região interna ou despovoada da América” ou em outro lugar:

Ouvi dizer que, na Espanha, um homem pode arar, semear e colher despreocupado num terreno ao qual não tem outro direito senão aquele derivado do uso que dele faz. Aliás, os habitantes do lugar são gratos àqueles que, doando o trabalho em terras incultas e, por isso, desertas aumentaram a provisão de trigo de que necessitavam.[29]

Então, o indivíduo deve recriminar apenas a si mesmo pela eventual miséria. Hegel parece responder a Locke quando afirma que “a natureza é fecunda, mas limitada, muito limitada”, e que, no âmbito de uma sociedade desenvolvida, não existem mais terras sem dono e “não se lida mais com a natureza externa” (V. Rph., IV, p. 494). Se em Locke a miséria não chama em causa o ordenamento político-social, o contrário se dá em Hegel: não faz sentido reivindicar um direito em relação à natureza, mas “nas condições da sociedade, no momento que se depende dela e dos homens, a indigência adquire imediatamente a forma de injustiça cometida contra esta ou aquela classe”. Na sociedade civil desenvolvida, o homem não tem mais como referente a natureza, e a miséria não pode mais ser colocada na conta da natureza por meio da categoria de “desgraça” ou calamidade natural (V. Rph., IV, p. 609). Mais uma vez, fica evidente a superioridade ou, talvez, a maior modernidade de Hegel em relação à tradição liberal. Já falamos de Locke. Para Bentham, “a pobreza não é consequência do ordenamento social. Por que, então, recriminá-lo por ela? É uma herança do estado de natureza”[30]. Ao polemizar com o jusnaturalismo, Bentham ironiza o recurso à natureza para fundamentar direitos que fazem sentido apenas no âmbito da sociedade, mas agora a natureza desponta para apagar do âmbito do ordenamento social a responsabilidade pela miséria. E até Tocqueville denuncia como perigosa demagogia querer fazer a “multidão” acreditar que “as misérias humanas são obra das leis, não da providência”[31]. Aqui, providência é outro nome para natureza, serve para indicar uma esfera independente das instituições políticas e das relações sociais que, assim, proclamam a própria inocência.”

[25] Karl Marx, “Bemerkungen über die preuBische Zensurinstruktion” (1843), em MEW, v. I, p. 4.

[26] Idem, “Rechtfertigung des ** Korrespondenten von der Mosel” (1843), em MEW, v. 1, p. 177.

[27] Friedrich Engels, “Die Lage der arbeitenden Klasse in England” (1845), em MEW, v. II, p. 505 [ed. bras.: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, trad. B. A, Schumann, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 328, com alterações para melhor adaptação à tradução oferecida por Domenico Losurdo]

[28] Wilhelm von Humboldt, “Ideen zu einem Versuch die Grãnzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen”, cit., p. 117.

[29] John Locke, Two Treatises of Civil Government, II, § 36.

V. Rph. = Vorlesungen über Rechtsphilosophie, organizada por Karl-Heinz Ilting, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1973-1974.

[30] Assim o discípulo e colaborador de Bentham, P. E. L. Arago, sintetizava fielmente o pensamento do mestre. Ver Jeremy Bentham, “Théorie des peines et des recompenses” (1811), em Œuvres de Jérémie Bentham (3. ed., org. Etienne Dumont, Bruxelas, Hauman, 1840), v. II, p. 201; ver Jeremy Bentham, “Principles of the Civil Code”, em The Works (org. John Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843), v. I, p. 309.

 

 

“A negação da questão social é ainda mais radical no jornalismo neoliberal de nossos dias, que, não por acaso, também em tal negociação, acaba unindo-se a Nietzsche. Hayek não se cansa de repetir que é absurdo falar de justiça ou injustiça “social” diante de um estado de coisas que não é “resultado da vontade consciente” de alguém, diante de um estado de coisas que, não sendo “deliberadamente produzido pelos homens, não tem nem inteligência nem virtude, tampouco justiça ou qualquer outro atributo dos valores humanos”[32]. Nietzsche, por sua vez, polemizando com aqueles que falam de “profundas injustiças” no ordenamento social, acusa-os de ter “imaginado responsabilidades e formas de vontade que não existem de modo algum. Não é lícito falar de injustiça em casos em que não estão presentes as condições preliminares para a justiça e a injustiça”[33]. Assim como em Nietzsche, o protesto social, longe de remeter a condições objetivas e a uma real “injustiça”, remete ao ressentiment, ao rancor que os falidos nutrem pelos melhores e mais afortunados, também para Hayek, o que alimenta a demanda por “justiça social” são “sentimentos” nada elevados, como “o desprezo por pessoas que estão melhor do que nós ou simplesmente a inveja” e “instintos de rapina”34. A objetividade da questão social dissolve-se, dessa forma, na responsabilidade individual e até na psicologia dos indivíduos que sofrem com a condição de miséria.

 

4. Trabalho e otium

Constant nega os direitos políticos aos não proprietários pelo fato de que eles são desprovidos do “lazer (loisir) indispensável para a aquisição da cultura e de um reto juízo”[35]. É nítida a continuidade em relação à tradição de pensamento conservadora e reacionária. O Schelling tardio remete a Aristóteles para se declarar de acordo com ele quanto ao fato de que não pode existir nenhum tipo de ordenamento que não implique, “desde o nascimento” distinção entre dominadores e dominados. Outro acordo se apresenta quanto ao fato de que “a primeira função do Estado é garantir o otium aos melhores”[36]. A demarcação entre dominadores e dominados coincide com a demarcação entre beneficiários do otium e aqueles que são obrigados a uma vida de esforços e dificuldades. Para Nietzsche, o otium é uma condição tão decisiva na aquisição da cultura e da existência de uma civilização em geral que ele não hesita em teorizar a escravidão para aqueles que devem se empenhar na produção material de bens. A linha de continuidade é clara. Constant deixa escapar uma excusatio não solicitada: os trabalhadores manuais obrigados a uma “eterna dependência” porque desprovidos de otium e obrigados a trabalhar noite e dia não são “escravos”, mas apenas “crianças”[37]. Burke não parece ter os mesmos escrúpulos: é natural que as atividades mais humildes sejam “servis”, e aquele que executa uma delas pode bem ser comparado a um instrumentum vocal[38] O whig ou liberal inglês não menciona o erudito romano Varrão[39], de quem cita a definição, mas Nietzsche conhecia muito bem a Antiguidade clássica para não saber que o instrumentum vocal não era senão o escravo.

Essa celebração do otium como pressuposto indispensável da liberdade é um motivo totalmente ausente em Hegel: não por acaso, um celebérrimo capítulo de Fenomenologia demonstra a superioridade cultural do trabalho dos escravos em relação ao otium de seus senhores. Também em relação ao operário moderno, o proprietário que tem a comodidade da riqueza e do otium não pode reivindicar nenhum título de superioridade. Riqueza e propriedade não são, de forma alguma, sinônimo de probidade cívica e de maturidade política, como na tradição liberal. Ao contrário, há um curso de filosofia do direito em que a dialética do escravo e do senhor, que conhecemos de Fenomenologia, parece ser aplicada às novas relações capitalistas: é o escravo antigo ou moderno que representa o momento do progresso e até da cultura substantiva (infra, cap. VII, 7).

Uma análoga celebração do trabalho estaria presente também na tradição liberal? Convém não confundir problemas bastante diferentes. Por trabalho podemos entender a relação homem-natureza, a progressiva ampliação do domínio do homem na natureza, e então é óbvio que essa temática se encontra bem presente em autores como Locke e Smith, que filosofam no país com desenvolvimento capitalista mais avançado, enquanto se delineia a Revolução Industrial. No entanto, quando no trabalho se ressalta a relação homem-homem, é óbvio que estamos na presença de dois comportamentos nitidamente diferentes. E apenas em Hegel que está presente a celebração da superioridade, tanto no plano produtivo quanto no cultural, do trabalho do escravo em comparação ao ócio estéril do senhor. Não, decerto, em Smith. O trabalhador assalariado, devido à obrigação e monotonia do trabalho, “em geral, tão estúpido e ignorante quanto possa ser uma criatura humana”, incapaz de tomar parte em qualquer conversa racional” e até de “conceber qualquer sentimento generoso”, é contraposto em Riqueza das nações àqueles que têm “muito tempo livre, durante o qual podem se aperfeiçoar em todo ramo de conhecimento, útil ou decorativo[40]. A tradição liberal é bem capaz de captar o aspecto alienante do trabalho assalariado, mas não o aspecto formativo e emancipador da atividade produtiva, que, porém, não escapa a Hegel (e a Marx). Uma confirmação evidente desse fato é oferecida por Locke, que, apesar de exibir uma situação real, dá uma descrição em tom quase animalesco dos trabalhadores manuais e dos assalariados, que “vivem geralmente da mão à boca (from hand to mouth) e, de toda forma, obrigados a lutar pela “mera subsistência”, não têm “[...] nunca o tempo e a oportunidade de elevar seus pensamentos acima dela”[41]. Também nesse caso, o otium é o pressuposto da cultura e até de uma existência realmente humana. Não é capaz de vida propriamente intelectual “a maior parte da humanidade, que se dedica ao trabalho e se torna escrava das exigências de sua condição medíocre e cuja vida se consome apenas no suprimento das próprias necessidades”. Esses homens são todos “absorvidos pelo esforço de acalmar as queixas de seu estômago ou os gritos de seus filhos. Não se pode esperar que um homem que se esforça por toda a vida num trabalho pesado saiba da variedade das coisas que existem no mundo, assim como não se pode esperar que um cavalo de carga, levado da casa ao mercado e vice-versa, por trilha estreita e estrada suja, seja conhecedor da geografia do lugar”. Tudo isso não só é um dado de fato, como é um dado de fato imodificável: “Por isso grande parte dos homens, devido ao natural e inalterável estado de coisas neste mundo e à constituição das questões humanas, é inevitavelmente abandonada à ignorância invencível das provas sobre as quais outros constroem e que são necessárias para fundamentar suas opiniões”. Locke não hesita em afirmar que “existe entre alguns homens distância maior do que entre alguns homens e alguns animais”. É verdade que se trata de um tópos clássico presente também em Montaigne, mas é significativo que Locke, para explicitar essa enorme distância que existe entre homem e homem, dê o exemplo, por um lado, do “palácio de Westminster” e da “Bolsa” e, por outro, dos “asilos de mendicância” (além do “manicômio”)[42]. Não se trata, em Locke, de uma ideia isolada, mas de um motivo recorrente: “A diferença é grandíssima entre alguns homens e alguns animais; mas, se compararmos o intelecto e as habilidades de alguns homens e alguns bichos, encontraremos uma diferença tão pequena que será difícil dizer que as habilidades do homem são mais claras e mais extensas.”[43]”

[32] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty (1982; as três partes que compõem a obra são respectivamente de 1973, 1976 e 1979); ed. it.: Legge, legislazione e libertà (trad. Pier Giuseppe Monateri, Milão, II Saggiatore, 1986), p. 271 e 509.

[33] Friedrich Nietzsche, “Nachgelassene Fragmente 1887-1889”, em Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe (org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Munique, Deutscher Taschenbuch, 1980) (+KSA), v. XIII, p. 73-4.

[34] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty, cit.; ed. it., p. 304.

[35] Benjamin Constant, “Principes de politique” (1815), em Œuvres (org. Alfred Roulin, Paris, Gallimard, 1957), p. 1.147.

[36] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “Philosophie der Mythologie”, v.I, em Sämtliche Werke (Sttutgart/Augsburgo, Cotta, 1856-1861), p. 530 e nota.

[37] Benjamin Constant, “Principes de politique”, cit., p. 1.146.

[38] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France”, cit., p. 105; idem, “Thoughts and Details on Scarcity” (1795), em The Works of the Right Honourable Ednumd Burke, cit., v. MI, p. 383.

[39] Marco Terêncio Varrão, De re rustica, I, 17.

[40] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the Wealth of Nations (1775-1776; 3. ed., 1783), Livro I, cap. I, parte III, art. II, p. 782 e 784 (citamos as obras de Smith a partir da reimpressão, Indianápolis, Liberty Fund, 1981, ed. Glasgow: v. I).

[41] John Locke, “Some Considerations of the Consequences of Lowering the Interest and Raising the Value of Money?’ (1691), em The Works (Londres, Thomas Tegg, 1823; ed. Fac-similar: Aalen, 1963), v. V, p. 23-4 e 71.

[42] Idem, An Essay Concerning Human Understanding (1689), IV, XX, 2, e IV, XX, 5. Quanto a Montaigne, cf. Essais (1580), I, 42. Quem, ao contrário, aproxima, sobre o tema do trabalho, Locke e Hegel, é Norberto Bobbio — Studi hegeliani (Turim, Einaudi, 1981) p. 181-2 , que, em tal caso, desiste da tese a ele cara da heterogeneidade entre Hegel e a tradição liberal. Mais uma vez, a tese de Bobbio é também a de Karl-Heinz Ilting, “The Structure of Hegel’s Philosophy of Right”, em Walter Kaufmann (org.), Hegel’s Political Philosophy (Nova York, Atherton, 1970), p. 107, nota 45.

[43] John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, IV, XM, 12.

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