Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-316-5
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Sinopse: Ver Parte
I
“Um dos melhores indicadores da dimensão que
resiste à compreensão pseudo-hegeliana do tratamento psicanalítico como
processo de apropriação, por parte do paciente, do conteúdo reprimido é o
paradoxo da perversão no edifício teórico freudiano: a perversão demonstra a
insuficiência da lógica simples da transgressão. A sabedoria comum nos diz que
os pervertidos fazem na verdade aquilo que os histéricos sonham fazer, pois
“tudo é permitido” na perversão: o pervertido efetiva abertamente todo conteúdo
reprimido – e, ainda assim, como enfatiza Freud, em nenhum lugar o recalque
é tão forte como na perversão, fato amplamente confirmado por nossa
realidade capitalista recente, em que a total permissividade sexual causa
ansiedade e impotência ou frigidez, em vez de libertação. Isso nos obriga a
distinguir entre o conteúdo reprimido e a forma de repressão, quando a forma continua
em operação mesmo depois que o conteúdo deixa de ser reprimido – em suma, o
sujeito pode se apropriar plenamente do conteúdo reprimido, mas a repressão
continua. Ao comentar um sonho curto de uma paciente (uma mulher que a
princípio se recusou a contar o sonho, “porque era muito indistinto e confuso”)
que se revelou uma referência ao fato de ela estar grávida, mas em dúvida
quanto a quem era o pai da criança (isto é, a paternidade era “indistinta e
confusa”), Freud chega a uma conclusão dialética fundamental: “a falta de
clareza exibida pelo sonho era parte do material que a instigara, ou seja,
parte desse material estava representada na forma do sonho. A forma
de um sonho, ou a forma como é sonhado, é empregada com surpreendente
frequência para representar seu tema oculto”57.”
57 Sigmund
Freud, A interpretação dos sonhos, primeira parte (trad. Jayme Salomão,
Rio de Janeiro, Imago, 1996), p. 357. (Volume 4 da edição standard das
obras completas).
“Há algumas décadas, a revista MAD
publicou uma série de variações do tema de como um sujeito pode se relacionar
com uma norma em quatro níveis: por exemplo, em relação à moda, os pobres não
se importam com a maneira de se vestir; a classe média baixa tenta seguir a
moda, mas está sempre atrasada; a classe média alta veste-se de acordo com a
última moda; os que estão no topo, os que ditam as tendências, também não se
importam com a maneira de se vestir, desde que essa maneira seja a moda.
No que diz respeito à lei, os marginais não se importam com o que ela diz,
simplesmente fazem o que querem; os utilitaristas egoístas seguem a lei, mas de
maneira apenas aproximada, quando convém a seus próprios interesses; os
moralistas a seguem estritamente; e os que estão no topo, como a monarquia
absoluta, também fazem o que querem, desde que seja a lei. Nos dois
casos, avançamos da ignorância para o comprometimento parcial e depois para o
pleno comprometimento, mas ainda há um passo além desses três: nesse nível mais
avançado, as pessoas fazem exatamente a mesma coisa que as do nível anterior,
mas com a mesma atitude subjetiva de quem está no nível mais inferior. Isso não
corresponde ao dizer de Agostinho, de que, se temos amor cristão, podemos fazer
o que quisermos, desde que esteja automaticamente em concordância com a lei? E
esses quatro passos também não servem de modelo para a “negação da negação”?
Partimos de uma atitude totalmente não alienada (eu faço o que quero), depois
progredimos para uma alienação parcial (eu restrinjo a mim mesmo, ao meu
egoísmo) e chegamos à alienação total (rendo-me completamente à norma ou à
lei), até que, finalmente, na figura do Mestre, essa alienação total é
autonegada e coincide com seu oposto.”
“Hegel define a reconciliação como
“exteriorização”, um tipo de contramovimento à interiorização dialética padrão
da oposição exterior: aqui, a contradição interna do sujeito é exteriorizada na
relação entre os sujeitos, indicando a aceitação do sujeito de si mesmo como
parte do mundo social exterior que ele mesmo não controla. No sim da
reconciliação é aceita, portanto, uma alienação básica em sentido quase
marxista: o significado dos meus atos não depende de mim, das minhas intenções
– ele é decidido posteriormente, retroativamente. Em outras palavras, o que é
aceito, o que o sujeito tem de assumir, é sua descentralização constitutiva e
radical na ordem simbólica.
“Os dois” da passagem que acabamos de citar
refere-se à oposição entre a consciência que age e a consciência que julga:
agir é errar, o ato é parcial por definição, envolve culpa, mas a consciência
que julga não admite que seu julgar seja também um ato, recusa-se a incluir a
si mesma naquilo que julga. Ela ignora o fato de que o verdadeiro mal reside no
olhar neutro que vê o mal por toda parte, de modo que seja não menos manchado
que a consciência que age.”
“É fato notório que o botão de “fechar a
porta” da maioria dos elevadores é um placebo sem nenhuma função, colocado ali
apenas para nos dar a impressão de que podemos de certo modo acelerar as coisas;
no entanto, quando apertamos o botão, a porta se fecha exatamente no mesmo
momento que fecharia se tivéssemos apertado apenas o botão do andar que
desejamos. Esse caso claro e extremo de falsa participação é uma metáfora
apropriada para a participação dos indivíduos no processo político
“pós-moderno”. Além disso, representa o ocasionalismo em sua forma mais pura:
da perspectiva de Malebranche, estamos de fato apertando esses botões o tempo
todo, e a atividade incessante de Deus é que faz a coordenação entre nossa ação
e o evento que se segue, ainda que pensemos que o evento resulta de nossa ação.
Por esse motivo, é crucial manter aberta a
ambiguidade radical envolvida no modo como o ciberespaço afetará nossas vidas:
ela não depende da tecnologia como tal, mas do modo de sua inscrição social. A
imersão no ciberespaço pode intensificar nossa experiência corporal (uma nova
sensualidade, um novo corpo com mais órgãos, novos sexos...), mas também
oferece, para quem manipula a máquina, a possibilidade de literalmente roubar
nosso próprio corpo (virtual), privando-nos do controle sobre ele, de modo que
não nos relacionemos mais com nosso corpo enquanto “corpo próprio”. Eis a
ambiguidade constitutiva da ideia de mediatização21. Originalmente, o termo se
referia ao ato de arrancar do sujeito seu direito imediato e direto de tomar decisões;
o grande mestre da mediatização política foi Napoleão, que deixava a fachada do
poder para os monarcas dos territórios que ele conquistava, embora não
estivessem mais na posição de usar esse poder. Em um nível mais geral,
poderíamos dizer que apenas essa “mediatização” do monarca define a monarquia
constitucional: nela, o monarca é reduzido a um gesto simbólico puramente
formal de “pôr os pingos nos is”, de firmar e assim conferir força performativa
aos éditos cujo conteúdo tenha sido determinado pelo órgão governamental
eleito. E, mutatis mutandis, o mesmo não seria válido para a
digitalização progressiva de nossa vida cotidiana, no decorrer da qual o sujeito
também é cada vez mais “mediatizado”, imperceptivelmente arrancado de seu
poder, mas o tempo todo com a falsa impressão de que esse poder está
aumentando? Quando nosso corpo é mediatizado (preso na rede da mídia
eletrônica), ele é simultaneamente exposto à ameaça de uma “proletarização”: o
sujeito é potencialmente reduzido ao puro $, posto que até a minha experiência
pessoal pode ser roubada, manipulada, regulada pelo Outro mecânico.”
21 Sobre
essa ambiguidade, ver Paul Virilio, A arte do motor (trad. Paulo Roberto
Pires, São Paulo, Estação Liberdade, 1996).
“Isso nos leva à necessidade da Queda: dado o
elo kantiano entre dependência e autonomia, a Queda é inevitável, um passo
necessário no progresso moral do homem. Ou seja, em termos kantianos precisos:
a “Queda” é a própria renúncia da minha autonomia ética radical; ocorre quando
me refugio em uma Lei heteronômica, em uma Lei entendida como algo que me é
imposto de fora. A finitude em que busco apoio para evitar a vertigem da
liberdade é a finitude da própria Lei heteronômica externa. Nisso reside a dificuldade
de ser kantiano. Todos os pais e todas as mães sabem que as provocações do
filho, por mais selvagens e “transgressivas” que pareçam, no fim das contas
escondem e expressam a necessidade de que uma figura de autoridade estabeleça
limites firmes, trace uma linha que signifique “Até aqui, não mais do que
isso!”, permitindo assim que a criança mapeie claramente o que é e o que não é
possível. (E o mesmo não acontece com as provocações do histérico?) É
exatamente isso que o analista se recusa a fazer, e é isso que o torna tão
traumático para o analisando – paradoxalmente, é o estabelecimento de um limite
firme que é libertador, e é a própria ausência de um limite firme que é vivida
como sufocante.
É por isso que a autonomia kantiana do
sujeito é tão difícil – sua implicação é exatamente não haver mais ninguém, não
haver um agente externo de “autoridade natural” que possa fazer o trabalho por
mim, que eu mesmo tenha de estabelecer o limite da minha “insubordinação”
natural. Embora Kant tenha escrito de modo memorável que o homem é um animal
que precisa de um senhor, não devemos nos iludir: Kant não visava um
lugar-comum filosófico segundo o qual, em contraste com os animais, cujos
padrões de comportamento são baseados em instintos herdados, o homem carece
dessas coordenadas firmes, que, portanto, têm de ser impostas a ele de fora,
por meio de uma autoridade cultural; o verdadeiro objetivo de Kant é antes
apontar como a própria necessidade de um senhor externo é uma isca
enganadora: o homem precisa de um senhor para esconder de si mesmo o
impasse de sua difícil liberdade e responsabilidade por si mesmo. Nesse sentido
preciso, um ser humano “maduro” e verdadeiramente esclarecido é um sujeito que não
precisa mais de um senhor, um sujeito que pode assumir plenamente o pesado
fardo de definir seus próprios limites. Essa lição kantiana (e também
hegeliana) básica foi muito bem colocada por Chesterton:
“Cada ato de vontade é um ato de autolimitação. Desejar uma ação é desejar uma
limitação. Nesse sentido, todas as ações são ações de sacrifício de si mesmo”25.
Desse modo, a lição que temos aqui é, em
sentido preciso, uma lição hegeliana: a oposição externa entre liberdade
(espontaneidade transcendental, autonomia moral e responsabilidade de si) e escravidão
(submissão a minha natureza, a seus instintos “patológicos” ou a um poder
exterior) tem de ser transportada para a liberdade em si como o “maior”
antagonismo entre a liberdade monstruosa enquanto “insubordinação” e a
verdadeira liberdade moral. Contudo, um possível contra-argumento seria que
esse excesso numenal da liberdade (a “insubordinação” kantiana, a “Noite do Mundo”
hegeliana) é o resultado retroativo dos próprios mecanismos disciplinares
(dentro do espírito do tema paulino da “Lei cria a transgressão”, ou o tópico
foucaultiano de como as próprias medidas disciplinares que tentam regular a
sexualidade geram o “sexo” como excesso esquivo) – o obstáculo cria aquilo que
ele se esforça para controlar.”
“A grande originalidade de Hegel está no fato
de ele mostrar exatamente como uma interpretação que não visa nada além da
universalidade, que não admite nenhum papel para a singularidade do exegeta –
uma interpretação, aliás, que se recusa a ser plástica, no sentido de ser ao
mesmo tempo “universal e individual” – seria, na realidade, particular e
arbitrária.1
É muito preciso o que está em jogo nessa
passagem do revolucionário livro de Catherine Malabou sobre Hegel. Toda
interpretação é parcial, “enraizada” na posição subjetiva e fundamentalmente
contingente do sujeito; contudo, longe de impedir o acesso à verdade universal
do texto interpretado, a plena aceitação dessa contingência e da necessidade de
lidar com ela é a única maneira de o intérprete ter acesso à universalidade do conteúdo
do texto. A posição subjetiva e contingente do intérprete produz o ímpeto, a
ânsia ou o anseio que sustenta uma interpretação autêntica. Se quisermos chegar
à universalidade do texto interpretado diretamente, como ele é “em si”, contornando,
apagando ou abstraindo a posição engajada do intérprete, então temos de admitir
a derrota e aceitar o relativismo historicista, ou elevar a um Em-si universal
e determinado o que é de fato uma leitura particular e arbitrária do texto. Em
outras palavras, a universalidade que alcançamos dessa maneira é universalidade
abstrata, uma universalidade que, em vez de abranger, exclui a contingência
do particular. A verdadeira “universalidade concreta” de um texto histórico
notável como Antígona (ou a Bíblia, ou uma peça de Shakespeare) reside
na própria totalidade de suas leituras determinadas historicamente. Aqui, o
aspecto fundamental que devemos ter em mente é que a universalidade concreta
não é universalidade concreta verdadeira se não incluir em si mesma a posição
subjetiva de seu leitor-intérprete como ponto particular e contingente a partir
do qual a universalidade é percebida. Ou seja, no desenvolvimento hegeliano
do processo de cognição, o sujeito da cognição não é apenas o meio universal de
reflexão no qual ocorrem pensamentos particulares, um tipo de receptáculo que
contém, como conteúdo particular, pensamentos sobre determinados objetos. O
oposto também é verdadeiro: o objeto da cognição é um Em-si universal, e o
sujeito representa precisamente o que a palavra “subjetivo” significa em seu
uso padrão, como quando falamos sobre “percepções subjetivas que distorcem o
modo como uma coisa realmente é”. Aqui, a verdadeira particularidade de um
Conceito universal não é apenas a particularidade de sua espécie que pode, como
tal, ser apreendida por um sujeito neutro que observa essa universalidade (como
quando, ao refletir sobre o conceito de Estado, vejo que o Estado em que vivo é
uma espécie particular, e que também há outros tipos de Estados); antes, a
verdadeira particularidade é, em primeiro lugar, a posição subjetiva
particular da qual o Conceito universal é para mim aceitável (no caso do
Estado, o fato de eu ser membro de um Estado particular, enraizado em sua
estrutura ideológica particular, “colore” meu conceito universal de Estado). E,
como Marx sabia muito bem, essa dialética também é válida para a ascensão da
própria universalidade: é somente em uma constelação histórica específica e
particular que a dimensão universal de um Conceito pode surgir “como tal”. O
exemplo de Marx é o trabalho: somente no capitalismo, em que troco minha força
de trabalho por dinheiro enquanto mercadoria universal, é que me relaciono com
minha profissão específica enquanto forma particular contingente de emprego;
somente aqui a noção abstrata de trabalho torna-se um fato social, em contraste
com as sociedades medievais em que o trabalhador não escolhe seu campo de
trabalho como profissão, pois “nasce” diretamente dentro deste. (O mesmo serve
para Freud e sua descoberta da função universal do complexo de Édipo.) Em
outras palavras, a própria lacuna entre uma noção universal e sua forma histórica
particular só aparece em determinada época histórica. Isso significa que
somente passamos realmente da universalidade abstrata para a concreta quando o
sujeito cognoscente perde sua posição externa e se prende no movimento de seu
conteúdo – é só dessa forma que a universalidade do objeto da cognição perde
seu caráter abstrato e entra no movimento de seu conteúdo particular.
Desse modo, devemos distinguir estritamente
entre universalidade concreta e historicismo. Em relação à noção de direitos
humanos, uma leitura marxista sintomática pode identificar de maneira
convincente o conteúdo particular que lhe dá uma ênfase ideológica especificamente
burguesa: os direitos humanos universais são de fato os direitos dos donos de
propriedades, brancos e do sexo masculino, de negociar livremente no mercado e
explorar trabalhadores e mulheres, além de exercer dominação política. No
entanto, a identificação do conteúdo particular que hegemoniza a forma
universal é só a metade da história. A outra metade, igualmente importante,
consiste em fazer uma pergunta muito mais difícil a respeito do surgimento da
forma da própria universalidade. Como, e em que circunstâncias históricas
específicas, a Universalidade abstrata tornou-se um “fato da vida (social)”? Em
que condições os indivíduos vivenciam a si próprios como sujeitos dos direitos
humanos universais? Esse é o argumento da análise marxista do fetichismo da mercadoria:
em uma sociedade em que predomina a troca de mercadorias, os indivíduos, em sua
vida cotidiana, relacionam-se com eles próprios, bem como com os objetos a sua
volta, como encarnações contingentes de noções abstratas e universais. O que
sou, tendo em vista meus antecedentes culturais e sociais concretos, é vivido
como contingente, pois o que me define, em última análise, é a capacidade
universal abstrata de pensar e/ou trabalhar. Qualquer objeto que possa
satisfazer meu desejo é encarado como contingente, porque meu desejo é
concebido como uma capacidade formal abstrata, indiferente à multiplicidade de
objetos particulares que possam satisfazê-lo, mas nunca o satisfazem por
completo. A ideia moderna de profissão, como acabamos de ver, implica que vivencio
a mim mesmo como um indivíduo que não “nasceu” diretamente “dentro” de seu
papel social. O que me tornarei depende do intercâmbio entre as circunstâncias
sociais contingentes e minha escolha livre. O indivíduo contemporâneo tem uma profissão
– é eletricista, professor, garçom –, mas não teria sentido nenhum afirmar que
um servo da época medieval fosse camponês por profissão. Nesse aspecto, a ideia
fundamental é que, mais uma vez, nas condições sociais específicas da troca de
mercadorias dentro de uma economia de mercado global, a “abstração” torna-se
característica direta da vida social efetiva. Ela tem impacto na forma como os
indivíduos se comportam e se relacionam com seu próprio destino e com seu
ambiente social. Marx compartilha a visão de Hegel de como a Universalidade
torna-se “para si” somente na medida em que os indivíduos não identificam mais
de maneira plena o âmago de seu ser com sua situação social particular:
vivenciam-se sempre como “desconjuntados” em relação a essa situação. Em outras
palavras, em determinada estrutura social, a Universalidade torna-se “para si”
somente naqueles indivíduos que carecem de um lugar apropriado nela. Portanto,
o modo de manifestação da Universalidade abstrata, sua entrada na existência
efetiva, gera violência e perturba o antigo equilíbrio orgânico.
Isso não quer dizer apenas que cada
universalidade é perseguida por um conteúdo particular que a corrompe, mas que
cada posição particular é perseguida por sua universalidade implícita, o que a
enfraquece. O capitalismo não é apenas Em-si universal, ele é Para-si universal
enquanto um tremendo poder corrosivo que destrói mundos, culturas e tradições
de vida particulares, atravessando-as e sugando-as para dentro de seu vórtice.
Não faz sentido perguntar se “essa universalidade é genuína ou apenas uma
máscara para interesses particulares?”. Essa universalidade é claramente efetiva
enquanto universalidade, enquanto força negativa para mediar e destruir todo
conteúdo particular. E a mesma lógica vale para a luta emancipatória: a cultura
particular que tenta desesperadamente defender sua identidade tem de reprimir a
dimensão universal que está ativa em seu próprio cerne, ou seja, a lacuna entre
o particular (sua identidade) e o universal que a desestabiliza por dentro. É
por isso que o argumento “deixe nossa cultura em paz” é um fracasso. Em toda
cultura particular, os indivíduos sofrem e protestam – por
exemplo, as mulheres protestam quando são obrigadas a passar por uma
clitoridectomia – e esses protestos contra as restrições paroquiais de
determinada cultura são formulados do ponto de vista da universalidade. A
universalidade efetiva não é o sentimento “profundo” de que diferentes culturas
acabam compartilhando os mesmos valores básicos etc.; a universalidade efetiva
“aparece” (efetiva-se) como a experiência da negatividade, da inadequação para
consigo, de uma identidade particular. A “universalidade concreta” não diz
respeito à relação de um particular com o Todo mais amplo, ao modo como se
relaciona com os outros e com seu contexto, mas sim ao modo como se
relaciona consigo, ao modo como sua identidade particular é clivada de dentro.
Assim, o problema usual da universalidade (como posso ter certeza de que o que
percebo como universalidade não é colorido pela minha identidade particular)
desaparece: a “universalidade concreta” significa exatamente que minha
identidade particular é corroída de dentro, que a tensão entre particularidade
e universalidade é inerente a minha identidade particular – ou, em termos mais
formais, que a diferença específica coincide com a diferença genética.
Em suma, uma universalidade surge “para si”
somente por meio ou no lugar de uma particularidade tolhida. A
universalidade inscreve-se em uma identidade particular enquanto incapacidade
de tornar-se plenamente si mesma: eu sou um objeto universal na medida em que
não posso me realizar na minha identidade particular – por essa razão, o
sujeito universal moderno é, por definição, “desconjuntado”, carente de seu
lugar apropriado no edifício social. Essa tese tem de ser tomada ao pé da
letra: não é apenas que a universalidade se inscreve na minha identidade particular
como ruptura, desconjuntura; a universalidade “em si” é, em sua efetividade, nada
mais que esse corte que impede de dentro toda e qualquer identidade
particular. Em uma dada ordem social, uma alegação universal somente pode ser
feita por um grupo que foi impedido de realizar sua identidade particular –
mulheres tolhidas em seu esforço de realizar sua identidade feminina, um grupo
étnico impedido de afirmar sua identidade e assim por diante. Por esse mesmo
motivo, para Freud, “tudo tem conotação sexual”, pois a sexualidade pode
infectar tudo: não por ser o componente “mais forte” na vida das pessoas e
exercer certa hegemonia sobre todos os outros componentes, mas por ser o
componente mais radicalmente tolhido em sua efetivação, marcado pela “castração
simbólica” por conta da qual, como afirma Lacan, não existe relação sexual.
Cada universalidade que surge, que é posta “como tal”, testemunha uma cicatriz
em alguma particularidade, e permanece para sempre ligada a essa cicatriz.”
“A resposta para a afirmação de Derrida de que cada característica
atribuída exclusivamente ao “homem” é uma ficção não poderia ser esta: tais
ficções têm uma realidade própria, organizam efetivamente as práticas humanas –
os seres humanos são exatamente os animais que se comprometem com suas ficções,
mantendo-se escrupulosamente fiéis a elas (uma versão da afirmação de
Nietzsche, segundo a qual o homem é o animal capaz de fazer promessas)? ”
“De
que maneira então os dois excessos (no topo e na base) se relacionam um com o
outro? A ligação entre os dois não fornece a fórmula para um regime populista
autoritário? Em seu O
18 de brumário, uma análise do primeiro desses regimes (o reinado de
Napoleão III), Marx destacou que, enquanto Napoleão III jogava uma classe
contra a outra, roubando de uma para satisfazer a outra, a única verdadeira
base de classe de seu governo era o lumpemproletariado. De maneira homóloga, o
paradoxo do fascismo é o fato de defender uma ordem hierárquica em que “todos
têm seu lugar apropriado”, ao passo que sua única base social verdadeira é a
populaça (assassinos da SA etc.) – nela, o único elo de classe direto do Líder
é aquele que o liga à populaça, somente no meio da populaça é que Hitler estava
realmente “em casa”.”
“Dizem
que, na China, quando realmente se odeia alguém, o mal que se deseja ao outro
é: “Que você viva em tempos interessantes!”. Hegel tinha plena consciência de
que, em nossa história, “tempos interessantes” são, na verdade, tempos de
inquietação, guerra e lutas de forças, com milhões de observadores inocentes
sofrendo suas consequências: “A história do mundo não é o teatro da felicidade.
Períodos de felicidade são páginas em branco, pois são períodos de harmonia,
períodos de ausência de oposição”34.”
“Aqui, poderíamos reunir, como aspectos da mesma limitação, os dois temas
em que Hegel fracassa (por seus próprios padrões): a populaça e o sexo. Longe
de propiciar o fundamento natural da vida humana, a sexualidade é o verdadeiro
terreno em que os seres humanos se destacam da natureza: a ideia de perversão
sexual, ou de uma paixão sexual mortal, é totalmente alheia ao universo animal.
Nesse aspecto, nem mesmo Hegel atinge os próprios padrões: ele simplesmente
descreve como, por meio da cultura, a substância natural da sexualidade é cultivada,
suprassumida, mediada – nós, seres humanos, já não fazemos amor para procriar,
mas entramos em um processo complexo de sedução e casamento em que a
sexualidade se torna expressão do vínculo espiritual entre homem e mulher etc.
Contudo, o que Hegel não percebe é que, nos seres humanos, a sexualidade não é
apenas transformada ou civilizada, mas sim, e de uma maneira muito mais
radical, modificada em sua própria substância: ela não é mais a pulsão
instintiva de reprodução, mas uma pulsão que se descobre tolhida em relação a
seu objetivo natural (a reprodução) e, com isso, explode em uma paixão
infinita, propriamente metafísica. O devir cultural da sexualidade, portanto,
não é o devir da natureza, mas a tentativa de domesticar um excesso
propriamente desnatural da paixão sexual metafísica. Esse excesso de
negatividade discernível no sexo e na populaça é a própria dimensão da
“insubordinação” identificada por Kant como a liberdade violenta em virtude da
qual o homem, ao contrário dos animais, precisa de um mestre. Portanto, não é
só que a sexualidade seja a substância animal “suprassumida” em rituais e modos
civilizados, remodelada, disciplinada etc., mas o próprio excesso da
sexualidade, a sexualidade como Paixão incondicional que ameaça detonar todas
as restrições “civilizadas”, é resultado da Cultura. Nos termos do Tristão,
de Wagner: a civilização não é apenas o universo do Dia, dos rituais e das
honras que nos cegam, mas a própria Noite, a paixão infinita na qual dois
amantes querem dissolver sua existência ordinária e cotidiana – os animais não
conhecem tal paixão. Desse modo, a civilização/Cultura retroativamente
põe/transforma seu próprio pressuposto natural, retroativamente “desnaturaliza”
a natureza – é o que Freud chamou de id, libido. É desse modo que, também aqui,
ao combater seu obstáculo natural, ou sua substância natural oposta, o Espírito
combate a si mesmo, sua própria essência.
Elisabeth
Lloyd sugere que o orgasmo feminino não tem nenhuma função evolutiva positiva:
ele não é uma adaptação biológica com vantagens evolutivas, mas um “apêndice”,
como os mamilos masculinos35. No estágio embrionário de crescimento,
macho e fêmea têm a mesma estrutura anatômica durante os dois primeiros meses,
antes de aparecerem as diferenças; a fêmea adquire a capacidade do orgasmo
somente porque o macho precisará dela depois, assim como o macho adquire
mamilos somente porque as fêmeas precisarão deles. Todas as explicações usuais
(como a tese da “sucção uterina”, isto é, o orgasmo provoca contrações que
“sugam” o esperma e, assim, ajuda a concepção) são falsas: embora o prazer
sexual e até o clitóris sejam adaptáveis, o orgasmo não é. O fato de
essa tese ter provocado a fúria das feministas é em si uma prova do declínio de
nossos padrões intelectuais: como se a própria superfluidade do orgasmo
feminino não o tornasse ainda mais “espiritual” – não devemos nos esquecer de
que, segundo alguns evolucionistas, a própria linguagem é um subproduto sem
nenhuma função evolutiva clara. Aqui, devemos ficar atentos para não deixar passar
a reversão propriamente dialética da substância: o momento em que o ponto de
partida substancial (“natural”) imediato não é influenciado, transformado,
mediado/cultivado, mas modificado em sua própria substância. Nós não agimos
simplesmente sobre a natureza e assim a transformamos – em um gesto de reversão
retroativa, a própria natureza muda sua “natureza”36. É por isso que
os católicos que insistem que o sexo humano é somente para procriar – e a
cópula por luxúria é bestial – passam totalmente ao largo do problema e acabam
celebrando a animalidade do homem.
Por
que o cristianismo é contra a sexualidade, aceitando-a como mal necessário
apenas quando serve ao propósito natural da procriação? Não porque nossa
natureza inferior emerge na sexualidade, mas exatamente porque a sexualidade
compete com a espiritualidade como atividade metafísica primordial. A hipótese
freudiana diz que a passagem dos instintos animais (de acasalamento) para a sexualidade
propriamente dita (pulsões) é o passo primordial do campo físico da vida
biológica (animal) para a metafísica, para a eternidade e a imortalidade, para
um nível que é heterogêneo com respeito ao ciclo biológico da geração e da
corrupção37. Platão já sabia disso quando escreveu sobre Eros, a
ligação erótica a um corpo belo, como o primeiro passo no caminho para o Bem
supremo; cristãos observadores (como Simone Weil) perceberam no desejo sexual
uma aspiração ao Absoluto. A sexualidade humana é caracterizada pela impossibilidade
de atingir seu objetivo, e essa impossibilidade constitutiva o eterniza, como
no caso dos mitos sobre grandes amantes cujo amor perdura para além da vida e
da morte. O cristianismo concebe esse excesso propriamente metafísico da sexualidade
como um distúrbio que deve ser eliminado; assim, paradoxalmente, é o próprio
cristianismo (sobretudo o catolicismo) que quer se livrar de seu rival,
reduzindo a sexualidade à função animal de procriação: o cristianismo quer
“normalizar” a sexualidade, espiritualizando-a de fora (impondo sobre ela o
invólucro externo da espiritualidade – o sexo deve acontecer em uma relação de
amor, com respeito pelo parceiro ou parceira etc.), obliterando assim sua
dimensão espiritual imanente, a dimensão da paixão incondicional. Até mesmo
Hegel cai nesse erro quando entende a dimensão espiritual propriamente humana
da sexualidade apenas em sua forma cultivada ou mediada, ignorando que essa
mediação transubstancia ou eterniza retroativamente o próprio objeto de sua mediação.
Em todo caso, o objetivo é se livrar do estranho duplo da espiritualidade, de
uma espiritualidade em sua forma libidinal obscena, do excesso que absolutiza o
próprio instinto na pulsão eterna.
A
limitação do conceito de sexualidade em Hegel é claramente discernível em sua
teoria do casamento (na Filosofia
do direito), mas merece ainda assim uma leitura mais atenta: por baixo
da superfície do conceito burguês padrão de casamento escondem-se muitas
implicações perturbadoras. Embora o sujeito entre no casamento voluntariamente,
renunciando à própria autonomia a título de imersão na unidade imediata ou
substancial da família (que funciona com relação a sua aparência como uma
pessoa), a função da família é exatamente o oposto dessa unidade substancial: é
educar quem nasce dentro dela para que a abandone (os pais) e busque o próprio
caminho, independentemente dela. A primeira lição do casamento, portanto, é que
o objetivo maior de cada unidade ética substancial é se dissolver, dando origem
a indivíduos que vão impor sua plena autonomia contra a unidade substancial que
os deu à luz.”
36 De maneira homóloga, quando entramos no domínio da
sociedade civil legal, a ordem tribal de honra e vingança é destituída de sua
nobreza e surge de repente como um crime comum.
“A
distinção entre casamento e concubinato é que este último trata principalmente
da satisfação de um desejo natural, ao passo que essa satisfação é secundária
no primeiro [...]. O aspecto ético do casamento consiste na consciência que os
cônjuges têm dessa unidade enquanto seu objetivo substantivo e assim, em seu
amor, da confiança e do compartilhamento de toda a sua existência como
indivíduos. Quando os cônjuges assumem esse modo de pensar e sua união é
efetiva, a paixão física declina para o nível de um momento físico, destinado a
desaparecer em sua própria satisfação. Por outro lado, o elo espiritual da
união garante seus direitos como substância do casamento e assim se eleva,
inerentemente indissolúvel, a um plano acima da contingência da paixão e da
transitoriedade do capricho particular.44 (...)
Em
termos lacanianos, o casamento subtrai do objeto (cônjuge) “o que há nele mais
que ele”, o objeto a, o objeto-causa do desejo – ele reduz o cônjuge a
um objeto ordinário. A lição do casamento que se tira do amor romântico é: você
ama apaixonadamente certa pessoa? Então se case com ela e veja como ela é na
vida cotidiana, com seus tiques vulgares, suas pequenas mesquinharias, suas
roupas íntimas sujas, seu ronco etc. Devemos ser claros aqui: é função do
casamento vulgarizar o sexo, retirar dele toda a paixão verdadeira e
transformá-lo em um dever entediante. Aliás, deveríamos corrigir Hegel sobre
esse ponto: o sexo em si não é natural, é função do casamento reduzi-lo a um
momento patológico/natural subordinado. Também deveríamos corrigi-lo na
medida em que confunde idealização e sublimação: e se o casamento for o grande
teste do verdadeiro amor, em que a sublimação supera a idealização? Na paixão
cega, o parceiro ou a parceira não são sublimados, mas idealizados; a vida de
casado definitivamente desidealiza o cônjuge, mas não necessariamente o
dessublima.
O
velho ditado “o amor é cego, os amantes não” deveria ser interpretado de
maneira precisa, voltado para a estrutura da renegação: “Eu sei muito bem (que
aquele que amo é cheio de falhas), mas mesmo assim (eu o amo plenamente)”. A
questão, portanto, não é que somos realistas mais cínicos do que parecemos, mas
sim que, quando estamos apaixonados, esse realismo se torna inoperativo: em
nossos atos, obedecemos ao amor cego. Em um velho melodrama cristão, um
ex-soldado acometido de cegueira temporária apaixona-se pela enfermeira que
cuida dele, fica fascinado com sua bondade e cria uma imagem idealizada dela;
quando a cegueira passa, ele vê que ela é feia. Sabendo que esse amor não
sobreviveria a um contato prolongado com essa realidade, e que a beleza
interior de sua boa alma tem mais valor que sua aparência externa, ele
intencionalmente se cega olhando ininterruptamente para o sol, para que seu
amor por aquela mulher possa sobreviver. Se existe uma falsa celebração do
amor, acabamos de citá-la. No verdadeiro amor, não há necessidade de
idealização do objeto, não há necessidade de ignorar as características
dissonantes do objeto: o ex-soldado seria capaz de ver a beleza da enfermeira
resplandecendo através de sua “feiura”.”
44 G. W. F. Hegel, Filosofia
do direito, § 163, p. 175.
“A propósito da guerra, mais uma vez Hegel não é totalmente consistente
com suas próprias premissas teóricas: para ser consistente, teria de reconhecer
a ação jeffersoniana, a óbvia passagem dialética da guerra externa (entre
Estados) à guerra “interna” (revolução, rebelião contra o poder do Estado),
como uma explosão esporádica da negatividade que rejuvenesce o edifício do
poder. É por isso que, ao lermos os infames parágrafos 322-4 da Filosofia do
direito, em que Hegel justifica a necessidade ética da guerra, devemos ter
todo o cuidado para notar a ligação entre sua argumentação e suas proposições
básicas a respeito da negatividade autorrelativa que constitui o verdadeiro
núcleo de um indivíduo livre e autônomo. Ele simplesmente aplica a negatividade
autorrelativa básica da livre subjetividade às relações entre Estados.”
“Hegel
também pensa o inconsciente, mas o inconsciente formal, a forma transcendental
universal do que estou fazendo em oposição ao conteúdo imediato particular que
é o centro da minha atenção – para usar o exemplo mais elementar do começo da Fenomenologia:
quando digo “Agora!”, refiro-me a esse momento particular, mas o que digo é
cada agora, e a verdade está no que digo. O inconsciente freudiano é, ao
contrário, o inconsciente de elos e associações contingentes particulares –
para citar um exemplo freudiano clássico, quando a paciente sonha com o funeral
em que esteve no dia anterior, o “inconsciente” desse sonho foi o fato
totalmente contingente de que, no funeral, a sonhadora se encontrou com um
antigo amor, com quem ela se importava.
Ligado
a isso está a impossibilidade, para Hegel, de pensar a sobredeterminação: ele
pode pensá-la, mas apenas no sentido formal de um gênero universal que inclui a
si mesmo como sua própria espécie e, desse modo, no meio de sua espécie,
encontra a si mesmo nessa “determinação opositiva”. O que ele não consegue
pensar é a rede complexa de elos particulares organizados ao longo das linhas
da condensação, do deslocamento etc. Em termos mais gerais, o processo
hegeliano sempre lida com (re)soluções radicais bem definidas; totalmente
alheia a isso é a lógica freudiana dos compromissos pragmáticos e oportunistas
– algo é rejeitado, mas não totalmente, pois retorna cifrado, é racionalmente
aceito, mas isolado ou neutralizado em seu pleno peso simbólico e assim
sucessivamente. Desse modo, temos uma dança louca de distorções que não seguem
uma lógica clara e inequívoca, mas forma uma colcha de retalhos de conexões
improvisadas.”
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