Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-316-5
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Sinopse: Ver Parte
I
“Como
devemos esclarecer essa esquiva diferença entre Hegel e Freud? Mladen Dolar
propôs interpretar “Hegel é Freud” como o maior juízo filosófico indefinido,
posto que Hegel e Freud só podem aparecer como absolutos opostos: Saber
Absoluto (a unidade entre o sujeito e o Absoluto) versus inconsciente (o
sujeito que não é mestre na própria morada); conhecimento excessivo versus
falta de conhecimento. A primeira complicação nessa oposição simples é que,
para Freud e Lacan, o inconsciente não é apenas um campo instintual cego, mas
também um tipo de conhecimento, um conhecimento inconsciente, um conhecimento
que não conhece a si mesmo (“não sabidos sabidos”, nos termos da epistemologia
de Rumsfeld) – e se o Saber Absoluto deve ser localizado na própria tensão
entre o conhecimento ciente de si e o conhecimento não sabido? E se a
“absolutidade” do saber refere-se não ao nosso acesso ao divino Absoluto-em-si,
ou a uma autorreflexão total pela qual teríamos pleno acesso ao nosso “saber não
sabido” e assim atingiríamos a autotransparência subjetiva, mas sim a uma
sobreposição muito mais modesta (e ainda mais difícil de pensar) entre a falta
do nosso conhecimento “consciente” e a falta inscrita no próprio cerne do nosso
conhecimento não sabido? É nesse nível que devemos situar o paralelo entre
Hegel e Freud: se Hegel descobre a desrazão (contradição, a dança louca dos
opostos que abala qualquer ordem racional) no cerne da razão, Freud descobre a
razão no cerne da desrazão (em atos falhos, sonhos, loucura). Eles compartilham
a lógica da retroatividade: em Hegel, o Um é um efeito retroativo de sua perda,
é o próprio retorno ao Um que o constitui; e, em Freud, a repressão e o retorno
do reprimido são coincidentes, o reprimido é o efeito retroativo do seu
retorno.”
“No domínio
da ideologia, o objeto fantasmático primordial, a mãe de todos os objetos
ideológicos, é o objeto do antissemitismo, o chamado “judeu conceitual”: por
trás do caos do mercado, da degradação dos costumes etc., está a conspiração
judaica. Segundo Freud, a atitude do homem para com a castração envolve uma
clivagem paradoxal: sei que a castração não é uma ameaça efetiva, que não
ocorrerá de fato e, no entanto, sou assombrado por sua perspectiva. O mesmo
vale para a figura do “judeu conceitual”: ele não existe (como parte de nossa
experiência da realidade social), mas, por essa razão, eu o temo ainda mais –
em suma, a própria não existência do judeu na realidade funciona como o
principal argumento para o antissemitismo. Isso equivale a dizer que o discurso
antissemita constrói a figura do judeu como um ente semelhante a um fantasma,
que não pode ser encontrado em lugar nenhum da realidade, e depois usa essa
mesma lacuna entre o “judeu conceitual” e os judeus de fato existentes como o
argumento definitivo para o antissemitismo. Desse modo, somos aprisionados em
uma espécie de círculo vicioso: quanto mais normais as coisas parecem, mais
suspeitas despertam e mais apavorados ficamos. Nesse sentido, o judeu é como o
falo materno: ele não existe na realidade, mas, por essa razão, sua presença
fantasmática e espectral dá origem a uma angústia insuperável. Nisso consiste
também a definição mais sucinta do Real lacaniano: quanto mais meu raciocínio
(simbólico) me diz que X não é possível, mais seu espectro me assombra – como
aquele corajoso inglês que não só não acreditava em fantasmas, como também não
tinha medo deles.”
“Heidegger
gostava de citar um verso de Stefan George: Kein Ding sei wo das Wort
gebricht – nenhuma Coisa existe onde se rompe a palavra. Quando falamos da
Coisa, esse verso deve ser invertido: Ein Ding gibt es nur wo das Wort
gebricht – uma Coisa existe apenas onde se rompe a palavra. A ideia de que
as palavras representam coisas ausentes é rechaçada: a Coisa é uma presença que
surge onde as palavras (representações simbólicas) falham, é uma coisa que
representa a palavra ausente. Nesse sentido, um objeto sublime é “um objeto elevado
à dignidade da Coisa”: o vazio da Coisa não é um vazio na realidade, mas, em
primeiro lugar, um vazio no simbólico, e o objeto sublime é um objeto no lugar
da palavra falhada60. Essa talvez seja a definição mais sucinta de aura:
ela envolve um objeto quando ocupa um vazio (buraco) dentro da ordem simbólica.
Isso indica que o domínio do simbólico é não-Todo – é tolhido a partir de
dentro61.
Repetindo,
o que é presença? Imaginemos a conversa de um grupo em que todos sabem que um
deles tem câncer e sabem que todos do grupo sabem disso; eles conversam sobre
tudo, os livros que leram, os filmes que viram, seus contratempos profissionais,
política... tudo para evitar o assunto do câncer. Em uma situação como essa,
podemos dizer que o câncer está totalmente presente, uma presença pesada
que lança sua sombra sobre tudo o que as pessoas dizem, e que só vai piorando à
medida que se tenta evitá-la.
Então,
e se a verdadeira linha de separação não for a que separa a presença e a
representação simbólica, mas a que cruza essa divisão, cindindo a partir de
dentro cada um dos dois momentos? O “estruturalismo” tem o crédito eterno de
ter “desermeneutizado” o próprio campo do simbólico, de ter tratado a tessitura
significante como independente do universo da experiência do significado; e a
maior realização das elaborações do último Lacan a respeito do Real é ter
revelado uma “presença” intrusiva traumática que provoca estragos em cada
experiência aurática significativa da Presença. Lembramos aqui A náusea,
de Sartre, uma das paradigmáticas abordagens literárias do Real: é muito
difícil, contraintuitivo, subsumir o lodo repugnante do Real inerte sob a categoria
da “aura”. A aura não é precisamente uma “domesticação” do Real, uma tela que
nos protege de seu impacto traumático? O tema de uma presença “deste lado da
hermenêutica” é central para Lacan, para quem a psicanálise não é hermenêutica,
especialmente não uma forma profunda. A psicanálise lida com o sujeito
contemporâneo ao advento do Real moderno, que surge quando o significado é
evacuado da realidade: não só o real científico acessível nas fórmulas
matemáticas, mas também, de Schelling a Sartre, o abismo proto-ontológico da
inércia do “mero real” desprovido de qualquer significado. Para Lacan,
portanto, não há necessidade de uma hermenêutica psicanalítica – a religião
cumpre essa função perfeitamente bem.”
“Heidegger gostava de citar um verso de Stefan
George: Kein Ding sei wo das Wort gebricht – nenhuma Coisa existe onde
se rompe a palavra. Quando falamos da Coisa, esse verso deve ser invertido: Ein
Ding gibt es nur wo das Wort gebricht – uma Coisa existe apenas onde se
rompe a palavra. A ideia de que as palavras representam coisas ausentes é
rechaçada: a Coisa é uma presença que surge onde as palavras (representações
simbólicas) falham, é uma coisa que representa a palavra ausente. Nesse
sentido, um objeto sublime é “um objeto elevado à dignidade da Coisa”: o vazio
da Coisa não é um vazio na realidade, mas, em primeiro lugar, um vazio no
simbólico, e o objeto sublime é um objeto no lugar da palavra falhada60.
Essa talvez seja a definição mais sucinta de aura: ela envolve um objeto quando
ocupa um vazio (buraco) dentro da ordem simbólica. Isso indica que o domínio do
simbólico é não-Todo – é tolhido a partir de dentro61.
Repetindo, o que é presença?
Imaginemos a conversa de um grupo em que todos sabem que um deles tem câncer e
sabem que todos do grupo sabem disso; eles conversam sobre tudo, os livros que
leram, os filmes que viram, seus contratempos profissionais, política... tudo
para evitar o assunto do câncer. Em uma situação como essa, podemos dizer que o
câncer está totalmente presente, uma presença pesada que lança sua
sombra sobre tudo o que as pessoas dizem, e que só vai piorando à medida que se
tenta evitá-la.
Então, e se a verdadeira linha de
separação não for a que separa a presença e a representação simbólica, mas a
que cruza essa divisão, cindindo a partir de dentro cada um dos dois momentos?
O “estruturalismo” tem o crédito eterno de ter “desermeneutizado” o próprio
campo do simbólico, de ter tratado a tessitura significante como independente
do universo da experiência do significado; e a maior realização das elaborações
do último Lacan a respeito do Real é ter revelado uma “presença” intrusiva
traumática que provoca estragos em cada experiência aurática significativa da
Presença. Lembramos aqui A náusea, de Sartre, uma das paradigmáticas
abordagens literárias do Real: é muito difícil, contraintuitivo, subsumir o
lodo repugnante do Real inerte sob a categoria da “aura”. A aura não é
precisamente uma “domesticação” do Real, uma tela que nos protege de seu
impacto traumático? O tema de uma presença “deste lado da hermenêutica” é
central para Lacan, para quem a psicanálise não é hermenêutica, especialmente
não uma forma profunda. A psicanálise lida com o sujeito contemporâneo ao
advento do Real moderno, que surge quando o significado é evacuado da
realidade: não só o real científico acessível nas fórmulas matemáticas, mas
também, de Schelling a Sartre, o abismo proto-ontológico da inércia do “mero
real” desprovido de qualquer significado. Para Lacan, portanto, não há
necessidade de uma hermenêutica psicanalítica – a religião cumpre essa função
perfeitamente bem.”
60 Pippin observou o contraste entre o sublime kantiano e o sublime
religioso: enquanto este visa provocar um assombro humilhante (não sou ninguém
diante do poder divino infinito e inconcebível), na visão “herética” de Kant, a
experiência do sublime é um processo de duas etapas que culmina na asserção da
“supremacia absoluta do homem sobre toda a natureza em virtude de sua vocação
moral e sua independência de qualquer condição ou poder” (Robert Pippin, The
Persistence of Subjectivity, cit., p. 294).
61 Essa falta ou imperfeição do (grande) Outro é
expressa de maneira maravilhosamente simples em uma piada sobre dois amigos que
tentam acertar uma lata com uma bola. Depois de acertá-la várias vezes, um
deles diz: “Mas que diabo, errei!”. O amigo, um religioso fanático, reclama:
“Como se atreve a falar assim, que blasfêmia! Tomara que Deus puna você,
acertando-o com um raio!”. Algum tempo depois, o raio realmente cai, mas acerta
o religioso, que, gravemente ferido e quase morrendo, olha para o céu e pergunta:
“Mas por que acertaste a mim, meu Deus, e não o verdadeiro culpado?”. Uma voz
grave ressoa do céu: “Mas que diabo, errei!”.
“Essa
estrutura do campo escópico em oposição ao campo da visão, essa experiência de
que “quando olho para o mundo, sempre sinto que, de algum modo, as coisas olham
de volta para mim” – em oposição ao puro sujeito cartesiano que percebe o mundo
ao longo de linhas geométricas claras – fornece o dispositif mínimo
subjacente da religião. “Deus” é, em sua forma mais elementar, esse olhar do
Outro devolvido pelos objetos, um olhar imaginado certamente (procuramos em vão
por ele na realidade), mas não menos real. Esse olhar existe apenas para o
sujeito que deseja, como objeto-causa de seu desejo, e não na realidade (exceto
para o psicótico). No amor apaixonado, há momentos em que a pessoa amada sente
que o amante vê nela alguma coisa de que ela mesma não tem consciência – é
somente através do olhar do amante que ela toma consciência dessa dimensão que
existe nela. O que a pessoa amada sente nesses momentos é “o que há nela mais
que ela mesma”, o je ne sais quoi que causa o desejo do amante por ela e
existe somente para o olhar do amante, que, de certa forma, é o correspondente
objetal do desejo, a inscrição do desejo em seu objeto. O que o amante vê é a
parte perdida de si mesmo contida no outro (envolvida por ele). Como tal, o
objeto-olhar não pode ser reduzido a um efeito da ordem simbólica (o grande
Outro): “o olhar permanece do lado do Outro, mesmo se o Outro não existe”69.”
69 Jacques-Alain
Miller, “As prisões do gozo”, cit., p. 25.
“Difícil
não mencionarmos aqui outro incidente envolvendo café no cinema popular, dessa
vez um drama inglês de classe média chamado Um toque de esperança. O
protagonista acompanha uma linda jovem até em casa; quando os dois chegam à entrada
do apartamento, ela pergunta se ele gostaria de entrar e tomar um café. Ele
diz: “Só tem um problema: eu não tomo café”, ao que ela responde com um
sorriso: “Não tem problema, eu também não tenho café...”. A força erótica da
resposta está no modo como – mais uma vez por uma dupla negação – ela faz uma
proposta sexual embaraçosamente direta, sem nem sequer mencionar o sexo: quando
convida o rapaz para um café e admite que não tem café, ela não desfaz o
convite, mas deixa claro que o convite para um café era um substituto ou
pretexto, indiferente em si mesmo, para o convite sexual. Nessa mesma linha,
podemos imaginar um diálogo entre os Estados Unidos e a Europa no fim de 2002,
quando a invasão do Iraque estava sendo preparada. Os Estados Unidos dizem para
a Europa: “Vocês gostariam de se juntar a nós no ataque ao Iraque para
encontrar a arma de destruição em massa (ADM)?”; a Europa responde: “Nós não
temos equipamento para procurar a ADM!”, ao que Rumsfeld replica: “Não tem problema,
não existem nenhuma ADM no Iraque”. A fórmula geral das intervenções
humanitárias não é algo parecido? “Vamos intervir no país X, levando ajuda
humanitária e alívio para o sofrimento que impera lá!” “Mas nossa intervenção
só vai causar mais sofrimento e morte!” “Não tem problema, assim teremos razões
para intervir ainda mais”.”
“A noção-padrão
de amor na psicanálise é reducionista: não existe amor puro, o amor é apenas
luxúria sexual “sublimada”. Até seus últimos ensinamentos, Lacan também insistiu
no caráter narcisista do amor: quando amo o Outro, amo a mim no Outro; ainda
que o Outro seja mais do que eu mesmo, ainda que eu esteja pronto a me sacrificar
pelo Outro, o que amo no Outro é meu Eu idealizado aperfeiçoado, meu Bem
Supremo – mas ainda assim meu Bem. A surpresa aqui é que Lacan inverte a
oposição usual de amor versus desejo como luxúria ética versus
patológica: ele localiza a dimensão ética não no amor, mas no desejo – a ética,
para ele, é a ética do desejo, da fidelidade ao desejo, do não compromisso com
o nosso desejo54.
Além
disso, o último Lacan reafirma surpreendentemente a possibilidade de outro amor
do Outro, autêntico ou puro, o amor do Outro como tal, e não meu outro
imaginário. Ele se refere à teologia medieval e do início da Era Moderna
(Fénélon), que distinguia o amor “físico” do amor “extático” puro. No primeiro
(desenvolvido por Aristóteles e Aquino), só podemos amar o outro se for o meu
bem, por isso amamos a Deus como nosso Bem supremo. No segundo, o sujeito que
ama realiza uma autoanulação total, uma dedicação total ao Outro em sua
alteridade, sem retorno, sem benefício, cujo caso exemplar é a autoanulação
mística. Aqui Lacan se envolve em uma especulação teológica extrema, imaginando
uma situação impossível: “o auge do amor a Deus teria sido dizer-lhe ‘se essa é
a tua vontade, condena-me’, ou seja, o exato oposto da aspiração ao bem
supremo”55. Mesmo que não haja misericórdia de Deus, mesmo que Deus
me condene completamente ao sofrimento exterior, meu amor por Ele é tão grande
que eu continuo a amá-lo plenamente. Isso é amor, se amar é ter le moindre
sens [o mínimo sentido]. François Balmès faz aqui a pergunta adequada: onde
está Deus nisso tudo, por que teologia? Como ele mesmo observa com perspicácia56,
o amor puro deve ser distinguido do desejo puro: este implica o assassinato de
seu objeto, é um desejo purificado de todos os objetos patológicos, como desejo
pelo vazio ou falta em si, ao passo que o amor puro precisa de um Outro radical
para se referir a ele. É por isso que o Outro radical (como um dos nomes do
divino) é correlato necessário do amor puro.”
54 Na hermenêutica da suspeita do amor, Lacan vai
muito além de uma denúncia ordinária da vantagem secreta no amor altruísta –
mesmo que meu sacrifício pelo Outro seja puro, trata-se de um sacrifício
destinado a evitar ou impedir a castração do Outro, a falta no Outro. Aqui, o exemplo
surpreendente é o julgamento-espetáculo stalinista, no qual se espera que o
acusado confesse sua culpa para salvar a pureza do partido.
“O
conceito de Estado nomeia certo problema: como conter o antagonismo de classes
de uma sociedade? Todas as formas particulares de Estado são outras tantas
tentativas (fracassadas) de encontrar uma solução para esse problema.”
“Em Sr.
e Sra. Smith, Brad Pitt e Angelina Jolie representam um casal entediado que
busca aconselhamento com um terapeuta; um não conhece a identidade do outro, e
os dois trabalham (para agências diferentes) como assassinos profissionais (a
trama deslancha, é claro, quando são encarregados de matar um ao outro). Temos
aqui um dilema interpretativo: Pitt e Jolie são um casal comum e sonham
(fantasiam) ser contratados como assassinos profissionais para animar o
casamento ou, ao contrário, são assassinos profissionais que fantasiam ter uma
vida comum de casal? (Aqui há uma ligação com o filme de Hitchcock de mesmo
títulog: ambos são “comédias de recasamentos”.) Quando Karl Kraus
soube que Trotsky, que ele conhecera em Viena antes da Primeira Guerra Mundial,
salvara a Revolução de Outubro organizando o Exército Vermelho, ele retrucou:
“Quem do Café Central esperaria isso de Herr Bronstein!”. Temos mais uma vez
aqui o mesmo dilema: era Trotsky, o grande revolucionário, que tinha de
frequentar o Café Central em Viena como parte de seu trabalho clandestino ou
era o gentil e loquaz Herr Bronstein do Café Central que, posteriormente,
tornou-se o grande revolucionário? As duas situações são variações da famosa
história de Chuang-Tzu sobre se era Chuang-Tzu que sonhava ser uma borboleta ou
se era uma borboleta que sonhava ser Chuang-Tzu. Os ideólogos de múltiplas
identidades cambiáveis gostam de citar essa passagem, mas, via de regra, param
de repente e deixam de fora um insight fundamental: “No entanto, deve
haver alguma diferença entre Chuang-Tzu e uma borboleta!”. Essa lacuna é o
lugar do Real: o Real não é a “verdadeira realidade” para a qual estamos despertos
(se estivermos), mas a própria lacuna que separa um sonho de outro.
Sob
uma análise mais profunda, no entanto, percebemos imediatamente que é preciso
dar mais um passo, pois a relação entre os dois opostos não é simétrica. É
verdade que a “burguesia” nomeia a classe que impede o proletariado de
realizar-se plenamente, mas não é verdade que o proletariado impede a burguesia
de realizar-se plenamente. É verdade que o sujeito masculino impede o sujeito
feminino de realizar-se plenamente, mas o inverso não é verdadeiro. Isso quer
dizer que cada sexo não é simplesmente Um-em-si e Outro-do-Outro: a relação
entre Um e Outro não é puramente formal e, como tal, aplicada a cada um dos
dois sexos, mas reflete-se na própria qualidade dos dois sexos – o sexo masculino
é “em si” Um, e o feminino “em si” (isto é, não pelo seu Outro, mas com
respeito a si) é “o outro sexo” (como afirma Simone de Beauvoir). Portanto, há apenas
um sexo que é si mesmo, o Um, e o outro sexo não é outro Um e muito menos um
tipo de Alteridade substancial oniabrangente que todos habitamos (como a Mãe
primordial). O mesmo vale para a luta de classes: não temos apenas duas
classes; como diz o próprio Marx, há apenas uma classe “como tal”, a burguesia;
as classes anteriores à burguesia (senhores feudais, clero etc.) ainda não são
classes no sentido pleno do termo, sua identidade de classes é encoberta por
outras determinações hierárquicas (castas, estamentos...); depois da burguesia,
há o proletariado, que é uma não classe disfarçada de classe e, como tal, o
Outro não só para a burguesia, mas também para si mesma.”
“Essa
matriz lacaniana da “negação da negação” é claramente identificada na noção de
Leo Strauss acerca da necessidade do filósofo de empregar “mentiras nobres”,
recorrer ao mito ou a narrativas ad captum vulgi. O problema é que
Strauss não extrai todas as consequências da ambiguidade dessa posição, porque
está dividido entre a ideia de que filósofos sábios conhecem a verdade, mas
julgam que é inapropriada para as pessoas comuns, que não podem atestá-la (isso
arruinaria os próprios fundamentos da moralidade, que precisa da “mentira
nobre” de um Deus pessoal que pune os pecados e recompensa as boas ações), e a
ideia de que o núcleo da verdade é inacessível ao pensamento conceitual como
tal, por isso os próprios filósofos têm de recorrer aos mitos e outras formas
de fabulação para preencher as lacunas estruturais em seu conhecimento. É óbvio
que Strauss tem consciência da ambiguidade da condição do segredo: o segredo
não é apenas o que o professor sabe, mas recusa-se a divulgar aos não iniciados;
o segredo também é segredo para o próprio professor, algo que ele não pode
compreender e articular totalmente em termos conceituais. Consequentemente, o
filósofo usa o discurso parabólico e enigmático por duas razões: para esconder
o verdadeiro núcleo de seu ensinamento das pessoas comuns, que não estão
prontas para ele, e porque o uso desse discurso é a única maneira de descrever
as ideias filosóficas mais elevadas74.”
74 Leo Strauss, Persecution and the Art of Writing (Chicago,
University of Chicago Press, 1988), p. 57.
“Desse
modo, podemos expressar a relação entre teoria e prática como um quadrado das
fórmulas de sexuação: do lado esquerdo (masculino), todos os casos são
subsumidos a um conceito universal da teoria clínica/existe pelo menos um caso
que não é subsumido a nenhum conceito universal; do lado direito (feminino),
não há caso nenhum que é subsumido a um conceito universal/não-Todos casos são
subsumidos a um conceito universal. Aqui, o lado feminino (não há nada fora da
teoria, a inconsistência é imanente à teoria, um efeito de seu caráter
não-Todo) é a “verdade” do lado masculino (a teoria é universal, mas solapada
pelas exceções factuais).
A
negação da negação lacaniana também nos permite entender por que a lógica da
suspensão carnavalesca é limitada às sociedades hierárquicas tradicionais:
hoje, dado o desenvolvimento total do capitalismo, é a vida “normal” que de
certo modo é carnavalizada, com sua constante autorrevolução, suas reversões,
crises e reinvenções. Como então devemos revolucionar uma ordem cujo princípio
é o da constante autorrevolução? Esse é o problema da negação da negação: como
negar o capitalismo sem retornar a uma forma de estabilidade pré-moderna (ou,
pior ainda, a algum tipo de “síntese” entre mudança e estabilidade, um
capitalismo estável e orgânico conhecido como fascismo...). Aqui, mais uma vez,
o não não-capitalismo não é uma ordem pré-moderna (ou qualquer combinação entre
modernidade e tradição, essa eterna tentação fascista que hoje está ressurgindo
na forma do confuciano “capitalismo de valores asiáticos”), mas também não é a
superação do capitalismo da forma como Marx o concebia, o que envolvia certa
versão da Aufhebung hegeliana, uma versão do jogar fora a água suja
(exploração capitalista) e manter o bebê saudável (produtividade humana livre).
Nisso reside a má compreensão propriamente utópica da Aufhebung:
distinguir no fenômeno tanto seu núcleo saudável quanto as desafortunadas condições
particulares que impedem a plena efetivação desse núcleo, e depois se livrar
dessas condições, permitindo que o núcleo efetive plenamente seu potencial. O
capitalismo, portanto, é aufgehoben, suprassumido, no comunismo: negado,
porém mantido, posto que seu núcleo essencial é elevado a um nível superior.
Essa abordagem nos cega para o fato de que o obstáculo ao pleno desenvolvimento
da essência é ao mesmo tempo sua condição de possibilidade, tanto que, quando removemos
o falso invólucro das condições particulares, perdemos o núcleo em si. Aqui,
mais que em qualquer outro lugar, a verdadeira tarefa não é jogar fora a água
suja e guardar o bebê, mas jogar fora o bebê supostamente saudável (e a água
suja desaparecerá por – cuidará de – si).
Recordamos
aqui o paradoxo da noção de reflexividade como “o movimento que foi usado para
gerar um sistema torna-se, por meio de uma mudança na perspectiva, parte do
sistema que ele gera”82. Via de regra, essa aparência reflexiva do
movimento gerador dentro do sistema gerado, na qualidade do que Hegel chamou de
“determinação opositiva”, toma a forma de seu oposto: na esfera material, o
Espírito aparece na forma do momento mais inerte (crânio, como em “o Espírito é
um osso”, a pedra negra disforme em Meca); no último estágio de um processo
revolucionário em que a Revolução começa a devorar seus próprios filhos, os
agentes políticos que efetivamente puseram o processo em movimento são
relegados ao papel de principal obstáculo, indecisos ou traidores absolutos,
que não estão prontos para seguir a lógica revolucionária até o fim. Nessa
mesma linha, uma vez que a ordem sociossimbólica está plenamente estabelecida,
a própria dimensão que introduziu a atitude “transcendente” que define um ser
humano, isto é, a sexualidade, a paixão sexual “não morta”, unicamente
humana, aparece como seu próprio oposto, como o principal obstáculo à
elevação de um ser humano à pura espiritualidade, como aquilo que o prende à
inércia da existência corporal. Por essa razão, o fim da sexualidade
representado pelo tão falado ente “pós-humano”, que é capaz de se clonar e deve
surgir em breve, longe de abrir caminho para uma espiritualidade pura,
sinalizará o fim daquilo que é definido tradicionalmente como a capacidade
exclusivamente humana de transcendência espiritual. Apesar de toda a comemoração
das novas e “melhoradas” possibilidades para a vida sexual oferecidas pela
Realidade Virtual, nada pode esconder o fato de que, uma vez que a clonagem
tiver suplementado a diferença sexual, o jogo acabará de fato83.”
83 A propósito, com toda a atenção voltada para as
novas experiências de prazer que vêm por aí com o desenvolvimento da realidade
virtual, os implantes neurais etc., o que dizer das novas e “melhoradas”
possibilidades de tortura? A biogenética e a realidade virtual,
combinadas, não abriram um horizonte novo e sem precedentes para ampliar nossa
capacidade de suportar a dor (ampliando nossa capacidade sensorial de aguentar
a dor, inventando novas formas de infligi-la)? Talvez a figura sadiana
definitiva da vítima de tortura “não morta”, que pode suportar uma dor infinita,
sem apelar para a morte como fuga, também possa se tornar realidade? Talvez, em
uma ou duas décadas, os casos mais tenebrosos de tortura (por exemplo, o que
fizeram com o chefe do estado-maior do Exército dominicano depois do golpe
fracassado, em que o ditador Trujillo foi morto – costuraram seus olhos para
que não pudesse ver os torturadores e, durante quatro meses, cortaram partes de
seu corpo da maneira mais dolorosa possível, como a remoção da genitália com
uma tesoura) parecerão as mais ingênuas brincadeiras de criança.
“Vejamos a última frase da descrição do filme Super 8 na
Wikipédia: “O filme termina com uma nave espacial decolando rumo ao planeta da
criatura, enquanto Joe e Alice se dão as mãos”. O par é formado quando a Coisa,
que servia como obstáculo ambíguo, desaparece – ambíguo porque, não obstante,
era necessário para unir o casal. É isso que significa “na prática” il n’y a
pas de rapport sexuel: a relação direta é impossível, um terceiro objeto
que serve como obstáculo é necessário para estabelecer uma ligação. Melancolia,
de Lars von Trier, mostra uma interessante reversão dessa fórmula clássica de
um objeto-Coisa (asteroide, alienígenas) que serve como o obstáculo que
possibilita a produção do par: no fim do filme, a Coisa (um planeta em rota de
colisão com a Terra) não se afasta, mas atinge a Terra e destrói toda a vida; o
filme trata das diferentes maneiras como os protagonistas lidam com a
catástrofe iminente (do suicídio à aceitação cínica).
Isso
também nos permite abordar de uma nova maneira o conceito de Badiou do “ponto”
como ponto de decisão, como o momento em que a complexidade de uma situação é
“filtrada” por uma disposição binária e depois reduzida a uma simples escolha:
consideradas todas as coisas, somos pró ou contra? (Devemos
atacar ou recuar? Apoiar a proclamação ou nos opor a ela?) Com respeito ao
Terceiro momento enquanto subtração do Dois da hegemonia política, não devemos
nos esquecer de que uma operação básica da ideologia hegemônica é impor um
ponto falso, impor sobre nós uma falsa escolha – como na atual “guerra ao terror”,
em que todos que tentam chamar a atenção para a complexidade e a ambiguidade da
situação são interrompidos, mais cedo ou mais tarde, por uma voz impaciente que
diz: “Tudo bem, chega de confusão. Estamos envolvidos em uma luta difícil, em
que está em jogo o destino do mundo livre, portanto deixe claro qual é sua
verdadeira posição: você apoia ou não a liberdade e a democracia?”95.
O anverso dessa imposição de uma falsa escolha é, obviamente, o ofuscamento da
verdadeira linha divisória – aqui o nazismo, com sua designação do inimigo
judeu como um agente da “conspiração plutocrática bolchevique”, continua
insuperável. Nessa designação, o mecanismo é quase desnudado: a verdadeira
oposição (“plutocratas” versus “bolcheviques”, isto é, capitalistas versus
proletários) é literalmente obliterada, borrada em Um, e nisso consiste a
função do nome “judeu” – servir como operador dessa obliteração. A primeira
tarefa da política emancipatória, portanto, é distinguir entre pontos “falsos” e
“verdadeiros”, escolhas “falsas” e “verdadeiras”, trazer de volta o terceiro elemento
cuja obliteração sustenta a falsa escolha – assim como, hoje, a falsa escolha
da “democracia liberal ou fascismo islâmico” é sustentada pela obliteração da
política emancipatória secular.
Portanto,
devemos ser claros ao rejeitar o perigoso lema “o inimigo do meu inimigo é meu
amigo”, que pode nos levar em particular ao discernimento de um potencial
anti-imperialista “progressivo” nos movimentos islâmicos fundamentalistas. O
universo ideológico de organizações como o Hezbollah é baseado no ofuscamento
das diferenças entre o neoimperialismo capitalista e a emancipação progressista
secular: dentro do espaço ideológico do Hezbollah, a emancipação das mulheres,
os direitos dos homossexuais etc., não são nada mais que o aspecto moral
“decadente” do imperialismo ocidental. Aqui vemos com clareza que a burguesia
funciona de modo masculino e o proletariado, de modo feminino: para a
burguesia, o campo da política é uma relação dupla fechada na qual o inimigo do
meu inimigo é meu amigo, pelo que eles estão pagando caro – os inimigos de
hoje, os fundamentalistas muçulmanos, foram ontem os inimigos do inimigo
(comum) – o comunismo soviético; para o proletariado como não-Todo, o campo não
está fechado de maneira binária – o inimigo do meu inimigo não é meu amigo
(nada de alianças com os fundamentalistas religiosos), mas, por outro lado, ser
um não não-burguês não é ser burguês de novo, mas o nosso (do proletariado)
provável aliado.”
95 Podemos
até imaginar uma versão humanitária dessa chantagem pseudoética: “Tudo bem,
chega de confusão com o neocolonialismo, a responsabilidade do Ocidente etc.
Você quer realmente fazer alguma coisa para ajudar os milhões de pessoas que
sofrem na África ou só quer usá-las para marcar pontos na sua luta
político-ideológica?”.
“Na
“decisão por um Estado”, o povo determina a si mesmo ao decidir por determinado
tipo de Estado ou, para parafrasear um provérbio bem conhecido, “diga-me que
tipo de Estado o povo tem e eu te direi que tipo de povo é.”
“Para
parafrasear um antigo crítico de Renan, nação é um grupo de pessoas unidas por
uma visão errada de seu passado, pelo ódio que sentem hoje por seu próximo e
por ilusões perigosas a respeito de seu futuro. (Por exemplo, os eslovenos de
hoje são unidos pelos mitos sobre o reino esloveno no século XVIII, pelo ódio
que sentem [neste momento] pelos croatas e pela ilusão de que seguem um caminho
para se tornarem a próxima Suíça.) Cada forma histórica é uma totalidade que
engloba não só seu passado posto retroativamente, mas também seu próprio
futuro, um futuro que, por definição, nunca é realizado: é o futuro imanente
desse presente, de modo que, quando a forma presente se desintegra, destrói
também seu passado e seu futuro13. É também dessa maneira que
devemos entender a difração em relação às bordas indefinidas de um objeto: não
pelo senso comum de que, quando o analisamos mais de perto, suas linhas de
demarcação são imprecisas, mas no sentido de que a virtualidade dos movimentos
futuros de um objeto faz parte da realidade desse objeto.”
13 Nessa mesma linha, talvez possamos conceber a
função de onda na física quântica como a teleiosis de um objeto
desprovido da efetividade do objeto, como a direção de um ponto sem sua
realidade.
“(...)
É isso que Hegel quis dizer por singularidade elevada a universalidade: o
aspecto patológico que Kureishi identificou em seu pai faz parte de todo
pai; não existe pai normal, o pai de todo mundo é uma figura que não viveu à
altura de suas expectativas e por isso deixou para o filho a tarefa de quitar
seus débitos simbólicos.”
“De
que maneira a ideologia hegemônica nos prepara para reagir a uma situação como
essa? Há uma anedota (apócrifa, é claro) sobre uma troca de telegramas entre os
quartéis-generais da Alemanha e da Áustria no meio da Primeira Guerra Mundial:
os alemães enviaram a mensagem: “Aqui, do nosso lado do front, a
situação é séria, mas não catastrófica”, ao que os austríacos responderam:
“Aqui, a situação é catastrófica, mas não séria”. Não é dessa maneira que
muitos de nós, pelo menos no Ocidente, lidamos cada vez mais com nossa situação
global? Todos temos conhecimento da catástrofe iminente, mas de certo modo não
podemos levá-la a sério. Na psicanálise, essa atitude é chamada de cisão
fetichista: “Sei muito bem, mas... (não acredito realmente)”, e é uma clara indicação
da força material da ideologia que nos faz recusar o que vemos e conhecemos61.”
61 Um caso exemplar do poder material da ideologia é
o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM),
publicado pela Associação Americana de Psiquiatria. Seu objetivo é fornecer
“uma linguagem comum e um critério-padrão para a classificação dos transtornos
mentais. Ele é usado nos Estados Unidos e em vários níveis no mundo todo, por
clínicos, pesquisadores, agências reguladoras de medicamentos psiquiátricos,
empresas de plano de saúde, indústria farmacêutica e autoridades políticas.
Houve quatro edições revisadas desde que foi publicado em 1952, incluindo
gradualmente mais transtornos, embora alguns tenham sido removidos e não sejam
mais considerados transtornos mentais, mais notavelmente a homossexualidade”; a
próxima edição (a quinta), a DSM-5, deve ser publicada em maio de 2013. (Ver a
entrada da Wikipédia para “Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais”. Baseio-me aqui na análise crítica de Sarah Kamens.) O papel do DSM é
crucial, porque hospitais, clínicas e companhias de seguro costumam exigir um
diagnóstico de DSM de todos os pacientes tratados – e como o complexo médico
industrial nos Estados Unidos movimenta duas vezes mais dinheiro que o
famigerado complexo militar industrial, podemos imaginar as amplas
consequências financeiras de mudanças aparentemente marginais nas
classificações do DSM.
“Embora
seja verdade que o anticapitalismo não pode ser o objetivo direto da ação
política – na política, nós nos opomos aos agentes políticos concretos e suas ações,
não ao “sistema” anônimo –, devemos usar aqui a distinção lacaniana entre meta
e alvo: o anticapitalismo, se não a meta imediata da política emancipatória,
deve ser seu alvo definitivo, o horizonte de toda a sua atividade. Não seria
essa a lição da ideia marxista da “crítica da economia política”? Embora
a esfera da economia pareça “apolítica”, ela é o ponto secreto de referência e
princípio estruturador das lutas políticas.”
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