sábado, 5 de setembro de 2020

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (Parte I), de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-316-5
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Sinopse: Nos últimos dois séculos, a filosofia ocidental se desenvolveu à sombra de G. W. F. Hegel, com cada nova geração tentando escapar de sua influência, em vão. Obra-prima de Slavoj Žižek, um dos filósofos mais ambiciosos da atualidade, Menos que nada retoma o legado hegeliano e apresenta um desenvolvimento sistemático de sua filosofia. O idealismo absoluto de Hegel tornou-se uma espécie de bicho-papão, obscurecendo o fato de ele ser o filósofo dominante da histórica transição à modernidade - período com o qual nosso tempo guarda espantosas semelhanças. Hoje, à medida em que o capitalismo global se autodestrói, iniciamos uma nova transição.
Nesse contexto, Slavoj Žižek defende em seu maior e mais importante livro teórico, publicado pela Boitempo, não só o retorno a Hegel, filósofo dominante da transição histórica, mas também a repetição e a superação de seus triunfos e limitações, por meio da interação com o antifilósofo Jacques Lacan. Para Žižek, a psicanálise e a dialética hegeliana redimem-se mutuamente, desvencilhando-se da pele a qual estão acostumadas, aparecendo em uma forma nova, inesperada. Tal abordagem permite ao mais pop dos filósofos diagnosticar nossa condição atual e também se engajar em um diálogo crítico com os eixos essenciais do pensamento contemporâneo - de Martin Heidegger à Alain Badiou, da física quântica às ciências cognitivas.
Žižek também faz uma releitura de toda a história da filosofia ocidental, em uma narrativa que perpassa o núcleo da relação entre Hegel e Marx. No entanto, a premissa que sustenta a tese deste livro, afirma ele na introdução, é descaradamente hegeliana: ‘aquilo a que nos referimos como o continente da ‘filosofia’ pode ser visto como algo que se estende, tanto quanto quisermos, ao passado ou ao futuro, mas há um momento filosófico único em que a filosofia aparece ‘enquanto tal’ e que serve como chave - a única chave - para lermos toda a tradição anterior e posterior como filosofia (da mesma maneira que Marx afirma que a burguesia é a primeira classe na história da humanidade posta como tal, tanto que é somente com o advento do capitalismo que toda a história torna-se legível como história da luta de classes)’. Esse momento, para o filósofo esloveno, é o idealismo alemão, delimitado por duas datas: 1787, ano em que foi publicada a Crítica da razão pura, de Kant, e 1831, ano da morte de Hegel, um período de poucas décadas que representou uma concentração impressionante de intensidade do pensamento. ‘Nesse curto intervalo, aconteceram mais coisas que nos séculos ou até milênios de desenvolvimento ‘normal’ do pensamento humano. Tudo que aconteceu antes pode e deve ser lido de maneira descaradamente anacrônica como a preparação para essa explosão, e tudo que aconteceu depois pode e deve ser lido exatamente assim: como um período de interpretações, reviravoltas, (más) leituras críticas do idealismo alemão’, afirma Žižek.

“Desse modo, o que um becil sabe que os idiotas e os débeis mentais não sabem? Diz a lenda que, em 1633, Galileu Galilei murmurou: Eppur si muove [E, no entanto, ela se move], depois de desmentir, diante da Inquisição, a teoria de que a Terra se movia ao redor do Sol. Ele não precisou ser torturado, bastou uma visita para conhecer os instrumentos de tortura... Não há nenhuma evidência contemporânea de que ele tenha dito essas palavras. Hoje, a frase é usada para indicar que, embora alguém que tenha o conhecimento verdadeiro seja forçado a renunciar a ele, isso não o impede de ser verdadeiro. Mas o que torna essa frase tão interessante é o fato de poder ser usada no sentido oposto, para afirmar uma verdade simbólica “mais profunda” de algo que não é literalmente verdade – como a própria frase “Eppur si muove”, que pode ser falsa como fato histórico sobre a vida de Galileu, mas é verdadeira como designação de sua posição subjetiva quando foi obrigado a renunciar a suas visões. É nesse sentido que um materialista pode dizer que, embora saiba que não existe um deus, a ideia de um deus não obstante o “move”. É interessante notar que em “Terma”, um dos episódios da quarta temporada de Arquivo X, “Eppur si muove” substitui a usual “A verdade está lá fora”, significando que, embora a existência de monstros alienígenas seja negada pela ciência oficial, eles estão lá fora. Mas também pode significar que, ainda que não haja alienígenas lá fora, a ficção de uma invasão alienígena (como a que está presente em Arquivo X) pode nos envolver e comover: para além da ficção da realidade, existe a realidade da ficção3.”
3 O eppur si muove de Freud foi a ressalva do professor Charcot, que ele sempre repetia: “La théorie, c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister” (“A teoria é uma coisa boa, mas não impede de existir [os fatos que não se encaixam nela]”). É desnecessário dizer que a mesma ambiguidade vale para a teoria, isto é, ela não deveria ser reduzida a mero empirismo.


“Kafka estava certo (como sempre) quando escreveu: “Um dos meios que o mal possui é o diálogo”.”


“Hegel estava certo ao apontar repetidas vezes que, quando falamos, estamos sempre no universal – o que significa que, com sua entrada na linguagem, o sujeito perde suas raízes no mundo vivido concreto. Em termos mais patéticos, posso dizer que, no momento em que começo a falar, deixo de ser o eu sensualmente concreto, pois sou apanhado em um mecanismo impessoal que sempre me faz dizer algo diferente do que eu queria dizer – ou, como costumava dizer o primeiro Lacan, eu não estou falando, estou sendo falado pela linguagem. Essa é uma das maneiras de entendermos o que Lacan chamou de “castração simbólica”: o preço que o sujeito paga por sua “transubstanciação” do ser agente de uma vitalidade animal direta para ser um sujeito falante cuja identidade é mantida à parte da validade direta das paixões.”


“O processo dialético, portanto, é mais refinado do que parece: a noção corrente é que só podemos chegar à verdade final pelo caminho do erro, de modo que os erros ao longo do caminho não sejam simplesmente descartados, mas “suprassumidos” na verdade final, preservados nela enquanto momentos seus. Essa noção evolucionista do processo dialético diz que o resultado não é apenas um cadáver, ele não subsiste sozinho, na abstração do processo que o engendra: nesse processo, diferentes momentos surgiram primeiro em sua forma imediata unilateral, enquanto a síntese final os reúne como suprassumidos, mantendo seu núcleo racional. O que falta nessa ideia é que os momentos prévios são preservados precisamente como supérfluos. Em outras palavras, apesar de os estados precedentes serem realmente supérfluos, precisamos de tempo para chegar ao ponto a partir do qual podemos ver que eles são supérfluos.”


“Mas e a retroatividade de um gesto que (re)constitui esse passado em si? Talvez esta seja a definição mais sucinta do que é um ato autêntico: em nossa atividade costumeira, nós apenas seguimos efetivamente as coordenadas (virtuais-fantasmáticas) de nossa identidade, ao passo que um ato propriamente dito envolve o paradoxo de um movimento real que (retroativamente) muda as coordenadas “transcendentais” virtuais do ser de seu agente – ou, em termos freudianos, ele não só muda a atualidade de nosso mundo, como também “move seu submundo”. Desse modo, temos um tipo reflexivo de “desdobramento da condição sobre o dado para o qual ela era a condição”35: enquanto o passado puro é a condição necessária para nossos atos, nossos atos não só criam uma nova realidade atual, mas também mudam retroativamente essa mesma condição.
Isso nos leva à ideia deleuziana de signo: as expressões atuais são signos de uma Ideia virtual que não é um ideal, mas antes um problema. O senso comum nos diz que há soluções verdadeiras e falsas para todos os problemas; para Deleuze, ao contrário, não há soluções definitivas para os problemas, as soluções são simplesmente tentativas repetidas de lidar com o problema, com seu impossível-real. Os problemas em si, e não as soluções, é que são verdadeiros ou falsos. Cada solução não só reage a “seu” problema, mas define-o retroativamente, formula-o de dentro de seu próprio horizonte específico. Por essa razão, o problema é universal e as soluções ou respostas são particulares. Deleuze, nesse ponto, aproxima-se surpreendentemente de Hegel: para este, a Ideia de Estado, digamos, é um problema, e cada forma específica do estado (república antiga, monarquia feudal, democracia moderna...) simplesmente propõe uma solução, redefinindo o problema em si. A passagem para o próximo estado “mais elevado” do processo dialético ocorre exatamente quando, em vez de continuar procurando uma solução, nós problematizamos o problema em si, abandonando seus termos – por exemplo, em vez de continuar procurando um Estado “verdadeiro”, nós abandonamos a própria referência ao Estado e procuramos uma existência comunal além do Estado. Um problema, portanto, não é apenas “subjetivo”, não é apenas epistemológico, não diz respeito apenas ao sujeito que tenta resolvê-lo; ele é ontológico stricto sensu, inscrito na coisa em si: a estrutura da realidade é “problemática”. Isto é, a realidade atual só pode ser apreendida como uma série de respostas a um problema virtual – por exemplo, na leitura de Deleuze da biologia, o desenvolvimento do olho como órgão deve ser entendido como uma solução para o problema de como lidar com a luz.”
35 James Williams, Gilles Deleuze’s Difference and Repetition, cit., p. 109.


“Formas atuais ou constituídas deslizam pela rede sem causar nenhuma impressão, pois a rede é feita para vibrar apenas em contato com formas virtuais ou intensivas. Quanto mais efêmero e molecular for o movimento, mais intensa será sua ressonância na rede. A rede responde aos movimentos de uma multiplicidade pura antes que ela tome qualquer forma definida.38
Isso nos coloca diante do problema central da ontologia de Deleuze: como se relacionam o virtual e o atual? “As coisas atuais expressam Ideias, mas não são causadas por elas”39. A noção de causalidade é limitada à interação de processos e coisas atuais; por outro lado, essa interação também causa os entes virtuais (sentido, Ideias): Deleuze não é idealista, Sentido para ele é sempre uma sombra ineficaz estéril que acompanha as coisas atuais. O que isso significa é que, para Deleuze, gênese (transcendental) e causalidade são coisas totalmente opostas: elas se dão em diferentes níveis.
As coisas atuais têm uma identidade, ao contrário das virtuais, que são puras variações. Para que expresse algo, uma coisa atual tem de mudar – tornar-se algo diferente –, ao passo que a coisa virtual expressa não muda – o que muda é apenas sua relação com outras coisas virtuais, outras intensidades e Ideias.40
Como essa relação muda? Somente por meio das mudanças nas coisas atuais que expressam Ideias, pois todo o poder gerativo reside nas coisas atuais: as Ideias pertencem ao domínio do Sentido, que é “apenas um vapor movendo-se no limite das coisas e das palavras”; como tal, o Sentido é “o Ineficaz, estéril incorpóreo, privado de seu poder de gênese”41. Pensemos em um grupo de indivíduos lutando pela Ideia de comunismo: para entender sua atividade, temos de levar em conta a Ideia virtual. Mas essa Ideia é, em si, estéril, não tem causalidade própria: toda causalidade reside nos indivíduos que a “expressam”.
A lição que deve ser tirada do paradoxo básico do protestantismo (como é possível que uma religião que ensina a predestinação tenha sustentado o capitalismo, a maior explosão de atividade e liberdade humanas da história) é que a liberdade não é nem necessidade apreendida (a vulgata de Espinosa a Hegel e os marxistas tradicionais) nem necessidade negligenciada/ignorada (a tese das ciências cognitivas e do cérebro: liberdade é a “ilusão do usuário” da nossa consciência, que não tem ciência dos processos bioneurais que a determinam), mas uma Necessidade que é pressuposta como/e desconhecida/desconhecível. Sabemos que tudo é predeterminado, mas não sabemos o que é nosso destino predeterminado, e é essa incerteza que direciona nossa incessante atividade. A infame declaração de Freud de que a “anatomia é o destino” poderia ser interpretada segundo essa linha como um juízo especulativo hegeliano em que o predicado “converte-se” em sujeito. Ou seja, seu verdadeiro significado não é o significado óbvio, o alvo-padrão da crítica feminista (“a diferença anatômica entre os sexos determina diretamente os diferentes papéis sociossimbólicos de homens e mulheres”), mas seu oposto: a “verdade” da anatomia é “destino”, em outras palavras, uma formação simbólica. No caso da identidade sexual, uma diferença anatômica é “suprassumida”, transformada no meio de aparição/expressão – mais precisamente, no suporte material – de determinada formação simbólica.
É dessa maneira que deveríamos diferenciar historicidade propriamente dita de evolução orgânica. Nesta, um Princípio universal diferencia-se lenta e gradualmente; como tal, continua sendo o impassível fundamento subjacente e oniabrangente que unifica a movimentada atividade dos indivíduos que lutam, o processo interminável de geração e corrupção que é o “círculo da vida”. Na história propriamente dita, ao contrário, o Princípio universal está preso em uma luta “infinita” consigo mesmo; ou seja, a luta é, a cada vez, uma luta pelo destino da própria universalidade. Na vida orgânica, os momentos particulares estão em luta uns com os outros, e por meio dessa luta o Universal se reproduz; no Espírito, o Universal está em luta consigo mesmo.
É por isso que os momentos eminentemente “históricos” são aqueles marcados por grandes colisões, em que toda uma forma de vida é ameaçada, quando as normas culturais e sociais estabelecidas não mais garantem um mínimo de estabilidade e coesão; nessas situações abertas, uma nova forma de vida tem de ser inventada, e é nesse ponto que Hegel localiza o papel dos grandes heróis. Eles atuam em uma zona pré-legal, apátrida: sua violência não é limitada pelas regras morais, eles impõem uma nova ordem com a vitalidade subterrânea que estilhaça todas as formas estabelecidas. Segundo a doxa usual sobre Hegel, os heróis seguem paixões instintivas, seus verdadeiros motivos e objetivos não são claros para eles mesmos, eles são instrumentos inconscientes de uma necessidade histórica mais profunda e dão origem a uma nova forma de vida espiritual. No entanto, como aponta Lebrun, não devemos imputar a Hegel a noção teleológica tradicional de uma mão invisível da Razão puxando as cordas do processo histórico, seguindo um plano estabelecido de antemão e usando as paixões dos indivíduos como instrumentos para sua implementação. Primeiro, como o significado de seus atos é a priori inacessível aos indivíduos que os realiza, inclusive aos heróis, não existe uma “ciência da política” capaz de predizer o curso dos eventos: “ninguém jamais terá direito a se declarar depositário do Saber-de-Si do Espírito”42, e essa impossibilidade “protege Hegel do fanatismo da ‘responsabilidade objetiva’”43. Em outras palavras, não há lugar em Hegel para a figura marxista-stalinista do revolucionário comunista que entende a necessidade histórica e se põe como o instrumento de sua implementação. Contudo, é crucial acrescentarmos mais um elemento: se apenas afirmamos essa impossibilidade, continuamos “concebendo o Absoluto como Substância, não como Sujeito” – continuamos presumindo que existe um Espírito preexistente que impõe sua Necessidade substancial na história enquanto aceita que o conhecimento dessa Necessidade nos seja negado. Para sermos consistentemente hegelianos, no entanto, precisamos dar mais um passo crucial e insistir que a Necessidade histórica não preexiste ao processo contingente de sua efetivação, isto é, que o processo histórico é, em si, “aberto”, indeterminado – essa mistura confusa “gera sentido na medida em que se revela”:
São os homens, e somente eles, que fazem a História, ao passo que o Espírito é o que nesse fazer se explicita. [...] Não se trata mais, como nas teodiceias ingênuas, de encontrar uma justificativa para cada acontecimento. No momento mesmo, nenhuma harmonia celeste se faz escutar, ante o ruído, o furor. Porém, uma vez que o tumulto se recolheu, se fez passado, uma vez que o acontecido (o que adveio) se converteu em concebido, é lícito dizer, numa palavra, que “o curso da História” já se delineia um pouco mais. Se a História progride, é para quem olha para trás; se é progressão de uma linha de sentido, é por retrospecção. [...] a “Necessidade-Providência” hegeliana é tão pouco autoritária que mais parece aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus desígnios.44
É assim que deveríamos ler a tese de Hegel de que, no curso do desenvolvimento dialético, as coisas “tornam-se aquilo que são”: não que um desdobramento temporal simplesmente efetive uma estrutura conceitual atemporal preexistente – essa estrutura conceitual é em si o resultado de decisões temporais contingentes.”
38 Peter Hallward, Out of This World, cit., p. 118.
39 James Williams, Gilles Deleuze’s Difference and Repetition, cit., p. 200.
40 Idem.
41 Gilles Deleuze, Diferença e repetição, cit., p. 225.
42 Gérard Lebrun, O avesso da dialética, cit., p. 33.
43 Ibidem, p. 34.
44 Ibidem, p. 34-6.


“O exemplo histórico evocado por Lacan para esclarecer esse “duplo movimento” está indicado em suas referências ocultas: “primeiro tempo, o homem que trabalha na produção em nossa sociedade inclui-se na categoria dos proletários; segundo tempo, em nome desse vínculo, ele faz greve geral”47. A referência (implícita) de Lacan nesse ponto é História e consciência de classe, de Lukács, obra marxista clássica de 1923 cuja aclamada tradução francesa foi publicada em meados da década de 1950. Para Lukács, a consciência é oposta ao mero conhecimento de um objeto: o conhecimento é externo ao objeto conhecido, ao passo que a consciência é, em si, “prática”, um ato que muda o próprio objeto. (Uma vez que o trabalhador “inclui-se na categoria dos proletários”, isso muda sua própria realidade: ele age de maneira diferente.) O sujeito faz algo, considera-se (declara-se) aquele que o fez e, tendo essa declaração como base, faz algo novo – o momento próprio da transformação subjetiva ocorre no momento da declaração, não no momento do ato. Esse momento reflexivo da declaração significa que cada elocução não só transmite um conteúdo, mas ao mesmo tempo determina como o sujeito se relaciona com esse conteúdo. Até mesmo os mais realísticos objetos e atividades sempre contêm essa dimensão declarativa, que constitui a ideologia da vida cotidiana.”
47 Jacques Lacan, Escritos (trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1998), p. 287.


“A relação hegeliana entre necessidade e liberdade é comumente lida em termos de sua derradeira coincidência: a verdadeira liberdade não tem nada a ver com escolha caprichosa; significa a primazia da relação consigo sobre a relação com o outro. Em outras palavras, um ente é livre quando consegue desenvolver seu potencial imanente sem ser impedido por nenhum obstáculo interno. A partir daí é possível desenvolver o argumento-padrão contra Hegel: seu sistema é um conjunto totalmente “saturado” de categorias, sem lugar para a contingência e para a indeterminação, pois na lógica de Hegel cada categoria resulta, com uma inexorável necessidade lógico-imanente, da categoria anterior, e toda a série de categorias forma um Todo fechado em si mesmo. Podemos entender agora o que escapa ao seu argumento: o processo dialético hegeliano não é o Todo necessário, “saturado” e autocontido, mas o processo aberto e contingente pelo qual esse Todo se forma. Em outras palavras, a crítica confunde ser com devir: ela percebe como uma ordem fixa do Ser (a rede de categorias) o que, para Hegel, é o processo do Devir, que engendra retroativamente sua necessidade.”


“Desse modo, é apenas ao aceitar totalmente essa circularidade abissal, em que a própria busca cria aquilo que procura, que o Espírito “encontra a si mesmo”. É por isso que devemos atribuir todo o seu valor ao verbo “fracassar”, conforme usado por Pippin: o fracasso em atingir o fim (imediato) é absolutamente crucial para esse processo (e constitutivo dele) – ou, como diz Lacan, la verité surgit de la méprise [a verdade surge da equivocação]. Se, portanto, “é apenas como resultado de si que ele é espírito”66, isso significa que o discurso sobre o Espírito hegeliano que se aliena para si mesmo e depois se reconhece em sua alteridade e assim se reapropria de seu conteúdo é profundamente equivocado: o Si para o qual retorna o Espírito é produzido no momento exato de seu retorno, ou aquilo para que o processo do retorno está retornando é produzido pelo exato processo do retornar. Em um processo subjetivo, não há nenhum “sujeito absoluto”, nenhum agente central permanente brincando consigo mesmo o jogo da alienação e da desalienação, perdendo-se ou dispersando-se e depois se reapropriando de seu conteúdo alienado: depois que uma totalidade substancial é dispersada, é outro agente – antes seu momento subordinado – que a retotaliza. É essa mudança do centro do processo de um momento para outro que distingue um processo dialético do movimento circular da alienação e de sua superação; é por causa dessa mudança que o “retorno-a-si-mesmo” coincide com a alienação realizada (quando um sujeito retotaliza o processo, sua unidade substancial perde-se totalmente). Nesse sentido preciso, a substância retorna a si mesma como sujeito, e essa transubstanciação é o que a vida substancial não pode realizar.
A lógica da tríade hegeliana, portanto, não é a exteriorização da Essência seguida da recuperação, pela Essência, da alteridade alienada, mas algo totalmente diferente. O ponto inicial é a pura multiplicidade do Ser, um aparecer plano, sem nenhuma profundidade. Pela automediação de sua inconsistência, esse aparecer constrói ou engendra a Essência, o profundo, que aparece nela e através dela (a passagem do Ser à Essência). Por fim, na passagem da Essência ao Conceito, as duas dimensões são “reconciliadas”, de modo que a Essência é reduzida à automediação, cortada, dentro do próprio aparecer: a Essência aparece como Essência dentro do aparecer, essa é toda a sua consistência, sua verdade. Consequentemente, quando Hegel fala de como a Ideia “exterioriza” (entäussert) a si mesma nas aparências contingentes, e depois se reapropria de sua exterioridade, ele aplica uma de suas muitas designações incorretas: o que ele descreve, na verdade, é o processo oposto, o da “interiorização”, um processo em que a superfície contingente do ser é posta como tal, como exterior-contingente, como “mera aparência”, com o intuito de gerar, em um movimento autorreflexivo, (a aparência da) sua própria “profundidade” essencial. Em outras palavras, o processo em que a Essência se exterioriza é a um só tempo o processo que gera essa mesma essência: a “exteriorização” é estritamente a mesma coisa que a formação da Essência que se exterioriza. A Essência constitui-se retroativamente por meio de seu processo de exteriorização, de sua perda – é desse modo que deveríamos entender a tão citada declaração de Hegel de que a Essência é tão profunda quanto ampla.
É por isso que o tema pseudo-hegeliano do sujeito que primeiro se exterioriza e depois se reapropria de sua Alteridade substancial alienada deve ser rejeitado. Em primeiro lugar, não há nenhum sujeito preexistente que se aliena ao pôr sua alteridade: o sujeito stricto sensu surge por esse processo de alienação no Outro. É por isso que o segundo movimento – Lacan o chama de separação –, em que a alienação do sujeito no Outro é posta como correlativa da separação do Outro em si de seu núcleo ex-timod, essa sobreposição de duas faltas, não tem nada a ver com o sujeito integrar ou interiorizar sua alteridade.”


“Quando Marx descreve a insana circulação do capital, que se autoaperfeiçoa e atinge seu apogeu nas especulações metarreflexivas atuais sobre futuros, é demasiado simplista afirmar que o espectro desse monstro que se autoengendra e persegue seus interesses sem dar a mínima para as preocupações humanas ou ambientais é uma abstração ideológica e que, por trás dessa abstração, há pessoas reais e objetos naturais em cujos recursos e capacidades produtivas se baseia a circulação do capital e dos quais este se alimenta como um parasita gigante. O problema é que essa “abstração” não é apenas característica da percepção equivocada que nós (ou o especulador financeiro) temos da realidade social, mas também que ela é “real”, no sentido preciso de determinar a estrutura dos próprios processos sociais materiais: o destino de camadas inteiras da população, e às vezes de países inteiros, pode ser decidido pela dança especulativa “solipsista” do Capital, que persegue seu objetivo de lucratividade com uma abençoada indiferença em relação aos efeitos que seus movimentos terão sobre a realidade social. Nisso reside a violência sistêmica fundamental do capitalismo, muito mais estranha que a inequívoca violência socioideológica pré-capitalista: ela não é mais imputável aos indivíduos concretos e a suas “más” intenções, mas sim puramente “objetiva”, sistêmica, anônima.
Encontramos aqui a diferença lacaniana entre realidade e Real: “realidade” é a realidade social das pessoas atuais envolvidas na interação e nos processos produtivos, ao passo que o Real é o inexorável espectro “abstrato” lógico do Capital que determina o que acontece na realidade social. Essa lacuna se torna tangível no modo como a situação econômica de um país pode ser considerada boa e estável por economistas internacionais, mesmo quando a maioria do povo está em situação pior que antes – a realidade não importa, o que importa é a situação do Capital. E, hoje, não seria isso mais verdadeiro do que nunca? Os fenômenos geralmente classificados como característicos do “capitalismo virtual” (mercado futuro e especulações financeiras assemelhadas) não apontam na direção do reino da “abstração real” em sua forma mais pura, muito mais radical que na época de Marx? Em suma, a forma mais elevada de ideologia não envolve ser preso na espectralidade ideológica, deixando para trás as relações e as pessoas reais, mas precisamente ignorar esse Real da espectralidade e fingir abordar de maneira direta “as pessoas reais e seus problemas reais”. Os visitantes da Bolsa de Valores de Londres recebem um folheto que explica como o mercado de ações não diz respeito a flutuações misteriosas, mas sim a pessoas reais e seus produtos – isso é ideologia em sua forma mais pura.
Aqui, na análise do universo do Capital, não deveríamos apenas empurrar Hegel na direção de Marx, o próprio Marx deveria ser radicalizado: em termos hegelianos, é somente hoje que, em relação ao capitalismo global em sua forma “pós-industrial”, o capitalismo realmente existente está chegando ao nível de seu conceito. Talvez devêssemos seguir mais uma vez o velho lema antievolucionista de Marx (a propósito, retirado verbatim de Hegel) de que a anatomia do homem fornece a chave para a anatomia do macaco – isto é, para descrever a estrutura conceitual inerente de uma formação social, devemos partir de sua forma mais desenvolvida. Marx localizou o antagonismo capitalista elementar na oposição entre valor de uso e valor de troca: no capitalismo, o potencial dessa oposição é plenamente realizado, o domínio do valor de troca adquire autonomia, é transformado no espectro do capital especulativo que se autopropulsiona e usa as carências e as capacidades produtivas das pessoas atuais somente enquanto sua encarnação temporária descartável. Marx derivou sua noção de crise econômica dessa exata lacuna: uma crise ocorre quando a realidade alcança a ilusória miragem autogeradora do dinheiro que gera mais dinheiro – essa loucura especulativa não pode continuar indefinidamente, ela tem de explodir em crises cada vez mais sérias. A derradeira raiz da crise é, para Marx, a lacuna entre valor de uso e valor de troca: a lógica do valor de troca segue seu próprio caminho, sua própria dança louca, independentemente das carências reais das pessoas reais. Essa análise talvez pareça altamente relevante nos dias de hoje, quando a tensão entre o universo virtual e o real está chegando a proporções quase insuportáveis: por um lado, temos especulações solipsistas malucas sobre futuros, fusões etc., seguindo sua própria lógica inerente; por outro, a realidade está se efetivando na forma de catástrofes ambientais, pobreza, colapso da vida social no Terceiro Mundo e propagação de novas doenças*. (...)
Isso nos obriga a reformular completamente o velho tópico marxista da “reificação” e do “fetichismo da mercadoria”, na medida em que este último ainda se baseia em uma noção de fetiche enquanto objeto sólido, cuja presença constante ofusca sua mediação social. Paradoxalmente, o fetichismo atinge seu apogeu no exato momento em que o próprio fetiche é “desmaterializado”, transformado em uma entidade virtual “imaterial” fluida; o fetichismo do dinheiro culminará com a passagem a sua forma eletrônica, quando os últimos traços de sua materialidade desaparecerão – o dinheiro eletrônico é a terceira forma, depois do dinheiro “real”, que encarna diretamente seu valor (em prata ou ouro), e o dinheiro de papel, embora seja “mero signo”, sem nenhum valor intrínseco, continua preso a uma existência material. E é somente nesse estágio, quando o dinheiro se torna um ponto de referência puramente virtual, que ele finalmente assume a forma de uma presença espectral indestrutível: devo $1.000, e não importa quantas notas materiais eu queime, vou continuar devendo $1.000, o débito está inscrito em algum lugar do espaço virtual digital.”
*: Destaque-se que o livro é de 2012, muito antes da eclosão da Covid-19.


“Mas que tipo de liberdade é desencadeada dessa maneira? Aqui devemos fazer uma pergunta clara e brutal em toda a sua ingenuidade: se rejeitarmos a crítica de Marx e adotarmos a noção de Hegel da coruja de Minerva que levanta voo somente no crepúsculo – ou seja, se aceitarmos a afirmação de Hegel de que a posição de um agente histórico capaz de identificar seu próprio papel no processo histórico e agir de maneira adequada é inerentemente impossível, pois essa autorreferencialidade impossibilita que o agente leve em consideração o impacto de sua própria intervenção, o modo como seu próprio ato afeta a constelação –, quais são as consequências dessa posição para o ato, para as intervenções políticas emancipatórias? Isso não significa que estamos condenados a agir às cegas, a dar passos arriscados em direção a um desconhecido cujo resultado final nos escapa totalmente, a intervenções cujo significado só podemos estabelecer retroativamente, de modo que, no momento do ato, tudo o que podemos fazer é esperar que a história tenha misericórdia (graça) e retribua nossa intervenção com pelo menos uma pitada de sucesso? Mas e se, em vez de conceber essa impossibilidade de considerarmos as consequências de nossos atos como uma limitação de nossa liberdade, nós a concebermos como a condição (negativa) basilar de nossa liberdade?
A ideia de liberdade como necessidade conhecida encontra sua expressão mais elevada no pensamento de Espinosa, e não há dúvida de que ele deu também a mais sucinta definição da ideia personalizada de Deus: o único Deus verdadeiro é a própria natureza, isto é, a substância como causa sui, como tessitura eterna de causas-efeitos. A ideia personalizada de Deus como um velho sábio que, sentado em algum lugar do céu, governa o mundo segundo seus caprichos, não é nada mais que a expressão positiva mistificada de nossa ignorância – como nosso conhecimento das redes causais naturais e efetivas é limitado, nós, por assim dizer, preenchemos as lacunas projetando uma Causa suprema em um ente desconhecido extremamente elevado. Da perspectiva hegeliana, Espinosa deve ser visto apenas de maneira mais literal do que ele próprio estava disposto a se ver: e se essa falta ou incompletude da rede causal não seja apenas epistemológica, mas também ontológica? Mas e se essa incompletude não se referir apenas ao nosso conhecimento da realidade, mas também à realidade em si? Nesse caso, não seria também a ideia personalizada de Deus um indicativo (um indicativo mistificado, mas ainda assim um indicativo) da incompletude ontológica da realidade em si? Ou, nos termos da distinção hegeliana clássica entre o que quero ou pretendo dizer e o que realmente digo, quando digo “Deus” quero nomear a Pessoa absoluta transcendente que governa a realidade, mas o que realmente digo é que a realidade é ontologicamente incompleta, marcada por uma impossibilidade ou inconsistência fundamental.”


“Cabe fazermos aqui uma distinção precisa entre parte pressuposta ou sombria do que aparece como objetos ônticos e o horizonte ontológico de seu aparecer. Por um lado, como desenvolvido de maneira brilhante por Husserl em sua análise fenomenológica da percepção, toda percepção – até mesmo de um objeto ordinário – envolve uma série de suposições sobre seu lado não visto, bem como sobre suas origens; por outro lado, um objeto sempre aparece dentro de certo horizonte de “pré-juízos” hermenêuticos que fornecem um quadro a priori no qual situamos o objeto e que, desse modo, o tornam inteligível – observar a realidade “sem pré-juízos” significa não entender nada. A mesma dialética de “pôr os pressupostos” tem um papel fundamental em nosso entendimento da história.”


“Assim, a propósito da afirmação de Schelling de que a consciência do homem surge do ato primitivo que separa a consciência atual-presente do campo espectral e sombrio do inconsciente, temos de fazer uma pergunta aparentemente ingênua, porém crucial: o que é exatamente inconsciente aqui? A resposta de Schelling é inequívoca: “inconsciente” não é primariamente o movimento rotatório das pulsões lançadas no passado eterno; “inconsciente” é antes o próprio ato de Ent-Scheidung pelo qual as pulsões foram lançadas no passado. Ou, em termos ligeiramente diferentes, o que é verdadeiramente “inconsciente” no homem não é o oposto imediato da consciência, o vórtice obscuro e confuso das pulsões “irracionais”, mas sim o próprio gesto fundador da consciência, o ato de decisão no qual eu “escolho a mim mesmo”, pelo qual combino essa multitude de pulsões na unidade do meu Si. O “inconsciente” não é a substância passiva de pulsões inertes que será usada pela atividade “sintética” criativa do Eu consciente; o “inconsciente”, em sua dimensão mais radical, é antes o mais nobre Feito da minha autoposição, ou (recorrendo a termos “existencialistas” posteriores) a escolha do meu “projeto” fundamental, que, para permanecer operante, deve ser “reprimido”, mantido longe da luz do dia. Vejamos uma citação das admiráveis páginas finais do segundo rascunho do Weltalter:
O feito primordial que torna um homem genuinamente ele mesmo precede todas as ações individuais, mas, imediatamente depois que é posto em exuberante liberdade, esse feito afunda na noite do inconsciente. Não se trata de um feito que poderia acontecer uma vez e acabar em seguida; é um feito permanente, um feito interminável e, consequentemente, jamais pode ser colocado diante da consciência. Para que o homem saiba desse feito, a consciência em si teria de retornar ao nada, à liberdade sem limites, e deixaria de ser consciência. Esse feito acontece e imediatamente depois retorna para as insondáveis profundezas; é exatamente dessa forma que a natureza adquire permanência. Também aquela vontade, posta no início e então exteriorizada, deve imediatamente afundar na inconsciência. Somente dessa maneira é possível um início, um início que não deixa de ser início, um início verdadeiramente eterno. Pois aqui é igualmente verdade que o início não pode conhecer a si mesmo. O feito, uma vez feito, é feito para toda a eternidade. A decisão que de certa forma está verdadeiramente prestes a ter início deve ser devolvida à consciência; não deve ser chamada de volta, pois isso implicaria ser tomada de volta. Se, ao tomar uma decisão, conservamos o direito de reexaminar nossa escolha, jamais estaremos começando.17
O que temos aqui é, obviamente, a lógica do “mediador em desaparição”: do gesto fundador da diferenciação que deve afundar na invisibilidade, uma vez que a diferença entre o vórtice das pulsões “irracionais” e o universo do lógos esteja em jogo. O passo fundamental de Schelling, portanto, não é simplesmente fundamentar o universo ontologicamente estruturado do lógos no terrível vórtice do Real; se fizermos uma leitura cuidadosa, perceberemos uma premonição em sua obra de que esse terrificante vórtice do Real pré-ontológico é em si (acessível a nós somente na forma de) uma narrativa fantasmática, um engodo feito para detrair o verdadeiro corte traumático, o corte do ato abissal de Ent-Scheidung.”
17 Slavoj Žižek e F. W. J. von Schelling, The Abyss of Freedom/Ages of the World (trad. Judith Norman, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1997), p. 181-2.

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