Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-316-5
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Sinopse: Nos últimos dois séculos, a filosofia ocidental se desenvolveu à
sombra de G. W. F. Hegel, com cada nova geração tentando escapar de sua
influência, em vão. Obra-prima de Slavoj Žižek, um dos filósofos mais
ambiciosos da atualidade, Menos que nada
retoma o legado hegeliano e apresenta um desenvolvimento sistemático de sua
filosofia. O idealismo absoluto de Hegel tornou-se uma espécie de bicho-papão,
obscurecendo o fato de ele ser o filósofo dominante da histórica transição à
modernidade - período com o qual nosso tempo guarda espantosas semelhanças.
Hoje, à medida em que o capitalismo global se autodestrói, iniciamos uma nova
transição.
Nesse contexto, Slavoj Žižek defende em seu maior e mais
importante livro teórico, publicado pela Boitempo, não só o retorno a Hegel,
filósofo dominante da transição histórica, mas também a repetição e a superação
de seus triunfos e limitações, por meio da interação com o antifilósofo Jacques
Lacan. Para Žižek, a psicanálise e a dialética hegeliana redimem-se mutuamente,
desvencilhando-se da pele a qual estão acostumadas, aparecendo em uma forma
nova, inesperada. Tal abordagem permite ao mais pop dos filósofos diagnosticar
nossa condição atual e também se engajar em um diálogo crítico com os eixos
essenciais do pensamento contemporâneo - de Martin Heidegger à Alain Badiou, da
física quântica às ciências cognitivas.
Žižek também faz uma releitura de toda a história da
filosofia ocidental, em uma narrativa que perpassa o núcleo da relação entre
Hegel e Marx. No entanto, a premissa que sustenta a tese deste livro, afirma
ele na introdução, é descaradamente hegeliana: ‘aquilo a que nos referimos como
o continente da ‘filosofia’ pode ser visto como algo que se estende, tanto
quanto quisermos, ao passado ou ao futuro, mas há um momento filosófico único
em que a filosofia aparece ‘enquanto tal’ e que serve como chave - a única
chave - para lermos toda a tradição anterior e posterior como filosofia (da
mesma maneira que Marx afirma que a burguesia é a primeira classe na história
da humanidade posta como tal, tanto que é somente com o advento do capitalismo
que toda a história torna-se legível como história da luta de classes)’. Esse
momento, para o filósofo esloveno, é o idealismo alemão, delimitado por duas
datas: 1787, ano em que foi publicada a Crítica da razão pura, de Kant, e 1831,
ano da morte de Hegel, um período de poucas décadas que representou uma
concentração impressionante de intensidade do pensamento. ‘Nesse curto
intervalo, aconteceram mais coisas que nos séculos ou até milênios de
desenvolvimento ‘normal’ do pensamento humano. Tudo que aconteceu antes pode e
deve ser lido de maneira descaradamente anacrônica como a preparação para essa
explosão, e tudo que aconteceu depois pode e deve ser lido exatamente assim:
como um período de interpretações, reviravoltas, (más) leituras críticas do
idealismo alemão’, afirma Žižek.
“Desse modo, o que um becil sabe que os
idiotas e os débeis mentais não sabem? Diz a lenda que, em 1633, Galileu
Galilei murmurou: Eppur si muove [E, no entanto, ela se move], depois de
desmentir, diante da Inquisição, a teoria de que a Terra se movia ao redor do
Sol. Ele não precisou ser torturado, bastou uma visita para conhecer os
instrumentos de tortura... Não há nenhuma evidência contemporânea de que ele
tenha dito essas palavras. Hoje, a frase é usada para indicar que, embora
alguém que tenha o conhecimento verdadeiro seja forçado a renunciar a ele, isso
não o impede de ser verdadeiro. Mas o que torna essa frase tão interessante é o
fato de poder ser usada no sentido oposto, para afirmar uma verdade simbólica
“mais profunda” de algo que não é literalmente verdade – como a própria frase “Eppur
si muove”, que pode ser falsa como fato histórico sobre a vida de Galileu,
mas é verdadeira como designação de sua posição subjetiva quando foi obrigado a
renunciar a suas visões. É nesse sentido que um materialista pode dizer que,
embora saiba que não existe um deus, a ideia de um deus não obstante o “move”.
É interessante notar que em “Terma”, um dos episódios da quarta temporada de Arquivo
X, “Eppur si muove” substitui a usual “A verdade está lá fora”, significando
que, embora a existência de monstros alienígenas seja negada pela ciência
oficial, eles estão lá fora. Mas também pode significar que, ainda que não haja
alienígenas lá fora, a ficção de uma invasão alienígena (como a que está
presente em Arquivo X) pode nos envolver e comover: para além da ficção
da realidade, existe a realidade da ficção3.”
3 O eppur si
muove de Freud foi a ressalva do professor Charcot, que ele sempre repetia:
“La théorie, c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister” (“A teoria é uma coisa
boa, mas não impede de existir [os fatos que não se encaixam nela]”). É desnecessário
dizer que a mesma ambiguidade vale para a teoria, isto é, ela não deveria ser
reduzida a mero empirismo.
“Kafka estava certo (como sempre) quando
escreveu: “Um dos meios que o mal possui é o diálogo”.”
“Hegel estava certo ao apontar repetidas
vezes que, quando falamos, estamos sempre no universal – o que significa que,
com sua entrada na linguagem, o sujeito perde suas raízes no mundo vivido
concreto. Em termos mais patéticos, posso dizer que, no momento em que começo a
falar, deixo de ser o eu sensualmente concreto, pois sou apanhado em um
mecanismo impessoal que sempre me faz dizer algo diferente do que eu queria
dizer – ou, como costumava dizer o primeiro Lacan, eu não estou falando, estou
sendo falado pela linguagem. Essa é uma das maneiras de entendermos o que Lacan
chamou de “castração simbólica”: o preço que o sujeito paga por sua “transubstanciação”
do ser agente de uma vitalidade animal direta para ser um sujeito falante cuja
identidade é mantida à parte da validade direta das paixões.”
“O processo dialético, portanto, é mais
refinado do que parece: a noção corrente é que só podemos chegar à verdade
final pelo caminho do erro, de modo que os erros ao longo do caminho não sejam
simplesmente descartados, mas “suprassumidos” na verdade final, preservados
nela enquanto momentos seus. Essa noção evolucionista do processo dialético diz
que o resultado não é apenas um cadáver, ele não subsiste sozinho, na abstração
do processo que o engendra: nesse processo, diferentes momentos surgiram
primeiro em sua forma imediata unilateral, enquanto a síntese final os reúne
como suprassumidos, mantendo seu núcleo racional. O que falta nessa ideia é que
os momentos prévios são preservados precisamente como supérfluos. Em
outras palavras, apesar de os estados precedentes serem realmente supérfluos,
precisamos de tempo para chegar ao ponto a partir do qual podemos ver que eles
são supérfluos.”
“Mas e a retroatividade de um gesto que
(re)constitui esse passado em si? Talvez esta seja a definição mais sucinta do
que é um ato autêntico: em nossa atividade costumeira, nós apenas
seguimos efetivamente as coordenadas (virtuais-fantasmáticas) de nossa identidade,
ao passo que um ato propriamente dito envolve o paradoxo de um movimento real
que (retroativamente) muda as coordenadas “transcendentais” virtuais do ser de
seu agente – ou, em termos freudianos, ele não só muda a atualidade de nosso
mundo, como também “move seu submundo”. Desse modo, temos um tipo reflexivo de
“desdobramento da condição sobre o dado para o qual ela era a condição”35:
enquanto o passado puro é a condição necessária para nossos atos, nossos atos
não só criam uma nova realidade atual, mas também mudam retroativamente essa
mesma condição.
Isso nos leva à ideia deleuziana de signo:
as expressões atuais são signos de uma Ideia virtual que não é um ideal, mas
antes um problema. O senso comum nos diz que há soluções verdadeiras e
falsas para todos os problemas; para Deleuze, ao contrário, não há soluções
definitivas para os problemas, as soluções são simplesmente tentativas
repetidas de lidar com o problema, com seu impossível-real. Os problemas em
si, e não as soluções, é que são verdadeiros ou falsos. Cada solução não só
reage a “seu” problema, mas define-o retroativamente, formula-o de dentro de
seu próprio horizonte específico. Por essa razão, o problema é universal e as
soluções ou respostas são particulares. Deleuze, nesse ponto, aproxima-se
surpreendentemente de Hegel: para este, a Ideia de Estado, digamos, é um
problema, e cada forma específica do estado (república antiga, monarquia
feudal, democracia moderna...) simplesmente propõe uma solução, redefinindo o
problema em si. A passagem para o próximo estado “mais elevado” do processo
dialético ocorre exatamente quando, em vez de continuar procurando uma solução,
nós problematizamos o problema em si, abandonando seus termos – por exemplo, em
vez de continuar procurando um Estado “verdadeiro”, nós abandonamos a própria
referência ao Estado e procuramos uma existência comunal além do Estado. Um
problema, portanto, não é apenas “subjetivo”, não é apenas epistemológico, não
diz respeito apenas ao sujeito que tenta resolvê-lo; ele é ontológico stricto
sensu, inscrito na coisa em si: a estrutura da realidade é “problemática”.
Isto é, a realidade atual só pode ser apreendida como uma série de respostas a
um problema virtual – por exemplo, na leitura de Deleuze da biologia, o
desenvolvimento do olho como órgão deve ser entendido como uma solução para o
problema de como lidar com a luz.”
“Formas atuais ou constituídas deslizam pela
rede sem causar nenhuma impressão, pois a rede é feita para vibrar apenas em
contato com formas virtuais ou intensivas. Quanto mais efêmero e molecular for
o movimento, mais intensa será sua ressonância na rede. A rede responde aos
movimentos de uma multiplicidade pura antes que ela tome qualquer forma
definida.38
Isso nos coloca diante do problema central da
ontologia de Deleuze: como se relacionam o virtual e o atual? “As coisas atuais
expressam Ideias, mas não são causadas por elas”39. A noção de
causalidade é limitada à interação de processos e coisas atuais; por outro
lado, essa interação também causa os entes virtuais (sentido, Ideias): Deleuze
não é idealista, Sentido para ele é sempre uma sombra ineficaz estéril que
acompanha as coisas atuais. O que isso significa é que, para Deleuze, gênese
(transcendental) e causalidade são coisas totalmente opostas: elas se
dão em diferentes níveis.
As coisas atuais têm uma identidade, ao
contrário das virtuais, que são puras variações. Para que expresse algo, uma
coisa atual tem de mudar – tornar-se algo diferente –, ao passo que a coisa
virtual expressa não muda – o que muda é apenas sua relação com outras coisas
virtuais, outras intensidades e Ideias.40
Como essa relação muda? Somente por meio
das mudanças nas coisas atuais que expressam Ideias, pois todo o poder gerativo
reside nas coisas atuais: as Ideias pertencem ao domínio do Sentido, que é
“apenas um vapor movendo-se no limite das coisas e das palavras”; como tal, o
Sentido é “o Ineficaz, estéril incorpóreo, privado de seu poder de gênese”41.
Pensemos em um grupo de indivíduos lutando pela Ideia de comunismo: para
entender sua atividade, temos de levar em conta a Ideia virtual. Mas essa Ideia
é, em si, estéril, não tem causalidade própria: toda causalidade reside nos
indivíduos que a “expressam”.
A lição que deve ser tirada do paradoxo
básico do protestantismo (como é possível que uma religião que ensina a predestinação
tenha sustentado o capitalismo, a maior explosão de atividade e liberdade
humanas da história) é que a liberdade não é nem necessidade apreendida (a
vulgata de Espinosa a Hegel e os marxistas tradicionais) nem necessidade
negligenciada/ignorada (a tese das ciências cognitivas e do cérebro: liberdade
é a “ilusão do usuário” da nossa consciência, que não tem ciência dos processos
bioneurais que a determinam), mas uma Necessidade que é pressuposta como/e
desconhecida/desconhecível. Sabemos que tudo é predeterminado, mas não
sabemos o que é nosso destino predeterminado, e é essa incerteza que
direciona nossa incessante atividade. A infame declaração de Freud de que a
“anatomia é o destino” poderia ser interpretada segundo essa linha como um
juízo especulativo hegeliano em que o predicado “converte-se” em sujeito. Ou
seja, seu verdadeiro significado não é o significado óbvio, o alvo-padrão da
crítica feminista (“a diferença anatômica entre os sexos determina diretamente
os diferentes papéis sociossimbólicos de homens e mulheres”), mas seu oposto: a
“verdade” da anatomia é “destino”, em outras palavras, uma formação simbólica.
No caso da identidade sexual, uma diferença anatômica é “suprassumida”,
transformada no meio de aparição/expressão – mais precisamente, no suporte
material – de determinada formação simbólica.
É dessa maneira que deveríamos diferenciar historicidade
propriamente dita de evolução orgânica. Nesta, um Princípio universal
diferencia-se lenta e gradualmente; como tal, continua sendo o impassível
fundamento subjacente e oniabrangente que unifica a movimentada atividade dos
indivíduos que lutam, o processo interminável de geração e corrupção que é o
“círculo da vida”. Na história propriamente dita, ao contrário, o Princípio universal
está preso em uma luta “infinita” consigo mesmo; ou seja, a luta é, a cada vez,
uma luta pelo destino da própria universalidade. Na vida orgânica, os momentos
particulares estão em luta uns com os outros, e por meio dessa luta o Universal
se reproduz; no Espírito, o Universal está em luta consigo mesmo.
É por isso que os momentos eminentemente
“históricos” são aqueles marcados por grandes colisões, em que toda uma forma
de vida é ameaçada, quando as normas culturais e sociais estabelecidas não mais
garantem um mínimo de estabilidade e coesão; nessas situações abertas, uma nova
forma de vida tem de ser inventada, e é nesse ponto que Hegel localiza o papel
dos grandes heróis. Eles atuam em uma zona pré-legal, apátrida: sua violência
não é limitada pelas regras morais, eles impõem uma nova ordem com a vitalidade
subterrânea que estilhaça todas as formas estabelecidas. Segundo a doxa usual
sobre Hegel, os heróis seguem paixões instintivas, seus verdadeiros motivos e
objetivos não são claros para eles mesmos, eles são instrumentos inconscientes
de uma necessidade histórica mais profunda e dão origem a uma nova forma de
vida espiritual. No entanto, como aponta Lebrun, não devemos imputar a Hegel a
noção teleológica tradicional de uma mão invisível da Razão puxando as cordas
do processo histórico, seguindo um plano estabelecido de antemão e usando as
paixões dos indivíduos como instrumentos para sua implementação. Primeiro, como
o significado de seus atos é a priori inacessível aos indivíduos que os
realiza, inclusive aos heróis, não existe uma “ciência da política” capaz de
predizer o curso dos eventos: “ninguém jamais terá direito a se declarar
depositário do Saber-de-Si do Espírito”42, e essa impossibilidade
“protege Hegel do fanatismo da ‘responsabilidade objetiva’”43. Em
outras palavras, não há lugar em Hegel para a figura marxista-stalinista do
revolucionário comunista que entende a necessidade histórica e se põe como o
instrumento de sua implementação. Contudo, é crucial acrescentarmos mais um
elemento: se apenas afirmamos essa impossibilidade, continuamos “concebendo o Absoluto
como Substância, não como Sujeito” – continuamos presumindo que existe um
Espírito preexistente que impõe sua Necessidade substancial na história
enquanto aceita que o conhecimento dessa Necessidade nos seja negado. Para
sermos consistentemente hegelianos, no entanto, precisamos dar mais um passo
crucial e insistir que a Necessidade histórica não preexiste ao processo
contingente de sua efetivação, isto é, que o processo histórico é, em si,
“aberto”, indeterminado – essa mistura confusa “gera sentido na medida em
que se revela”:
São os homens, e somente eles, que fazem a
História, ao passo que o Espírito é o que nesse fazer se explicita. [...] Não
se trata mais, como nas teodiceias ingênuas, de encontrar uma justificativa
para cada acontecimento. No momento mesmo, nenhuma harmonia celeste se
faz escutar, ante o ruído, o furor. Porém, uma vez que o tumulto se recolheu,
se fez passado, uma vez que o acontecido (o que adveio) se converteu em
concebido, é lícito dizer, numa palavra, que “o curso da História” já se
delineia um pouco mais. Se a História progride, é para quem olha para trás; se
é progressão de uma linha de sentido, é por retrospecção. [...] a
“Necessidade-Providência” hegeliana é tão pouco autoritária que mais parece
aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus desígnios.44
É assim que deveríamos ler a tese de Hegel de
que, no curso do desenvolvimento dialético, as coisas “tornam-se aquilo que são”:
não que um desdobramento temporal simplesmente efetive uma estrutura conceitual
atemporal preexistente – essa estrutura conceitual é em si o resultado de
decisões temporais contingentes.”
“O exemplo histórico evocado por Lacan para
esclarecer esse “duplo movimento” está indicado em suas referências ocultas:
“primeiro tempo, o homem que trabalha na produção em nossa sociedade inclui-se
na categoria dos proletários; segundo tempo, em nome desse vínculo, ele faz
greve geral”47. A referência (implícita) de Lacan nesse ponto é História
e consciência de classe, de Lukács, obra marxista clássica de 1923 cuja
aclamada tradução francesa foi publicada em meados da década de 1950. Para
Lukács, a consciência é oposta ao mero conhecimento de um objeto: o
conhecimento é externo ao objeto conhecido, ao passo que a consciência é, em
si, “prática”, um ato que muda o próprio objeto. (Uma vez que o trabalhador
“inclui-se na categoria dos proletários”, isso muda sua própria realidade: ele
age de maneira diferente.) O sujeito faz algo, considera-se (declara-se) aquele
que o fez e, tendo essa declaração como base, faz algo novo – o momento próprio
da transformação subjetiva ocorre no momento da declaração, não no momento do
ato. Esse momento reflexivo da declaração significa que cada elocução não só
transmite um conteúdo, mas ao mesmo tempo determina como o sujeito se
relaciona com esse conteúdo. Até mesmo os mais realísticos objetos e
atividades sempre contêm essa dimensão declarativa, que constitui a ideologia
da vida cotidiana.”
“A relação hegeliana entre necessidade e
liberdade é comumente lida em termos de sua derradeira coincidência: a
verdadeira liberdade não tem nada a ver com escolha caprichosa; significa a
primazia da relação consigo sobre a relação com o outro. Em outras palavras, um
ente é livre quando consegue desenvolver seu potencial imanente sem ser impedido
por nenhum obstáculo interno. A partir daí é possível desenvolver o
argumento-padrão contra Hegel: seu sistema é um conjunto totalmente “saturado”
de categorias, sem lugar para a contingência e para a indeterminação, pois na
lógica de Hegel cada categoria resulta, com uma inexorável necessidade
lógico-imanente, da categoria anterior, e toda a série de categorias forma um
Todo fechado em si mesmo. Podemos entender agora o que escapa ao seu argumento:
o processo dialético hegeliano não é o Todo necessário, “saturado” e
autocontido, mas o processo aberto e contingente pelo qual esse Todo se
forma. Em outras palavras, a crítica confunde ser com devir: ela percebe
como uma ordem fixa do Ser (a rede de categorias) o que, para Hegel, é o
processo do Devir, que engendra retroativamente sua necessidade.”
“Desse modo, é apenas ao aceitar totalmente
essa circularidade abissal, em que a própria busca cria aquilo que procura, que
o Espírito “encontra a si mesmo”. É por isso que devemos atribuir todo o seu
valor ao verbo “fracassar”, conforme usado por Pippin: o fracasso em atingir o
fim (imediato) é absolutamente crucial para esse processo (e constitutivo dele)
– ou, como diz Lacan, la verité surgit de la méprise [a verdade surge da
equivocação]. Se, portanto, “é apenas como resultado de si que ele é
espírito”66, isso significa que o discurso sobre o
Espírito hegeliano que se aliena para si mesmo e depois se reconhece em sua
alteridade e assim se reapropria de seu conteúdo é profundamente equivocado: o
Si para o qual retorna o Espírito é produzido no momento exato de seu retorno,
ou aquilo para que o processo do retorno está retornando é produzido pelo exato
processo do retornar. Em um processo subjetivo, não há nenhum “sujeito
absoluto”, nenhum agente central permanente brincando consigo mesmo o jogo da
alienação e da desalienação, perdendo-se ou dispersando-se e depois se reapropriando
de seu conteúdo alienado: depois que uma totalidade substancial é dispersada, é
outro agente – antes seu momento subordinado – que a retotaliza. É essa mudança
do centro do processo de um momento para outro que distingue um processo
dialético do movimento circular da alienação e de sua superação; é por causa
dessa mudança que o “retorno-a-si-mesmo” coincide com a alienação realizada
(quando um sujeito retotaliza o processo, sua unidade substancial perde-se
totalmente). Nesse sentido preciso, a substância retorna a si mesma como
sujeito, e essa transubstanciação é o que a vida substancial não pode realizar.
A lógica da tríade hegeliana, portanto, não é
a exteriorização da Essência seguida da recuperação, pela Essência, da
alteridade alienada, mas algo totalmente diferente. O ponto inicial é a pura
multiplicidade do Ser, um aparecer plano, sem nenhuma profundidade. Pela
automediação de sua inconsistência, esse aparecer constrói ou engendra a
Essência, o profundo, que aparece nela e através dela (a passagem do Ser à
Essência). Por fim, na passagem da Essência ao Conceito, as duas dimensões são
“reconciliadas”, de modo que a Essência é reduzida à automediação, cortada,
dentro do próprio aparecer: a Essência aparece como Essência dentro do
aparecer, essa é toda a sua consistência, sua verdade. Consequentemente, quando
Hegel fala de como a Ideia “exterioriza” (entäussert) a si mesma nas
aparências contingentes, e depois se reapropria de sua exterioridade, ele
aplica uma de suas muitas designações incorretas: o que ele descreve, na
verdade, é o processo oposto, o da “interiorização”, um processo em que a
superfície contingente do ser é posta como tal, como exterior-contingente, como
“mera aparência”, com o intuito de gerar, em um movimento autorreflexivo, (a aparência
da) sua própria “profundidade” essencial. Em outras palavras, o processo em que
a Essência se exterioriza é a um só tempo o processo que gera essa mesma
essência: a “exteriorização” é estritamente a mesma coisa que a formação da
Essência que se exterioriza. A Essência constitui-se retroativamente por meio
de seu processo de exteriorização, de sua perda – é desse modo que deveríamos
entender a tão citada declaração de Hegel de que a Essência é tão profunda
quanto ampla.
É por isso que o tema pseudo-hegeliano do
sujeito que primeiro se exterioriza e depois se reapropria de sua Alteridade
substancial alienada deve ser rejeitado. Em primeiro lugar, não há nenhum
sujeito preexistente que se aliena ao pôr sua alteridade: o sujeito stricto
sensu surge por esse processo de alienação no Outro. É por isso que o
segundo movimento – Lacan o chama de separação –, em que a alienação do sujeito
no Outro é posta como correlativa da separação do Outro em si de seu núcleo
ex-timod, essa sobreposição de duas faltas, não tem
nada a ver com o sujeito integrar ou interiorizar sua alteridade.”
“Quando Marx descreve a insana circulação do
capital, que se autoaperfeiçoa e atinge seu apogeu nas especulações
metarreflexivas atuais sobre futuros, é demasiado simplista afirmar que o
espectro desse monstro que se autoengendra e persegue seus interesses sem dar a
mínima para as preocupações humanas ou ambientais é uma abstração ideológica e
que, por trás dessa abstração, há pessoas reais e objetos naturais em cujos
recursos e capacidades produtivas se baseia a circulação do capital e dos quais
este se alimenta como um parasita gigante. O problema é que essa “abstração”
não é apenas característica da percepção equivocada que nós (ou o especulador
financeiro) temos da realidade social, mas também que ela é “real”, no sentido
preciso de determinar a estrutura dos próprios processos sociais materiais: o
destino de camadas inteiras da população, e às vezes de países inteiros, pode
ser decidido pela dança especulativa “solipsista” do Capital, que persegue seu
objetivo de lucratividade com uma abençoada indiferença em relação aos efeitos
que seus movimentos terão sobre a realidade social. Nisso reside a violência
sistêmica fundamental do capitalismo, muito mais estranha que a inequívoca
violência socioideológica pré-capitalista: ela não é mais imputável aos indivíduos
concretos e a suas “más” intenções, mas sim puramente “objetiva”, sistêmica,
anônima.
Encontramos aqui a diferença lacaniana entre
realidade e Real: “realidade” é a realidade social das pessoas atuais
envolvidas na interação e nos processos produtivos, ao passo que o Real é o
inexorável espectro “abstrato” lógico do Capital que determina o que acontece
na realidade social. Essa lacuna se torna tangível no modo como a situação
econômica de um país pode ser considerada boa e estável por economistas internacionais,
mesmo quando a maioria do povo está em situação pior que antes – a realidade
não importa, o que importa é a situação do Capital. E, hoje, não seria isso
mais verdadeiro do que nunca? Os fenômenos geralmente classificados como
característicos do “capitalismo virtual” (mercado futuro e especulações
financeiras assemelhadas) não apontam na direção do reino da “abstração real”
em sua forma mais pura, muito mais radical que na época de Marx? Em suma, a
forma mais elevada de ideologia não envolve ser preso na espectralidade
ideológica, deixando para trás as relações e as pessoas reais, mas precisamente
ignorar esse Real da espectralidade e fingir abordar de maneira direta “as
pessoas reais e seus problemas reais”. Os visitantes da Bolsa de Valores de Londres
recebem um folheto que explica como o mercado de ações não diz respeito a
flutuações misteriosas, mas sim a pessoas reais e seus produtos – isso é
ideologia em sua forma mais pura.
Aqui, na análise do universo do Capital, não
deveríamos apenas empurrar Hegel na direção de Marx, o próprio Marx deveria ser
radicalizado: em termos hegelianos, é somente hoje que, em relação ao capitalismo
global em sua forma “pós-industrial”, o capitalismo realmente existente está
chegando ao nível de seu conceito. Talvez devêssemos seguir mais uma vez o
velho lema antievolucionista de Marx (a propósito, retirado verbatim de
Hegel) de que a anatomia do homem fornece a chave para a anatomia do macaco –
isto é, para descrever a estrutura conceitual inerente de uma formação social,
devemos partir de sua forma mais desenvolvida. Marx localizou o antagonismo
capitalista elementar na oposição entre valor de uso e valor de troca: no
capitalismo, o potencial dessa oposição é plenamente realizado, o domínio do
valor de troca adquire autonomia, é transformado no espectro do capital
especulativo que se autopropulsiona e usa as carências e as capacidades produtivas
das pessoas atuais somente enquanto sua encarnação temporária descartável. Marx
derivou sua noção de crise econômica dessa exata lacuna: uma crise ocorre
quando a realidade alcança a ilusória miragem autogeradora do dinheiro que gera
mais dinheiro – essa loucura especulativa não pode continuar indefinidamente,
ela tem de explodir em crises cada vez mais sérias. A derradeira raiz da crise
é, para Marx, a lacuna entre valor de uso e valor de troca: a lógica do valor
de troca segue seu próprio caminho, sua própria dança louca, independentemente
das carências reais das pessoas reais. Essa análise talvez pareça altamente relevante
nos dias de hoje, quando a tensão entre o universo virtual e o real está
chegando a proporções quase insuportáveis: por um lado, temos especulações solipsistas
malucas sobre futuros, fusões etc., seguindo sua própria lógica inerente; por
outro, a realidade está se efetivando na forma de catástrofes ambientais,
pobreza, colapso da vida social no Terceiro Mundo e propagação de novas doenças*.
(...)
Isso nos obriga a reformular completamente o
velho tópico marxista da “reificação” e do “fetichismo da mercadoria”, na
medida em que este último ainda se baseia em uma noção de fetiche enquanto
objeto sólido, cuja presença constante ofusca sua mediação social. Paradoxalmente,
o fetichismo atinge seu apogeu no exato momento em que o próprio fetiche é “desmaterializado”,
transformado em uma entidade virtual “imaterial” fluida; o fetichismo do
dinheiro culminará com a passagem a sua forma eletrônica, quando os últimos
traços de sua materialidade desaparecerão – o dinheiro eletrônico é a terceira
forma, depois do dinheiro “real”, que encarna diretamente seu valor (em prata
ou ouro), e o dinheiro de papel, embora seja “mero signo”, sem nenhum valor
intrínseco, continua preso a uma existência material. E é somente nesse
estágio, quando o dinheiro se torna um ponto de referência puramente virtual,
que ele finalmente assume a forma de uma presença espectral indestrutível: devo
$1.000, e não importa quantas notas materiais eu queime, vou continuar devendo
$1.000, o débito está inscrito em algum lugar do espaço virtual digital.”
*: Destaque-se que
o livro é de 2012, muito antes da eclosão da Covid-19.
“Mas que tipo de liberdade é desencadeada dessa
maneira? Aqui devemos fazer uma pergunta clara e brutal em toda a sua
ingenuidade: se rejeitarmos a crítica de Marx e adotarmos a noção de Hegel da
coruja de Minerva que levanta voo somente no crepúsculo – ou seja, se
aceitarmos a afirmação de Hegel de que a posição de um agente histórico capaz
de identificar seu próprio papel no processo histórico e agir de maneira adequada
é inerentemente impossível, pois essa autorreferencialidade impossibilita que o
agente leve em consideração o impacto de sua própria intervenção, o modo como
seu próprio ato afeta a constelação –, quais são as consequências dessa posição
para o ato, para as intervenções políticas emancipatórias? Isso não significa
que estamos condenados a agir às cegas, a dar passos arriscados em direção a um
desconhecido cujo resultado final nos escapa totalmente, a intervenções cujo
significado só podemos estabelecer retroativamente, de modo que, no momento do
ato, tudo o que podemos fazer é esperar que a história tenha misericórdia
(graça) e retribua nossa intervenção com pelo menos uma pitada de sucesso? Mas
e se, em vez de conceber essa impossibilidade de considerarmos as consequências
de nossos atos como uma limitação de nossa liberdade, nós a concebermos como a
condição (negativa) basilar de nossa liberdade?
A ideia de liberdade como necessidade
conhecida encontra sua expressão mais elevada no pensamento de Espinosa, e não
há dúvida de que ele deu também a mais sucinta definição da ideia personalizada
de Deus: o único Deus verdadeiro é a própria natureza, isto é, a substância
como causa sui, como tessitura eterna de causas-efeitos. A ideia
personalizada de Deus como um velho sábio que, sentado em algum lugar do céu,
governa o mundo segundo seus caprichos, não é nada mais que a expressão
positiva mistificada de nossa ignorância – como nosso conhecimento das redes
causais naturais e efetivas é limitado, nós, por assim dizer, preenchemos as
lacunas projetando uma Causa suprema em um ente desconhecido extremamente
elevado. Da perspectiva hegeliana, Espinosa deve ser visto apenas de maneira
mais literal do que ele próprio estava disposto a se ver: e se essa falta ou
incompletude da rede causal não seja apenas epistemológica, mas também
ontológica? Mas e se essa incompletude não se referir apenas ao nosso
conhecimento da realidade, mas também à realidade em si? Nesse caso, não seria
também a ideia personalizada de Deus um indicativo (um indicativo mistificado,
mas ainda assim um indicativo) da incompletude ontológica da realidade em si?
Ou, nos termos da distinção hegeliana clássica entre o que quero ou pretendo
dizer e o que realmente digo, quando digo “Deus” quero nomear a Pessoa absoluta
transcendente que governa a realidade, mas o que realmente digo é que a realidade
é ontologicamente incompleta, marcada por uma impossibilidade ou inconsistência
fundamental.”
“Cabe fazermos aqui uma distinção precisa
entre parte pressuposta ou sombria do que aparece como objetos ônticos e o horizonte
ontológico de seu aparecer. Por um lado, como desenvolvido de maneira brilhante
por Husserl em sua análise fenomenológica da percepção, toda percepção – até
mesmo de um objeto ordinário – envolve uma série de suposições sobre seu lado
não visto, bem como sobre suas origens; por outro lado, um objeto sempre
aparece dentro de certo horizonte de “pré-juízos” hermenêuticos que fornecem um
quadro a priori no qual situamos o objeto e que, desse modo, o tornam
inteligível – observar a realidade “sem pré-juízos” significa não entender
nada. A mesma dialética de “pôr os pressupostos” tem um papel fundamental em
nosso entendimento da história.”
“Assim, a propósito da afirmação de Schelling
de que a consciência do homem surge do ato primitivo que separa a consciência
atual-presente do campo espectral e sombrio do inconsciente, temos de fazer uma
pergunta aparentemente ingênua, porém crucial: o que é exatamente inconsciente
aqui? A resposta de Schelling é inequívoca: “inconsciente” não é primariamente
o movimento rotatório das pulsões lançadas no passado eterno; “inconsciente” é
antes o próprio ato de Ent-Scheidung pelo qual as pulsões foram lançadas
no passado. Ou, em termos ligeiramente diferentes, o que é verdadeiramente
“inconsciente” no homem não é o oposto imediato da consciência, o vórtice
obscuro e confuso das pulsões “irracionais”, mas sim o próprio gesto fundador
da consciência, o ato de decisão no qual eu “escolho a mim mesmo”, pelo qual
combino essa multitude de pulsões na unidade do meu Si. O “inconsciente” não é
a substância passiva de pulsões inertes que será usada pela atividade
“sintética” criativa do Eu consciente; o “inconsciente”, em sua dimensão mais
radical, é antes o mais nobre Feito da minha autoposição, ou (recorrendo a
termos “existencialistas” posteriores) a escolha do meu “projeto” fundamental,
que, para permanecer operante, deve ser “reprimido”, mantido longe da luz do
dia. Vejamos uma citação das admiráveis páginas finais do segundo rascunho do Weltalter:
O feito primordial que torna um homem genuinamente ele mesmo precede
todas as ações individuais, mas, imediatamente depois que é posto em exuberante
liberdade, esse feito afunda na noite do inconsciente. Não se trata de um feito
que poderia acontecer uma vez e acabar em seguida; é um feito permanente, um
feito interminável e, consequentemente, jamais pode ser colocado diante da
consciência. Para que o homem saiba desse feito, a consciência em si teria de
retornar ao nada, à liberdade sem limites, e deixaria de ser consciência. Esse
feito acontece e imediatamente depois retorna para as insondáveis profundezas;
é exatamente dessa forma que a natureza adquire permanência. Também aquela
vontade, posta no início e então exteriorizada, deve imediatamente afundar na
inconsciência. Somente dessa maneira é possível um início, um início que não
deixa de ser início, um início verdadeiramente eterno. Pois aqui é igualmente
verdade que o início não pode conhecer a si mesmo. O feito, uma vez feito, é
feito para toda a eternidade. A decisão que de certa forma está verdadeiramente
prestes a ter início deve ser devolvida à consciência; não deve ser chamada de
volta, pois isso implicaria ser tomada de volta. Se, ao tomar uma decisão,
conservamos o direito de reexaminar nossa escolha, jamais estaremos começando.17
O que temos aqui é, obviamente, a lógica do
“mediador em desaparição”: do gesto fundador da diferenciação que deve afundar
na invisibilidade, uma vez que a diferença entre o vórtice das pulsões
“irracionais” e o universo do lógos esteja em jogo. O passo fundamental
de Schelling, portanto, não é simplesmente fundamentar o universo ontologicamente
estruturado do lógos no terrível vórtice do Real; se fizermos uma
leitura cuidadosa, perceberemos uma premonição em sua obra de que esse
terrificante vórtice do Real pré-ontológico é em si (acessível a nós somente na
forma de) uma narrativa fantasmática, um engodo feito para detrair o verdadeiro
corte traumático, o corte do ato abissal de Ent-Scheidung.”
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