sábado, 3 de julho de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista (Parte III), de Karl Marx

Editora: Boitempo

Edição: Friedrich Engels

ISBN: 978-85-7559-390-5

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 984

Sinopse: Ver Parte I




“Com base na produção capitalista, o dinheiro – aqui considerado expressão autônoma de uma soma de valor, sendo indiferente se esta existe, de fato, em dinheiro ou em mercadorias – pode ser convertido em capital e, mediante essa conversão, deixar de ser um valor dado para se transformar num valor que valoriza a si mesmo, incrementa a si mesmo. Ele produz lucro, isto é, permite ao capitalista extrair dos trabalhadores determinada quantidade de trabalho não pago, de mais-produto e mais-valor, e de apropriar-se desse trabalho. Com isso, ele obtém, além do valor de uso que já possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, aquele de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui precisamente no lucro que ele produz ao se converter em capital. Nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção do lucro, ele se torna mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Em outras palavras, o capital como tal torna-se mercadoria. (...)

A justiça das transações que se realizam entre os agentes da produção repousam no fato de que essas transações derivam das relações de produção como uma consequência natural. As formas jurídicas, nas quais essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo Estado, não podem determinar, como meras formas que são, esse conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à qualidade da mercadoria. (...)

A forma de empréstimo que, em vez da forma da venda, é característica dessa mercadoria – do capital como mercadoria – e que, além disso, ocorre também em outras transações resulta já da determinação de que o capital aparece aqui como mercadoria, de que o dinheiro, como capital, converte-se em mercadoria.”

 

 

Ora, é muito simples descobrir as razões pelas quais, tão logo essa divisão do lucro bruto em juros e ganho empresarial se converte numa divisão qualitativa, ela assume esse caráter para o capital total e para a classe capitalista em seu conjunto.

Em primeiro lugar, isso já deriva da circunstância meramente empírica de que a maioria dos capitalistas industriais, ainda que em proporções numéricas distintas, trabalha com capital próprio e emprestado e de que as proporções entre um e outro variam segundo os diferentes períodos.

Em segundo lugar, a conversão de uma parte do lucro bruto na forma dos juros converte sua outra parte em ganho empresarial. Este último é, na verdade, apenas a forma antitética que assume o excedente do lucro bruto sobre os juros, tão logo estes existem como categoria própria. Toda a investigação de como o lucro bruto se desdobra em juros e ganho empresarial reduz-se pura e simplesmente à investigação de como uma parte do lucro bruto se ossifica e se autonomiza como juros. Mas o capital portador de juros existe historicamente como uma forma pronta, dada de antemão, e os juros, portanto, como subforma pronta do mais-valor produzido pelo capital, muito antes de existirem o modo de produção capitalista e as ideias de capital e lucro que lhe correspondem. Isso explica por que, na concepção popular, considera-se o capital monetário, o capital portador de juros, o capital como tal, o capital par excellence. Também explica, por outro lado, a ideia dominante até a época de Massie, de que o que se paga nos juros é o dinheiro. O fato de que o capital emprestado produz juros, seja ele realmente empregado como capital ou não – e mesmo que só seja emprestado para fins de consumo –, reforça a ideia da autonomia dessa forma do capital. A melhor prova da autonomia que, nos primeiros períodos do modo de produção capitalista, os juros apresentam em relação ao lucro, e o capital portador de juros em relação ao capital industrial, é que só a partir de meados do século XVIII descobriu-se (por Massie e, depois dele, por Hume) o fato de que os juros são simplesmente uma parte do lucro bruto e de que tal descoberta se fazia necessária.

Em terceiro lugar, se o capitalista industrial trabalha com capital próprio ou com capital emprestado não altera em nada a circunstância de que ele tem de enfrentar a classe dos capitalistas monetários como uma categoria particular de capitalistas, o capital monetário como uma categoria independente de capital e os juros como a forma autônoma do mais-valor correspondente a esse capital específico.

Considerados qualitativamente, os juros são o mais-valor gerado pela mera propriedade do capital; o mais-valor lançado pelo capital em si mesmo – ainda que seu proprietário se mantenha à margem do processo de reprodução –, ou seja, o mais-valor lançado pelo capital independentemente de seu processo.

Considerada quantitativamente, a parte do lucro que forma os juros não aparece em referência ao capital industrial e comercial como tal, mas ao capital monetário, e a taxa dessa parte do mais-valor, o nível ou a taxa de juros, reafirma essa relação. Pois, em primeiro lugar, a taxa de juros – apesar de sua dependência em relação à taxa geral de lucro – é determinada de maneira independente e, em segundo lugar, porque, tal como o preço de mercado das mercadorias, ela aparece frente à inapreensível taxa de lucro como uma proporção que, apesar de todas as variações, permanece fixa, uniforme, tangível e sempre dada. Se todo o capital se encontrasse nas mãos dos capitalistas industriais, não existiriam juros nem taxa de juros. A forma autônoma que assume a distribuição quantitativa do lucro bruto engendra a distribuição qualitativa. Se compararmos o capitalista industrial com o capitalista monetário, veremos que ele se distingue deste último apenas por seu ganho empresarial, pelo excedente de seu lucro bruto sobre os juros médios, que, em virtude da taxa de juros, aparecem como grandeza empiricamente dada. Se, por outro lado, o compararmos com o capitalista industrial que trabalha com capital próprio, e não com capital emprestado, veremos que ele se diferencia deste último apenas como um capitalista monetário, que embolsa os juros, em vez de pagá-los a outrem. Em ambos os casos, a parte do lucro bruto que se distingue dos juros aparece para ele como ganho empresarial, e os próprios juros aparecem como um mais-valor que o capital gera por si só e que, por conseguinte, ele geraria ainda que não fosse investido produtivamente.

Isso está correto, do ponto de vista prático, para o capitalista individual. Ele pode optar por usar seu capital – não importando se este existe desde o início como capital monetário ou se ainda deve ser convertido em capital monetário – emprestando-o como capital portador de juros ou valorizando-o diretamente como capital produtivo. Mas generalizar esse aspecto, referindo-o a todo o capital da sociedade, como o fazem alguns economistas vulgares, e inclusive defini-lo como fundamento do lucro, é naturalmente um disparate. A ideia de converter o capital total da sociedade em capital monetário, sem que existam pessoas que comprem e valorizem os meios de produção – sob cuja forma se encontra a totalidade do capital, com exceção de uma porção relativamente pequena existente em dinheiro –, é evidentemente absurda. E nela vai implícita uma ideia ainda mais absurda, a de que, com base no modo de produção capitalista, o capital poderia gerar juros sem funcionar como capital produtivo, isto é, sem criar mais-valor, do qual os juros não são mais que uma parte; a ideia de que o modo de produção capitalista poderia mover-se sem a produção capitalista. Se um número desproporcionalmente grande de capitalistas resolvesse converter seu capital em capital monetário, a consequência disso seria uma enorme desvalorização do capital monetário e uma enorme queda da taxa de juros; muitos se veriam imediatamente na impossibilidade de viver de seus juros e, portanto, forçados a reconverter-se em capitalistas industriais. Mas, como já foi dito, isso é, em relação ao capitalista individual, um fato. Por isso, mesmo quando opera com seu capital próprio, a parte de seu lucro médio que equivale aos juros médios é por ele considerada necessariamente fruto de seu capital como tal, separado do processo de produção; e, em oposição a essa parte autonomizada nos juros, ele considera o restante de seu lucro bruto simples ganho empresarial. (...)

Ora, os juros, como os define Ramsay, são o lucro líquido que a propriedade do capital como tal gera, seja para o simples prestamista que permanece à margem do processo de reprodução, seja para o proprietário que investe produtivamente seu próprio capital. Também neste último caso o lucro líquido é gerado para o proprietário não como capitalista ativo, mas como capitalista monetário, como prestamista de seu próprio capital, como capital portador de juros, a si mesmo como capitalista ativo. Assim como a conversão do dinheiro – e do valor em geral – em capital é o resultado constante do processo de produção capitalista, também sua existência como capital é a condição permanente desse processo. Por meio de sua capacidade de converter-se em meios de produção, ele dispõe constantemente de trabalho não pago e, por isso, converte o processo de produção e circulação das mercadorias em produção de mais-valor para seu possuidor. Os juros são, pois, a expressão do fato de que o valor – o trabalho objetivado em sua forma social geral –, isto é, o valor que no processo efetivo de produção assume a forma de meios de produção, confronta-se como uma potência autônoma com a força viva de trabalho e constitui o meio para se apropriar de trabalho não pago; e de que ele é esse poder na medida em que se confronta com o trabalhador como propriedade alheia. Por outro lado, na forma dos juros apaga-se essa antítese em relação ao trabalho assalariado, pois o capital portador de juros não tem como termo antagônico o trabalho assalariado, mas o capital ativo; o capitalista prestamista confronta-se como tal diretamente com o capitalista que atua de fato no processo de reprodução, mas não com o trabalhador assalariado, que se encontra expropriado dos meios de produção justamente com base na produção capitalista. O capital portador de juros é o capital como propriedade diante do capital como função. Enquanto o capital não funciona, ele não explora os trabalhadores nem assume uma posição antitética em relação ao trabalho.

Por outro lado, o ganho empresarial não se encontra em oposição ao trabalho assalariado, somente aos juros.

Em primeiro lugar, pressupondo o lucro médio como dado, a taxa do ganho empresarial não é determinada pelo salário, mas pela taxa de juros. Ela é alta ou baixa na proporção inversa desta última[72].

Em segundo lugar, o capitalista ativo não deriva seu direito ao ganho empresarial – e, portanto, o próprio ganho empresarial – de sua propriedade sobre o capital, mas da função do capital distinta de sua determinidade como mera propriedade inerte. Isso aparece como antítese diretamente existente tão logo o capitalista opera com capital emprestado, isto é, quando juros e ganho empresarial competem a duas pessoas distintas. O ganho empresarial deriva da função do capital no processo de reprodução, ou seja, das operações, da atividade por meio da qual o capitalista ativo medeia essas funções do capital industrial e do capital-mercadoria. Mas ser representante do capital em funcionamento não constitui uma sinecura, como no caso do representante do capital portador de juros. Sobre a base da produção capitalista, o capitalista dirige tanto o processo de produção como o processo de circulação. A exploração do trabalho produtivo custa um esforço, seja ela realizada pelo próprio capitalista, seja por outrem, em seu nome. Em oposição aos juros, o ganho empresarial se apresenta para o capitalista como independente da propriedade do capital e, mais ainda, como resultado de suas funções de não proprietário, como... trabalhador.

Assim se desenvolve necessariamente em seu cérebro a ideia de que seu ganho empresarial, longe de achar-se em qualquer oposição com o trabalho assalariado e de ser apenas trabalho alheio não pago, representa, antes, seu próprio salário, um salário de supervisão do trabalho, wages of superintendance of labour; um salário maior que o do assalariado comum, 1) por ser um trabalho mais complexo e 2) porque ele mesmo paga seu próprio salário. Que sua função como capitalista consiste em produzir mais-valor, isto é, trabalho não pago, e, além disso, em produzi-lo nas condições mais econômicas é algo que fica completamente esquecido diante do fato antitético de que os juros competem ao capitalista, ainda que ele não desempenhe nenhuma função como capitalista, que seja mero proprietário do capital, e de que, pelo contrário, o ganho empresarial compete ao capitalista ativo, ainda que seja não proprietário do capital com que opera. A forma antagônica das duas partes em que se decompõe o lucro e, portanto, o mais-valor faz com que esqueçamos que ambas não são mais do que partes do mais-valor e de que sua divisão não pode alterar em nada sua natureza, sua origem e suas condições de existência.

No processo de reprodução, o capitalista ativo representa o capital como propriedade alheia diante dos trabalhadores assalariados, e o capitalista monetário, representado pelo capitalista ativo, participa da exploração do trabalho. O fato de que somente como representante dos meios de produção diante dos trabalhadores é possível ao capitalista ativo fazer com que os trabalhadores trabalhem para ele, ou que os meios de produção funcionem como capital, é esquecido na antítese entre a função do capital no processo de reprodução e a mera propriedade do capital fora do processo de reprodução.

Com efeito, nas formas que as duas partes do lucro – i.e., do mais-valor – assumem, as formas dos juros e do ganho empresarial, não está expressa nenhuma relação com o trabalho, uma vez que essa relação só existe entre ele e o lucro ou, antes, entre ele e o mais-valor, como a soma, o todo, a unidade dessas duas partes. A proporção em que o lucro é repartido e os diferentes títulos jurídicos que servem de base a essa repartição pressupõem o lucro como algo dado, pressupõem sua existência. Se, portanto, o capitalista é proprietário do capital com que opera, ele embolsa o lucro ou o mais-valor integral; para o trabalhador, é absolutamente indiferente se o capitalista procede desse modo ou se é obrigado a ceder uma parte a um terceiro como proprietário legal do capital. Os fundamentos que regem a divisão do lucro entre duas classes de capitalistas transformam-se, assim, nos fundamentos da existência do lucro – ou do mais-valor – que tem de ser dividido e que o capital como tal extrai do processo de reprodução, independentemente de toda divisão ulterior. Do fato de que os juros se contrapõem ao ganho empresarial, e este, por sua vez, contrapõe-se aos primeiros, e do fato de que eles se contrapõem apenas um ao outro, mas não ao trabalho, segue-se que o ganho empresarial mais os juros, isto é, o lucro e, mais amplamente, o mais-valor, baseia-se em quê? Nessa forma antitética de suas duas partes! Mas o lucro é produzido antes que nele se opere essa divisão e antes que se possa falar dela.

O capital portador de juros só se conserva pelo tempo em que o capital emprestado se transforma realmente em capital e produz um excedente, do qual os juros são uma parte. Isso não anula o fato de que a capacidade de produzir juros, independentemente do processo de produção, é algo inerente a esse capital. A força de trabalho só conserva sua qualidade criadora de valor quando atua e se realiza no processo de trabalho; e isso não exclui o fato de que uma tal força, em si mesma, é potencialmente uma atividade criadora de valor e de que, como tal, ela não deriva do processo de produção, mas o antecede. Ela é comprada como capacidade de criar valor. Também pode ocorrer que alguém a compre e não a coloque para trabalhar produtivamente; por exemplo, empregando-a para fins puramente pessoais, para o serviço doméstico etc. O mesmo ocorre com o capital. Compete ao prestamista decidir se ele o empregará ou não como capital, ou seja, se colocará ou não efetivamente em ação sua qualidade inerente de produzir mais-valor. O que ele paga é, em ambos os casos, o mais-valor potencial contido no capital-mercadoria.”

[72]The profits of enterprise depend upon the net profits of capital, not the latter upon the former” [“O ganho empresarial depende do lucro líquido do capital, e não o inverso”] ([George] Ramsay, [An Essay on the Distribution of Wealth, Edimburgo, Adam and Charles Black, 1836,] p. 214. Para ele, net profits são sempre = juros).

 

 

É no capital portador de juros que a relação capitalista assume sua forma mais exterior e mais fetichista. Aqui deparamos com D-D’, dinheiro que engendra mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo mediador entre os dois extremos. No capital comercial, D-M-D’, encontra-se pelo menos a forma geral do movimento capitalista, embora ela só se mantenha na esfera da circulação, razão pela qual o lucro aparece aqui como simples lucro de alienação; ele se apresenta, no entanto, como produto de uma relação social, e não como produto simples de uma mera coisa. A forma do capital comercial continua a representar um processo, a unidade de fases contrapostas, um movimento que se desdobra em dois procedimentos antagônicos, na compra e na venda de mercadorias. Esse processo se apaga em D-D’, ou seja, na forma do capital portador de juros. (...)

D-D’: temos aqui o ponto de partida do capital, o dinheiro na fórmula D-M-D’, reduzida aos dois extremos D-D’, em que D’ = D + ΔD, ou seja, dinheiro que gera mais dinheiro. É a fórmula geral e originária do capital, condensada de modo absurdo. É o capital consumado, a unidade do processo de produção e do processo de circulação, que, por conseguinte, gera mais-valor ao final de determinado período. Sob a forma do capital portador de juros, isso aparece de maneira direta, sem a mediação do processo de produção e de circulação. O capital aparece como fonte misteriosa e autocriadora de juros, de seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) é, por si só, capital, e o capital aparece como simples coisa; o resultado do processo inteiro de reprodução aparece como uma qualidade inerente a uma coisa material; depende da vontade do possuidor do dinheiro, isto é, da mercadoria em sua forma constantemente mutável, se ele irá desembolsá-lo como dinheiro ou alugá-lo como capital. No capital portador de juros, portanto, produz-se em toda sua pureza esse fetiche automático do valor que se valoriza a si mesmo, do dinheiro que gera dinheiro, mas que, ao assumir essa forma, não traz mais nenhuma cicatriz de seu nascimento. A relação social é consumada como relação de uma coisa, o dinheiro, consigo mesma. Em vez da transformação real do dinheiro em capital, aqui se mostra apenas sua forma vazia de conteúdo. Assim como na força de trabalho, o valor de uso do dinheiro transforma-se em fonte de criação de valor, de um valor maior que o que está contido nele mesmo. Como tal, o dinheiro é potencialmente um valor que se valoriza a si mesmo e que é emprestado, o que constitui a forma da venda para essa mercadoria peculiar. Assim, criar valor torna-se uma qualidade do dinheiro tanto quanto dar peras é uma qualidade da pereira. E é como uma coisa que dá juros que o prestamista vende seu dinheiro. Mas isso não é tudo. Como vimos, o capital realmente ativo se apresenta de tal modo que rende juros não como capital ativo, mas como capital em si mesmo, como capital monetário.

Também isso aparece invertido aqui: enquanto os juros são somente uma parte do lucro, isto é, do mais-valor que o capitalista ativo arranca do trabalhador, agora os juros aparecem, ao contrário, como o verdadeiro fruto do capital, como o originário, ao passo que o lucro, transfigurado em ganho empresarial, aparece como simples acessório e ingrediente adicionado no processo de reprodução. Aqui se completam a forma fetichista do capital e a ideia do fetichismo do capital. Em D-D’, temos a forma mais sem conceito [begriffslose] do capital, a inversão e a coisificação das relações de produção elevadas à máxima potência: a forma simples do capital, como capital portador de juros, na qual ele é pressuposto a seu próprio processo de reprodução; a capacidade do dinheiro ou, conforme o caso, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução – eis a mistificação capitalista em sua forma mais descarada.

Para a economia vulgar, que pretende apresentar o capital como fonte independente de valor, de criação de valor, essa forma é naturalmente um achado magnífico, uma forma em que a fonte do lucro não pode mais ser identificada e em que o resultado do processo de produção capitalista – apartado do processo mesmo – assume uma existência independente.

Apenas no capital monetário o capital se converteu em mercadoria, cuja qualidade de valorizar a si mesma tem um preço fixo, que se expressa na taxa de juros vigente em cada momento.

É como capital portador de juros, mais precisamente em sua forma direta de capital monetário portador de juros (as outras formas do capital portador de juros, que aqui não nos interessam, são, por sua vez, derivadas dessa forma e a pressupõem), que o capital reveste sua forma fetichista mais pura: D-D’ como sujeito, coisa vendável. Em primeiro lugar, por meio de sua existência constante como dinheiro, forma na qual todas as suas outras determinidades se apagam e seus elementos reais são invisíveis. O dinheiro é justamente a forma em que se apaga a diferença das mercadorias como valores de uso e, por conseguinte, também a diferença dos capitais industriais constituídos por essas mercadorias e suas condições de produção; é a forma em que o valor – e, aqui, o capital – existe como valor de troca autônomo. No processo de reprodução do capital, a forma-dinheiro é efêmera, um elemento meramente transitório. No mercado monetário, ao contrário, o capital existe sempre nessa forma. Em segundo lugar, o mais-valor que o capital produz, aqui também na forma do dinheiro, aparece para ele como algo que se lhe acrescenta. Assim como crescer é próprio das árvores, também criar dinheiro (tokoz) [juros; descendência] parece ser próprio do capital nessa forma de capital monetário. (...)

O capital é agora uma coisa, mas, como tal, é capital. O dinheiro tem agora amor no corpo[b]. Tão logo é emprestado ou investido no processo de reprodução (na medida em que rende ao capitalista ativo, como a seu proprietário, juros separados do ganho empresarial), crescem seus juros, não importando se ele dorme ou está acordado, se está em casa ou viajando, se é dia ou noite. Assim, o desejo do entesourador se realiza no capital monetário portador de juros (e todo capital é, segundo sua expressão de valor, capital monetário – ou é agora considerado a expressão do capital monetário).”

[b] Referência ao verso “als hätt’es Lieb’im Leibe” (literalmente: “como se tivesse amor no corpo”), do Fausto, de J. W. Goethe (primeira parte, quadro VI, cena I). (N. T.)

 

 

Mas é no capital portador de juros que aparece consumada a ideia do fetiche do capital, a ideia que atribui ao produto acumulado do trabalho – e, além disso, fixado como dinheiro – a capacidade de criar mais-valor em progressão geométrica por meio de uma misteriosa qualidade inata, como um puro autômato, de tal modo que esse produto acumulado do trabalho, como afirma o Economist, tenha descontado desde muito tempo toda a riqueza do mundo do presente e do futuro como algo que lhe pertence e lhe corresponde por direito. O produto do trabalho pretérito, o próprio trabalho pretérito, está aqui, em si mesmo, prenhe de um fragmento de mais-trabalho vivo, presente ou futuro. Sabe-se, em contrapartida, que na realidade a conservação e, portanto, também a reprodução do valor dos produtos do trabalho pretérito são apenas resultado de seu contato com o trabalho vivo; além disso, que o comando que os produtos do trabalho pretérito exercem sobre o mais-trabalho vivo só dura enquanto subsiste a relação do capital, quer dizer, a relação social determinada em que o trabalho pretérito se confronta de modo independente e onipotente com o trabalho vivo.”

 

 

Se o sistema de crédito se apresenta como a alavanca principal da superprodução e do excesso de especulação no comércio, é pura e simplesmente porque o processo de reprodução, que por sua própria natureza é um processo elástico, vê-se forçado aqui até o máximo, e isso porque uma grande parte do capital social é investida por aqueles que não são seus proprietários, os quais atuam, claro, de maneira bem distinta dos proprietários, que a cada passo avaliam cautelosamente os limites e as possibilidades de seu capital privado. Assim, destaca-se somente o fato de que a valorização do capital, baseada no caráter antagônico da produção capitalista, só consente até certo ponto em seu desenvolvimento real, livre, pois na realidade constitui um entrave e um limite imanentes à produção, que são constantemente rompidos pelo sistema de crédito[88]. Por conseguinte, o crédito acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a instauração do mercado mundial, que, por constituírem as bases da nova forma de produção, têm de ser desenvolvidos até um certo nível como tarefa histórica do modo de produção capitalista. O crédito acelera ao mesmo tempo as erupções violentas dessa contradição, as crises e, com elas, os elementos da dissolução do antigo modo de produção.

Tais são as duas características intrínsecas ao sistema de crédito: por um lado, ele desenvolve a mola propulsora da produção capitalista, o enriquecimento mediante a exploração do trabalho alheio, até convertê-los no mais puro e colossal sistema de jogo e fraude e limitar cada vez mais o número dos poucos indivíduos que exploram a riqueza social; por outro lado, estabelece a forma de transição para um novo modo de produção. É essa duplicidade que confere aos principais porta-vozes do crédito, de Law a Isaac Pereire, o agradável caráter híbrido de vigaristas e profetas.”

[88] Th. Chalmers [, On Political Economy in Connexion with the Moral State and Moral Prospects of Society, 2. ed., Glasgow, 1832. – N. T.].

 

 

Enquanto o processo de reprodução é contínuo e, com isso, assegura o refluxo do capital, esse crédito perdura e se expande, e sua expansão se baseia na expansão do próprio processo de reprodução. Quando ocorre uma paralisação em consequência de atrasos nos retornos de capital, mercados saturados ou preços em queda, tem-se um excesso de capital industrial, mas numa forma em que não pode desempenhar sua função. Há uma massa de capital-mercadoria, porém invendável. Uma massa de capital fixo, porém em grande parte ociosa, em virtude do estancamento da reprodução. O crédito contrai-se 1) porque esse capital está desocupado, isto é, paralisado numa das fases de sua reprodução, já que não pode completar sua metamorfose; 2) porque foi perdida a confiança na fluidez do processo de reprodução; 3) porque diminui a demanda desse crédito comercial. O fiandeiro que restringe sua produção e tem em seu estoque uma grande massa não vendida de fios não precisa comprar algodão a crédito; o comerciante não precisa comprar mercadorias a crédito, porque as que tem são mais que suficientes.

Por conseguinte, no caso de algum distúrbio nessa expansão, ou mesmo na atividade normal do processo de reprodução, ocorre com isso também uma escassez de crédito, isto é, a obtenção de mercadorias a crédito fica mais difícil. No entanto, a exigência de pagamento à vista e as precauções que se observam nas vendas a crédito são particularmente características daquela fase do ciclo industrial que se segue ao crash. É em plena crise, quando todos têm de vender e não conseguem fazê-lo e, ainda assim, são obrigados a vender para pagar, que a massa, não do capital inativo, à procura de investimento, mas do capital estagnado no processo de reprodução, é a maior, justamente quando a escassez de crédito também é maior que nunca (e, por isso, a taxa de desconto, no crédito bancário, encontra-se em seu nível máximo). O capital já investido está então, de fato, desocupado em grandes quantidades, pois o processo de reprodução está estagnado. As fábricas deixam de funcionar, as matérias-primas se acumulam, os produtos acabados inundam, como mercadorias, o mercado. Nada é mais errôneo, pois, do que culpar a escassez de capital produtivo por essa situação. É justamente nessas épocas que se apresenta uma superabundância de capital produtivo, em parte com relação à escala normal, porém temporariamente reduzida, da reprodução, em parte com relação ao consumo paralisado.

Imaginemos que toda a sociedade seja formada apenas por capitalistas industriais e trabalhadores assalariados. Abstraiamos, além disso, das mudanças de preços, que impedem que grandes porções do capital total da sociedade se reponham em suas proporções médias e que, devido às inter-relações das esferas do processo global de reprodução, tal como o crédito as desenvolve, têm sempre de acarretar paralisações gerais de natureza temporária. Façamos abstração também dos negócios fictícios e das operações especulativas que o sistema de crédito estimula. Nessas condições, uma crise só seria explicável por uma desproporção entre os diversos ramos da produção e por uma desproporção entre o consumo dos próprios capitalistas e sua acumulação. Porém, tal como as coisas se apresentam na realidade, a reposição dos capitais investidos na produção depende, em grande parte, da capacidade de consumo das classes não produtivas, ao passo que a capacidade de consumo dos trabalhadores está limitada, em parte, pelas leis salariais e, em parte, pela circunstância de que essas leis só se aplicam se for em benefício da classe capitalista. A razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das massas em contraste com o ímpeto da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se estas tivessem seu limite apenas na capacidade absoluta de consumo da sociedade.”

 

 

Naturalmente, a acumulação de todos os capitalistas que emprestam dinheiro opera-se sempre na forma direta de dinheiro, em contraste com a verdadeira acumulação dos capitalistas industriais, que em geral se efetua, como vimos, mediante o aumento dos elementos do próprio capital reprodutivo. Por isso, o desenvolvimento do sistema de crédito e a enorme concentração do negócio de empréstimo de dinheiro nas mãos dos grandes bancos tem de acelerar por si só a acumulação do capital emprestável, como forma distinta da acumulação real. Esse rápido desenvolvimento do capital de empréstimo é, assim, um resultado da acumulação real, pois deriva do desenvolvimento do processo de reprodução, e o lucro, que forma a fonte de acumulação desses capitalistas monetários, não é senão uma dedução do mais-valor extraído pelos capitalistas reprodutivos (ao mesmo tempo que é a apropriação de uma parte dos juros obtidos sobre as poupanças de outrem). O capital de empréstimo se acumula às expensas tanto dos capitalistas industriais como dos capitalistas comerciais. Vimos como, nas fases desfavoráveis do ciclo industrial, a taxa de juros pode subir tanto que, em alguns ramos de negócio em situação especialmente desfavorável, chega a absorver temporariamente o lucro inteiro. Ao mesmo tempo, cai o preço dos títulos públicos e dos outros títulos de crédito. É o momento em que os capitalistas monetários aproveitam para comprar em massa esses títulos depreciados, que, nas fases posteriores, não tardam a subir ao nível normal e acima dele. Então são novamente lançados no mercado, e assim é apropriada uma parte do capital monetário do público. A parcela que não é vendida rende juros mais altos, porque foi adquirida abaixo do preço. Mas todo o lucro obtido pelos possuidores dos capitais monetários e que volta a converter-se em capital eles transformam, antes de mais nada, em capital monetário emprestável. A acumulação deste último, sendo distinta da verdadeira acumulação, ainda que fruto dela, segue seu curso, portanto – quando consideramos apenas os próprios capitalistas monetários, banqueiros etc. –, como acumulação dessa classe especial de capitalistas e tem necessariamente de crescer à medida que se expande o sistema de crédito, da mesma maneira que acompanha a ampliação real do processo de reprodução.

Estando baixa a taxa de juros, a desvalorização do capital monetário recai principalmente sobre os depositantes, não sobre os bancos.”

 

 

“Por um lado, o capital do capitalista industrial não é “poupado” por ele mesmo, mas ele dispõe da poupança dos outros na proporção da grandeza de seu capital; por outro lado, o capitalista monetário converte as poupanças alheias em seu próprio capital, e do crédito que os capitalistas reprodutivos se concedem mutuamente ele faz sua fonte privada de enriquecimento. Destrói-se, assim, a última ilusão do sistema capitalista: a de que o capital é fruto de trabalho próprio e poupança própria. Não só o lucro consiste na apropriação do trabalho alheio, mas também o capital com que esse trabalho alheio é mobilizado e explorado consiste em propriedade alheia, que o capitalista monetário põe à disposição do capitalista industrial e por meio do qual, por sua vez, ele explora este último.”

 

 

“O sistema de crédito, cujo núcleo são os supostos bancos nacionais e grandes prestamistas e usurários de dinheiro a seu redor, constitui uma enorme centralização e confere a essa classe parasitária um poder fabuloso – não só de dizimar periodicamente os capitalistas industriais, mas de intervir da maneira mais perigosa na produção real, da qual esse bando não sabe absolutamente nada e com a qual não tem nenhuma relação.”

 

 

“A riqueza da sociedade só existe como riqueza dos indivíduos, que são seus proprietários privados e só se afirma como riqueza social pelo fato de que esses indivíduos, para satisfazer suas necessidades, intercambiam entre si os valores de uso qualitativamente distintos. Na produção capitalista, eles só podem fazer isso por meio do dinheiro. Desse modo, é apenas por meio do dinheiro que a riqueza do indivíduo se realiza como riqueza social; é no dinheiro, nessa coisa, que se encarna a natureza social dessa riqueza.” (Friedrich Engels)

 

 

“O sistema monetário é essencialmente católico; o sistema de crédito, essencialmente protestante. (...) Como papel, a existência monetária das mercadorias é puramente social. É a que salva. A fé no valor monetário como espírito imanente das mercadorias, a fé no modo de produção e sua ordem predestinada, a fé nos agentes individuais da produção como meras personificações do capital que se valoriza a si mesmo. Porém, assim como o protestantismo não se emancipa dos fundamentos do catolicismo, tampouco o sistema de crédito se emancipa da base do sistema monetário.”

 

 

“Assim, a usura exerce, por um lado, uma influência nociva e destrutiva sobre a riqueza e a propriedade antigas e feudais. Por outro lado, solapa e arruína a produção de pequenos camponeses e pequenos burgueses – numa palavra, todas as formas em que o produtor ainda aparece como o proprietário de seus meios de produção. No modo de produção capitalista desenvolvido, o trabalhador não é proprietário das condições de produção, do campo que cultiva, das matérias-primas que processa etc. Mas essa separação do produtor com relação aos meios de produção reflete aqui um revolucionamento real do próprio modo de produção. Os trabalhadores isolados são reunidos em grandes oficinas, nas quais desenvolvem atividades separadas, porém articuladas; a ferramenta se converte em máquinas. O próprio modo de produção não permite mais a dispersão dos instrumentos de produção característica da pequena propriedade, tampouco o isolamento dos próprios trabalhadores. Na produção capitalista, a usura não pode mais implantar o divórcio entre as condições de trabalho e o produtor, pela simples razão de que esse divórcio já existe.

Onde os meios de produção estão dispersos, a usura centraliza fortunas em dinheiro. Ela não altera o modo de produção, mas suga sua substância como um parasita e o arruína. Ela o exaure, enerva-o e obriga a reprodução a desenvolver-se sob condições cada vez mais deploráveis. Isso explica o fato de o ódio popular contra a usura ter sido mais intenso no mundo antigo, quando a propriedade dos meios de produção pelo produtor era ao mesmo tempo a base das relações políticas e da autonomia do cidadão.

Na medida em que prevalece a escravidão ou em que o mais-produto é consumido pelo senhor feudal e por seu séquito, e que o dono de escravos ou o senhor feudal caem nas garras da usura, o modo de produção continua a ser o mesmo; torna-se somente mais duro para o trabalhador. O dono de escravos ou o senhor feudal endividados espoliam mais porque são mais espoliados. Ou, então, acabam cedendo lugar ao usurário, que se converte ele próprio, por sua vez, em proprietário fundiário ou dono de escravos, como os cavaleiros da Roma Antiga. O antigo explorador, cuja exploração tinha um caráter mais ou menos patriarcal, porque era, em grande parte, um meio de poder político, é substituído por um arrivista implacável, ávido de dinheiro. No entanto, o próprio modo de produção não se altera.

A usura tem um efeito revolucionário em todos os modos de produção pré-capitalistas apenas na medida em que destrói e dissolve as formas de propriedade que, reproduzindo-se constantemente na mesma forma, constituem a base firme da organização política. A usura pode perdurar por longo tempo dentro das formas asiáticas sem provocar mais que a decadência econômica e a degeneração política. É apenas onde e quando estão presentes as demais condições do modo de produção capitalista que a usura aparece como um dos meios constitutivos do novo modo de produção – por um lado, mediante a ruína dos senhores feudais e da pequena produção e, por outro, pela centralização das condições de trabalho, que são convertidas em capital. (...)

A usura, em si um processo de surgimento do capital, é historicamente importante diante da riqueza consumidora. O capital usurário e a fortuna comercial promovem a formação de uma fortuna monetária independente da propriedade fundiária. Quanto menos os produtos assumem o caráter de mercadoria, e quanto menos o valor de troca domina intensiva e extensivamente a produção, mais o dinheiro aparece como riqueza propriamente dita, como a riqueza geral diante da representação limitada da riqueza em valores de uso. Nisso repousa o entesouramento. Abstraindo de sua forma como dinheiro mundial e como Tesouro, é como meio de pagamento que o dinheiro aparece na forma absoluta da mercadoria. E é especialmente sua função como meio de pagamento que desenvolve os juros e, com isso, o capital monetário. O que a riqueza pródiga e corruptora deseja é o dinheiro como tal, o dinheiro como meio para comprar tudo (e também pagar dívidas). O pequeno produtor necessita de dinheiro, principalmente para comprar. (Aqui desempenha um grande papel a transformação dos serviços e das contribuições in natura aos proprietários fundiários e ao Estado em renda monetária e impostos monetários.) Em ambos os casos, o dinheiro se torna necessário como dinheiro. Por outro lado, é na usura que o entesouramento se torna real, realiza seu sonho. O que é exigido do proprietário de tesouro não é capital, mas dinheiro como tal; mediante os juros, no entanto, ele transforma esse tesouro monetário em capital para si mesmo – num meio pelo qual ele se apodera total ou parcialmente do mais-trabalho e, com isso, de uma parte das próprias condições de produção, ainda que elas continuem nominalmente a existir para ele como propriedade alheia. A usura vive, ao que parece, nos poros da produção, como deuses nos intermúndios de Epicuro. Quanto menos a forma mercadoria é a forma geral do produto, mais difícil se torna obter dinheiro. Daí que o usurário não conhece outra limitação além da capacidade de pagar ou de resistir dos necessitados de dinheiro. Na produção pequeno-camponesa ou pequeno-burguesa, o dinheiro é requerido fundamentalmente como meio de compra, quando o trabalhador (que, nesses tipos de produção, continua a ser predominantemente seu proprietário) se vê privado das condições de produção por motivo de contingências fortuitas ou por abalos extraordinários ou quando, pelo menos, essas condições não são repostas no curso normal da reprodução. Os meios de subsistência e as matérias-primas constituem parte essencial dessas condições de produção. Se se tornam mais caros, isso pode impossibilitar sua reposição a partir do importe obtido com a venda do produto, do mesmo modo como uma simples má colheita pode impedir o camponês de repor in natura suas sementes. As mesmas guerras por meio das quais os patrícios romanos arruinavam os plebeus, compelindo-os a prestar serviço militar, que os impediam de reproduzir suas condições de trabalho e, assim, os empobreciam (e o empobrecimento, a mutilação ou a perda dos pré-requisitos da reprodução é aqui a forma predominante), essas mesmas guerras enchiam os celeiros e os porões dos patrícios com o cobre saqueado, que era o dinheiro daquela época. Em vez de entregar diretamente aos plebeus as mercadorias de que eles necessitavam, trigo, cavalos, gado, os patrícios lhes emprestavam esse cobre, que para eles mesmos era inútil, e aproveitavam a situação para arrancar-lhes enormes juros usurários, por meio dos quais faziam deles escravos por dívidas. Sob o reinado de Carlos Magno, também os camponeses francos foram arruinados por guerras, não lhes restando alternativa senão a de converter-se de devedores em servos. Sabemos que, no Império Romano, a fome costumava obrigar os pobres livres a vender seus filhos ou a vender a si mesmos como escravos. Isso basta quanto às grandes mudanças de caráter geral. Observando o problema mais detalhadamente, a conservação ou a perda das condições de produção depende de mil contingências, e cada uma dessas contingências ou perdas representa empobrecimento e abre uma brecha para que o parasita da usura possa instalar-se. A simples morte de uma de suas vacas é suficiente para tornar o pequeno produtor incapaz de retomar sua reprodução na escala anterior. Com isso, ele cai nas garras da usura e, uma vez que ali se encontra, jamais volta a libertar-se.

No entanto, a função do dinheiro como meio de pagamento é o domínio realmente importante e característico da usura. Todo pagamento em dinheiro, toda renda fundiária, tributo, imposto etc. que vence num determinado prazo coloca a necessidade de se dispor de certa soma em dinheiro. Assim se explica que a usura em grande escala tenha se desenvolvido, desde os antigos romanos até os tempos modernos, em conexão com os coletores de impostos, fermiers généraux [coletores gerais], receveurs généraux [recebedores gerais]. Em seguida, com o comércio e a generalização da produção de mercadorias, desenvolve-se a separação temporal entre a compra e o pagamento. O dinheiro precisa ser entregue num prazo determinado. As modernas crises monetárias demonstram como isso pode conduzir a circunstâncias em que as figuras do capitalista monetário e do usurário ainda hoje se confundem. Mas a própria usura torna-se o meio principal para continuar a desenvolver a necessidade do dinheiro como meio de pagamento, na medida em que endivida cada vez mais o produtor e elimina seus meios comuns de pagamento, impondo-lhe uma carga de juros que impossibilita até mesmo sua reprodução regular. Nesse ponto, a usura brota do dinheiro como meio de pagamento e amplia essa função do dinheiro como seu domínio mais peculiar.

O sistema de crédito completa seu desenvolvimento como reação contra a usura. Mas isso não deve ser mal entendido, e de forma nenhuma interpretado ao modo dos autores antigos, dos padres da Igreja, de Lutero ou dos antigos socialistas. O sistema de crédito não significa nada além da submissão do capital portador de juros às condições e às necessidades do modo de produção capitalista.”

 

 

“Como já fora exposto em 1697, em Some Thoughts of the Interest of England, o sistema bancário, por sua organização formal e sua centralização, é o produto mais artificial e mais refinado que pode resultar do modo de produção capitalista em geral. Isso explica o enorme poder de uma instituição como o Banco da Inglaterra sobre o comércio e a indústria, embora seu movimento real permaneça totalmente de fora de seu domínio e se comporte em relação a ele de maneira passiva. Com isso, está certamente dada a forma de uma contabilidade e uma distribuição gerais dos meios de produção em escala social, mas somente a forma. O lucro médio do capitalista individual, ou de cada capital particular, é, como vimos, determinado não pelo mais-trabalho, de que esse capital se apropria em primeira mão, mas pela quantidade total de mais-trabalho de que o capital inteiro se apropria e do qual cada capital particular extrai seus dividendos como alíquota do capital total. Esse caráter social do capital só se consuma e se realiza integralmente mediante o desenvolvimento pleno dos sistemas de crédito e bancário. Por outro lado, esse sistema segue seu próprio desenvolvimento. Oferece aos capitalistas industriais e comerciais todo o capital disponível da sociedade, inclusive o capital potencial, ainda não ativamente comprometido, de modo que nem o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor. Com isso, ele suprime o caráter privado do capital e, assim, contém em si, somente em si, a supressão do próprio capital. Por meio do sistema bancário, a distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usurários como um negócio especial, como função social. Ao mesmo tempo, porém, o banco e o crédito se convertem no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além de seus próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude.

Além disso, ao substituir o dinheiro por diversas formas de crédito circulante, o sistema bancário mostra que o dinheiro, na realidade, nada mais é que uma expressão particular do caráter social do trabalho e de seus produtos, mas que, em oposição à base da produção privada, tem sempre de aparecer, em última análise, como uma coisa, uma mercadoria especial ao lado de outras mercadorias.”

 

 

“A usura, assim como o comércio, explora um modo de produção dado; não o cria, relaciona-se com ele externamente. A usura tenta conservá-lo de maneira direta, a fim de poder explorá-lo sempre de novo; ela é conservadora e não faz mais do que tornar esse modo de produção mais miserável. Quanto menos os elementos de produção entram no processo de produção como mercadorias e dele saem como mercadorias, mais a sua origem no dinheiro aparece como um ato separado. Quanto mais insignificante é o papel desempenhado pela circulação na reprodução social, mais florescente é a usura.

Que a riqueza monetária se desenvolve como um tipo especial de riqueza significa, em relação ao capital usurário, que ele possui todos os seus títulos de crédito na forma de títulos de crédito monetários. Esse capital se desenvolve com mais força num país quanto mais a massa da produção se limita a prestações in natura, isto é, a valores de uso.

A usura é uma poderosa alavanca para a formação dos pressupostos do capital industrial, na medida em que desempenha dupla função: primeiro, de constituir em geral, ao lado da riqueza comercial, uma riqueza monetária autônoma; segundo, a de se apropriar das condições de trabalho, isto é, de arruinar os possuidores das antigas condições de trabalho.”

 

 

“Nada pode ser mais curioso que a argumentação da propriedade privada em Hegel. O ser humano, como pessoa, precisa dar realidade a sua vontade como a alma da natureza exterior e, assim, tomar posse dessa natureza como sua propriedade privada. Se essa é a determinação “da pessoa”, do homem como pessoa, é lógico que todo homem tem de ser proprietário fundiário para poder realizar-se. A livre propriedade da terra – um produto muito moderno – não é, segundo Hegel, uma relação social determinada, mas uma relação do homem como pessoa com a “natureza”, um “direito absoluto de apropriação do homem sobre todas as coisais” ([Georg Wilhelm Friedrich] Hegel, Philosophie des Rechts [Filosofia do direito], Berlim, 1840, p. 79). É evidente, em primeiro lugar, que o indivíduo não pode afirmar-se como proprietário por sua “vontade” diante da vontade de outro que queira materializar-se igualmente no mesmo pedaço do globo terrestre. Para isso, são necessárias coisas muito distintas da mera boa vontade. Além disso, é absolutamente impossível ver onde “a pessoa” traça o limite da realização de sua vontade, se a existência de sua vontade se realiza num país inteiro ou se necessita de muitos outros países para, por meio de sua apropriação, “manifestar a soberania de minha vontade sobre as coisas” [ibidem, p. 80]. Aqui, Hegel se perde por completo. “A tomada de posse é de natureza absolutamente singular: só tomo posse daquilo que toco com meu corpo; em segundo lugar, ocorre que, ao mesmo tempo, os objetos exteriores têm uma extensão maior que a que posso abarcar. Quando estou de posse de algo, há outra coisa em conexão com esse algo. Exerço a tomada de posse por meio da mão, mas o raio de ação desta última pode ser ampliado” ([ibidem,] p. 90 [91]). A essa outra coisa, por sua vez, está conectada outra coisa, e assim desaparece o limite até onde minha vontade pode derramar-se como alma sobre a terra. “Se possuo algo, a razão passa de imediato a considerar que é meu não só aquilo que é imediatamente possuído por mim, mas também o que está vinculado a isso. Aqui o direito positivo deve efetuar suas constatações, pois a partir do conceito já não se pode deduzir mais nada” ([ibidem,] p. 91). Essa é uma confissão extraordinariamente ingênua “do conceito” e prova que este último, que de antemão comete o erro de considerar absoluta uma representação jurídica da propriedade fundiária totalmente determinada e pertencente à sociedade burguesa, não compreende “nada” das configurações reais dessa propriedade fundiária. Aí está contida, ao mesmo tempo, a confissão de que, com as necessidades cambiantes do desenvolvimento social, isto é, econômico, o “direito positivo” pode e deve mudar suas definições.”

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