Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-107-2
Tradução: Clóvis Marques
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 370
Sinopse: Ver Parte I
““Deem-me o moinho de vento e eu lhes darei a
sociedade feudal”, dizia Marx. Pois hoje diríamos: “Deem-me o computador, a
desregulamentação e a empresa financeira, e eu transformarei a aproximação dos
povos em fratura, o alívio dos homens pela máquina em exclusão social e a
gestão da natureza em destruição.”
“Onde quer que sejam reduzidas ou eliminadas
as proteções, a situação do fraco se degrada em benefício do mais poderoso.”
“Individualmente, as 200 pessoas mais ricas
do mundo viram seu patrimônio mais que duplicar entre 1995 e 1998, chegando
nesse ano a 1 trilhão de dólares; e só para visualizar a situação, em 1993 o
presidente da Walt Disney ganhava 203 milhões de dólares, o equivalente a
325.000 vezes o salário de um operário haitiano que trabalhava para sua
empresa; em 1998, as três maiores fortunas do mundo superavam o PIB dos 600
milhões de habitantes vivendo nos 48 países mais pobres; os 15 maiores
patrimônios eram mais elevados que os PIBs acumulados de toda a África
subsaariana, enquanto as 84 pessoas mais ricas acumulavam riquezas superiores à
produção anual de 1,2 bilhão de chineses. Será necessário comentar?
O atendimento das necessidades afasta-se dos
objetivos do PNUD, segundo os quais todo homem deve poder atender a suas
exigências mais elementares, definidas como acesso ao ensino primário, à saúde,
alimentação com água potável, higiene pública, a vacinação de todas as
crianças, a divisão por dois da mortalidade infantil, o livre acesso ao
planejamento familiar e a eliminação dos casos graves de desnutrição. Em 1998,
no entanto, 1,3 bilhão de indivíduos viviam com menos de 1 dólar por dia, 1
bilhão não conseguiam atender a suas necessidades elementares e 840 milhões
sofriam de desnutrição. Segundo os especialistas, entretanto, o custo do
programa acima mencionado representaria apenas 30 a 40 bilhões por ano, ou um
terço das despesas militares dos países em desenvolvimento e 5% das despesas
mundiais com armas, ou ainda 4% das riquezas acumuladas pelas 225 maiores
fortunas do mundo.”
““Não se pode ter ao mesmo tempo o dinheiro
do salário e a manteiga do pleno emprego”, é o que nos dizem. É preciso
escolher:
– ou o salário é considerado irredutível, e
neste caso é o volume do emprego que se adapta; seria este o caso da Europa
continental;
– ou então o que se privilegia é o emprego, e
o salário deve ceder; seria o caso dos países anglo-saxônicos.
Salário, proteção social, desemprego, por um
lado, ou então, por outro, queda dos salários, empregos precários, biscates mas
pleno emprego; duas modalidades de empobrecimento – seja por privação de trabalho,
seja pelo próprio trabalho –, seria esta a escolha; como são bonzinhos de pelo
menos nos darem a escolha!...”
“Por
toda parte, o sacrifício dos homens torna-se a maneira de assegurar o bom
funcionamento da máquina econômica. A mudança das atitudes em relação às
demissões é significativa.
Numa primeira etapa, estas são encaradas como
sinal de fracasso das empresas, ou na melhor das hipóteses um sacrifício
necessário para seu saneamento, devendo ser seguido de uma recuperação do
dinamismo e do retorno ao pleno emprego: basta lembrar, até o início dos anos
80, dos estaleiros, da siderurgia...
Depois vemos surgir na indústria
automobilística o anúncio simultâneo de bons resultados financeiros e de novas
demissões para consolidar esses resultados. A prática se banaliza: no dia 8 de
setembro de 1999, a Michelin anuncia simultaneamente um lucro líquido semestral
em alta de 17,3% em relação ao semestre anterior e a eliminação de 7.500 postos
de trabalho na Europa em três anos; no dia seguinte, a Bolsa comemora o feito
com uma alta de 12,5% das ações do fabricante de pneus.
O desemprego torna-se, portanto, um meio de
gestão. Entra para a lógica de um sistema que se torna sua própria finalidade e
cujos resultados são avaliados em relação a “fundamentos” nos quais o recurso
humano não tem lugar: “O direito ao trabalho e a proteção do meio ambiente
tornaram-se excessivos na maioria dos países desenvolvidos. A livre troca vai
reprimir alguns desses excessos, obrigando todos a se manterem competitivos”,
declara o Prêmio Nobel Gary Becker, pai de uma “economia generalizada” segundo
a qual toda lógica social é redutível a uma pura racionalidade econômica;39
“Temos vantagens demais”, confirma Didier Pineau-Valencienne (este “nós” é
maravilhoso: nós temos vantagens
demais, vocês precisam fazer
sacrifícios); em nome do mesmo princípio, um corajoso capitão de indústria que
qualquer um poderá identificar resiste às reivindicações de seus assalariados
(1,5% de aumento teria bastado para acalmá-los) ao mesmo tempo em que dava discretamente
a si mesmo um aumento de 49,5%; o vice-presidente da CNPF (hoje presidente do
MEDEF) confirma no Figaro de 5 de
maio de 1993 que “se não mudarmos os fundamentos sociais deste país, não
conseguiremos operar a retomada da máquina”; fiel a si mesma, a OCDE demonstra
que, para moderar as reivindicações salariais, “seria necessário um nível mais
elevado de desemprego conjuntural”.40 Como se vê, acaba de nascer a
teoria das demissões de competitividade.”
39: Para uma avaliação humorística das consequências
de semelhante abordagem, permito-me remeter o leitor a meu livrinho Une économie de rêve, Calmann-Lévy,
Paris, 1995.
40: A maioria dessas citações provêm de Régis
Nérnoz, Le Vrai Visage du libéralisme, Trérna,
La Sarraz, 1997.
“A prática francesa das stock-options mostra a que ponto pode chegar a aberração: 45,4
bilhões de francos de capital acionário concentrados em 28,000 executivos
vinculados às 40 maiores empresas; os adeptos mais ardorosos da compressão dos
custos salariais colocam-se acima de sua própria lei. Reproduziremos um
comentário de um dos articulistas do Monde:
“Será que o trabalho de um homem, patrão ou executivo, vale, por competência e
especialização, treze mil vezes mais que o trabalho de outro homem?... O
dinheiro enlouquece... Eis então que o capitalismo empresarial ficou
completamente maluco, construindo a fortaleza dos abastados sobre o excesso, a
indecência, a falta de consciência e o cinismo... e cavando no próprio interior
das empresas uma sociedade de duas velocidades, de dois universos, os
acionistas e o resto, os especuladores e os assalariados de base.” 60
60: Pierre Georges, “Golden cadres”, Le Monde,
10 de setembro de 1999.
“Nos Estados Unidos, a parcela do PIB
destinada aos 5% mais favorecidos da população passou de 16,5% em 1974 para 21%
em 1994, enquanto a dos mais pobres caía de 4,3 para 3,6%,62
desestimulando os menos motivados e orientando-os para a delinquência; a
própria OCDE63 assinalava em 1996 que “desde o fim dos anos 60 cada
um dos quatro quintos mais baixos [80% das famílias] na realidade contraiu-se
em proveito dos 5% superiores do leque de rendas”. No Fórum de Davos de 1997,
Lawrence Summers, o nº 2 do Tesouro americano – que dificilmente passaria,
portanto, por um detrator sistemático do sistema –, declarou que uma criança
negra que nasce hoje no Harlem tem uma expectativa de vida inferior à de uma
criança nascida em Bangladesh, menos chances de ser escolarizada antes dos
cinco anos que um bebê de Xangai e passará em média mais tempo na prisão que na
universidade. (...)
Por toda a parte, registra o relatório 1997
da CNUCED, “os ricos tornam-se cada vez mais ricos” e – podemos acrescentar – a
defasagem em relação aos mais pobres, cada vez mais considerável. Nos países
mais ricos do mundo, uma pessoa em cada oito é afetada por pelo menos um dos
critérios pelos quais se define a pobreza humana.65 Precariedade,
desigualdade, pauperização... temos de reconhecer que o “bom andamento” do
sistema repousa na infelicidade dos homens.”
62: Philippe Lemaitre, “La pauvreté en Europe
comme aux États-Unis”, Le Monde,
18-19 de maio de 1997.
63: OCDE, Études
économiques de l’OCDE, États-Unis, Paris, 1996.
65: “Ou seja: desemprego de longa duração,
expectativa de vida inferior a sessenta anos, renda inferior ao limiar de
pobreza do país em questão, insuficiência de conhecimentos que permitiriam sair
desta situação.
“O culto dos meios, promovidos à condição de
fins, provoca uma neutralização dos valores e utopias mobilizadoras, com
temíveis consequências.
Quando o salário é baixo demais, muitos
consideram que o ganho não merece o esforço requerido e se voltam para a viração ou a delinquência. Nos Estados
Unidos, diz Rifkin, 2% dos homens em idade de trabalhar estão na cadeia68,
em dez anos a população carcerária passou de 750.000 a 1.700.000,
proporcionalmente sete vezes mais que na França; segundo o mesmo autor – que
acompanhamos aqui com extrema prudência, dado o caráter quase mecânico da
relação que estabelece –, um aumento de 1% do desemprego aumentaria os
assassinatos em 6%, os crimes violentos em 3,4% e os assaltos a residências em
2,4%. Isto explica em parte, diz ele, os baixos índices de desemprego
constatados nos Estados Unidos: os desempregados estão na prisão. “A prisão”,
comenta o Prêmio Nobel de economia Robert Solow, “é o seguro-desemprego
americano.”
A exclusão leva à revolta uma juventude sem
futuro que não suporta mais a provocação permanente de uma publicidade que
convida e incita a desfrutar de artigos de consumo dos quais muitos se veem
afastados, por falta de formação, de emprego e de renda. Que exemplo, que apoio
moral, que acompanhamento podem oferecer-lhes pais sem emprego, sem horário,
deixando que tudo corra ao deus-dará? Em nome de que os marginalizados do
crescimento haveriam de respeitar isto? Em nome do exemplo dado pelas “elites”?
Em nome da “grana”, novo valor supremo? Mas se os valores unem e aproximam, a
“grana”, de que cada um se apropria em detrimento do outro, divide e opõe os
homens. (...)
Não bastará pintar as fachadas de rosa,
mobilizar os jovens em campeonatos de futebol ou mandá-los tomar ar fresco no
campo. Devolver a cada um a noção de sua própria dignidade e a esperança no
amanhã é naturalmente uma conversa muito diferente.
Nos mais fracos, o sentimento de impotência
ante um fenômeno que ultrapassa as iniciativas individuais provoca desânimo,
fuga na droga em direção a paraísos artificiais; como enfiar a cabeça na
areia... Por um lado, a lei do mercado arruína os agricultores dos países em
desenvolvimento em nome da liberdade das cotações internacionais, condenando-os
à reconversão: na mesma área, o cultivo da cocaína proporciona ao agricultor
colombiano, com menos esforço, renda sete a dez vezes superior à que extrairia
de colheitas tradicionais. Miséria dando duro ou riqueza fácil: quantos
professores de virtude resistiriam à tentação? O cultivo de plantas ilegais
surge onde quer que as rendas sejam baixas demais. No outro extremo, o
desespero dos homens garante o recrutamento dos consumidores.
O culto aos meios, enfim, não pode satisfazer
a necessidade de sentido que é própria da natureza humana. Esta necessidade às
vezes exprime-se simplesmente na busca religiosa, perfeitamente respeitável
quando por sua vez respeita a busca dos outros. A ressurgência do fenômeno é
evidente em escala mundial, abrangendo todas as confissões. Mas a fórmula dos
anos 60 – “modernizar o cristianismo, o islamismo ou o judaísmo” – assume às
vezes a forma mais ambígua de “cristianizar, islamizar ou judaizar a modernidade”.
A busca de valores descamba também para o
delírio, o sectarismo e a violência: integrismos, fanatismos e seitas. Já não
há aqui reino de Deus e reino de César: este já não passa de instrumento da
vontade atribuída àquele por militantes de olhar febril; já não há demarcação
entre as consciências, onde as convicções individuais desabrocham livremente, e
o Estado, cuja neutralidade garante esta liberdade: a força pública não passa
do braço secular através do qual a instituição religiosa tritura consciências e
corpos. Pela salvação das almas, naturalmente.”
68: Jeremy Rifkin, The End of Work, Tarcher/Putnam Books, Nova 1995.
“Dizem-nos – por falta de consciência ou
desprezo – que de um aumento de liberalismo futuro surgirá a solução espontânea
para os problemas gerados pelo liberalismo existente: a melhoria do nível de
vida, o desenvolvimento, o emprego, o respeito às normas de trabalho, a
preservação do ambiental; como se a questão do nível de vida não se colocasse
hoje em termos de distribuição, mais que de produção; como se os menos
desenvolvidos sofressem mais as consequências de uma carência de capitais
privados do que do excesso de sua volatilidade; como se não lhes fizessem
falta, sobretudo, capitais públicos e ajuda internacional, únicos capazes de
assumir os investimentos de infraestrutura não imediatamente rentáveis; como se
o problema do emprego não estivesse ligado ao confisco da renda pelos capitais
privados, mais que a sua própria penúria; como se não fosse a busca prioritária
do lucro que destruísse o meio ambiente. E quem vai acreditar, enfim, que é a
liberação total dos apetites e não a lei, que garantirá o respeito às normas de
trabalho?
“Liberalizem! Do resto cuidamos nós!” Nosso
problema é exatamente inverso. Hoje são o homem, a natureza, a vida que se veem
ameaçados pelos excessos do liberalismo. É preciso então inverter o
procedimento e estabelecer como prioridade o respeito às normas fundamentais.
Teremos assim delimitado, de um só golpe, o campo no qual o jogo dos interesses
individuais poderá acontecer livremente. (...)
A primeira norma não é o capital, nem o
lucro, nem a liberdade reduzida à do mercador, mas a pessoa, a solidariedade
dos povos e das gerações, a vida, a biosfera, a liberdade pura e simples. Os
valores socioculturais que fundamentam estes objetivos têm como corolário a
supremacia da esfera política – expressão da escolha de sociedade livremente
expressa pelos cidadãos – sobre o instrumento econômico.
Não se trata de filosofia, mas de teoria dos
sistemas. Um sistema – vivo, por exemplo –constituído de níveis específicos só
funciona corretamente se:
– estiver submetido aos imperativos de uma
finalidade comum que transcenda as dos diferentes níveis (supremacia do
político e da democracia);
– todos os níveis participarem da definição
dessa finalidade e do funcionamento do conjunto, no respeito a especificidade
de cada um, do elemento aos subsistemas e ao sistema como um todo (economia e
sociedade “plurais”).”
“O bom funcionamento de um sistema pressupõe
que todos os níveis participem da definição da finalidade comum e do controle
do bom funcionamento do conjunto.
Como ninguém pode demonstrar a superioridade
de seu sistema de referência, e como todos devem viver juntos, é necessário que
cada um aceite a diferença do outro. O que em nada altera a força das paixões
nem o ardor das convicções. Pluralidade das lógicas defrontadas,
impossibilidade de reduzir o sistema a uma delas, necessidade de levar todas em
conta em sua diversidade: temos aí os fundamentos do pluralismo e da
democracia. Ao contrário do que pretendem os arautos do sistema estabelecido, é
portanto a democracia, e não o mercado, que segue a natureza das coisas.
É natural que se confrontem e defrontem os
pontos de vista divergentes dos grupos humanos que formam a sociedade. O
unanimismo é que constitui a verdadeira perversão: onde quer que se instale –
na Alemanha hitlerista ou na URSS stalinista – reina a opressão.
O problema central de um sistema social não
está no conflito, mas na maneira como é arbitrado.
A arbitragem pode estar a cargo de um dos
componentes do sistema, conseguindo impor sua regra e apresentar seus
interesses particulares como interesse social: assim é que modernamente o
respeito absoluto à propriedade individual não tem muito a ver com os deveres
que estavam associados a esta instituição na Europa cristã da Idade Média;
estamos então diante de um caso de regulação de um sistema por uma de suas
partes constituintes (reducionismo por baixo): é o que acontece com a sociedade
burguesa no século XIX ou o controle da lógica financeira sobre a sociedade
contemporânea; por trás do brinquedinho democrático formal dissimula-se a
dominação de uma fração social sobre todas as outras; esta democracia é que se
tornou majoritária no mundo a partir do momento em que passou a atender aos
interesses do capitalismo em vez de refreá-los.
Se a arbitragem é de um centro ou de uma
cúpula, sufocando a expressão dos componentes para impor sua lógica global do
“todo” (reducionismo pelo alto), estamos diante de um “totalitarismo” no
sentido próprio da palavra; esses sistemas, que só funcionam graças a mecanismos
muito fortes de coação que paralisam a iniciativa individual, invariavelmente
revelam-se ineficazes a longo prazo, pela ausência de capacidade de adaptação,
e nunca sobrevivem por muito tempo aos déspotas megalomaníacos que os criaram:
foi o caso da Alemanha nazista “criada para mil anos”, da URSS que detinha os
direitos sobre o futuro do mundo, de todos os impérios.11
A única forma de arbitragem que corresponde à
lógica dos sistemas é aquela na qual o debate democrático permite às diferentes
concepções da utilidade social se defrontarem, ao conjunto da coletividade
arbitrar e à alternância democrática oferecer periodicamente a cada um desses
componentes a oportunidade de fazer valer seu ponto de vista no exercício do
poder. É a democracia que se mantém de acordo com a “natureza das coisas”, e o
reducionismo mercantil que a violenta.”
11: “Desde que la cosa dure”, dizia madame Letizia, a mãe de Napoleão, que não era
destituída de bom senso...
“Reencontramos aqui a necessidade sistêmica
de fazer com que coabitem todos os níveis de organização, do individual ao
coletivo, respeitando a especificidade de cada um.
Desde os anos 80, em nome do reducionismo
mercantil, a ofensiva contra os serviços públicos vai a mil. Depois da
investida contra a economia do bem-estar (o Welfare
State), ataca-se a própria existência do Estado16, que teria de
ser “desinventado”: “deinventing the
State”, escreve The Economist de
20 de maio de 1995. E como há necessidade de objetivos nobres, acusa-se a
centralização burocrática e a baixa eficácia dos serviços públicos, que seriam
em última análise a perda do bem-estar dos cidadãos. Liberar, liberalizar,
privatizar; abaixo o setor público, refúgio de todos os passadismos.
Colocar a questão dos serviços públicos e do
Estado significa antes de mais nada colocar a questão da lógica social e do
modo de controle: se em todos os níveis a economia obedece exclusivamente à
lógica individual mercantil, o único regulador só pode ser o mercado. Esta
convicção exprime-se na própria incapacidade em que se encontra a economia
mercantil de definir a economia pública senão de maneira residual, em relação a
si própria: “Todo serviço que não seja fornecido nem em bases comerciais nem em
concorrência com um ou vários fornecedores de serviços”, dizem os acordos de
Marraquech de 1994, na fundação da OMC. A partir do momento em que uma parcela
das atividades de um setor passa pelo mercado, todo o setor passa a ser
passível de liberalização: assim é que a saúde e a educação entram
“naturalmente” na esfera da privatização. E, portanto, exclusivamente em
relação à realidade mercantil reconhecida que se avalia o desempenho do setor
público, e como seus produtos não são vendidos no mercado, a consequência é
evidente: eles não têm valor e o serviço público só comporta custos. (...)
Existe uma racionalidade individual e uma
racionalidade coletiva, interdependentes, mas irredutíveis uma à outra. Uma
refere-se aos interesses individuais; a outra, ao interesse geral.17
Esta incumbe-se, portanto, dos bens coletivos (o farol, a barragem, a
infraestrutura...), da utilidade social (saúde, educação...) e dos direitos
fundamentais dos indivíduos (liberdade, segurança, igualdade perante a lei e no
acesso aos bens comuns...). Cada um desses campos define-se, portanto, segundo
suas funções.
É ao nível do interesse individual que se
manifestam, da forma mais motivada e mais bem informada, as aspirações da
multidão de seres conscientes que formam a sociedade. Nenhum sistema pode ignorá-lo,
sob pena de ineficácia, de coerções inúteis e finalmente de autodestruição. Foi
desta ignorância que morreu a economia hipercentralizada do Leste. Este
interesse individual exprime-se no mercado, cujo prêmio é o lucro. Mas o
mercado não pode garantir as duas funções para as quais não foi concebido: a
reprodução dos recursos humanos18 e do meio ambiente.
O interesse coletivo também existe,
irredutível ao anterior. A necessidade coletiva não decorre da necessidade
individual; é, como vimos, de natureza diferente. O bem coletivo não preenche
qualquer das condições da formação de um preço no mercado. Do ponto de vista da
demanda, seu serviço é ao mesmo tempo indivisível e simultaneamente consumível
por cada um, sem que nada seja retirado aos outros: o navegador que se orienta
pela luz do farol a utiliza inteiramente (e não em maior ou menor quantidade,
em função de um preço), mas deixando-a inteiramente disponível para os outros;
ao contrário do que acontece com o bem individual, que só pode pertencer a uma
ou outra pessoa, não existe competição pela posse do bem coletivo, e nada
obriga o consumidor a revelar suas preferências oferecendo um preço, pois
nenhuma concorrência pode privá-lo dele. Do ponto de vista da oferta, o bem
coletivo não tem custo marginal: a construção de um pedaço de farol não tem
sentido, ele deve ser construído por inteiro ou de nada serve; François Perroux
qualificava esse tipo de investimento como “apostas em estruturas novas”. Na
ausência de revelação de preferências e de custo marginal, o bem coletivo não
faz parte da lógica mercantil.
Sua rentabilidade não se revela ao nível de
sua conta de exploração, mas na das empresas que o cercam, e a longo prazo. A
verdadeira eficácia econômica das ferrovias, na história, não é medida por seus
lucros ou perdas, mas por sua contribuição para o crescimento do produto
nacional. É inclusive o déficit que pode ser racional aqui, na medida – e no
limite – em que estimula a criação de riquezas que lhe são superiores.19
Que dizer, a fortiori, da saúde ou da
educação? Consideremo-las por um momento como simples bens intermediários
valorados à luz da rentabilidade mercantil. Avaliando-as exclusivamente pelo
ângulo do custo, o pensamento dominante apressou-se a declarar improdutivas as
instituições públicas que as assumem. A formação dos espíritos e o estado de
saúde dos homens não significariam nada? Tomemos ao pé da letra os cavalheiros
do Medefe transponhamos, pensando neles, a célebre parábola de Saint-Simon
(1810): que aconteceria com a eficácia de suas empresas, aparentemente as
únicas criadoras de riqueza, se amanhã deixassem de existir esses monumentos de
suposta improdutividade que são o sistema educativo, o sistema de saúde, a
infraestrutura pública de transportes e comunicações, todos os serviços
públicos? “A nação tornar-se-ia um corpo sem alma no momento em que os
perdesse”, e os detratores do serviço público veriam o que aconteceria com a
magnífica produtividade de que se vangloriam; dar-se-iam conta de quanto de seu
desempenho devia-se à coletividade, assim como dos encargos financeiros de
formação e manutenção do “material humano” (que é como o enxergam), dos quais
se viam até então dispensados. E que aconteceria, em compensação, se – que Deus
nos livre – todo o seu estado-maior, o califa, seu braço direito, seu braço
esquerdo, seus vizires grandes ou pequenos que de bom gado se veriam como
califas no lugar do califa, se todos eles decidissem voltar à sombra? Isto
“certamente afligiria os franceses, pois eles são bons [...]. Mas esta perda só
os magoaria de um ponto de vista puramente sentimental, pois nenhum problema
político dela resultaria para o Estado”.”
16: Riccardo Petrella, “Mondialisation,
services publics et Europe: se battre pour la citoyenneté”, Transversales Science/Culture, nº 37,
janeiro-fevereiro de 1996.
17: Em muitos países se fala de “serviços
públicos”, mas de atividades ou serviços de “interesse geral”. Esta expressão
encaixa-se perfeitamente no que acabamos de dizer.
18: Ver mais na página 113.
19: Cabe acrescentar que faz parte da lógica
do bem coletivo mobilizar um potencial excedentário em relação às necessidades
que deve satisfazer; a ponte e a barragem são construídas visando a longa
duração; seu objetivo é, antes, permitir o surgimento de novas atividades
geradoras de novas necessidades do que satisfazer as imediatamente existentes;
a irracionalidade estaria no fato de serem plenamente utilizadas que
inauguradas; o capital que mobilizam não pode, assim, ser imediatamente
rentabilizada, mas apenas nesse mesmo longo prazo que não interessa aos
capitais privados.
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