Editora:
Boitempo
ISBN: 978-85-7559-645-6
Tradução: Marian
Toldy e Teresa Toldy
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
“Torna-se, assim, evidente em que consistiu o
verdadeiro fracasso da democracia nas
décadas de transição neoliberal. A democracia e a política democrática
fracassaram quando não reconheceram a contrarrevolução contra o capitalismo
social do período pós-guerra e não se opuseram a ela; fracassaram quando, na
prosperidade aparente dos anos 1990, abdicaram da regulamentação de um setor
financeiro que crescia descontroladamente; fracassaram quando acreditaram de
imediato na conversa da iminente substituição pró-democrática e socialmente
aceitável de um government “duro” por
uma governance “suave”54;
fracassaram quando desistiram de tributar os beneficiários do crescimento da
economia capitalista de forma a que estes fossem obrigados a contribuir para o pagamento
dos custos sociais dos seus lucros55; fracassaram ainda quando não
só toleraram a desigualdade crescente entre as camadas mais altas e mais baixas
da sociedade, como também a promoveram, em nome do progresso capitalista,
através de reformas fiscais e do Estado social “compatíveis com incentivos”.
Além disso, a política democrática contribuiu para a criação do Estado endividado,
uma vez que não conseguiu estabilizar a participação política das camadas da
população que teriam interesse em impedir reduções de impostos para os mais
abastados. Em vez disso, a mudança na composição do eleitorado, que abrange
cada vez mais os mais favorecidos, torna o aumento de impostos cada vez menos
exequível. (...)
A política de liberalização, à qual aderiram, pelo
menos desde os anos 1990, todos os governos do mundo capitalista, conservadores
ou socialdemocratas, esperava que a adaptação abrangente da sociedade às novas condições
de produção, exigidas pelo capital, abrisse um caminho comum para uma
prosperidade garantida num futuro próximo. Ignorou que a compatibilidade do
capitalismo com a democracia é muito limitada e que só existe quando há uma
regulamentação rigorosa e eficaz. Deste modo, o fracasso estrutural da
democracia associou-se ao fracasso ideológico. O resultado está à vista desde
2008.”
54: Sobre esse tema, ver Claus Offe, “Governance. ‘Empty Signifier’ oder sozialwissenschaftliches
Forschungsprogramm?”, em Gunnar Folke Schuppert et al. (orgs.),
Governance in einer sich wandelnden Welt
(Wiesbaden, 2008), p. 61-76.
55: Na Alemanha, o debate sobre o agravamento dos
escalões máximos de imposto sobre o rendimento, o aumento do imposto sucessório
e as diversas formas de imposto sobre o patrimônio só começou no verão de 2012,
após as eleições presidenciais na França e sob pressão do Partido da Esquerda (Linkspartei). Como exemplo, ver Stefan
Bach, “Vermögensabgaben – ein Beitrag zur Sanierung der Staatsfinanzen in
Europa”, DIW Wochenbericht, 2012, p.
3-11. No entanto, não existia nem existe perspectiva realista de aumento dos
impostos para os mais abastados.
“O nexo político entre o endividamento do Estado e
a distribuição da riqueza só se torna patente quando o financiamento das
dívidas dos Estados no período de transição neoliberal é encarado como consequência
de uma tributação demasiado baixa das camadas da população que possuem patrimônio.
Quanto menos o sistema fiscal exigir da propriedade dos mais abastados e dos
seus herdeiros, em prol da comunidade58, tanto mais desigual será a
distribuição da riqueza, o que se manifesta, entre outras coisas, numa taxa de
poupança mais elevada na faixa superior da sociedade. Sendo assim, aqueles a quem
a política fiscal do Estado permite criar excesso de capital privado começam a
debater-se com o problema de encontrar possibilidades de investimento – com
isso, a figura do rentista de Keynes que, na realidade, deveria ter sido vítima
de uma eutanásia política59, regressa, com força, à economia. O
rentista, na procura de possibilidades de investimento seguro para suas
poupanças, considera muito bem-vindos os Estados que dependem de financiamentos
do crédito – sobretudo também devido ao seu sucesso na resistência aos
impostos: a pobreza do Estado não só constitui a sua riqueza, como também lhe
proporciona uma oportunidade ideal para investir a riqueza de forma a obter
lucro61.
Enquanto se puder confiar na capacidade de os
Estados pagarem aos seus credores, o financiamento parcial permanente da
atividade estatal através do endividamento é mesmo do interesse dos
proprietários dos recursos monetários. O triunfo dos vencedores na luta pela
distribuição no mercado e na luta com a repartição das finanças só será total quando
puderem investir de forma segura e lucrativa o capital que ganharam ao Estado e
à sociedade. Por isso, eles têm interesse num Estado que não só deixe o seu
dinheiro na sua posse, mas também o absorva, depois, sob a forma de crédito,
que o guarde de forma segura, que, ainda por cima, lhes pague juros pelo dinheiro
emprestado (em vez de confiscado) e que, por fim, lhes proporcione a
possibilidade de transferir este dinheiro para a próxima geração da sua família
– pagando um imposto sucessório que há muito se tornou insignificante63.
Deste modo, o Estado, enquanto Estado endividado, contribui significativamente
para a perpetuação da estratificação social e da desigualdade social daí
decorrente, ao mesmo tempo que se submete, bem como sua atividade, ao controle
por parte dos seus credores, que aparecem sob a forma de “mercados”. Esse
controle associa-se ao controle democrático por parte dos cidadãos, podendo
sobrepor-se a este ou até mesmo – como se anuncia atualmente, na transição do Estado
endividado para o Estado de consolidação – eliminá-lo progressivamente.”
58: Não faltam exemplos grotescos. A Constituição
grega, por exemplo, inclui uma disposição que concede isenção de impostos aos
armadores, portanto, a famílias como Onassis e Niarchos. A isenção de impostos
para armadores foi inserida na Constituição adotada imediatamente após o golpe
da junta militar, em 1967. Em 1972, os armadores gregos elegeram o ditador
Papadopoulos para presidente vitalício da associação de armadores, em sinal de
reconhecimento. (...) Em vez de pagar impostos, algumas famílias ricas criam
fundações com fins filantrópicos, segundo o modelo estadunidense.(...)
61: A existência de impostos mais elevados para
evitar a dívida pública também tornaria obsoleta a retórica bacoca da
consolidação, segundo a qual “nós” não podemos viver à custa dos “nossos filhos”,
quando, na realidade, o problema está no fato de “aqueles que ganham melhor” viverem
à custa da comunidade, dispensando-se, em grande parte, de uma participação nas
despesas gerais resultantes da preservação de suas reservas de caça. De resto,
a existência de um salário mínimo adequado para os serviços privados também
contribuiria para a redução da taxa de poupança da classe média e, por
conseguinte, para a eliminação de sua “situação de emergência em termos de
investimento”, o que – tal como podemos ler na obra de Keynes – promoveria,
simultaneamente, o consumo e o crescimento.
63: Sobre o imposto sucessório, ver os trabalhos de
Jens Beckert: entre outros, “Der Streit um die Erbschaftssteuer”, Leviathan, n. 32, 2004, p. 543-57.
“Em 19 de setembro de 2007, Alan Greenspan,
presidente do banco central estadunidense na época, deu uma entrevista ao
jornal Tages-Anzeiger, de Zurique, na
qual respondeu da seguinte maneira, quando lhe perguntaram qual dos candidatos
à presidência dos Estados Unidos apoiava:
Temos a
sorte de, graças à globalização, as decisões políticas nos EUA terem sido
substituídas em grande parte pela economia de mercado mundial. À exceção do
tema da segurança nacional, quase não importa quem será o próximo presidente. O
mundo é governado pelas forças de mercado.”73
A restrição à soberania dos Estados nacionais por
parte das “forças de mercado” equivale a uma restrição da liberdade de decisão
democrática dos seus povos e ao aumento correspondente do poder do povo do
mercado, cada vez mais imprescindível para seu financiamento. A democracia em
nível nacional pressupõe a soberania dos Estados nacionais; contudo, os Estados
endividados, dependentes dos mercados financeiros, dispõem cada vez menos desta
soberania. A vantagem organizacional dos mercados financeiros integrados em
nível global em relação a sociedades organizadas no nível de Estados nacionais,
bem como em relação ao poder político daí resultante, tornou-se dramaticamente
evidente pela primeira vez quando, em setembro de 1992, o empresário financeiro
George Soros conseguiu juntar dinheiro suficiente para ser bem-sucedido num
ataque especulativo ao Bank of England, detonando, assim, o Sistema Monetário
Europeu de então. O lucro que obteve nessa operação seria de 1 bilhão de
dólares.”
73: Citado segundo Ulrich Thielemann, “Das Ende der
Demokratie”, Wirtschaftsdienst –
Zeitschrifi für Wirtschaftspolitik, n. 91, 2011, p. 820-3.
“A política do Estado moderno endividado está se tornando
simultaneamente complicada e esquiva ao controle democrático, uma vez que se
concretiza, em grande parte, como política internacional – sob a forma de
diplomacia financeira internacional –, sobretudo na Europa. O conflito de
distribuição entre os povos dos Estados e o povo do mercado – ele próprio uma
versão resultante do conflito de distribuição entre dependentes do salário e
dependentes do lucro – é projetado para um novo nível, no qual aparece de tal maneira
distorcido que se torna irreconhecível, ao mesmo tempo que se apresenta como
mais um palco ideal para representações da pós-democracia. O público dos
Estados nacionais europeus há anos assiste, estupefato, a um espetáculo
confuso, com mudanças surpreendentes, e que não fica nada atrás das
excentricidades da história da pequena Alice no País das Maravilhas.
Porém, o que está em causa na política de
endividamento é muito mais sério. O facto de a governance internacional ter sido encarregada da supervisão e
regulação orçamental de governos nacionais ameaça fazer com que o conflito
entre o capitalismo e a democracia seja decidido durante muito tempo, senão para
sempre, a favor do primeiro, dada a expropriação dos meios políticos de
produção dos povos dos Estados.”
“Enquanto o discurso público neonacionalista
considera que a causa do sobreendividamento nacional está no fato de os
cidadãos de um país terem construído uma vida cômoda para si à custa dos
cidadãos de outros países (o que justifica, então, a imposição da solidariedade
como castigo), na realidade, os Estados endividados contraíram dívidas para
substituir impostos que não conseguiram ou – no interesse da paz social – não
quiseram ou puderam cobrar de seus cidadãos, sobretudo dos mais ricos. Isto
transforma a ajuda internacional a um Estado endividado em solidariedade, não
só com seus credores, mas também com sua classe alta pouco tributada, aliás –
no neoliberalismo –, cada vez menos tributada; em última análise, a
solidariedade subvenciona uma distribuição incorreta dos rendimentos, também
porque poupa os cidadãos do Estado apoiado ao esforço de se organizarem
politicamente em prol da correção da mesma, assumindo os conflitos e riscos
associados. De resto, a situação atual em que os “que ganham mais” podem fugir
às suas obrigações fiscais mais facilmente do que nunca, podendo, assim,
obrigar os seus países natais a contrair dívidas, é uma consequência da liberalização
dos mercados de capitais nas últimas décadas. Países como os EUA, a França, a
Grã-Bretanha e a Alemanha se beneficiaram muitíssimo da fuga de capitais de países
com uma tributação leve e uma distribuição desigual dos rendimentos, em
especial os seus cidadãos mais ricos – nomeadamente, sob a forma de aumentos
dos preços de imóveis de luxo. Os cidadãos dos Estados cujos governos
concederam liberdade de circulação ao capital – sob o aplauso dos “mercados
financeiros” – ou que foram obrigados a fazer isso por pressão da “comunidade
internacional” – estão hoje a receber a conta de tudo isto.”
“Os principais concorrentes dos rentistas reunidos no povo do mercado
são os pensionistas pertencentes ao
povo do Estado, assim como aqueles que trabalham para o Estado. Uma política de
consolidação credível para os mercados tem de limitar seu número e reduzir seus
direitos. (...) A redução do setor público significa também a privatização de
serviços públicos, em geral, com efeitos anti-igualitários em termos de
distribuição. Os cortes nas despesas sociais levam, sobretudo, a aposentadorias
mais baixas e períodos mais longos de trabalho; na medida em que as primeiras são
compensadas por seguros complementares privados, elas ampliam, associadas à privatização
dos serviços públicos, de forma desejável, o campo de ação das empresas
capitalistas.”
“O Estado de consolidação europeu do início do
século XXI não é uma estrutura nacional, mas internacional – um regime
supraestatal regulador dos Estados nacionais que aderiram a ele, sem um governo
com responsabilidade democrática, mas com regras vinculativas: com governance em vez de government, com uma democracia
domesticada pelos mercados, não mercados domesticados pela democracia. Surgiu,
assim, uma estrutura institucional inédita na história e que serve para
garantir a conformidade ao mercado de Estados nacionais anteriormente soberanos:
uma camisa de força, ajustada ao mercado, para a política de cada Estado, com
competências que, no âmbito formal, se assemelham a outras novas possibilidades
de intervenção no direito internacional. Neste caso, porém, não se trata de um duty to protect [dever de proteger], mas
de duty to pay [dever de pagarl. O
objetivo de tudo isso – cuja concretização está cada vez mais próxima –
consiste na despolitização da economia e, em paralelo, na desdemocratização da
política. (...)
O futuro para a Europa hoje é o de uma implosão
secular do contrato social da democracia capitalista na transição para um
Estado de consolidação internacional, vinculado à disciplina fiscal. Isso torna
necessário colocar entre a economia e a política uma muralha da China – no
jargão da economia financeira, uma fire
wall – que permita aos mercados aplicar sua versão de justiça sem ser incomodados
por intervenções políticas discricionárias. A sociedade necessária para isso
terá de contar com uma elevada tolerância às desigualdades econômicas. Sua população
excedente e desligada tem de aprender a olhar para a política como
entretenimento da classe média, do qual não pode esperar nada. Suas
interpretações do mundo e suas identificações não têm origem na política, mas
nas fábricas de sonhos de uma indústria cultural global e altamente rentável,
cujos lucros gigantescos também devem servir para legitimar uma apropriação de
valor acrescentado, em rápido crescimento, por parte das estrelas de outros
setores, em especial da indústria monetária.”
“A opinião pública, se é que ainda existe, tem cada
vez mais dificuldade em acompanhar os acontecimentos e os esquece com uma
rapidez cada vez maior.”
“Nos Estados Unidos, a apoderação do aparelho
governamental pelos gigantes financeiros de Wall Street é, hoje, quase
perfeito, independentemente da eleição de um presidente do Partido Democrático,
com comportamento populista, em 2008. Apesar da desigualdade social e econômica,
que atingiu níveis obscenos nas últimas duas décadas95, assim como
da elevada taxa de desemprego existente há anos, apenas cerca de metade dos
cidadãos continua a participar das eleições nacionais. No outono de 2012,
puderam escolher entre um antigo gestor de fundos de cobertura, riquíssimo, e um
presidente que, depois de salvar a economia uma única vez a um custo muito alto
das mãos dos “mercados financeiros” e os mercados financeiros de suas próprias mãos,
nada conseguiu fazer para regular as atividades daqueles nem para cercear seu
poder econômico de auferir lucros nem seu poder político de se impor96.
Esse processo revelou como uma sociedade profundamente dividida e
desorganizada, enfraquecida pela repressão estatal e anestesiada pelos produtos
de uma indústria cultural – como Adorno não podia imaginar nem em seus momentos
mais pessimistas –, foi controlada por uma plutocracia organizada em empresas
globais, para a qual aparentemente é fácil não só comprar políticos, partidos e
parlamentos, mas também a opinião pública.
O que fazer, numa Europa em processo hayekiano de
unificação, se os canais tradicionais de articulação democrática de interesses
são obstruídos por compromissos entre os Estados e pelo direito das obrigações?
É sabido que o modelo socialdemocrata de uma oposição responsável consistia em
impor ao capital projetos de reformas que não beneficiaram apenas os
trabalhadores e suas organizações, como também ajudaram o capital a resolver os
problemas de produção e reprodução que ele não era capaz de solucionar com as
próprias instituições. O locus classicus
para isso é o capítulo de Marx sobre a luta pela limitação da jornada de
trabalho97, e o exemplo histórico mais poderoso é a garantia do
poder de compra das massas, necessário para uma produção em massa lucrativa,
por meio do aumento dos salários, que foi conquistado pelos sindicatos durante
o fordismo. Hoje, pelo contrário, parece não existir nada que a vasta massa da
população pudesse oferecer ou conquistar para o capital para proveito daquele e
para proveito próprio. A única coisa que o capital ainda quer dela é a devolução
ao mercado de seus direitos sociais, conquistados na história – talvez não
todos ao mesmo tempo, mas, de qualquer modo, passo a passo e não demasiado
devagar. No início do século XXI, o capital confia em sua capacidade de se
organizar como lhe convém enquanto indústria financeira desregulada98.
A única coisa que ainda se espera da política é sua capitulação perante o
mercado, por meio da eliminação da democracia social enquanto poder econômico.
(...)
Quando um comportamento responsável dos povos de
Estados organizados democraticamente significa deixar de dispor de sua
soberania nacional e limitar-se, durante gerações, a assegurar sua
solvabilidade perante os credores, pode afigurar-se mais responsável tentar comportar-se
de forma irresponsável. Se ser razoável significa pressupor que as exigências
dos “mercados” à sociedade têm de ser cumpridas, nomeadamente à custa da
maioria da sociedade a que, após décadas da expansão neoliberal do mercado,
nada resta senão prejuízos; então o irracional poderia ser, de fato, a única
coisa racional.”
95:
Jacob Hacker e Paul Pierson, Winner-Take-All
Politics. How Washington Made the Rich Richer – and Turned Its Back on the
Middle Class (Nova York, Simon & Schuster, 2011).
96: Sobre a regulação dos mercados financeiros após
2008, ver Renate Mayntz (orgs.), Crisis and Control. Institutional Change in
Financial Market Regulation (Frankfurt, Campus, 2012).
97: Karl Marx, Das
Kapital Kritik der Politischen Ökonomie, v, I (Berlim, Dietz, 1966 [1867]),
cap. 8 [ed. bras.: O capital: crítica da
economia política, Livro l: O
processo de produção do capital, trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2011].
98: John
McMurtry, The Cancer Stage of Captalism
(Londres, Pluto, 1999).
“Aliás, olhando para um país como a Grécia, mas, no
fundo, também para qualquer outra democracia representativa, levantam-se,
inevitavelmente, grandes dúvidas de que seus cidadãos possam de fato ser
considerados os principais responsáveis pelo pagamento de dívidas que seus
governos, enquanto agentes dos povos, contraíram em nome daqueles – ainda mais
quando essas dívidas foram utilizadas acima de tudo para tapar buracos nas
finanças públicas, devidos à recusa tolerada por razões políticas – das classes
abastadas em cumprir suas obrigações fiscais. Além disso, é duvidoso que a
classe política da Grécia tenha esclarecido aos eleitores os riscos e os
efeitos secundários dos créditos contraídos em seu nome, como, segundo a lei,
qualquer consultor de investimentos teria de fazer com seus clientes; se
aplicássemos os critérios do direito civil, verificaríamos que, nesses casos,
atendendo às características de determinados investimentos, talvez se tenha
praticado em grande escala e com a participação ativa das grandes fábricas
internacionais de dinheiro aquilo a que se chama “fraude”. Hoje os cidadãos
comuns da Grécia têm de pagar com seus cuidados de saúde e suas reformas
negócios que lhes foram impostos e impingidos, de forma mais ou menos
sub-reptícia, por um grupo conspirador constituído por políticos nacionais,
governos de outros Estados, organizações internacionais e institutos
financeiros globais e cuja dimensão não lhes foi, nem minimamente, explicada.
Seria provável que o povo do Estado grego não tivesse dificuldade em conseguir,
num tribunal cível internacional, liberação de suas obrigações de pagamento
perante “os mercados”, caso existisse um tribunal desse tipo – e aqueles que o
ameaçam com uma regressão social durante décadas, como punição pela
insolvência, teriam de contar com condenação por coação.
As ciências políticas profissionalizadas têm
tendência a subestimar o potencial político da indignação moral. Elas gostam de
manter uma indiferença estudada que consideram neutralidade axiológica,
procurando teorias para as quais não pode existir nada de novo e olhando para
aquilo a que chamam “populismo” com um desprezo elitista, partilhado com as
elites de poder, das quais gostariam de estar próximas. Por isso, não sabem o
que fazer com a constatação de que não há nada que velhos e novos regentes do
Estado de consolidação mais temam do que a raiva daqueles que se sentem
tratados como idiotas pelos peritos em tirar lucro do capitalismo financeiro
global. Numa situação confusa, o medo, ao contrário daquilo que se afirma
repetidamente, às vezes é um bom conselheiro. A possibilidade de a crise levar
a “'tumultos sociais” é o pesadelo dos homens e das mulheres em postos de
comando, um pesadelo que não tem, contudo, nada a ver com aquilo que aconteceu
até hoje nas ruas. Parece, contudo, que a classe dirigente ainda não se
esqueceu completamente de Paris nem de Turim em 1968. Por essa perspectiva, as
batalhas de rua esporádicas em Atenas e o movimento global Occupy dos “99%” constituem um bom começo; sua supervalorização pelos
bancos e pelos governos e o susto que provocaram dizem muito.
Atualmente, a ideia de que “os mercados” devem se
adaptar às pessoas, não o contrário, é considerada um disparate – e, se
aceitarmos a realidade como ela é, mostra-se, de fato, um disparate. Talvez,
porém, essa ideia fosse mais realista se apresentada repetidamente e com uma
insistência irreverente fora dos canais entupidos da democracia
institucionalizada – de forma a ser necessário levá-la em conta – e se fosse
apresentada com a insistência romântica e obstinada de muitas pessoas comuns em
não querer ser obrigadas a servir durante o resto da vida às expectativas de
rendimentos de uns virtuosos quaisquer em matéria de notas promissórias, bem
como de seus peritos em matéria de cobrança. Atualmente, a oposição ao Estado
de consolidação não dispõe senão da capacidade de lançar areia na engrenagem do
curso e do discurso capitalista da austeridade. No entanto, o aumento da
irritabilidade e da imprevisibilidade dos povos dos Estados – uma sensibilidade
crescente ao caráter profundamente absurdo da cultura de mercado e do dinheiro,
bem como ao caráter excessivo de suas exigências em relação ao mundo da vida –
constituiria, ainda assim, um fato social: poderia aparecer como “psicologia”
dos cidadãos, a par da dos mercados, exigindo, tal como estes, ser levada em consideração.
Afinal, os cidadãos também podem entrar em “pânico” e reagir de forma “irracional”,
tal como os investidores financeiros, desde que se sintam obrigados a ser mais “racionais”
do que aqueles e ainda que não possam se servir de notas de dinheiro como
argumentos, mas apenas de palavras e, talvez, de pedras da calçada.”
CAPITALISMO OU DEMOCRACIA
Se o capitalismo do Estado de consolidação já nem
sequer consegue criar a ilusão de um crescimento distribuído de acordo com a
justiça social, chegou o momento de os caminhos do capitalismo e da democracia
se separarem. A saída mais provável, atualmente, seria a operacionalização do
modelo social hayekiano da ditadura de uma economia de mercado capitalista
acima de qualquer correção democrática. Sua legitimidade dependeria do fato de
aqueles que constituíram, outrora, o povo do Estado terem aprendido ou não a
confundir justiça de mercado com justiça social e de se considerarem ou não parte
de um povo do mercado unido. Além disso, sua estabilidade exigiria instrumentos
eficazes que permitissem marginalizar ideologicamente, desorganizar
politicamente e controlar fisicamente aqueles que não aceitassem a situação.
Com as instituições de formação da vontade política neutralizadas do ponto de
vista econômico, a única coisa que restaria àqueles que não quisessem se
submeter à justiça de mercado seria aquilo a que nos fins dos anos 1990 se
chamava “protesto extraparlamentar”: emocional, irracional, fragmentado,
irresponsável – precisamente o que é de esperar quando os caminhos democráticos
de articulação de interesses e de esclarecimento das preferências ficam
bloqueados, porque conduzem sempre aos mesmos resultados ou porque seus
resultados são indiferentes para “os mercados”.
A alternativa a um capitalismo sem democracia seria
uma democracia sem capitalismo – pelo menos, sem o capitalismo que conhecemos.
Ela seria a outra utopia, concorrente da utopia hayekiana. Ao contrário desta, não
estaria na linha da tendência histórica atual, exigindo sua inversão. Por isso
e devido ao enorme avanço em termos de organização e concretização da solução neoliberal,
assim como ao medo daquilo que é incerto, associado, inevitavelmente, a qualquer
mudança, hoje essa alternativa parece irrealista7. Ela também
partiria da experiência de que o capitalismo democrático não cumpriu sua
promessa – contudo, a culpa não seria atribuída à democracia, e sim ao
capitalismo. O objetivo dessa alternativa não seria garantir a paz social por
meio do crescimento econômico e ainda menos garantir a paz social apesar da
desigualdade crescente, mas melhorar a situação dos excluídos do crescimento
neoliberal, se necessário, à custa da paz social e do crescimento.
Se democracia significa que a justiça social não
pode ser absorvida pela justiça de mercado, então o objetivo primordial, em
termos de política democrática, deveria consistir em retroceder em relação às
destruições institucionais causadas por quatro décadas de progresso neoliberal,
defendendo e restaurando da melhor maneira possível os restos das instituições
políticas que permitiriam modificar ou até substituir a justiça de mercado pela
justiça social. Só nesse contexto material faria hoje algum sentido falar de
democracia, porque só assim se evitaria o perigo de as pessoas se contentarem
com a “democratização” de instituições que não podem decidir nada. Hoje, a
democratização teria de significar criação de instituições que permitam voltar a
submeter os mercados ao controle social: mercados de trabalho que deixam espaço
para a vida social, mercados de bens que não destroem a natureza, mercados de
crédito que não levam à produção em massa de promessas que não podem ser
cumpridas. Seriam necessários anos de mobilização política e perturbações
permanentes da ordem social que vem surgindo para que essas coisas fossem
colocadas de fato na ordem do dia.
7: Embora durante a longa era keynesiana, isso
também se tenha aplicado muito tempo à utopia hayekiana.
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