quarta-feira, 27 de março de 2019

Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático (Parte II) – Wolfgang Streeck

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-645-6
Tradução: Marian Toldy e Teresa Toldy
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240 
 
“Torna-se, assim, evidente em que consistiu o verdadeiro fracasso da democracia nas décadas de transição neoliberal. A democracia e a política democrática fracassaram quando não reconheceram a contrarrevolução contra o capitalismo social do período pós-guerra e não se opuseram a ela; fracassaram quando, na prosperidade aparente dos anos 1990, abdicaram da regulamentação de um setor financeiro que crescia descontroladamente; fracassaram quando acreditaram de imediato na conversa da iminente substituição pró-democrática e socialmente aceitável de um government “duro” por uma governance “suave”54; fracassaram quando desistiram de tributar os beneficiários do crescimento da economia capitalista de forma a que estes fossem obrigados a contribuir para o pagamento dos custos sociais dos seus lucros55; fracassaram ainda quando não só toleraram a desigualdade crescente entre as camadas mais altas e mais baixas da sociedade, como também a promoveram, em nome do progresso capitalista, através de reformas fiscais e do Estado social “compatíveis com incentivos”. Além disso, a política democrática contribuiu para a criação do Estado endividado, uma vez que não conseguiu estabilizar a participação política das camadas da população que teriam interesse em impedir reduções de impostos para os mais abastados. Em vez disso, a mudança na composição do eleitorado, que abrange cada vez mais os mais favorecidos, torna o aumento de impostos cada vez menos exequível. (...)
A política de liberalização, à qual aderiram, pelo menos desde os anos 1990, todos os governos do mundo capitalista, conservadores ou socialdemocratas, esperava que a adaptação abrangente da sociedade às novas condições de produção, exigidas pelo capital, abrisse um caminho comum para uma prosperidade garantida num futuro próximo. Ignorou que a compatibilidade do capitalismo com a democracia é muito limitada e que só existe quando há uma regulamentação rigorosa e eficaz. Deste modo, o fracasso estrutural da democracia associou-se ao fracasso ideológico. O resultado está à vista desde 2008.”
54: Sobre esse tema, ver Claus Offe, “Governance. ‘Empty Signifier’ oder sozialwissenschaftliches Forschungsprogramm?”, em Gunnar Folke Schuppert et al. (orgs.), Governance in einer sich wandelnden Welt (Wiesbaden, 2008), p. 61-76.
55: Na Alemanha, o debate sobre o agravamento dos escalões máximos de imposto sobre o rendimento, o aumento do imposto sucessório e as diversas formas de imposto sobre o patrimônio só começou no verão de 2012, após as eleições presidenciais na França e sob pressão do Partido da Esquerda (Linkspartei). Como exemplo, ver Stefan Bach, “Vermögensabgaben – ein Beitrag zur Sanierung der Staatsfinanzen in Europa”, DIW Wochenbericht, 2012, p. 3-11. No entanto, não existia nem existe perspectiva realista de aumento dos impostos para os mais abastados.


“O nexo político entre o endividamento do Estado e a distribuição da riqueza só se torna patente quando o financiamento das dívidas dos Estados no período de transição neoliberal é encarado como consequência de uma tributação demasiado baixa das camadas da população que possuem patrimônio. Quanto menos o sistema fiscal exigir da propriedade dos mais abastados e dos seus herdeiros, em prol da comunidade58, tanto mais desigual será a distribuição da riqueza, o que se manifesta, entre outras coisas, numa taxa de poupança mais elevada na faixa superior da sociedade. Sendo assim, aqueles a quem a política fiscal do Estado permite criar excesso de capital privado começam a debater-se com o problema de encontrar possibilidades de investimento – com isso, a figura do rentista de Keynes que, na realidade, deveria ter sido vítima de uma eutanásia política59, regressa, com força, à economia. O rentista, na procura de possibilidades de investimento seguro para suas poupanças, considera muito bem-vindos os Estados que dependem de financiamentos do crédito – sobretudo também devido ao seu sucesso na resistência aos impostos: a pobreza do Estado não só constitui a sua riqueza, como também lhe proporciona uma oportunidade ideal para investir a riqueza de forma a obter lucro61.
Enquanto se puder confiar na capacidade de os Estados pagarem aos seus credores, o financiamento parcial permanente da atividade estatal através do endividamento é mesmo do interesse dos proprietários dos recursos monetários. O triunfo dos vencedores na luta pela distribuição no mercado e na luta com a repartição das finanças só será total quando puderem investir de forma segura e lucrativa o capital que ganharam ao Estado e à sociedade. Por isso, eles têm interesse num Estado que não só deixe o seu dinheiro na sua posse, mas também o absorva, depois, sob a forma de crédito, que o guarde de forma segura, que, ainda por cima, lhes pague juros pelo dinheiro emprestado (em vez de confiscado) e que, por fim, lhes proporcione a possibilidade de transferir este dinheiro para a próxima geração da sua família – pagando um imposto sucessório que há muito se tornou insignificante63. Deste modo, o Estado, enquanto Estado endividado, contribui significativamente para a perpetuação da estratificação social e da desigualdade social daí decorrente, ao mesmo tempo que se submete, bem como sua atividade, ao controle por parte dos seus credores, que aparecem sob a forma de “mercados”. Esse controle associa-se ao controle democrático por parte dos cidadãos, podendo sobrepor-se a este ou até mesmo – como se anuncia atualmente, na transição do Estado endividado para o Estado de consolidação – eliminá-lo progressivamente.”
58: Não faltam exemplos grotescos. A Constituição grega, por exemplo, inclui uma disposição que concede isenção de impostos aos armadores, portanto, a famílias como Onassis e Niarchos. A isenção de impostos para armadores foi inserida na Constituição adotada imediatamente após o golpe da junta militar, em 1967. Em 1972, os armadores gregos elegeram o ditador Papadopoulos para presidente vitalício da associação de armadores, em sinal de reconhecimento. (...) Em vez de pagar impostos, algumas famílias ricas criam fundações com fins filantrópicos, segundo o modelo estadunidense.(...)
61: A existência de impostos mais elevados para evitar a dívida pública também tornaria obsoleta a retórica bacoca da consolidação, segundo a qual “nós” não podemos viver à custa dos “nossos filhos”, quando, na realidade, o problema está no fato de “aqueles que ganham melhor” viverem à custa da comunidade, dispensando-se, em grande parte, de uma participação nas despesas gerais resultantes da preservação de suas reservas de caça. De resto, a existência de um salário mínimo adequado para os serviços privados também contribuiria para a redução da taxa de poupança da classe média e, por conseguinte, para a eliminação de sua “situação de emergência em termos de investimento”, o que – tal como podemos ler na obra de Keynes – promoveria, simultaneamente, o consumo e o crescimento.
63: Sobre o imposto sucessório, ver os trabalhos de Jens Beckert: entre outros, “Der Streit um die Erbschaftssteuer”, Leviathan, n. 32, 2004, p. 543-57.


“Em 19 de setembro de 2007, Alan Greenspan, presidente do banco central estadunidense na época, deu uma entrevista ao jornal Tages-Anzeiger, de Zurique, na qual respondeu da seguinte maneira, quando lhe perguntaram qual dos candidatos à presidência dos Estados Unidos apoiava:
Temos a sorte de, graças à globalização, as decisões políticas nos EUA terem sido substituídas em grande parte pela economia de mercado mundial. À exceção do tema da segurança nacional, quase não importa quem será o próximo presidente. O mundo é governado pelas forças de mercado.”73
A restrição à soberania dos Estados nacionais por parte das “forças de mercado” equivale a uma restrição da liberdade de decisão democrática dos seus povos e ao aumento correspondente do poder do povo do mercado, cada vez mais imprescindível para seu financiamento. A democracia em nível nacional pressupõe a soberania dos Estados nacionais; contudo, os Estados endividados, dependentes dos mercados financeiros, dispõem cada vez menos desta soberania. A vantagem organizacional dos mercados financeiros integrados em nível global em relação a sociedades organizadas no nível de Estados nacionais, bem como em relação ao poder político daí resultante, tornou-se dramaticamente evidente pela primeira vez quando, em setembro de 1992, o empresário financeiro George Soros conseguiu juntar dinheiro suficiente para ser bem-sucedido num ataque especulativo ao Bank of England, detonando, assim, o Sistema Monetário Europeu de então. O lucro que obteve nessa operação seria de 1 bilhão de dólares.”
73: Citado segundo Ulrich Thielemann, “Das Ende der Demokratie”, Wirtschaftsdienst – Zeitschrifi für Wirtschaftspolitik, n. 91, 2011, p. 820-3.


“A política do Estado moderno endividado está se tornando simultaneamente complicada e esquiva ao controle democrático, uma vez que se concretiza, em grande parte, como política internacional – sob a forma de diplomacia financeira internacional –, sobretudo na Europa. O conflito de distribuição entre os povos dos Estados e o povo do mercado – ele próprio uma versão resultante do conflito de distribuição entre dependentes do salário e dependentes do lucro – é projetado para um novo nível, no qual aparece de tal maneira distorcido que se torna irreconhecível, ao mesmo tempo que se apresenta como mais um palco ideal para representações da pós-democracia. O público dos Estados nacionais europeus há anos assiste, estupefato, a um espetáculo confuso, com mudanças surpreendentes, e que não fica nada atrás das excentricidades da história da pequena Alice no País das Maravilhas.
Porém, o que está em causa na política de endividamento é muito mais sério. O facto de a governance internacional ter sido encarregada da supervisão e regulação orçamental de governos nacionais ameaça fazer com que o conflito entre o capitalismo e a democracia seja decidido durante muito tempo, senão para sempre, a favor do primeiro, dada a expropriação dos meios políticos de produção dos povos dos Estados.”


“Enquanto o discurso público neonacionalista considera que a causa do sobreendividamento nacional está no fato de os cidadãos de um país terem construído uma vida cômoda para si à custa dos cidadãos de outros países (o que justifica, então, a imposição da solidariedade como castigo), na realidade, os Estados endividados contraíram dívidas para substituir impostos que não conseguiram ou – no interesse da paz social – não quiseram ou puderam cobrar de seus cidadãos, sobretudo dos mais ricos. Isto transforma a ajuda internacional a um Estado endividado em solidariedade, não só com seus credores, mas também com sua classe alta pouco tributada, aliás – no neoliberalismo –, cada vez menos tributada; em última análise, a solidariedade subvenciona uma distribuição incorreta dos rendimentos, também porque poupa os cidadãos do Estado apoiado ao esforço de se organizarem politicamente em prol da correção da mesma, assumindo os conflitos e riscos associados. De resto, a situação atual em que os “que ganham mais” podem fugir às suas obrigações fiscais mais facilmente do que nunca, podendo, assim, obrigar os seus países natais a contrair dívidas, é uma consequência da liberalização dos mercados de capitais nas últimas décadas. Países como os EUA, a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha se beneficiaram muitíssimo da fuga de capitais de países com uma tributação leve e uma distribuição desigual dos rendimentos, em especial os seus cidadãos mais ricos – nomeadamente, sob a forma de aumentos dos preços de imóveis de luxo. Os cidadãos dos Estados cujos governos concederam liberdade de circulação ao capital – sob o aplauso dos “mercados financeiros” – ou que foram obrigados a fazer isso por pressão da “comunidade internacional” – estão hoje a receber a conta de tudo isto.”


“Os principais concorrentes dos rentistas reunidos no povo do mercado são os pensionistas pertencentes ao povo do Estado, assim como aqueles que trabalham para o Estado. Uma política de consolidação credível para os mercados tem de limitar seu número e reduzir seus direitos. (...) A redução do setor público significa também a privatização de serviços públicos, em geral, com efeitos anti-igualitários em termos de distribuição. Os cortes nas despesas sociais levam, sobretudo, a aposentadorias mais baixas e períodos mais longos de trabalho; na medida em que as primeiras são compensadas por seguros complementares privados, elas ampliam, associadas à privatização dos serviços públicos, de forma desejável, o campo de ação das empresas capitalistas.”


“O Estado de consolidação europeu do início do século XXI não é uma estrutura nacional, mas internacional – um regime supraestatal regulador dos Estados nacionais que aderiram a ele, sem um governo com responsabilidade democrática, mas com regras vinculativas: com governance em vez de government, com uma democracia domesticada pelos mercados, não mercados domesticados pela democracia. Surgiu, assim, uma estrutura institucional inédita na história e que serve para garantir a conformidade ao mercado de Estados nacionais anteriormente soberanos: uma camisa de força, ajustada ao mercado, para a política de cada Estado, com competências que, no âmbito formal, se assemelham a outras novas possibilidades de intervenção no direito internacional. Neste caso, porém, não se trata de um duty to protect [dever de proteger], mas de duty to pay [dever de pagarl. O objetivo de tudo isso – cuja concretização está cada vez mais próxima – consiste na despolitização da economia e, em paralelo, na desdemocratização da política. (...)
O futuro para a Europa hoje é o de uma implosão secular do contrato social da democracia capitalista na transição para um Estado de consolidação internacional, vinculado à disciplina fiscal. Isso torna necessário colocar entre a economia e a política uma muralha da China – no jargão da economia financeira, uma fire wall – que permita aos mercados aplicar sua versão de justiça sem ser incomodados por intervenções políticas discricionárias. A sociedade necessária para isso terá de contar com uma elevada tolerância às desigualdades econômicas. Sua população excedente e desligada tem de aprender a olhar para a política como entretenimento da classe média, do qual não pode esperar nada. Suas interpretações do mundo e suas identificações não têm origem na política, mas nas fábricas de sonhos de uma indústria cultural global e altamente rentável, cujos lucros gigantescos também devem servir para legitimar uma apropriação de valor acrescentado, em rápido crescimento, por parte das estrelas de outros setores, em especial da indústria monetária.”


“A opinião pública, se é que ainda existe, tem cada vez mais dificuldade em acompanhar os acontecimentos e os esquece com uma rapidez cada vez maior.”


“Nos Estados Unidos, a apoderação do aparelho governamental pelos gigantes financeiros de Wall Street é, hoje, quase perfeito, independentemente da eleição de um presidente do Partido Democrático, com comportamento populista, em 2008. Apesar da desigualdade social e econômica, que atingiu níveis obscenos nas últimas duas décadas95, assim como da elevada taxa de desemprego existente há anos, apenas cerca de metade dos cidadãos continua a participar das eleições nacionais. No outono de 2012, puderam escolher entre um antigo gestor de fundos de cobertura, riquíssimo, e um presidente que, depois de salvar a economia uma única vez a um custo muito alto das mãos dos “mercados financeiros” e os mercados financeiros de suas próprias mãos, nada conseguiu fazer para regular as atividades daqueles nem para cercear seu poder econômico de auferir lucros nem seu poder político de se impor96. Esse processo revelou como uma sociedade profundamente dividida e desorganizada, enfraquecida pela repressão estatal e anestesiada pelos produtos de uma indústria cultural – como Adorno não podia imaginar nem em seus momentos mais pessimistas –, foi controlada por uma plutocracia organizada em empresas globais, para a qual aparentemente é fácil não só comprar políticos, partidos e parlamentos, mas também a opinião pública.
O que fazer, numa Europa em processo hayekiano de unificação, se os canais tradicionais de articulação democrática de interesses são obstruídos por compromissos entre os Estados e pelo direito das obrigações? É sabido que o modelo socialdemocrata de uma oposição responsável consistia em impor ao capital projetos de reformas que não beneficiaram apenas os trabalhadores e suas organizações, como também ajudaram o capital a resolver os problemas de produção e reprodução que ele não era capaz de solucionar com as próprias instituições. O locus classicus para isso é o capítulo de Marx sobre a luta pela limitação da jornada de trabalho97, e o exemplo histórico mais poderoso é a garantia do poder de compra das massas, necessário para uma produção em massa lucrativa, por meio do aumento dos salários, que foi conquistado pelos sindicatos durante o fordismo. Hoje, pelo contrário, parece não existir nada que a vasta massa da população pudesse oferecer ou conquistar para o capital para proveito daquele e para proveito próprio. A única coisa que o capital ainda quer dela é a devolução ao mercado de seus direitos sociais, conquistados na história – talvez não todos ao mesmo tempo, mas, de qualquer modo, passo a passo e não demasiado devagar. No início do século XXI, o capital confia em sua capacidade de se organizar como lhe convém enquanto indústria financeira desregulada98. A única coisa que ainda se espera da política é sua capitulação perante o mercado, por meio da eliminação da democracia social enquanto poder econômico. (...)
Quando um comportamento responsável dos povos de Estados organizados democraticamente significa deixar de dispor de sua soberania nacional e limitar-se, durante gerações, a assegurar sua solvabilidade perante os credores, pode afigurar-se mais responsável tentar comportar-se de forma irresponsável. Se ser razoável significa pressupor que as exigências dos “mercados” à sociedade têm de ser cumpridas, nomeadamente à custa da maioria da sociedade a que, após décadas da expansão neoliberal do mercado, nada resta senão prejuízos; então o irracional poderia ser, de fato, a única coisa racional.”
95: Jacob Hacker e Paul Pierson, Winner-Take-All Politics. How Washington Made the Rich Richer – and Turned Its Back on the Middle Class (Nova York, Simon & Schuster, 2011).
96: Sobre a regulação dos mercados financeiros após 2008, ver Renate Mayntz (orgs.), Crisis and Control. Institutional Change in Financial Market Regulation (Frankfurt, Campus, 2012).
97: Karl Marx, Das Kapital Kritik der Politischen Ökonomie, v, I (Berlim, Dietz, 1966 [1867]), cap. 8 [ed. bras.: O capital: crítica da economia política, Livro l: O processo de produção do capital, trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2011].
98: John McMurtry, The Cancer Stage of Captalism (Londres, Pluto, 1999).


“Aliás, olhando para um país como a Grécia, mas, no fundo, também para qualquer outra democracia representativa, levantam-se, inevitavelmente, grandes dúvidas de que seus cidadãos possam de fato ser considerados os principais responsáveis pelo pagamento de dívidas que seus governos, enquanto agentes dos povos, contraíram em nome daqueles – ainda mais quando essas dívidas foram utilizadas acima de tudo para tapar buracos nas finanças públicas, devidos à recusa tolerada por razões políticas – das classes abastadas em cumprir suas obrigações fiscais. Além disso, é duvidoso que a classe política da Grécia tenha esclarecido aos eleitores os riscos e os efeitos secundários dos créditos contraídos em seu nome, como, segundo a lei, qualquer consultor de investimentos teria de fazer com seus clientes; se aplicássemos os critérios do direito civil, verificaríamos que, nesses casos, atendendo às características de determinados investimentos, talvez se tenha praticado em grande escala e com a participação ativa das grandes fábricas internacionais de dinheiro aquilo a que se chama “fraude”. Hoje os cidadãos comuns da Grécia têm de pagar com seus cuidados de saúde e suas reformas negócios que lhes foram impostos e impingidos, de forma mais ou menos sub-reptícia, por um grupo conspirador constituído por políticos nacionais, governos de outros Estados, organizações internacionais e institutos financeiros globais e cuja dimensão não lhes foi, nem minimamente, explicada. Seria provável que o povo do Estado grego não tivesse dificuldade em conseguir, num tribunal cível internacional, liberação de suas obrigações de pagamento perante “os mercados”, caso existisse um tribunal desse tipo – e aqueles que o ameaçam com uma regressão social durante décadas, como punição pela insolvência, teriam de contar com condenação por coação.
As ciências políticas profissionalizadas têm tendência a subestimar o potencial político da indignação moral. Elas gostam de manter uma indiferença estudada que consideram neutralidade axiológica, procurando teorias para as quais não pode existir nada de novo e olhando para aquilo a que chamam “populismo” com um desprezo elitista, partilhado com as elites de poder, das quais gostariam de estar próximas. Por isso, não sabem o que fazer com a constatação de que não há nada que velhos e novos regentes do Estado de consolidação mais temam do que a raiva daqueles que se sentem tratados como idiotas pelos peritos em tirar lucro do capitalismo financeiro global. Numa situação confusa, o medo, ao contrário daquilo que se afirma repetidamente, às vezes é um bom conselheiro. A possibilidade de a crise levar a “'tumultos sociais” é o pesadelo dos homens e das mulheres em postos de comando, um pesadelo que não tem, contudo, nada a ver com aquilo que aconteceu até hoje nas ruas. Parece, contudo, que a classe dirigente ainda não se esqueceu completamente de Paris nem de Turim em 1968. Por essa perspectiva, as batalhas de rua esporádicas em Atenas e o movimento global Occupy dos “99%” constituem um bom começo; sua supervalorização pelos bancos e pelos governos e o susto que provocaram dizem muito.
Atualmente, a ideia de que “os mercados” devem se adaptar às pessoas, não o contrário, é considerada um disparate – e, se aceitarmos a realidade como ela é, mostra-se, de fato, um disparate. Talvez, porém, essa ideia fosse mais realista se apresentada repetidamente e com uma insistência irreverente fora dos canais entupidos da democracia institucionalizada – de forma a ser necessário levá-la em conta – e se fosse apresentada com a insistência romântica e obstinada de muitas pessoas comuns em não querer ser obrigadas a servir durante o resto da vida às expectativas de rendimentos de uns virtuosos quaisquer em matéria de notas promissórias, bem como de seus peritos em matéria de cobrança. Atualmente, a oposição ao Estado de consolidação não dispõe senão da capacidade de lançar areia na engrenagem do curso e do discurso capitalista da austeridade. No entanto, o aumento da irritabilidade e da imprevisibilidade dos povos dos Estados – uma sensibilidade crescente ao caráter profundamente absurdo da cultura de mercado e do dinheiro, bem como ao caráter excessivo de suas exigências em relação ao mundo da vida – constituiria, ainda assim, um fato social: poderia aparecer como “psicologia” dos cidadãos, a par da dos mercados, exigindo, tal como estes, ser levada em consideração. Afinal, os cidadãos também podem entrar em “pânico” e reagir de forma “irracional”, tal como os investidores financeiros, desde que se sintam obrigados a ser mais “racionais” do que aqueles e ainda que não possam se servir de notas de dinheiro como argumentos, mas apenas de palavras e, talvez, de pedras da calçada.”


CAPITALISMO OU DEMOCRACIA
Se o capitalismo do Estado de consolidação já nem sequer consegue criar a ilusão de um crescimento distribuído de acordo com a justiça social, chegou o momento de os caminhos do capitalismo e da democracia se separarem. A saída mais provável, atualmente, seria a operacionalização do modelo social hayekiano da ditadura de uma economia de mercado capitalista acima de qualquer correção democrática. Sua legitimidade dependeria do fato de aqueles que constituíram, outrora, o povo do Estado terem aprendido ou não a confundir justiça de mercado com justiça social e de se considerarem ou não parte de um povo do mercado unido. Além disso, sua estabilidade exigiria instrumentos eficazes que permitissem marginalizar ideologicamente, desorganizar politicamente e controlar fisicamente aqueles que não aceitassem a situação. Com as instituições de formação da vontade política neutralizadas do ponto de vista econômico, a única coisa que restaria àqueles que não quisessem se submeter à justiça de mercado seria aquilo a que nos fins dos anos 1990 se chamava “protesto extraparlamentar”: emocional, irracional, fragmentado, irresponsável – precisamente o que é de esperar quando os caminhos democráticos de articulação de interesses e de esclarecimento das preferências ficam bloqueados, porque conduzem sempre aos mesmos resultados ou porque seus resultados são indiferentes para “os mercados”.
A alternativa a um capitalismo sem democracia seria uma democracia sem capitalismo – pelo menos, sem o capitalismo que conhecemos. Ela seria a outra utopia, concorrente da utopia hayekiana. Ao contrário desta, não estaria na linha da tendência histórica atual, exigindo sua inversão. Por isso e devido ao enorme avanço em termos de organização e concretização da solução neoliberal, assim como ao medo daquilo que é incerto, associado, inevitavelmente, a qualquer mudança, hoje essa alternativa parece irrealista7. Ela também partiria da experiência de que o capitalismo democrático não cumpriu sua promessa – contudo, a culpa não seria atribuída à democracia, e sim ao capitalismo. O objetivo dessa alternativa não seria garantir a paz social por meio do crescimento econômico e ainda menos garantir a paz social apesar da desigualdade crescente, mas melhorar a situação dos excluídos do crescimento neoliberal, se necessário, à custa da paz social e do crescimento.
Se democracia significa que a justiça social não pode ser absorvida pela justiça de mercado, então o objetivo primordial, em termos de política democrática, deveria consistir em retroceder em relação às destruições institucionais causadas por quatro décadas de progresso neoliberal, defendendo e restaurando da melhor maneira possível os restos das instituições políticas que permitiriam modificar ou até substituir a justiça de mercado pela justiça social. Só nesse contexto material faria hoje algum sentido falar de democracia, porque só assim se evitaria o perigo de as pessoas se contentarem com a “democratização” de instituições que não podem decidir nada. Hoje, a democratização teria de significar criação de instituições que permitam voltar a submeter os mercados ao controle social: mercados de trabalho que deixam espaço para a vida social, mercados de bens que não destroem a natureza, mercados de crédito que não levam à produção em massa de promessas que não podem ser cumpridas. Seriam necessários anos de mobilização política e perturbações permanentes da ordem social que vem surgindo para que essas coisas fossem colocadas de fato na ordem do dia.
7: Embora durante a longa era keynesiana, isso também se tenha aplicado muito tempo à utopia hayekiana.

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