Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-484-1
Tradução: Mariana Echalar
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 416
Sinopse: Ainda não entendemos o que é o neoliberalismo, e estamos pagando um
preço altíssimo por isso. É esse anseio de urgência que levou os pensadores
franceses Pierre Dardot e Christian Laval a escreverem A nova razão do mundo,
obra que passa a limpo todos os lugares-comuns sobre a natureza do capitalismo
contemporâneo.
Por meio de recursos analíticos pouco ortodoxos que
conciliam investigação histórico-social e psicanálise, Foucault e Marx, Dardot
e Laval desfazem mitos e revelam o que há de novo no neoliberalismo: uma
racionalidade global e não apenas uma doutrina econômica ou ideológica que vem
transformando profundamente as sociedades de forma subterrânea e difusa,
estendendo seu sistema normativo a todas as relações sociais, sem deixar
incólume nenhuma esfera da existência humana.
Levando a sério a formulação de Margaret Thatcher A
economia é o método. O objetivo é mudar a alma, o livro descreve os
assombrosos contornos deste mundo em que o desejo é o alvo do novo poder.
Dardot e Laval afirmam que a grande inovação da tecnologia neoliberal é
vincular diretamente a maneira como um homem é governado à maneira como ele
próprio se governa. Ao explorar as raízes e ramificações do pensamento
neoliberal ao longo do século XX, os autores destrincham de forma clara e precisa
as implicações desse novo paradigma, em que a economia torna-se uma disciplina
pessoal.
A figura central dessa nova racionalidade é o sujeito
empresarial. Cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que
deve se fazer frutificar. O conceito define a totalidade do que já foi chamado
por estudos anteriores de sujeito hipermoderno, impreciso, flexível, precário,
fluido, sem gravidade, individualista. Na nova razão do mundo, todas as
atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um cálculo de custo, aliado ao
imperativo do sempre mais, que visa a intensificar a eficácia de cada sujeito
em todos os domínios: escolar e profissional, mas também relacional, sexual e
assim por diante. As atividades que permeiam a vida são concebidas essencialmente
como investimento no interminável processo de valorização do eu, sobre o qual o
indivíduo é inteiramente responsável.
O estudo do caráter sistêmico dessa racionalidade permite
analisar, para além do processo mais visível de privatizações, a corrosão interna
da própria dimensão pública e democrática dos Estados nacionais, à direita e à
esquerda no espectro político institucional. Para Dardot e Laval, o sistema
neoliberal opera uma desativação sem precedentes do jogo democrático, que está
nos fazendo entrar no que chamam de era pós-democrática. Um dos principais
sintomas dessa ação é a mudança na concepção dos bens públicos, assim como os
princípios de sua distribuição. Direitos até então ligados à cidadania e
historicamente estabelecidos como consequência lógica da democracia política,
como a proteção social, a igualdade de tratamento e a universalidade, são
questionados pela concepção consumista do serviço público de um sujeito ao qual
a sociedade não deve nada.
A nova razão do mundo introduz formas sem precedentes de sujeição que constituem, para os que
a contestam, um desafio político e intelectual inédito. Combatê-la exige não se
deixar iludir, fazer uma análise lúcida dele. O conhecimento e a crítica do
neoliberalismo são indispensáveis, sustentam os autores. Somente a compreensão
dessa racionalidade permitirá que se oponha a ela uma verdadeira resistência e
que se inaugure uma outra razão do mundo.
“O capitalismo é indissociável da história de
suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das
estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o
capitalismo, transformando profundamente as sociedades.
Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas
uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que
ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas
as relações sociais e a todas as esferas da vida.
A obra que você lerá, e que finalmente está
disponível em português graças à editora Boitempo, foi escrita no período de
gestação da crise financeira mundial de 2008. Foi publicada no momento em que
se podia constatar a amplidão dos estragos causados pelo neoliberalismo. A
convicção que tínhamos ao escrevê-la possuía fundamento: a crise não foi
suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo contrário, a
crise apareceu para as classes dominantes como uma oportunidade inesperada.
Melhor, como um modo de governo. Ficou demonstrado que o neoliberalismo, apesar
dos desastres que engendra, possui uma notável capacidade de autofortalecimento. Ele fez surgir um sistema de
normas e instituições que comprime as sociedades como um nó de forca. As crises não são para ele uma ocasião para
limitar-se, como aconteceu em meados do século 20, mas um meio de prosseguir
cada vez com mais vigor sua trajetória de ilimitação. O capitalismo, com ele,
não parece mais capaz de encontrar compensações, contrapartidas, compromissos.
A maneira como a crise de 2008 foi provisoriamente superada, com uma inundação
de moeda especulativa emitida pelos bancos centrais, mostra que a lógica
neoliberal escapa de maneira extraordinariamente perigosa.
O acúmulo de tensões e problemas não resolvidos,
o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios especulativos preparam
dias cada vez mais difíceis para as populações. No entanto, o caráter sistêmico
do dispositivo neoliberal torna qualquer inflexão das políticas conduzidas
muito difícil, ou mesmo impossível, no próprio âmbito do sistema. Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe
que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e
promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da
democracia, que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de
qualquer deliberação e qualquer controle, mesmo sob a forma do sufrágio
universal.
Essa é a razão pela qual a lógica não
controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece,
hoje, a um cenário histórico que não é o dos anos 1930, quando ocorreu uma
revisão das doutrinas e das políticas do “laissez-faire”.
Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular
em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos,
da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática.
Na ausência de margens de manobra, o
confronto político com o sistema neoliberal
enquanto tal é inevitável. Mas esse confronto também é problemático, porque é
difícil reunir as condições em que ele se dá. O sistema neoliberal é instaurado
por forças e poderes que se apoiam uns nos outros em nível nacional e
internacional. Oligarquias burocráticas e políticas, multinacionais, atores
financeiros e grandes organismos econômicos internacionais formam uma
coalização de poderes concretos que exercem certa função política em escala
mundial. Hoje, a relação de forças pende inegavelmente a favor desse bloco
oligárquico.
Além dos fatores sociológicos e políticos, os
próprios móbeis subjetivos da mobilização são enfraquecidos pelo sistema
neoliberal: a ação coletiva se tornou mais difícil, porque os indivíduos são
submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis. As formas de gestão
na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são
poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de
subjetivação. A polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos
mina a solidariedade e a cidadania. Abstenção eleitoral, dessindicalização,
racismo, tudo parece conduzir à destruição das condições do coletivo e, por
consequência, ao enfraquecimento da capacidade de agir contra o neoliberalismo.
O sofrimento causado por essa subjetivação
neoliberal, a mutilação que ela opera na vida comum, no trabalho e fora dele,
são tais que não podemos excluir a possibilidade de uma revolta antineoliberal
de grande amplitude em muitos países. Mas não devemos ignorar as mutações
subjetivas provocadas pelo neoliberalismo que operam no sentido do egoísmo
social, da negação da solidariedade e da redistribuição e que podem desembocar
em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas.”
“O grande erro cometido por aqueles que
anunciam a “morte do liberalismo” é confundir a representação ideológica que
acompanha a implantação das políticas neoliberais com a normatividade prática
que caracteriza propriamente o neoliberalismo. Por isso, o relativo descrédito
que atinge hoje a ideologia do laissez-faire
não impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine mais do que nunca
enquanto sistema normativo dotado de certa eficiência, isto é, capaz de
orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além
deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso.
Porque este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das
consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais,
essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as
sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como
é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vêm se desenvolvendo e se
aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para
colocá-las em xeque?”
A resposta não é e não pode ser limitada
apenas aos aspectos “negativos” das políticas neoliberais, isto é, à destruição
programada das regulamentações e das instituições. O neoliberalismo não destrói
apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de
relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras
palavras, com o neoliberalismo o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a
forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com
nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades
ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho
da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de
competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em
luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o
modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas,
muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como
uma empresa. Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas
públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade,
remodela a subjetividade. As circunstâncias desse sucesso normativo foram
descritas inúmeras vezes. Ora sob seu aspecto político (a conquistas do poder
pelas forças neoliberais), ora sob seu aspecto econômico (o rápido crescimento
do capitalismo financeiro globalizado), ora sob seu aspecto social (a
individualização das relações sociais às expensas das solidariedades coletivas,
a polarização extrema entre ricos e pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o
surgimento de um novo sujeito, o desenvolvimento de novas patologias
psíquicas). Tudo isso são dimensões complementares da nova razão do mundo. Devemos entender, por isso, que essa razão é global, nos dois sentidos que pode ter o
termo: é mundial”, no sentido de que vale de imediato para o mundo todo; e,
ademais, longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é, a
“fazer o mundo por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do mundo, mas ao
mesmo tempo uma razão-mundo.
A tese defendida por esta obra é precisamente
que o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é
em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade
e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes,
mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como
característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta
e da empresa como modelo de subjetivação. O termo racionalidade não é empregado aqui como um eufemismo que nos
permite evitar a palavra “capitalismo”. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de
um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente
assumido como construção histórica e norma geral de vida. O neoliberalismo pode
ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que
determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da
concorrência.”
“Abordar a questão do neoliberalismo pela via
de uma reflexão política sobre o modo de governo modifica necessariamente a
compreensão que se tem dele. Em primeiro lugar, permite refutar análises
simplistas em termos de “retirada do Estado” diante do mercado, já que a
oposição entre o mercado e o Estado aparece como um dos principais obstáculos à
caracterização exata do neoliberalismo. Ao contrário de certa percepção
imediata, e de certa ideia demasiado simples, de que os mercados conquistaram a
partir de fora os Estados e ditam a política que estes devem seguir, foram
antes os Estados, e os mais poderosos em primeiro lugar, que introduziram e
universalizaram na economia, na sociedade e até neles próprios a lógica da
concorrência e o modelo de empresa. Não podemos esquecer jamais que a expansão
das finanças de mercado, assim como o financiamento da dívida pública nos mercados
de títulos, são fruto de políticas deliberadas. Como se vê até mesmo na atual
crise na Europa, os Estados adotam políticas altamente “intervencionistas”, que
visam a alterar profundamente as relações sociais, mudar o papel das
instituições de proteção social e educação, orientar as condutas criando uma
concorrência generalizada entre os sujeitos, e isso porque eles próprios estão
inseridos num campo de concorrência regional e mundial que os leva a agir dessa
forma. Mais uma vez, comprovamos as grandes análises de Marx, Weber ou Polanyi
segundo as quais o mercado moderno não atua sozinho: ele foi sempre amparado
pelo Estado. Em segundo lugar, a via da reflexão política permite compreender
que é uma mesma lógica normativa que rege as relações de poder e as maneiras de
governar em níveis e domínios muitos diferentes da vida econômica, política e
social. Ao contrário de uma leitura do mundo social que o divide em campos
autônomos, o fragmenta em microcosmos e tribos separadas, a análise em termos
de governamentalidade destaca o caráter transversal dos modos de poder
exercidos no interior de uma sociedade numa mesma época.”
“As finanças mundiais sofreram uma expansão
considerável durante quase duas décadas. O volume das transações a partir dos
anos 1980 mostra que o mercado financeiro se autonomizou em relação à esfera da
produção e das trocas comerciais, aumentando a instabilidade já crônica da
economia mundial20. Desde que a “globalização” começou a ser puxada
pelas finanças, a maioria dos países viu-se na impossibilidade de tomar medidas
que iriam de encontro aos interesses dos detentores do capital. Por isso, eles
não impediram nem a formação das bolhas especulativas nem o estouro delas. Mais
ainda, por uma política monetária que se afastou do monetarismo clássico,
contribuíram para sua formação – como os Estados Unidos a partir de 2000. A
unificação do mercado mundial do dinheiro veio acompanhada de uma homogeneização
dos critérios contábeis, de uma uniformização das exigências de rentabilidade,
de um mimetismo das estratégias dos oligopólios, de ondas de recompras, fusões
e restruturações de atividades.
A passagem do capitalismo fordista ao
capitalismo financeiro foi marcada também por uma sensível modificação das
regras de controle das empresas. Com a privatização do setor público, o peso
cada vez maior dos investidores institucionais e o aumento dos capitais
estrangeiros na estrutura da propriedade das empresas, uma das principais
mudanças do capitalismo foram os objetivos perseguidos pelas empresas sob
pressão dos acionistas. De fato, o poder financeiro dos proprietários da
empresa conseguiu dos gestores que estes exercessem pressão constante sobre os
assalariados com o intuito de aumentar os dividendos e as cotações na bolsa.
Segundo essa lógica, a “criação de valor
acionário”, isto é, a produção de valor em proveito dos acionistas como
determinam os mercados de ações, torna-se o principal critério de gestão dos
dirigentes. O comportamento das empresas é profundamente afetado. Elas
desenvolverão todos os tipos de meios para aumentar essa “criação de valor”
financeiro: fusões-aquisições, recentralização no foco do negócio,
terceirização de certos segmentos da produção, redução do tamanho da empresa21.
A governança da empresa (corporate
governance) está diretamente ligada à vontade dos acionistas de assumir o
controle da gestão das empresas. O controle “indicial”, determinado unicamente
pela variação do índice da bolsa, visa a reduzir a autonomia dos objetivos dos
gestores, que supostamente têm interesses diferentes, ou até mesmo oposto aos,
dos acionistas. O principal efeito que tiveram essas práticas de controle foi
tornar o aumento da cotação em bolsa o objetivo comum de acionistas e
dirigentes. O mercado financeiro foi constituído em agente disciplinante para todos os atores da empresa, desde o
dirigente até o assalariado de base: todos devem submeter-se ao princípio de accountability, isto é, à necessidade de
“prestar contas” e ser avaliado em função dos resultados obtidos.
O fortalecimento do capitalismo financeiro
teve outras consequências importantes, sobretudo sociais. A concentração de
renda e patrimônio acelerou-se com a financeirização da economia.
A deflação salarial traduziu um poder maior
dos detentores dos capitais, o que lhes permitiu atrair um acréscimo importante
de valor, impondo seus critérios de rendimento financeiro à toda a esfera
produtiva e fazendo as forças de trabalho competirem em escada mundial. Ela
levou muitos assalariados a recorrer ao endividamento, que o ativismo monetário
do Federal Reserve Bank tornou mais fácil depois do crash de 2000. O
empobrecimento relativo e muitas vezes absoluto desses assalariados submeteu-os
desse modo ao poder das finanças.
Em segundo lugar, a relação do sujeito com
ele mesmo foi profundamente afetada. Em razão dos impostos mais atrativos e do
estímulo dos poderes públicos, o patrimônio financeiro e imobiliário de muitas
famílias de classe média e alta aumentou consideravelmente a partir dos anos
1990. Apesar de longe do sonho thatcheriano de populações ocidentais compostas
de milhões de pequenos capitalistas, a lógica do capital financeiro teve
efeitos subjetivos significativos. Cada sujeito foi levado a conceber-se e
comportar-se, em todas as dimensões de sua vida, como um capital que devia
valorizar-se: estudos universitários pagos, constituição de uma poupança
individual para a aposentadoria, compra da casa própria e investimentos de
longo prazo em títulos da bolsa são aspectos dessa “capitalização da vida
individual” que, à medida que ganhava terreno na classe assalariada, erodia um
pouco mais as lógicas de solidariedade22.
O advento do capitalismo financeiro, ao
contrário do que anunciaram na época alguns analistas, não nos fez passar do
capitalismo organizado do século XIX para um “capitalismo desorganizado”23.
É mais adequado dizer que o capitalismo se reorganizou sobre novas bases, cuja
mola é a instauração da concorrência generalizada, inclusive na esfera da
subjetividade. O que aprouve chamar de “desregulamentação”, termo ambíguo que
poderia dar a entender que o capitalismo não conhece nenhum outro modo de
regulação, é na realidade uma nova ordenação
das atividades econômicas, das relações sociais, dos comportamentos e das
subjetividades.
Nada é mais indicativo disso do que o papel
dos Estados e das organizações econômicas internacionais no estabelecimento do
novo regime de acumulação predominantemente financeiro. Há, de fato, uma falsa
ingenuidade no fato de se lamentar a força do capital financeiro em oposição à
força declinante dos Estados. O novo capitalismo está profundamente ligado à
construção política de uma finança
global regida pelo princípio da concorrência generalizada. Nisso, a
“mercadorizaçao”a (marketization)
das finanças é filha da razão neoliberal. Portanto, convém não tomar o efeito
pela causa, identificando sumariamente neoliberalismo com capitalismo financeiro.
É claro que nem tudo vem pela mão do Estado.
Se, a princípio, um dos objetivos da liberalização dos mercados financeiros
consistia em facilitar as necessidades crescentes de financiamento dos déficits
públicos, a expansão das finanças globais é resultado também de múltiplas
inovações em produtos financeiros, práticas e tecnologias que não haviam sido
previstas inicialmente.
Em todo caso, foi o Estado que nos anos 1980,
por suas reformas de liberalização e privatização, constituiu uma finança de mercado,
em vez de uma gestão mais administrada dos financiamentos bancários das
empresas e das famílias. Lembremos que, dos anos 1930 aos 1970, o sistema
financeiro era enquadrado por regras que visavam a protegê-lo dos efeitos da concorrência. A partir dos anos 1980, ele
continua a ser submetido a regras, mas estas mudam radicalmente, já que visam a
regulamentar a concorrência geral entre todos os atores financeiros em escala
internacional24. A França oferece um bom exemplo dessa
transformação. Os governos franceses começaram a pôr fim à gestão administrada
do crédito: supressão do limite de crédito, retirada do controle de câmbio e
privatização das instituições bancárias e financeiras. Essas medidas permitiram
a criação de um grande mercado único de capitais e encorajaram o
desenvolvimento de conglomerados que misturavam atividades de banco, seguro e
consultoria. Paralelamente, a gestão da dívida pública, em pleno crescimento no
início dos anos 1990, foi profundamente modificada para que se pudesse recorrer
aos investidores internacionais, de modo que, por esse meio, os Estados
contribuíram ampla e diretamente para o crescimento das finanças globalizadas.
Por uma espécie de “efeito reflexo” de sua própria ação, o Estado foi obrigado
a “adaptar-se” às pressas à nova situação financeira internacional. Quanto
maior foi a transferência de renda para os usurários, por meio de imposto, mais
se teve de diminuir o número de funcionários e baixar os salários e mais foi
preciso transferir para o setor privado segmentos inteiros do setor público. As
privatizações, da mesma forma que o estímulo à poupança individual, acabaram
por conferir um poder considerável a bancos e seguradoras. (...)
Enfim, em outro campo, coube ainda ao Estado
criar o elo entre o poder do capital financeiro e a gestão empresarial: ele deu
um quadro legal26 às normas da governança empresarial que consagrava
os direitos dos acionistas e instaurava um sistema de remuneração dos
dirigentes baseado no aumento do valor das ações (stock-options)27.
Obviamente, o FMI e o Banco Mundial
prosseguiram essa construção política das finanças de mercado pelos governos.
As políticas públicas ajudaram ativa e fortemente os “investidores
institucionais” a instaurar a norma do máximo valor acionário, captar de renda
cada vez maiores, alimentar uma especulação desenfreada graças à extração de
renda financeira. A concentração das instituições financeiras, agora situadas
no centro dos novos dispositivos econômicos, permitiu atrair de modo sólido a
poupança das famílias e das empresas, o que lhes deu ao mesmo tempo mais poder
sobre todas as esferas económicas e sociais. Portanto, aquilo que se denomina
“liberalização” das finanças – que é mais propriamente a construção de mercados
financeiros internacionais – engendrou uma “criatura” com uma força ao mesmo
tempo difusa, global e incontrolável.
Paradoxalmente, esse papel ativo dos Estados
favoreceu a derrapagem das instituições de crédito em meados dos anos 2000. Foi
precisamente a concorrência exacerbada entre instituições de crédito
“multifuncionais” que as levou a assumir riscos cada vez maiores a fim de
manter a própria rentabilidade28. Mas elas somente poderiam assumir
riscos se o Estado continuasse a ser o fiador supremo do sistema. O salvamento
das caixas econômicas nos anos 1990 nos Estados Unidos mostrou que o Estado não
poderia permanecer indiferente ao desmoronamento dos grandes bancos, segundo o
princípio do “too big to fail”
(“grande demais para quebrar”). Na realidade, há muito tempo o governo
neoliberal faz o papel de credor de última instância, como mostra a prática de
compra de créditos de bancos e securitização nos Estados Unidos29.
De modo que não é de admirar que os governos tenham aumentado as intervenções
de “salvamento” de instituições bancárias e seguradoras desde o desencadeamento
da crise em 2007: essas intervenções apenas ilustram em grande escala o
princípio da “nacionalização dos riscos e da privatização dos lucros”. O
governo britânico de Gordon Brown nacionalizou quase de seu sistema bancário e
o governo norte-americano recapitalizou os bancos de Wall Street a um custo de
centenas de bilhões de dólares. Ao contrário do que afirmaram certos analistas,
evidentemente não é de “socialismo” que se trata, tampouco de uma nova
“Revolução de Outubro”, mas de uma extensão
forçada e forçosa do papel ativo neoliberal. Construtor, vetor e parceiro
do capitalismo financeiro, o Estado neoliberal deu um passo à frente,
tornando-se efetivamente, graças crise, a instituição financeira de última
instância.”
20: Ver François Chesnais (org.), A finança mundializada: raízes sociais e
políticas, configuração, consequências, Boitempo, 2005.
21:
Dominique Plihon, Le Nouveau Capitalisme,
2003, p. 67.
22: Sobre esse ponto, ver Randy Martin, The Financialization Of Daily Life (Filadélfia, Temple University
Press, 2002). Sobre o que chamaremos de “subjetivação
financeira”, ver capítulo 9 deste volume.
23: Scott Lasch e John Urry, The
End of Organized Capitalism (Cambridge, Polity Press, 1987).
[a] No
original, “mise en marche”. Não se trata apenas de
transformar algo em mercadoria, mas de inscrever a lógica concorrencial do
mercado nos comportamentos ou nas reações e nos processos que não foram e não
necessariamente serão transformados em mercadorias. (N. E.)
24: Como escrevem Dominique Plihon, Jézabel
Couppey-Soubeyran e Dhafer Saidane; “consequentemente, o objetivo da
regulamentação não foi afastar a atividade bancária da concorrência, mas criar
condições legais e leais de atividade (level
playing field)”. Ver Les banques, acteurs de la globalisation
financiére (Paris, La Documentation Française, 2006), p. 113.
26: Como na França a “lei sobre as novas
regulações econômicas”, de maio de 2001.
27: Lembramos que essas medidas favoráveis ao
capitalismo financeiro foram consenso entre as elites políticas e econômicas.
Na França, coube a um governo de esquerda implantá-las.
28: Sobre os mecanismos da crise financeira,
ver Paul Jorion, Vers la crise du
capitalisme américain (Paris, La Découverte, 2007), e Frédéric Lordon, Jusqu’à quand? Pour enfinir avec les crises
financiéres (Paris, Raisons d’Agir, 2008).
29: Nos Estados Unidos, os créditos
hipotecários foram maciçamente garantidos pelas duas agências públicas
encarregadas dos empréstimos residenciais, Fannie Mac e Freddie Mac.
“O mais importante não é tanto o triunfo da
vulgata neoliberal, mas a maneira como o neoliberalismo é traduzido em
políticas concretas, às quais afinal é submetida uma parte da população
assalariada, e esta às vezes até as aceita, mesmo quando essas políticas visam
explicitamente ao retrocesso de direitos adquiridos, de solidariedade entre
grupos e entre gerações, e levam grande parte dos sujeitos sociais a
dificuldades e ameaças crescentes, inserindo-os sistemática e explicitamente
numa lógica de “riscos”. O neoliberalismo é muito mais do que uma ideologia
partidária. Aliás, em geral as autoridades políticas que adoram as práticas
neoliberais recusam-se a admitir qualquer ideologia, o neoliberalismo, quando
inspira políticas concretas, nega-se como ideologia, porque ele é a própria razão.”
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