Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-484-1
Tradução: Mariana Echalar
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 416
Sinopse: Ver Parte I
“(...) Esse conjunto normativo
público/privado revelou-se falho. Foi ele que permitiu, por intermédio da
securitização de créditos e dos produtos derivados, o desenvolvimento de uma
prática sistemática de transferência externa dos riscos assumidos pelos bancos.
De fato, estes últimos conseguiram se esquivar das regras de índice de
solvência estabelecidas pelos Acordos de Basileia II, nas próprias barbas das
autoridades de tutela (as dos Estados Unidos, em primeiro lugar), transferindo
os riscos, em mercados pouco regulamentados, para atores menos vigiados e menos
controlados do que os próprios bancos (como os hedge funds e as empresas de seguro). O erro foi acreditar que a
dispersão dos riscos por um número maior de detentores de risco de crédito
seria um fator de estabilização do mercado financeiro internacional. As
autoridades de tutela permitiram que se instaurasse, assim, um mecanismo de
desestabilização sistêmica. Por intermédio de uma série de “veículos” de
extrema complexidade, os riscos ligados aos créditos “tóxicos” se propagaram
por uma longa cadeia de transferência, de modo que os que se encontravam no fim
dela não eram mais capazes de avaliara perda potencial representada pelos
portfólios securitizados, ou melhor, contaminados”. Esse mecanismo de
transferência de risco, baseado nas teorias otimistas da eficiência dos
mercados16, multiplicou automaticamente a tomada de risco, porque os
bancos, quanto mais condições têm de transferir os riscos, mais afrouxam a
vigilância.
A crise financeira põe em evidência de modo
extraordinário os perigos inerentes à governamentalidade neoliberal quando esta
leva a confiar, em pleno centro do sistema econômico capitalista, parte da
supervisão prudencial aos próprios “atores”, com o pretexto de que eles sofrem
diretamente as exigências da concorrência mundial e sabem se governar, buscando
interesses próprios. Foram precisamente essas lógicas de hibridação que
relaxaram a vigilância e conduziram a comportamentos altamente
desestabilizadores. Entre os atores privados que desempenharam os papéis mais
nocivos, encontramos em particular o pequeno número de agências de
classificação encarregadas de avaliar os estabelecimentos bancários. Esses
atores, responsáveis pela vigilância, função altamente estratégica, escapam a
qualquer vigilância e apresentam graves problemas de conflito de interesses, na
medida em que as avaliações são solicitadas e pagas pelas empresas
classificadas. Evidentemente, as falhas do dispositivo de vigilância são muito
diversas, mas as regras foram o fator decisivo, pois, além de terem sido
elaboradas e implementadas pelos próprios “vigiados”, referiam-se apenas aos estabelecimentos
considerados individualmente, o que as tornava inoperantes em caso de crise
sistêmica. O que está em questão, portanto, é a capacidade dos atores privados
de autodisciplinar-se, considerando-se os interesses não apenas do seu
estabelecimento, mas também do próprio sistema17. (...)
Dentro dessa configuração, os Estados não têm
mais do que um papel de subordinado ou assistente e interiorizam
suficientemente esse papel para não ter mais condições de definir políticas
sociais, ambientais ou científicas sem a concordância – ainda que tácita – dos
oligopólios.
O Estado não se retira18, mas
curva-se às novas condições que contribuiu para instaurar. A construção
política das finanças globais é a melhor demonstração disso19. É com
os recursos do Estado, e com uma retórica em geral muito tradicional (o
“interesse nacional”, a “segurança” do país, o “bem do povo” etc.), que os
governos, em nome de uma concorrência que eles mesmos desejaram e de uma
finança global que eles mesmos construíram, conduzem políticas vantajosas para
as empresas e desvantajosas para os assalariados de seus países. Quando se fala
do peso crescente dos organismos internacionais ou intergovernamentais, como o
FMI, a Organização Mundial do Comércio (OMC), a OCDE ou a Comissão Europeia,
esquece-se de que os governos que fingem curvar-se passivamente a auditorias, relatórios, injunções e diretivas desses
organismos são também ativamente
parte interessada nisso. É como se a disciplina neoliberal, que impõe
retrocessos sociais a grande parte da população e organiza uma transferência de
renda para as classes mais afortunadas, supusesse um “jogo de máscaras” que
possibilita que se jogue sobre outras instâncias a responsabilidade pelo
desmantelamento do Estado social e educador mediante a instauração de regras de
concorrência em todos os domínios da existência. (...)
Outra inflexão na ação dos governos, ainda
mais diretamente ligada à norma da concorrência mundial, diz respeito ao
recentramento da intervenção do Estado nos fatores de produção.
O Estado tem agora uma responsabilidade
eminente no que se refere tanto ao apoio logístico e de infraestrutura aos
oligopólios quanto à atração desses grandes oligopólios para o território
administrado por ele. Isso diz respeito a domínios muito diversos: pesquisa,
universidade, transportes, incentivos fiscais, ambiente cultural e urbanização,
garantia de mercado (mercados públicos abertos às pequenas e às médias empresas
nos Estados Unidos). Em outras palavras, a intervenção governamental toma a
forma de uma política de fatores de produção e ambiente econômico. O Estado
concorrencial não é o Estado árbitro
de interesses, mas o Estado parceiro
dos interesses oligopolistas na guerra econômica mundial. É o que se vê
claramente no nível da política comercial. O próprio sentido de livre-câmbio
muda. Em consequência da fragmentação dos processos produtivos, os produtos
exportados por uma economia contêm uma proporção cada vez maior de componentes
importados. Por isso, os Estados são levados a substituir o protecionismo tarifário por um protecionismo estratégico, o protecionismo dos
produtos por uma lógica de subvenção dos fatores
de produção.
A norma da concorrência generalizada
pressiona os Estados, ou outras instâncias públicas, a produzir condições
locais ótimas de valorização do capital, o que poderíamos chamar, não sem certo
paradoxo, de “bens comuns do capital”. Esses bens são os frutos dos
investimentos em infraestrutura e instituições necessárias para atrair capitais
e assalariados qualificados num regime de concorrência exacerbada. Estrutura de
pesquisa, fisco, universidades, meios de circulação, redes bancárias, zonas de
residência e lazer para executivos são alguns desses bens necessários à
atividade capitalista, o que tende a mostrar que a condição da mobilidade do
capital é a implantação por parte do Estado de infraestruturas fixas e imóveis.
O Estado já não se destina tanto a assegurar
a integração dos diferentes níveis da vida coletiva quanto a ordenar as
sociedades de acordo com as exigências da concorrência mundial e das finanças
globais. A gestão da população muda de método e significado. Enquanto no
período fordista a ideia predominante era, segundo a expressão consagrada, a
“harmonia entre eficácia econômica e progresso social”, hoje, no contexto de um
capitalismo nacional, essa mesma população é percebida apenas como um “recurso”
à disposição das empresas, segundo uma análise em termos de custo-benefício. A
política que ainda hoje é chamada de “social” por inércia semântica não se
baseia mais em uma lógica de divisão dos ganhos de produtividade destinada a
manter um nível de demanda suficiente para garantir o escoamento da produção em
massa: ela visa a maximizar a utilidade
da população, aumentando sua “empregabilidade e sua produtividade, e
diminuir seus custos, com um novo gênero de política “social” que consiste em
enfraquecer o poder de negociação dos sindicatos, degradar o direito
trabalhista, baixar o custo do trabalho, diminuir o valor das aposentadorias e
a qualidade da proteção social em nome da “adequação à globalização”. Portanto,
o Estado não abandona seu papel na gestão da população, mas sua intervenção não
obedece mais aos mesmos imperativos nem aos mesmos motivos. Em vez da “economia
do bem-estar”, que dava ênfase à harmonia entre o progresso econômico e a
distribuição equitativa dos frutos do crescimento, a nova lógica vê as
populações e os indivíduos sob o ângulo mais estreito de sua contribuição e seu
custo na competição mundial.”
15: Ver Michel Aglietta, Macroéconomie financière (Paris, La Découverte, 2008), p. 96-7,
sobre a análise técnica dos subterfúgios legais que permitiram aos bancos
escapar das estabelecidas pelo Basileia II.
16: Trata-se da teoria segundo a qual a venda
dos próprios riscos mediante produtos financeiros sofisticados permite
avaliá-los melhor. Supõe-se que, dando um valor mercantil aos riscos, o mercado
financeiro gera mais eficiência na alocação dos financiamentos.
17 Foi o que Alan Greenspan admitiu, muito
tardiamente, em seu depoimento ao Congresso dos Estados Unidos em 23 de outubro
de 2008: “Cometi o erro de pensar que o interesse bem compreendido das
organizações e, em particular, dos bancos os tornava os mais capazes de
proteger seus próprios acionistas e o capital das empresas. Minha experiência
nos cargos que ocupei no FED durante dezoito anos e nas funções anteriores me
levaram a pensar que os dirigentes dos estabelecimentos conheciam bem melhor os
riscos de default que os melhores
reguladores. O problema é que um pilar fundamental do que parecia ser um
edifício particularmente sólido desmoronou. [...] Não sei exatamente o que
aconteceu nem por quê. Mas não hesitaria em mudar minha visão, se os fatos
exigissem isso”. Acrescentou, a propósito da “ideologia liberal”: “Fui muito
afetado por [...] essa falha na estrutura fundamental que define aquilo que eu
poderia chamar de maneira como o mundo funciona”.
18: Ver Susan Strange, The Retreat
of the State: The Diffusion of Power
in the World Economy (Cambridge, Cambridge University Press, 1996).
19: Ver, no capítulo 6 deste volume, “O
crescimento do capitalismo financeiro”.
“Instaura-se uma forma inédita de “poder
mundial”, adaptado às características da economia globalizada. A competição
econômica toma o aspecto de um confronto entre Estados que fazem alianças entre
si e se coligam a empresas cuja rede de ação é cada vez mais globalizada. O
chamado “mercado mundial” é um vasto
entrelaçamento movediço de coalizões entre entidades privadas e públicas
que se valem de todos os meios e os registros (financeiros, diplomáticos,
históricos, culturais, linguísticos etc.) para promover os interesses
misturados dos poderes estatais e econômicos. Devemos acrescentar ao cenário o
papel crescente das entidades públicas subestatais, como as regiões ou as
cidades, que aproveitam certa margem de liberdade para praticar outras formas
de concorrência entre si a fim de obter vantagens.
Uma das características principais desse
período não é o “fim dos Estados-nações”, segundo Kenichi Ohmae20,
mas a relativização de seu papel como entidade integradora de todas as
dimensões da vida coletiva: organização do poder político, elaboração e difusão
da cultura nacional, relações entre classes sociais, organização da vida
econômica, nível de emprego, organização local etc. Os Estados tendem a delegar
grande parte dessas funções às empresas privadas, que com frequência já são
globalizadas ou obedecem a normas mundiais. Entregam a elas parte da tarefa de
garantir o desenvolvimento socioeconômico do país, como a responsabilidade pela
“cultura de massa” à mídia privada. Assistimos, por conseguinte, a uma privatização parcial das funções de
integração, funções que não correspondem as mesmas exigências e
temporalidades, conforme dependam da competência de empresas privadas ou das
prerrogativas do poder público. É o caso do emprego, já que os subsídios às
empresas asseguram apenas precariamente a missão de desenvolvimento e
organização do território em longo prazo. É o caso também da “cultura” ou do
ensino, uma vez que as empresas privadas não buscamos mesmos objetivos que
aqueles classicamente atribuídos ao Estado.
Essa situação cria um complexo de interesses
públicos e privados que mina a antiga divisão entre os interesses particulares
e o interesse geral. Não se trata apenas do fato de que o Estado sofre uma
erosão em suas margens de manobra; trata-se, sobretudo, do fato de que o Estado
se põe a serviço de interesses oligopolistas específicos e não hesita em
delegar a eles uma parte considerável da gestão sanitária, cultural, turística
ou até mesmo “lúdica” da população.
Diante dessa situação inédita, não há ainda à
vista nenhum esboço de governo mundial que tenha como vocação proteger as
sociedades nacionais e locais contra a concorrência a que se entregam os
oligopólios mundiais, assim como não há, aliás, um governo europeu que proteja
as populações contra o dumping social
e fiscal dos países-membros da União Europeia. Não existe uma regulação das
trocas, nem em matéria de condições sociais nem em matéria de fisco nem em
matéria monetária, além da zona do euro. É escusado dizer que nenhuma instância
mundial soube prevenir as crises financeiras e proteger a economia e a
sociedade contra a instabilidade crescente do capitalismo predominantemente
financeiro.
Obviamente, esse contraste entre a facilidade
de circulação do capital e a debilidade das instituições de regulação é
atenuado em parte pelo papel crescente que se dá às instituições
internacionais, como o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o G8 ou o G20, que garantem
um mínimo de coordenação em nível mundial. A estrutura mundial do poder tem
cada vez menos a ver com a antiga representação do “direito dos povos” (o
antigo jus gentium) da época do
florescimento das soberanias nacionais. Essa transformação alimenta a tese
pós-moderna da morte da soberania do Estado e do surgimento de novas formas de
poder mundial21. Segundo essa tese, há um deslocamento do poder do
Estado para o poder múltiplo e fragmentado de agências e órgãos “híbridos”,
meio públicos e meio privados. Se é real essa concessão do trabalho de
codificação das normas às empresas, como bem recordamos, convém não esquecer
que a transformação em curso é mais global. De fato, são os princípios e os
modos da ação pública que mudam com o domínio crescente do modelo da empresa,
inclusive nas “funções soberanas” mais clássicas. Naomi Klein recorda que o
governo Bush tirou partido do contexto de “guerra contra o terrorismo” para
terceirizar, sem o menor debate público, “grande parte das funções mais
delicadas do governo, da prestação de cuidados médicos aos soldados aos
interrogatórios de prisioneiros, passando pela coleta e pela análise profunda
de dados (data mining) sobre cada um
de nós”. Ainda segundo ela, o governo age “não como o administrador de uma rede
de fornecedores, mas como um investidor de capital de risco endinheirado que
fornece ao complexo o capital inicial de que este necessita e torna-se o
principal cliente de seus serviços”22.A extensão do campo da
“governança”, portanto, não é apenas uma trama de relações múltiplas com atores
não estatais ou simplesmente o sinal do declínio do Estado-nação, ela
significa, mais profundamente, uma mudança do “formato” e do papel do Estado,
que é visto agora como uma empresa a serviço das empresas. É, sem dúvida, nessa
transformação do Estado que se pode apreender melhor a nova articulação entre a
norma mundial da concorrência e a arte neoliberal de governar os indivíduos.”
20: Kenichi Ohmae, De
l’État-nation aux Etats-régions (trad. Michel Le Seac’h, Paris, Dunod,
1996).
21 A tese pós-moderna, tal como é
apresentada, por exemplo, por Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (trad Denis-Armand Canal, Paris,
Exils, 2000) [ed. bras.: Império,
trad. Berilo Vargas, 10. ed., Rio de Janeiro, Record, 2012), é que a soberania
do Estado foi substituída por novas formas de sujeição mais direta à ordem
produtiva capitalista.
22 Naomi
Klein, La stratégie du choc. La montée
d’un capitalisme du désastre (trad. Lori Saint-Martin
e Paul Gagné, Arles, Leméac/Actes Sud, 2008), p. 22. A autora entende por
“complexo” uma “entidade tentacular” muito mais vasta que o complexo
militar-industrial. Os números dão por si sós uma ideia da dimensão da
transformação: “Em 2003, o governo dos Estados Unidos firmou 3.512 contratos
com sociedades encarregadas de executar funções ligadas à segurança; no período
de 22 meses que se encerrou em agosto de 2006, somente o Departamento de
Segurança Interna (Department of Homeland
Security) firmou mais de 115 mil contratos do mesmo tipo” (ibidem, p. 23).
“Essa nova etapa da racionalização
burocrática vem acompanhada da perda de significado próprio dos serviços
públicos. De fato, um dos efeitos da nova gestão pública é que os limites entre
o setor público e o privado se embaralharam. Aliás, a própria ideia de um setor
público cujos princípios transgridem a lógica mercantil é posta em questão com
a multiplicação das relações contratuais e delegações, bem como com as
transformações sofridas pelo emprego público no sentido de uma maior diversidade
de formas e de uma precariedade mais desenvolvida88. A promoção da
concorrência, por exemplo, não se concilia facilmente com a obrigação de
serviços públicos aos quais um grande número de cidadãos e agentes públicos
continua ligado. A nova gestão pública contrasta com os princípios da função
pública tal como foram estabelecidos na França (primazia do direito público,
igualdade de tratamento dos usuários, continuidade do serviço, laicidade e
respeito da neutralidade política). A transformação do usuário em consumidor,
ao qual convém vender o máximo possível de produtos para aumentar a
rentabilidade, não é tão “neutra” como querem fazer parecer os especialistas.
Quanto aos procedimentos de avaliação, eles tendem a confundir a medida dos
resultados que pode ser feita internamente com os efeitos múltiplos e de longa
duração que uma política pode ter sobre a sociedade como um todo.
A importação das lógicas contábeis,
provenientes do mundo econômico mercantil, tende não apenas a “desligar” as
atividades e seus resultados, como também a despolitizar as relações entre o
Estado e os cidadãos. Estes são vistos como compradores de serviços que devem
“receber pelo que pagam”. Essa prioridade que se dá à dimensão da eficiência e
ao retorno financeiro elimina do espaço público qualquer concepção de justiça
que não seja a de equivalência entre o que foi pago individualmente pelo
contribuinte e o que foi recebido individualmente por ele.
A desconfiança como princípio e a vigilância
avaliativa como método são os traços mais característicos da nova arte de
governar os homens. O espírito gerencial que a anima impõe-se em detrimento dos
valores hoje desqualificados do serviço público e da dedicação dos agentes a
uma causa geral que está acima deles. Na antiga forma de governo, ligada ao
ideal de soberania democrática, a autonomia relativa do funcionário público
repousava sobre o compromisso de servir a uma causa que se impunha a ele e pela
qual ele tinha de respeitar o direito público e os valores profissionais que
compunham um “espírito de solidariedade”. Esse compromisso, simbolizado por um
estatuto, tinha em troca certa confiança – evidentemente sempre ponderada por
uma preocupação com as formas regulamentares – na conduta virtuosa do agente. A
partir do momento que o postulado da nova gestão especifica que não pode mais
confiar no “indivíduo comum”, intrinsecamente privado de qualquer apego a um
“espírito” público e de qualquer adesão a valores que lhe seriam exteriores, a
única solução é o controle e o “governo à distância” dos interesses
particulares. Quer se trate de equipe hospitalar, juízes ou bombeiros, os
motivos e os princípios de sua atividade profissional são concebidos apenas do
ângulo dos interesses pessoais e corporativos, negando-se, assim, qualquer dimensão
moral e política de seu compromisso com uma profissão que repousa sobre valores
próprios, os três “e” da gestão (“eficácia, economia, eficiência”) fizeram
desaparecer da lógica do poder as categorias do dever e da consciência
profissional. A desconfiança caracteriza ainda a relação entre as instituições
públicas e os sujeitos sociais e políticos, que também são vistos como
“oportunistas” em busca da máxima vantagem pessoal, sem nenhuma consideração
pelo interesse coletivo. A reestruturação neoliberal transforma os cidadãos em
consumidores de serviços que nunca têm em vista nada além de sua satisfação
egoísta, o que faz que sejam tratados como tais por procedimentos de
vigilância, restrição, punição e responsabilização. É isso que leva a
“envolver” os doentes, fazendo-os arcar com uma parte maior das despesas
médicas, e os estudantes universitários, aumentando as taxas de inscrição. O
“governo” das administrações públicas, de autoridades locais, dos hospitais e
das escolas por indicadores sintéticos de desempenho, cujos resultados são
largamente difundidos pela imprensa local e nacional na forma de ranking,
convida o cidadão a basear seu julgamento apenas na relação de custo-benefício.
A corrosão da confiança nas “virtudes” cívicas teve, sem dúvida, efeitos performativos
sobre a maneira como os novos cidadãos-consumidores enxergam sua contribuição
fiscal para os encargos coletivos e o “retorno” que têm individualmente. Eles
não são chamados a julgar políticas e instituições do ponto de vista do
interesse da comunidade política, mas somente em função de seu interesse
pessoal. É a própria definição de sujeito político que é radicalmente
alterada.”
88: Para Luc Rouban. “a mutação
administrativa dos últimos anos tendeu a restringir não a ação pública, mas os
meios públicos de ação governamental. Esse movimento leva ao fim da noção de
‘setor público’, entendido no sentido de que engloba atividades que se
beneficiam de um regime jurídico e financeiro que transgride as regras do
mercado”. “La réforme de l’appareil d’État”, cit., p, 147.
“Todavia, cometeríamos um grave erro se nos
deixássemos seduzir por esse novo management.
Da mesma forma que a filantropia do século XVIII acompanhava a implantação das
novas tecnologias de poder com uma música suave, os propósitos humanistas e
hedonistas da gestão moderna dos homens acompanham a implantação de técnicas
que visam a produzir formas eficazes de sujeição. Estas, por mais novas que
sejam, têm a marca da mais inflexível e mais clássica das violências sociais
típicas do capitalismo: a tendência a transformar o trabalhador em uma simples
mercadoria. A corrosão progressiva dos direitos ligados ao Status de
trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados
pelas “novas formas de emprego” precárias, provisórias e temporárias, as
facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até
o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que
produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com
relação aos empregadores. Foi esse contexto de medo social que facilitou a
implantação da neogestão nas empresas. Nesse sentido, a “naturalização” do risco
no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às
flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades
coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos
para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas
puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores.
Isso não significa que neogestão não seja
novidade e o capitalismo no fundo seja sempre o mesmo. Ao contrário, a grande
novidade reside na modelagem que torna os indivíduos aptos a suportar as novas
condições que lhe são impostas, enquanto por seu próprio comportamento
contribuem para tornar essas condições cada vez mais duras e mais perenes. Em
uma palavra, a novidade consiste em promover uma reação em cadeia”, produzindo
“sujeitos empreendedores” que, por sua vez, reproduzirão, ampliarão e
reforçarão as relações de competição entre eles, o que exigirá, segundo a
lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente às condições
cada vez mais duras que eles mesmos produziram.”
“Hoje, todos os indivíduos deveriam ter
“renda incerta”, inclusive “patifes e ladrões”. Esse é o teor das estratégias
políticas ativamente encorajadas pelo patronato. (...) Laurence Parisot,
(membro) do patronato francês, diria de maneira mais direta: “A vida, a saúde e
o amor são precários, por que o trabalho escaparia dessa lei?”. Devemos
entender por essa declaração que as leis positivas deveriam curvar-se a essa
nova “lei natural” da precariedade. Esse discurso dá ao risco uma dimensão
ontológica, gêmea do deseja que move cada um de nós. Obedecer ao próprio desejo
é correr riscos.
No entanto, se desse ponto de vista “viver na
incerteza” aparece como um estado natural, as coisas aparecem com uma feição
muito diferente quando são situadas no terreno das práticas efetivas. Quando se
fala em “sociedades de risco”, é preciso esclarecer do que se trata. O Estado
social tratou sob a forma de seguro social obrigatório alguns riscos
profissionais ligados à condição de assalariado. Hoje, a produção e a gestão
dos riscos obedecem a uma lógica muito diferente. Trata-se, na realidade, de
uma criação social e política de riscos individualizados que podem ser geridos
não pelo Estado social, mas por empresas cada vez mais poderosas e numerosas –
que propõem serviços estritamente individuais de “gestão de riscos”. O “risco”
tornou-se um setor comercial, na medida em que se trata de produzir indivíduos
que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda mútua de seus meios de
pertencimento e com os mecanismos públicos de solidariedade. Do mesmo modo e ao
mesmo tempo que se produz o sujeito de risco, produz-se o sujeito da
assistência privada. A maneira como os governos reduzem a cobertura socializada
dos gastos com doenças ou aposentadoria, transferindo sua gestão para empresas
de seguro privado, fundos comuns e associações mutualistas intimados a
funcionar segundo uma lógica individualizada, permite estabelecer que se trata
de uma verdadeira estratégia.
Aliás, a nosso ver, é isso que deve ser
retido dos trabalhos de Ulrich Beck e da Sociedade
de risco. Para ele, o capitalismo avançado destrói a dimensão coletiva da existência: destrói não só
as estruturas tradicionais que o precederam, sobretudo a família, mas também as
estruturas que ajudou a criar, como as classes sociais. Assistimos a uma
individualização radical que faz com que todas as formas de crise social sejam
percebidas como crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a
uma responsabilidade individual. A maquinaria instaurada “transforma as causas
externas em responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em
fracassos pessoais56.”
54: Laurence Parisot em Le Figaro, 30 ago. 2005.
56: Ulrich Beck, La société du risque, trad. Laure Bernardi, Paris, Aubier, 2001, p.
161 e 202 [ed. bras.: Sociedade de risco:
rumo a outra modernidade, trad. Sebastião Nascimento, São Paulo, Editora
34, 2010])
“Tudo indica que a principal mudança
introduzida pela avaliação é de ordem subjetiva. Enquanto as novas tecnologias
orientadas para a produção da “empresa de si mesmo” pareciam responder a uma
aspiração dos assalariados a mais autonomia no trabalho, a tecnologia
avaliativa aumenta a dependência em relação à “cadeia administrativa”. Obrigado
a realizar “seu” objetivo, o sujeito da avaliação é igualmente constrangido a
impor ao outro (subordinado, cliente, paciente ou aluno) as prioridades da
empresa. É o atendente dos Correios que tem de aumentar as vendas de
determinado “produto”, exatamente do mesmo modo que qualquer consultor
financeiro bancário, mas é também o médico que deve ora prescrever “ações”
rentáveis, ora liberar leitos o mais rápido possível. Uma das consequências
mais seguras é, sem dúvida, que as “transações” ganham cada vez mais espaço em
detrimento das “relações”, a instrumentalização do outro ganha importância em
detrimento de todos os outros modos possíveis de relação com o outro.”
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