quarta-feira, 27 de março de 2019

A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal (Parte II), de Pierre Dardot e Christian Laval

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-484-1

Tradução: Mariana Echalar

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 416

Sinopse: Ver Parte I



“(...) Esse conjunto normativo público/privado revelou-se falho. Foi ele que permitiu, por intermédio da securitização de créditos e dos produtos derivados, o desenvolvimento de uma prática sistemática de transferência externa dos riscos assumidos pelos bancos. De fato, estes últimos conseguiram se esquivar das regras de índice de solvência estabelecidas pelos Acordos de Basileia II, nas próprias barbas das autoridades de tutela (as dos Estados Unidos, em primeiro lugar), transferindo os riscos, em mercados pouco regulamentados, para atores menos vigiados e menos controlados do que os próprios bancos (como os hedge funds e as empresas de seguro). O erro foi acreditar que a dispersão dos riscos por um número maior de detentores de risco de crédito seria um fator de estabilização do mercado financeiro internacional. As autoridades de tutela permitiram que se instaurasse, assim, um mecanismo de desestabilização sistêmica. Por intermédio de uma série de “veículos” de extrema complexidade, os riscos ligados aos créditos “tóxicos” se propagaram por uma longa cadeia de transferência, de modo que os que se encontravam no fim dela não eram mais capazes de avaliara perda potencial representada pelos portfólios securitizados, ou melhor, contaminados”. Esse mecanismo de transferência de risco, baseado nas teorias otimistas da eficiência dos mercados16, multiplicou automaticamente a tomada de risco, porque os bancos, quanto mais condições têm de transferir os riscos, mais afrouxam a vigilância.

A crise financeira põe em evidência de modo extraordinário os perigos inerentes à governamentalidade neoliberal quando esta leva a confiar, em pleno centro do sistema econômico capitalista, parte da supervisão prudencial aos próprios “atores”, com o pretexto de que eles sofrem diretamente as exigências da concorrência mundial e sabem se governar, buscando interesses próprios. Foram precisamente essas lógicas de hibridação que relaxaram a vigilância e conduziram a comportamentos altamente desestabilizadores. Entre os atores privados que desempenharam os papéis mais nocivos, encontramos em particular o pequeno número de agências de classificação encarregadas de avaliar os estabelecimentos bancários. Esses atores, responsáveis pela vigilância, função altamente estratégica, escapam a qualquer vigilância e apresentam graves problemas de conflito de interesses, na medida em que as avaliações são solicitadas e pagas pelas empresas classificadas. Evidentemente, as falhas do dispositivo de vigilância são muito diversas, mas as regras foram o fator decisivo, pois, além de terem sido elaboradas e implementadas pelos próprios “vigiados”, referiam-se apenas aos estabelecimentos considerados individualmente, o que as tornava inoperantes em caso de crise sistêmica. O que está em questão, portanto, é a capacidade dos atores privados de autodisciplinar-se, considerando-se os interesses não apenas do seu estabelecimento, mas também do próprio sistema17. (...)

Dentro dessa configuração, os Estados não têm mais do que um papel de subordinado ou assistente e interiorizam suficientemente esse papel para não ter mais condições de definir políticas sociais, ambientais ou científicas sem a concordância – ainda que tácita – dos oligopólios.

O Estado não se retira18, mas curva-se às novas condições que contribuiu para instaurar. A construção política das finanças globais é a melhor demonstração disso19. É com os recursos do Estado, e com uma retórica em geral muito tradicional (o “interesse nacional”, a “segurança” do país, o “bem do povo” etc.), que os governos, em nome de uma concorrência que eles mesmos desejaram e de uma finança global que eles mesmos construíram, conduzem políticas vantajosas para as empresas e desvantajosas para os assalariados de seus países. Quando se fala do peso crescente dos organismos internacionais ou intergovernamentais, como o FMI, a Organização Mundial do Comércio (OMC), a OCDE ou a Comissão Europeia, esquece-se de que os governos que fingem curvar-se passivamente a auditorias, relatórios, injunções e diretivas desses organismos são também ativamente parte interessada nisso. É como se a disciplina neoliberal, que impõe retrocessos sociais a grande parte da população e organiza uma transferência de renda para as classes mais afortunadas, supusesse um “jogo de máscaras” que possibilita que se jogue sobre outras instâncias a responsabilidade pelo desmantelamento do Estado social e educador mediante a instauração de regras de concorrência em todos os domínios da existência. (...)

Outra inflexão na ação dos governos, ainda mais diretamente ligada à norma da concorrência mundial, diz respeito ao recentramento da intervenção do Estado nos fatores de produção.

O Estado tem agora uma responsabilidade eminente no que se refere tanto ao apoio logístico e de infraestrutura aos oligopólios quanto à atração desses grandes oligopólios para o território administrado por ele. Isso diz respeito a domínios muito diversos: pesquisa, universidade, transportes, incentivos fiscais, ambiente cultural e urbanização, garantia de mercado (mercados públicos abertos às pequenas e às médias empresas nos Estados Unidos). Em outras palavras, a intervenção governamental toma a forma de uma política de fatores de produção e ambiente econômico. O Estado concorrencial não é o Estado árbitro de interesses, mas o Estado parceiro dos interesses oligopolistas na guerra econômica mundial. É o que se vê claramente no nível da política comercial. O próprio sentido de livre-câmbio muda. Em consequência da fragmentação dos processos produtivos, os produtos exportados por uma economia contêm uma proporção cada vez maior de componentes importados. Por isso, os Estados são levados a substituir o protecionismo tarifário por um protecionismo estratégico, o protecionismo dos produtos por uma lógica de subvenção dos fatores de produção.

A norma da concorrência generalizada pressiona os Estados, ou outras instâncias públicas, a produzir condições locais ótimas de valorização do capital, o que poderíamos chamar, não sem certo paradoxo, de “bens comuns do capital”. Esses bens são os frutos dos investimentos em infraestrutura e instituições necessárias para atrair capitais e assalariados qualificados num regime de concorrência exacerbada. Estrutura de pesquisa, fisco, universidades, meios de circulação, redes bancárias, zonas de residência e lazer para executivos são alguns desses bens necessários à atividade capitalista, o que tende a mostrar que a condição da mobilidade do capital é a implantação por parte do Estado de infraestruturas fixas e imóveis.

O Estado já não se destina tanto a assegurar a integração dos diferentes níveis da vida coletiva quanto a ordenar as sociedades de acordo com as exigências da concorrência mundial e das finanças globais. A gestão da população muda de método e significado. Enquanto no período fordista a ideia predominante era, segundo a expressão consagrada, a “harmonia entre eficácia econômica e progresso social”, hoje, no contexto de um capitalismo nacional, essa mesma população é percebida apenas como um “recurso” à disposição das empresas, segundo uma análise em termos de custo-benefício. A política que ainda hoje é chamada de “social” por inércia semântica não se baseia mais em uma lógica de divisão dos ganhos de produtividade destinada a manter um nível de demanda suficiente para garantir o escoamento da produção em massa: ela visa a maximizar a utilidade da população, aumentando sua “empregabilidade e sua produtividade, e diminuir seus custos, com um novo gênero de política “social” que consiste em enfraquecer o poder de negociação dos sindicatos, degradar o direito trabalhista, baixar o custo do trabalho, diminuir o valor das aposentadorias e a qualidade da proteção social em nome da “adequação à globalização”. Portanto, o Estado não abandona seu papel na gestão da população, mas sua intervenção não obedece mais aos mesmos imperativos nem aos mesmos motivos. Em vez da “economia do bem-estar”, que dava ênfase à harmonia entre o progresso econômico e a distribuição equitativa dos frutos do crescimento, a nova lógica vê as populações e os indivíduos sob o ângulo mais estreito de sua contribuição e seu custo na competição mundial.”

15: Ver Michel Aglietta, Macroéconomie financière (Paris, La Découverte, 2008), p. 96-7, sobre a análise técnica dos subterfúgios legais que permitiram aos bancos escapar das estabelecidas pelo Basileia II.

16: Trata-se da teoria segundo a qual a venda dos próprios riscos mediante produtos financeiros sofisticados permite avaliá-los melhor. Supõe-se que, dando um valor mercantil aos riscos, o mercado financeiro gera mais eficiência na alocação dos financiamentos.

17 Foi o que Alan Greenspan admitiu, muito tardiamente, em seu depoimento ao Congresso dos Estados Unidos em 23 de outubro de 2008: “Cometi o erro de pensar que o interesse bem compreendido das organizações e, em particular, dos bancos os tornava os mais capazes de proteger seus próprios acionistas e o capital das empresas. Minha experiência nos cargos que ocupei no FED durante dezoito anos e nas funções anteriores me levaram a pensar que os dirigentes dos estabelecimentos conheciam bem melhor os riscos de default que os melhores reguladores. O problema é que um pilar fundamental do que parecia ser um edifício particularmente sólido desmoronou. [...] Não sei exatamente o que aconteceu nem por quê. Mas não hesitaria em mudar minha visão, se os fatos exigissem isso”. Acrescentou, a propósito da “ideologia liberal”: “Fui muito afetado por [...] essa falha na estrutura fundamental que define aquilo que eu poderia chamar de maneira como o mundo funciona”.

18: Ver Susan Strange, The Retreat of the State: The Diffusion of Power in the World Economy (Cambridge, Cambridge University Press, 1996).

19: Ver, no capítulo 6 deste volume, “O crescimento do capitalismo financeiro”.

 

 

“Instaura-se uma forma inédita de “poder mundial”, adaptado às características da economia globalizada. A competição econômica toma o aspecto de um confronto entre Estados que fazem alianças entre si e se coligam a empresas cuja rede de ação é cada vez mais globalizada. O chamado “mercado mundial” é um vasto entrelaçamento movediço de coalizões entre entidades privadas e públicas que se valem de todos os meios e os registros (financeiros, diplomáticos, históricos, culturais, linguísticos etc.) para promover os interesses misturados dos poderes estatais e econômicos. Devemos acrescentar ao cenário o papel crescente das entidades públicas subestatais, como as regiões ou as cidades, que aproveitam certa margem de liberdade para praticar outras formas de concorrência entre si a fim de obter vantagens.

Uma das características principais desse período não é o “fim dos Estados-nações”, segundo Kenichi Ohmae20, mas a relativização de seu papel como entidade integradora de todas as dimensões da vida coletiva: organização do poder político, elaboração e difusão da cultura nacional, relações entre classes sociais, organização da vida econômica, nível de emprego, organização local etc. Os Estados tendem a delegar grande parte dessas funções às empresas privadas, que com frequência já são globalizadas ou obedecem a normas mundiais. Entregam a elas parte da tarefa de garantir o desenvolvimento socioeconômico do país, como a responsabilidade pela “cultura de massa” à mídia privada. Assistimos, por conseguinte, a uma privatização parcial das funções de integração, funções que não correspondem as mesmas exigências e temporalidades, conforme dependam da competência de empresas privadas ou das prerrogativas do poder público. É o caso do emprego, já que os subsídios às empresas asseguram apenas precariamente a missão de desenvolvimento e organização do território em longo prazo. É o caso também da “cultura” ou do ensino, uma vez que as empresas privadas não buscamos mesmos objetivos que aqueles classicamente atribuídos ao Estado.

Essa situação cria um complexo de interesses públicos e privados que mina a antiga divisão entre os interesses particulares e o interesse geral. Não se trata apenas do fato de que o Estado sofre uma erosão em suas margens de manobra; trata-se, sobretudo, do fato de que o Estado se põe a serviço de interesses oligopolistas específicos e não hesita em delegar a eles uma parte considerável da gestão sanitária, cultural, turística ou até mesmo “lúdica” da população.

Diante dessa situação inédita, não há ainda à vista nenhum esboço de governo mundial que tenha como vocação proteger as sociedades nacionais e locais contra a concorrência a que se entregam os oligopólios mundiais, assim como não há, aliás, um governo europeu que proteja as populações contra o dumping social e fiscal dos países-membros da União Europeia. Não existe uma regulação das trocas, nem em matéria de condições sociais nem em matéria de fisco nem em matéria monetária, além da zona do euro. É escusado dizer que nenhuma instância mundial soube prevenir as crises financeiras e proteger a economia e a sociedade contra a instabilidade crescente do capitalismo predominantemente financeiro.

Obviamente, esse contraste entre a facilidade de circulação do capital e a debilidade das instituições de regulação é atenuado em parte pelo papel crescente que se dá às instituições internacionais, como o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o G8 ou o G20, que garantem um mínimo de coordenação em nível mundial. A estrutura mundial do poder tem cada vez menos a ver com a antiga representação do “direito dos povos” (o antigo jus gentium) da época do florescimento das soberanias nacionais. Essa transformação alimenta a tese pós-moderna da morte da soberania do Estado e do surgimento de novas formas de poder mundial21. Segundo essa tese, há um deslocamento do poder do Estado para o poder múltiplo e fragmentado de agências e órgãos “híbridos”, meio públicos e meio privados. Se é real essa concessão do trabalho de codificação das normas às empresas, como bem recordamos, convém não esquecer que a transformação em curso é mais global. De fato, são os princípios e os modos da ação pública que mudam com o domínio crescente do modelo da empresa, inclusive nas “funções soberanas” mais clássicas. Naomi Klein recorda que o governo Bush tirou partido do contexto de “guerra contra o terrorismo” para terceirizar, sem o menor debate público, “grande parte das funções mais delicadas do governo, da prestação de cuidados médicos aos soldados aos interrogatórios de prisioneiros, passando pela coleta e pela análise profunda de dados (data mining) sobre cada um de nós”. Ainda segundo ela, o governo age “não como o administrador de uma rede de fornecedores, mas como um investidor de capital de risco endinheirado que fornece ao complexo o capital inicial de que este necessita e torna-se o principal cliente de seus serviços”22.A extensão do campo da “governança”, portanto, não é apenas uma trama de relações múltiplas com atores não estatais ou simplesmente o sinal do declínio do Estado-nação, ela significa, mais profundamente, uma mudança do “formato” e do papel do Estado, que é visto agora como uma empresa a serviço das empresas. É, sem dúvida, nessa transformação do Estado que se pode apreender melhor a nova articulação entre a norma mundial da concorrência e a arte neoliberal de governar os indivíduos.”

20: Kenichi Ohmae, De l’État-nation aux Etats-régions (trad. Michel Le Seac’h, Paris, Dunod, 1996).

21 A tese pós-moderna, tal como é apresentada, por exemplo, por Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (trad Denis-Armand Canal, Paris, Exils, 2000) [ed. bras.: Império, trad. Berilo Vargas, 10. ed., Rio de Janeiro, Record, 2012), é que a soberania do Estado foi substituída por novas formas de sujeição mais direta à ordem produtiva capitalista.

22 Naomi Klein, La stratégie du choc. La montée d’un capitalisme du désastre (trad. Lori Saint-Martin e Paul Gagné, Arles, Leméac/Actes Sud, 2008), p. 22. A autora entende por “complexo” uma “entidade tentacular” muito mais vasta que o complexo militar-industrial. Os números dão por si sós uma ideia da dimensão da transformação: “Em 2003, o governo dos Estados Unidos firmou 3.512 contratos com sociedades encarregadas de executar funções ligadas à segurança; no período de 22 meses que se encerrou em agosto de 2006, somente o Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security) firmou mais de 115 mil contratos do mesmo tipo” (ibidem, p. 23).

 

 

“Essa nova etapa da racionalização burocrática vem acompanhada da perda de significado próprio dos serviços públicos. De fato, um dos efeitos da nova gestão pública é que os limites entre o setor público e o privado se embaralharam. Aliás, a própria ideia de um setor público cujos princípios transgridem a lógica mercantil é posta em questão com a multiplicação das relações contratuais e delegações, bem como com as transformações sofridas pelo emprego público no sentido de uma maior diversidade de formas e de uma precariedade mais desenvolvida88. A promoção da concorrência, por exemplo, não se concilia facilmente com a obrigação de serviços públicos aos quais um grande número de cidadãos e agentes públicos continua ligado. A nova gestão pública contrasta com os princípios da função pública tal como foram estabelecidos na França (primazia do direito público, igualdade de tratamento dos usuários, continuidade do serviço, laicidade e respeito da neutralidade política). A transformação do usuário em consumidor, ao qual convém vender o máximo possível de produtos para aumentar a rentabilidade, não é tão “neutra” como querem fazer parecer os especialistas. Quanto aos procedimentos de avaliação, eles tendem a confundir a medida dos resultados que pode ser feita internamente com os efeitos múltiplos e de longa duração que uma política pode ter sobre a sociedade como um todo.

A importação das lógicas contábeis, provenientes do mundo econômico mercantil, tende não apenas a “desligar” as atividades e seus resultados, como também a despolitizar as relações entre o Estado e os cidadãos. Estes são vistos como compradores de serviços que devem “receber pelo que pagam”. Essa prioridade que se dá à dimensão da eficiência e ao retorno financeiro elimina do espaço público qualquer concepção de justiça que não seja a de equivalência entre o que foi pago individualmente pelo contribuinte e o que foi recebido individualmente por ele.

A desconfiança como princípio e a vigilância avaliativa como método são os traços mais característicos da nova arte de governar os homens. O espírito gerencial que a anima impõe-se em detrimento dos valores hoje desqualificados do serviço público e da dedicação dos agentes a uma causa geral que está acima deles. Na antiga forma de governo, ligada ao ideal de soberania democrática, a autonomia relativa do funcionário público repousava sobre o compromisso de servir a uma causa que se impunha a ele e pela qual ele tinha de respeitar o direito público e os valores profissionais que compunham um “espírito de solidariedade”. Esse compromisso, simbolizado por um estatuto, tinha em troca certa confiança – evidentemente sempre ponderada por uma preocupação com as formas regulamentares – na conduta virtuosa do agente. A partir do momento que o postulado da nova gestão especifica que não pode mais confiar no “indivíduo comum”, intrinsecamente privado de qualquer apego a um “espírito” público e de qualquer adesão a valores que lhe seriam exteriores, a única solução é o controle e o “governo à distância” dos interesses particulares. Quer se trate de equipe hospitalar, juízes ou bombeiros, os motivos e os princípios de sua atividade profissional são concebidos apenas do ângulo dos interesses pessoais e corporativos, negando-se, assim, qualquer dimensão moral e política de seu compromisso com uma profissão que repousa sobre valores próprios, os três “e” da gestão (“eficácia, economia, eficiência”) fizeram desaparecer da lógica do poder as categorias do dever e da consciência profissional. A desconfiança caracteriza ainda a relação entre as instituições públicas e os sujeitos sociais e políticos, que também são vistos como “oportunistas” em busca da máxima vantagem pessoal, sem nenhuma consideração pelo interesse coletivo. A reestruturação neoliberal transforma os cidadãos em consumidores de serviços que nunca têm em vista nada além de sua satisfação egoísta, o que faz que sejam tratados como tais por procedimentos de vigilância, restrição, punição e responsabilização. É isso que leva a “envolver” os doentes, fazendo-os arcar com uma parte maior das despesas médicas, e os estudantes universitários, aumentando as taxas de inscrição. O “governo” das administrações públicas, de autoridades locais, dos hospitais e das escolas por indicadores sintéticos de desempenho, cujos resultados são largamente difundidos pela imprensa local e nacional na forma de ranking, convida o cidadão a basear seu julgamento apenas na relação de custo-benefício. A corrosão da confiança nas “virtudes” cívicas teve, sem dúvida, efeitos performativos sobre a maneira como os novos cidadãos-consumidores enxergam sua contribuição fiscal para os encargos coletivos e o “retorno” que têm individualmente. Eles não são chamados a julgar políticas e instituições do ponto de vista do interesse da comunidade política, mas somente em função de seu interesse pessoal. É a própria definição de sujeito político que é radicalmente alterada.”

88: Para Luc Rouban. “a mutação administrativa dos últimos anos tendeu a restringir não a ação pública, mas os meios públicos de ação governamental. Esse movimento leva ao fim da noção de ‘setor público’, entendido no sentido de que engloba atividades que se beneficiam de um regime jurídico e financeiro que transgride as regras do mercado”. “La réforme de l’appareil d’État”, cit., p, 147.

 

 

“Todavia, cometeríamos um grave erro se nos deixássemos seduzir por esse novo management. Da mesma forma que a filantropia do século XVIII acompanhava a implantação das novas tecnologias de poder com uma música suave, os propósitos humanistas e hedonistas da gestão moderna dos homens acompanham a implantação de técnicas que visam a produzir formas eficazes de sujeição. Estas, por mais novas que sejam, têm a marca da mais inflexível e mais clássica das violências sociais típicas do capitalismo: a tendência a transformar o trabalhador em uma simples mercadoria. A corrosão progressiva dos direitos ligados ao Status de trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas “novas formas de emprego” precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores. Foi esse contexto de medo social que facilitou a implantação da neogestão nas empresas. Nesse sentido, a “naturalização” do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores.

Isso não significa que neogestão não seja novidade e o capitalismo no fundo seja sempre o mesmo. Ao contrário, a grande novidade reside na modelagem que torna os indivíduos aptos a suportar as novas condições que lhe são impostas, enquanto por seu próprio comportamento contribuem para tornar essas condições cada vez mais duras e mais perenes. Em uma palavra, a novidade consiste em promover uma reação em cadeia”, produzindo “sujeitos empreendedores” que, por sua vez, reproduzirão, ampliarão e reforçarão as relações de competição entre eles, o que exigirá, segundo a lógica do processo autorrealizador, que eles se adaptem subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram.”

 

 

“Hoje, todos os indivíduos deveriam ter “renda incerta”, inclusive “patifes e ladrões”. Esse é o teor das estratégias políticas ativamente encorajadas pelo patronato. (...) Laurence Parisot, (membro) do patronato francês, diria de maneira mais direta: “A vida, a saúde e o amor são precários, por que o trabalho escaparia dessa lei?”. Devemos entender por essa declaração que as leis positivas deveriam curvar-se a essa nova “lei natural” da precariedade. Esse discurso dá ao risco uma dimensão ontológica, gêmea do deseja que move cada um de nós. Obedecer ao próprio desejo é correr riscos.

No entanto, se desse ponto de vista “viver na incerteza” aparece como um estado natural, as coisas aparecem com uma feição muito diferente quando são situadas no terreno das práticas efetivas. Quando se fala em “sociedades de risco”, é preciso esclarecer do que se trata. O Estado social tratou sob a forma de seguro social obrigatório alguns riscos profissionais ligados à condição de assalariado. Hoje, a produção e a gestão dos riscos obedecem a uma lógica muito diferente. Trata-se, na realidade, de uma criação social e política de riscos individualizados que podem ser geridos não pelo Estado social, mas por empresas cada vez mais poderosas e numerosas – que propõem serviços estritamente individuais de “gestão de riscos”. O “risco” tornou-se um setor comercial, na medida em que se trata de produzir indivíduos que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda mútua de seus meios de pertencimento e com os mecanismos públicos de solidariedade. Do mesmo modo e ao mesmo tempo que se produz o sujeito de risco, produz-se o sujeito da assistência privada. A maneira como os governos reduzem a cobertura socializada dos gastos com doenças ou aposentadoria, transferindo sua gestão para empresas de seguro privado, fundos comuns e associações mutualistas intimados a funcionar segundo uma lógica individualizada, permite estabelecer que se trata de uma verdadeira estratégia.

Aliás, a nosso ver, é isso que deve ser retido dos trabalhos de Ulrich Beck e da Sociedade de risco. Para ele, o capitalismo avançado destrói a dimensão coletiva da existência: destrói não só as estruturas tradicionais que o precederam, sobretudo a família, mas também as estruturas que ajudou a criar, como as classes sociais. Assistimos a uma individualização radical que faz com que todas as formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a uma responsabilidade individual. A maquinaria instaurada “transforma as causas externas em responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em fracassos pessoais56.”

54: Laurence Parisot em Le Figaro, 30 ago. 2005.

56: Ulrich Beck, La société du risque, trad. Laure Bernardi, Paris, Aubier, 2001, p. 161 e 202 [ed. bras.: Sociedade de risco: rumo a outra modernidade, trad. Sebastião Nascimento, São Paulo, Editora 34, 2010])

 

 

“Tudo indica que a principal mudança introduzida pela avaliação é de ordem subjetiva. Enquanto as novas tecnologias orientadas para a produção da “empresa de si mesmo” pareciam responder a uma aspiração dos assalariados a mais autonomia no trabalho, a tecnologia avaliativa aumenta a dependência em relação à “cadeia administrativa”. Obrigado a realizar “seu” objetivo, o sujeito da avaliação é igualmente constrangido a impor ao outro (subordinado, cliente, paciente ou aluno) as prioridades da empresa. É o atendente dos Correios que tem de aumentar as vendas de determinado “produto”, exatamente do mesmo modo que qualquer consultor financeiro bancário, mas é também o médico que deve ora prescrever “ações” rentáveis, ora liberar leitos o mais rápido possível. Uma das consequências mais seguras é, sem dúvida, que as “transações” ganham cada vez mais espaço em detrimento das “relações”, a instrumentalização do outro ganha importância em detrimento de todos os outros modos possíveis de relação com o outro.”

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