quarta-feira, 27 de março de 2019

A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal (Parte III), de Pierre Dardot e Christian Laval

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-484-1

Tradução: Mariana Echalar

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 416

Sinopse: Ver Parte I



Corrosão da personalidade

Na linha direta das observações de Marcel Mauss sobre o caráter histórico e cultural da pessoa, muitos sociólogos deram ênfase à “liquidez”, à fluidez” ou à “evanescência” das personalidades contemporâneas. Para Richard Sennett, a organização flexível, apresentada às vezes como uma oportunidade para o indivíduo moldar livremente sua vida, na realidade abala o “caráter” e corrói tudo que existe de estável na personalidade: os laços com os outros, os valores e as referências81. O tempo da vida é cada vez menos linear, cada vez menos programável. Sob esse ponto de vista, o sinal mais tangível da nova normatividade é que “em longo prazo não existe”82. O trabalho não oferece mais um quadro estável, uma carreira previsível, um conjunto de relações pessoais sólido. Instabilidade dos “projetos” e das “missões”, variação contínua das “redes de contatos” e das “equipes” – o mundo profissional torna-se uma soma de “transações” pontuais, em vez de relações sociais implicando um mínimo de lealdade e fidelidade. O que tem necessariamente um impacto sobre a vida privada, a organização familiar, a representação de si mesmo: “O capitalismo do curto prazo ameaça corroer o caráter, em particular os traços de caráter que unem os seres humanos uns aos outros e dão a cada indivíduo um sentimento durável de seu eu”83. Em especial, o assalariado não encontra mais apoio na experiência que acumulou durante a sua vida profissional.

Essa tendência a considerar somente as competências imediatamente utilizáveis explica sua rápida obsolescência, como a exclusão dos “seniors” da vida profissional. Ela tem uma relação complexa com a representação da vida como “capital humano” que se preserva através dos tempos. Na realidade, esse capital humano está sujeito ao mesmo risco de desvalorização que o capital técnico, o que acaba afetando profundamente os indivíduos que, com a idade, veem-se confrontados com o sentimento deprimente de sua inutilidade social e econômica. Os princípios práticos são claramente enunciados na pesquisa que Sennett realizou com os assalariados: “A gente tem de começar sempre tudo de novo”, “a gente tem sempre de mostrar nosso valor”, de “começar sempre do zero”. O efeito é múltiplo: uma usura profissional acelerada e um “caos” relacional e psíquico. A nova personalidade? “Um eu maleável, uma colagem de fragmentos em perpétuo devir, sempre aberto à experiência nova”, segundo Sennett84.”

81: Richard Sennett, The Corrosion of Character: The Personal Consequences of Work in the New Capitalism (Nova York, Norton, 1999) [ed. bras.: A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, trad. Marcos Santarrita, 15. ed., Rio de Janeiro, Record, 2010].

82: Ibidem, p. 24.

83: Ibidem, p. 31.

84: Ibidem, p. 189.

 

 

“A corrosão dos laços sociais traduz-se pelo questionamento da generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz parte da reciprocidade social e simbólica nos locais de trabalho. Como a principal qualidade que se espera do indivíduo contemporâneo é a “mobilidade”, a tendência ao desapego, e à indiferença que dele resulta, isso acaba contrariando os esforços para exaltar o “espírito de equipe” e fortalecer a “comunidade da empresa”. Mas essa valorização do teamwork dentro da nova organização do trabalho não tem nada a ver com a constituição de uma solidariedade coletiva: equipes de geometria variável são estritamente operacionais e funcionam em relação a seus membros como uma alavanca para levar a contento os objetivos determinados. Mais amplamente, a ideologia do sucesso do indivíduo “que não deve nada a ninguém”, a ideologia do self-help, destrói o vínculo social, na medida em que este repousa sobre deveres de reciprocidade para com o outro. Como manter juntos sujeitos que não devem nada a ninguém? Provavelmente a desconfiança, ou mesmo o rancor, em relação aos maus pobres, aos preguiçosos, aos velhos dependentes e aos imigrantes, tem um efeito de “cola” social. Mas ela também tem seu reverso, se todos se sentem ameaçados de um dia se tornarem ineficazes e inúteis.

 

 

Depressão generalizada

O homem de fluxos tensos, que vive no ritmo da economia financeira, está sujeito a crashes pessoais87. Para Alain Ehrenberg, o culto do desempenho leva a maioria das pessoas a provar sua insuficiência e conduz a formas depressivas em grande escala. É notório que o diagnóstico de “depressão” se multiplicou por sete de 1979 a 1996, uma verdadeira doença de “fin-de-siècle”, como foi a “neurastenia”88. A depressão é, na verdade, o outro lado do desempenho, uma resposta do sujeito à injunção de se realizar e ser responsável por si mesmo, de se superar cada vez mais na aventura empresarial89. “O indivíduo é confrontado mais com uma patologia da insuficiência do que com uma doença da falta, mais com o universo da disfunção do que com o da lei: o depressivo é um homem em pane”90. O sintoma depressivo já faz parte da normatividade como elemento negativo desta última — o sujeito que não aguenta a concorrência pela qual pode entrar em contato com os outros é um ser fraco, dependente, que se suspeita não estar “à altura do desafio”. O discurso da “realização de si mesmo” e do “sucesso de vida” leva a uma estigmatização dos “fracassados”, dos “perdidos” e dos infelizes, isto é, dos incapazes de aquiescer à norma social de felicidade. O “fracasso social” é visto, em última instância, como uma patologia91.

Quando a empresa se torna uma forma de vida — uma Lebensführung, como diria Max Weber —, a multiplicidade de escolhas que se devem fazer dia a dia, o encorajamento a assumir riscos continuamente, a incitação permanente à capitalização pessoal podem causar com o tempo um “cansaço do si mesmo”. Um universo comercial cada vez mais complexo faz potencialmente de cada ato o resultado de uma coleta de informações e de uma deliberação que tomam tempo e exigem esforço: o sujeito neoliberal deve ser previdente em todos os domínios (seguros de todos os tipos), deve fazer escolhas em tudo como se se tratasse de um investimento ( “fundo de educação”, “fundo de saúde”, “fundo de aposentadoria”), deve optar de forma racional, dentro de uma ampla gama de ofertas comerciais, ao contratar os serviços mais simples (a hora e a data da viagem que fará de trem, forma de encaminhamento de correspondência, seu acesso à internet, seu fornecimento de gás e eletricidade).

O remédio mais propalado para essa “doença da responsabilidade”, essa usura provocada pela escolha permanente, é uma dopagem generalizada. O medicamento faz as vezes da instituição que não apoia mais, não reconhece mais, não protege mais os indivíduos isolados. Vícios diversos e dependências às mídias visuais são alguns desses estados artificiais. O consumo de mercadorias também faria parte dessa medicação social, como suplemento de instituições debilitadas.

Essa sintomatologia depressiva é associada com frequência a uma demanda não satisfeita de reconhecimento dirigida aos empregadores. No entanto, longe de ser ignorada, essa dimensão da dignidade, da autoestima e do reconhecimento é, como vimos, onipresente na retórica gerencial. Sem dúvida, devemos ver essa demanda como tradução de um fenômeno importante: o da relação do sujeito com instituições que não têm mais condições de dotá-lo das identidades e dos ideais que o fariam duvidar menos de seu próprio valor.”

87: Nicole Aubert, Le culte de l'urgence: la société malade du temps (Paris, Flammarion, 2004, Coleção Champs),

88: Ver Philippe Pignarre, Comment la dépression est devenue une épidémie (Paris, La Découverte, 2001).

89: Ver Alain Ehrenberg, La fatigue d'étre soi: dépression et société (Paris, Odile Jacob, 2000).

90: Ibidem, p. 16.

91: Ver as observações de Eva Illouz, Les sentiments du capitalisme, cit.

 

 

“A relação entre gerações, assim como a relação entre sexos, estruturadas e transformadas em narrativas por uma cultura que distribuía os diferentes lugares, tornaram-se vagas, para dizer o mínimo. Nenhum princípio ético, nenhuma proibição parece resistir à exaltação de uma escolha infinita e ilimitada. Posto em estado de “antigravidade simbólica”, o neossujeito é obrigado a fundamentar-se em si mesmo, em nome da livre escolha, para conduzir-se na vida. Essa intimação à escolha permanente, essa solicitação de desejos pretensamente ilimitados, faz do sujeito um joguete flutuante: num dia ele é convidado a trocar de carro; no outro, de parceiro; no outro, de identidade; e no outro, de sexo, ao sabor de suas satisfações e suas insatisfações. Devemos concluir, com isso, que há uma “dessimbolização do mundo”93? Provavelmente seria melhor dizer que a estrutura simbólica é alvo de uma instrumentalização por parte da lógica econômica capitalista. Esse é o sentido que podemos dar ao que que Lacan chamou de “discurso capitalista”. As identificações com cargos, funções, competências próprias da empresa, assim como a identificação com grupos de consumo, sinais e marcas da moda e da publicidade, funcionam como submissões substitutivas em relação aos lugares ocupados na família ou ao status na cidade. A manipulação dessas identificações pelo aparato econômico faz delas “ideais voláteis do eu, em constante remodelação”94. Em outras palavras, a identidade tornou-se um produto consumível. Se, como indicava Lacan, o discurso capitalista consome tudo, e se consome tanto os recursos naturais como o material humano, também consome formas institucionais e simbólicas, como Marx já observava no Manifesto Comunista. Não para fazê-las desaparecer, mas para substituí-las por aquelas que lhe copertencem: as empresas e os mercados95.

Essa instrumentalitação do simbólico pelas instituições econômicas introduz no sujeito não apenas essa “fluidez” dos ideais, mas também uma fantasia de onipotência sobre as coisas e os seres. Pelas palavras-ferramenta à disposição dos indivíduos e de seus interesses, palavras que se confundem com as próprias coisas, eles têm poder sobre tudo. O mundo das interdições e das barreiras – que instituíam a separação dos lugares sexuais e geracionais – foi substituído por um universo da quantidade – o da ciência e da mercadoria. Discurso mercantil e discurso da ciência complementam-se para constituir o que o psicanalista Jean-Pierre Lebrun chama de o “mundo sem limite”96.

Desse modo, o sujeito é constantemente remetido a ele mesmo, levado a oscilar entre as perpétuas tentações da cobiça encorajadas pelas instâncias sociais e as interdições que ele ergue para si, na ausência de uma instância interditora confiável, amparada num ideal social. A formação do sujeito não toma mais os caminhos normativos da família edipiana. O pai muitas vezes não passa de um estranho, desautorizado por não estar antenado à última tendência do mercado ou não ganhar o suficiente.”

93: Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les tétes: sur la nouvelle servitude de l’homme libéréa l ’ére du capitalisme total (Parts, Denoél, 2003), p. 13 [Ed. Bras.: A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2005: “Hoje, a troca mercantil tende a dessimbolizar o mundo”.

94: Ibidem, p. 127

95: Ibidem, p. 137

96: Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite: essai pour une clinique psychanalytique du social (Toulouse, Eres, 1997), p. 122 [ed. bras.: Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social, trad. Sandra Regina Felgueiras, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2004].

 

 

“Nós entramos num universo em que a decepção típica do neurótico, exposto a inadequação da coisa ao desejo, é substituída por uma relação perversa com o objeto baseada na ilusão imaginária do gozo total. Tudo se equivale, tem preço e se negocia. Mas, se tudo parece possível, tudo é duvidoso, tudo é suspeito, porque nada é lei para ninguém. O fato de que tudo é transformado em negócio100 ou a propensão a apologia constante da transgressão como nova norma seriam alguns dos indícios dessa equivalência geral. (...) E isso a fim de criar populações de consumidores ávidos de gozo perfeito, sem limite e viciante” 101. (...) No entanto, quanto mais o ser humano envereda por esse vício em objetos mercantis, mais tende a tornar-se ele próprio um objeto que vale apenas pelo que produz no campo econômico, um objeto que será posto de lado quando tiver perdido a “performance”, quando não tiver mais uso.

Na verdade, a subjetivação neoliberal institui cada vez mais explicitamente uma relação de gozo obrigatório com todo outro indivíduo, uma relação que poderíamos chamar também de relação de objetalização. Nesse caso, não se trata simplesmente de transformar o outro em coisa – segundo um mecanismo de “reificação” ou “coisificação”, para retomarmos um tema recorrente da Escola de Frankfurt –, mas de não poder mais conceder ao outro, nem a si mesmo enquanto outro, nada além de seu valor de gozo, isto é, sua capacidade de “render” um plus. Assim definida, a objetalização apresenta-se sob um triplo registro: os sujeitos, por intermédio das técnicas gerenciais, provam seu ser enquanto “recurso humano” consumido pelas empresas para a produção de lucro; submetidos à norma do desempenho, tomam uns aos outros, na diversidade de suas relações, por objetos que devem ser possuídos, moldados e transformados para melhor alcançar sua própria satisfação; alvo das técnicas de marketing, os sujeitos buscam no consumo das mercadorias um gozo último que se afasta enquanto eles se esfalfam para alcançá-lo.

Essa lógica implacável tem um “custo” subjetivo muito alto. Se o derrotado sofre por suas insuficiências, o vencedor tende a fazer os outros sofrerem como objetos sobre os quais ele assegura seu domínio. Isso não é novidade. Contudo, uma vez instaurado um “mundo sem limite”, a pequena perversão cotidiana – ou, mais exatamente, o que existe de incentivo a perversão na situação de concorrência geral – encontra um campo inédito de expansão. A perversão que se distingue clinicamente pelo consumo de parceiros como objetos que são jogados fora assim que são considerados insuficientes teria se tornado a nova norma das relações sociais102. Dessa forma, o imperativo categórico do desempenho concilia-se com as fantasias de onipotência, com a ilusão socialmente difundida de um gozo total e sem limite.”

100 Sobre os “negócios” como modalidade da relação perversa com o objeto, ver Rolahd Chémama, “Eléments lacaniens pour une psychanalyse au quotidien”, Le Discours Psychanalytique, Paris, Association Freudienne Internationale, 1994, p. 299-308.

101: Charles Melman, L’homme sans gravité, cit., p. 69-70.

102: Ibidem, p. 67.

 

 

“Seguindo o quadro clínico do neossujeito, vemos que a empresa de si mesmo tem dois rostos: o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis e das técnicas de normalização105. Oscilando entre depressão e perversão, o neossujeito é condenado a ser duplo: mestre em desempenhos admiráveis e objeto de gozo descartável.

À luz dessa análise, a apresentação cansativa que se faz repetidamente de um “individualismo hedonista” ou de um “narcisismo de massa” aparece como modo disfarçado de apelar para a restauração das formas tradicionais da autoridade. Ora, é um equívoco considerar o neossujeito à maneira dos conservadores. Ele não é em absoluto o homem do gozo anárquico “que não respeita mais nada”. É um equívoco equivalente e simétrico denunciar apenas a reificação mercantil, a alienação do consumo de massa. Obviamente, a injunção publicitária ao gozo faz parte desse universo de objetos eletivos que, pela estetização-erotização da “coisa” e pela magia da marca, constituem-se em “objetos de desejo” e promessas de gozo. Mas também convém considerar a maneira como esse neossujeito, longe de ser deixado unicamente a seus caprichos, é governado no dispositivo de desempenho/gozo.

Portanto, ver na situação presente das sociedades apenas o gozo sem obstáculos, que é identificado ora com a “interiorização dos valores de mercado, ora com a “expansão ilimitada da democracia”, é esquecer a face sombria da normatividade neoliberal: a vigilância cada vez mais densa do espaço público e privado, a rastreabilidade cada vez mais precisa dos movimentos dos indivíduos na internet, a avaliação cada vez mais minuciosa e mesquinha da atividade dos indivíduos, a ação cada vez mais pregnante dos sistemas conjuntos de informação e publicidade e, talvez sobretudo, as formas cada vez mais insidiosas de autocontrole dos próprios sujeitos. Em resumo, é esquecer o caráter de conjunto do governo dos neossujeitos que articula, pela diversidade de seus vetores, a exposição obscena do gozo, a injunção empresarial do desempenho e da reticulação da vigilância generalizada.

(...) Assim, é inútil lamentar a crise das instituições de enquadramento, como família, escola, organizações sindicais ou políticas, ou chorar a decadência da cultura e do saber ou o declínio da vida democrática. É melhor tentar compreender como todas essas instituições, valores e atividades são hoje incorporados e transformados no dispositivo de desempenho/gozo, em nome de sua necessária “modernização”; é melhor examinar de perto todas as tecnologias de controle e vigilância de indivíduos e populações, sua medicalização, o fichar, o registro de seus comportamentos, inclusive os mais precoces; é melhor analisar como disciplinas médicas e psicológicas se articulam com o discurso econômico e com o discurso sobre segurança pública para reforçar os instrumentos da gestão social. Porque, do dispositivo de governo dos neossujeitos, nada ainda foi definitivamente estabelecido.”

105: Em L’individu incertain (Paris, Hachette, 1996, Coleção Pluriel, p. 18), Ehrenberg observa com razão que o indivíduo conquistador e o indivíduo sofredor são as “duas faces do governo de si”.

 

 

“Portanto, a corrosão progressiva dos direitos sociais do cidadão não afeta apenas a chamada cidadania “social”, ela abre caminho para uma contestação geral dos fundamentos da cidadania como tal, na medida em que a história tornou esses fundamentos solidários uns com os outros. Com isso, ela leva a uma nova fase da história das sociedades ocidentais12.

Sob esse aspecto, é espantoso constatar a que ponto a contestação dos direitos sociais está intimamente ligada à contestação prática dos fundamentos culturais e morais, e não só políticos, das democracias liberais. O cinismo, a mentira, o menosprezo, a aversão à arte e à cultura, o desleixo da linguagem e dos modos, a ignorância, a arrogância do dinheiro e a brutalidade da dominação valem como títulos para governar em nome apenas da “eficácia”. Quando o desempenho é o único critério de uma política, que importância tem o respeito à consciência e à liberdade de pensamento e expressão? Que importância tem o respeito às formas legais e aos procedimentos democráticos? A nova racionalidade promove seus próprios critérios de validação, que não têm mais nada a ver com os princípios morais e jurídicos da democracia liberal. Sendo uma racionalidade estritamente gerencial, vê as leis e as normas simplesmente como instrumentos cujo valor relativo depende exclusivamente da realização dos objetivos. Nesse sentido, não estamos lidando com um simples “desencantamento democrático” passageiro, mas com uma mutação muito mais radical, cuja extensão é revelada, a sua maneira, pela dessimbolização que afeta a política.”

12: Fase que Crouch propós denominar “pós-democracia”. Ver Colin Crouch, Post-Democracy (Cambridge, Polity Press, 2004).

 

 

“Prognosticar o advento iminente de um “capitalismo bom”, com normas de funcionamento saneadas, ancorado duradouramente na “economia real”, que respeita o meio ambiente, preocupa-se com as necessidades das populações e – por que não? – zela pelo bem comum da humanidade, isso é, com toda a certeza, se não uma história edificante, ao menos uma ilusão tão nociva quanto a utopia de um mercado autorregulador.”

 

 

“Nada é menos arbitrário do que a verdade.”

 

 

“À subjetivação-sujeição constituída pela ultrassubjetivação, devemos opor uma subjetivação pelas contracondutas; à governamentalidade neoliberal como maneira específica de conduzir a conduta dos outros, devemos opor, portanto, uma dupla recusa não menos específica: a recusa de se conduzir em relação a si mesmo como uma empresa de si e a recusa de se conduzir em relação aos outros de acordo com a norma da concorrência. Nisso, essa dupla recusa não está ligada a uma “desobediência passiva”61. Porque, se é verdade que a relação consigo da empresa de si determina imediata e diretamente certo tipo de relação com os outros (a concorrência generalizada), inversamente a recusa de funcionar como uma empresa de si, que é distanciamento de si mesmo e recusa do total autoengajamento na corrida ao bom desempenho, na prática só pode valer se forem estabelecidas, com relação aos outros, relações de cooperação, compartilhamento e comunhão. De fato, que sentido teria um distanciamento de si mesmo que não tivesse nenhuma ligação com a prática cooperativa? Na pior das hipóteses, o de um cinismo misturado ao desprezo pelos trouxas; na melhor, o de uma simulação ou um jogo duplo, talvez ditado por uma preocupação plenamente justificada de preservação pessoal, porém extenuante em longo prazo para o sujeito; seguramente, não o de uma contra-conduta. Sobretudo porque esse jogo poderia levar o sujeito a refugiar-se – na falta de coisa melhor – numa identidade de compensação, que ao menos tem a vantagem de certa estabilidade, contraste com o imperativo de superação infinita de si mesmo. Ora, a fixação da identidade, seja de que natureza for, longe de ameaçar a ordem neoliberal, aparece, ao contrário, como bater em retirada para os sujeitos cansados de si mesmos, para todos os que abandonaram a corrida ou foram excluídos dela logo de saída; pior, ela reproduz a lógica da concorrência no nível das relações entre as pequenas “comunidades”. Longe de valer por si mesma, independentemente de qualquer articulação com a política, a subjetivação individual está ligada no mais profundo de si mesma à subjetivação coletiva. Pura estetização da ética é, nesse sentido, pura e simples renúncia a uma verdadeira atitude ética. A invenção de novas formas de vida somente pode ser uma invenção coletiva, devida à multiplicação e intensificação das contracondutas de cooperação.”

61: Atitude que seria como o puro negativo da “obediência passiva” aos poderes estabelecidos preconizada por Berkeley (De l’obéissance passive, Paris, Vrin, 1983).

 

 

“A genealogia do neoliberalismo que ensaiamos nesta obra ensina que a nova razão do mundo não é um destino necessário que subjuga a humanidade. Ao contrário da Razão hegeliana, ela não é a razão da história humana; ela é, de ponta a ponta, histórica, isto é, relativa a condições estritamente singulares que nada permite que sejam pensadas como insuperáveis. O fundamental é compreender que nada pode nos eximir da tarefa de promover outra racionalidade. É por isso que a crença de que a crise financeira anuncia por si só o fim do capitalismo neoliberal é a pior das crenças. Talvez agrade aos que pensam ver a realidade antecipar-se a seus desejos sem que precisem mexer um único dedo. Seguramente conforta os que encontram motivo nisso para congratular-se por sua “clarividência” passada. No fundo, é a forma menos aceitável de renúncia intelectual e política. O capitalismo neoliberal não cairá como uma “fruta madura” por suas contradições internas, e os traders não serão a contragosto os “coveiros” inopinados desse capitalismo. Marx já dizia com força: “A história não faz nada63. Existem apenas homens que agem em condições dadas e, por sua ação, tentam abrir um futuro para eles. Cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado. Ele pode sustentar-se num governo de si mesmo que leva a outras relações com os outros, além daquelas da concorrência entre “atores autoempreendedores”. As práticas de “comunização” do saber, de assistência mútua, de trabalho cooperativo podem indicar os traços de outra razão do mundo. Não saberíamos designar melhor essa razão alternativa senão pela razão do comum.”

63: Karl Marx, OEuvres III (Paris, Gallimard, 1982, coleção La Pléiade), p. 526.

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