Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-8285-046-6
Tradução: Paulo Geiger
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 222
Sinopse: O
indivíduo deve ser livre para direcionar sua vida como preferir em tudo aquilo
que não cause dano a terceiros. Homens e mulheres devem viver em igualdade.
Essas proposições estão no cerne de Sobre
a liberdade e A
sujeição das mulheres. Mill enxergava três fontes de despotismo à sua
volta: o Estado, o costume e a opinião pública. Graças a elas, os indivíduos
passavam a vida numa existência atrofiada, sem experimentar seu verdadeiro
potencial. Contra essa diluição dos indivíduos, Mill elaborou sua defesa da
liberdade. Quanto às mulheres, Mill exige a plena igualdade legal – numa época
em que elas sequer podiam votar – e defende que os homens se desvencilhem de
antigos preconceitos. Essas obras poderosas convidam ao exercício de uma ética
da liberdade e buscam a compreensão de hábitos e opiniões diferentes dos
nossos. Trata-se de pilar fundamental em tempos de intolerância e fanatismo
como os de hoje.
“O “povo” que exerce o poder nem sempre
coincide com as pessoas sobre o qual ele é exercido, e o “autogoverno” de que
se fala não é o governo de cada um por si mesmo, mas de cada um por todos os
outros. A vontade do povo, além disso, quer dizer na prática a vontade da mais
numerosa ou mais ativa parte do povo; a maioria, ou aqueles que
conseguem se fazer aceitos como a maioria; o povo, consequentemente, pode
desejar oprimir uma parte de si mesmo; e contra isso são necessárias muitas
precauções, assim como qualquer outro abuso de poder. Portanto, as limitações
do poder do governo sobre os indivíduos não perdem nada de sua importância
quando os detentores desse poder têm de prestar regularmente contas à
comunidade, isto é, à sua facção mais forte. Essa maneira de ver, que se impõe
igualmente à inteligência dos pensadores e à inclinação das classes importantes
da sociedade europeia para cujos interesses reais ou supostos a democracia é
adversa, não teve dificuldade em se estabelecer; e nas especulações políticas “a
tirania da maioria” é agora geralmente incluída entre os males contra os quais
se requer que a sociedade se ponha em guarda.”
“Tudo que faz a existência ser valiosa para
qualquer pessoa depende da imposição de limites às ações de outras pessoas.
Algumas regras de comportamento, portanto, devem ser impostas, em primeiro
lugar em forma de lei, e em forma de opinião em muitas coisas que não
constituem matéria suscetível à ação da lei. Quais devem ser essas regras é a
principal questão entre os assuntos humanos; mas, se excetuamos alguns dos
casos mais óbvios, este é um daqueles em que houve menos progresso em sua
resolução.”
“O princípio prático que as orienta em suas
opiniões sobre a regulação da conduta humana é a percepção na mente de cada um
de que todos são requeridos a agir da maneira que ela, e aqueles com quem ela
simpatiza, gostariam que agisse. Ninguém, na verdade, admite para si mesmo que
seu padrão de julgamento é de seu próprio agrado; mas uma opinião em questões
de comportamento que não é sustentada pela razão só pode contar como
preferência de uma pessoa; e, quando as razões, na medida que oferecidas, são
mera alegação de uma preferência semelhante por parte de outras pessoas, ainda
será somente aquilo que agrada a muitas pessoas em lugar de a uma só. Para um
homem comum, no entanto, com tal apoio, sua própria preferência não é apenas
uma razão perfeitamente satisfatória, mas a única que em geral ele tem quanto a
suas noções de moralidade, gosto ou propriedade que não estejam registradas por
escrito em seu credo religioso, e é seu guia principal na interpretação até
mesmo deste último. De acordo com isso, as opiniões dos homens sobre o que é
louvável ou censurável são afetadas por todas as multíplices causas que
influenciam o que querem em relação ao comportamento dos outros, e são tão
numerosas quanto as que determinam o que eles querem em relação a qualquer
outra questão. Algumas vezes, sua razão, outras vezes seus preconceitos e
superstições; frequentemente suas disposições sociais, não raro as
antissociais, sua inveja ou ciúme, sua arrogância ou insolência; porém mais
comumente seus desejos ou temores por si mesmos — seu legítimo ou ilegítimo
interesse próprio. Onde quer que haja uma classe em ascensão, grande parte da
moralidade do país emana de seus interesses de classe e do sentimento de
superioridade dessa classe. A moralidade entre espartanos e hilotas, entre proprietários
de terras e negros, entre príncipes e súditos, entre nobres e roturiers*, entre homens e mulheres, tem sido
em sua maior parte criação desses interesses e sentimentos de classe; e os
sentimentos assim criados reagem, por sua vez, aos sentimentos morais dos
membros da classe ascendente, em suas relações entre si. Por outro lado, onde
uma classe, antes ascendente, perdeu essa ascendência, ou onde sua ascendência
é impopular, os sentimentos morais prevalentes muitas vezes carregam uma
impressão de desdém impaciente com ares de superioridade. Outro grande e
determinante princípio das regras de conduta, tanto na ação como na omissão,
imposto pela lei ou pela opinião, tem sido o servilismo do gênero humano ante
as supostas preferências ou rejeição de seus senhores seculares, ou de seus
deuses. Esse servilismo, conquanto que essencialmente egoísta, não é
hipocrisia; suscita sentimentos perfeitamente genuínos de repulsa; fez com que
homens queimassem feiticeiros e hereges. Entre tantas influências mais mesquinhas,
os interesses gerais e óbvios da sociedade tiveram, é claro, um viés, e muito
grande, na direção dos sentimentos morais; menos, contudo, como uma questão da
razão, e por sua própria conta, do que como consequência das simpatias e
antipatias que deles surgiram e cresceram: e simpatias e antipatias que tinham
pouco ou nada a ver com os interesses da sociedade se fizeram sentir com uma
força considerável no estabelecimento das moralidades.
Os gostos e desgostos da sociedade, ou de
alguma parte poderosa dela, constituem assim o principal fator que praticamente
determinou as regras estabelecidas para a observância geral, sujeitas às
penalidades da lei e da opinião. E, em geral, aqueles que estiveram na
vanguarda da sociedade no pensamento e na percepção deixaram esse estado de
coisas em princípio inalterado, por mais que possam ter entrado em conflito com
ele em alguns de seus detalhes. Eles se ocuparam mais em inquirir de que coisas
a sociedade deveria gostar ou desgostar do que em questionar se seus agrados e
desagrados deveriam se constituir em lei sobre os indivíduos. Preferiram se
empenhar em alterar os sentimentos dos homens nos pontos específicos nos quais
eram heréticos do que em criar uma causa comum em defesa da liberdade,
geralmente com os heréticos. O único caso no qual o nível mais elevado foi
tomado como princípio e mantido com consistência por mais do que um indivíduo
isolado aqui e ali foi o da crença religiosa: é um caso instrutivo de muitas
maneiras, não menos instrutiva aquela que forma uma chocante visão da
falibilidade disso que se chama senso moral: porque o odium theologicum** de um fanático sincero é um dos
casos mais inequívocos de sentimento moral. Aqueles que primeiro romperam o
jugo daquela que se intitulou igreja universal geralmente tinham tão pouca
vontade de permitir diferenças de opinião religiosa quanto a própria Igreja.
Mas, quando o calor do conflito tinha passado, sem uma vitória completa de
qualquer dos lados, e cada igreja ou seita foi reduzida a limitar suas
esperanças e a se satisfazer em manter a posse do terreno que já ocupavam, as
minorias, ao constatar que não tinham chance de se tornar maiorias, viram-se
obrigadas a pedir àqueles que não tinham conseguido converter permissão para
divergir. É em função desse campo de batalha, e quase que somente dele, que os
direitos do indivíduo contra a sociedade foram assegurados em amplos
fundamentos de princípio, e o pleito da sociedade de exercer autoridade sobre
as dissensões, abertamente contrariado. Os grandes escritores aos quais o mundo
deve o tanto de liberdade religiosa de que usufrui asseguraram a liberdade de
consciência como um direito praticamente irrevogável e contestaram em termos
absolutos que um ser humano tenha de prestar contas a outros por sua crença
religiosa. No entanto, para a humanidade é tão natural a intolerância para com
qualquer coisa com que realmente se importe que a liberdade religiosa na
prática quase não foi implementada onde quer que seja, exceto onde a
indiferença religiosa, que não gosta de ver sua tranquilidade perturbada por
disputas teológicas, acrescentou seu peso à balança. Nas mentes de quase todas
as pessoas religiosas, mesmo nos países mais tolerantes, o dever da tolerância
é admitido com tácitas reservas. Uma pessoa pode estar disposta a tolerar
controvérsias em questões de governo da Igreja, mas não do dogma; outra pode
tolerar qualquer um, exceto um papista ou um unitarista; outra, qualquer um que
acredite numa religião criada por revelação divina; alguns estendem sua
caridade um pouco além, mas se detêm na crença em Deus e na imortalidade da
alma. Onde o sentimento da maioria ainda é genuíno e intenso, nota-se que pouco
reduziu seu pleito de ser obedecido.”
*: Plebeus, campônios.
**: Em latim, “ódio religioso”.
“O objetivo deste ensaio é asseverar um
princípio muito simples, destinado a condicionar totalmente os tratos da
sociedade com o indivíduo, sejam de compulsão e controle, seja por meio da
força física na forma de penalidades legais, seja como coerção moral por parte
da opinião pública. Esse princípio é o de que a única finalidade para a qual a
humanidade está autorizada, individual ou coletivamente, a interferir na
liberdade de ação de qualquer de seus membros é a autoproteção. Que o único
propósito para o qual o poder pode ser exercido com justiça sobre qualquer
membro da comunidade civilizada, contra sua vontade, é o de evitar dano a
outros. A finalidade de seu próprio bem, físico ou moral, não é suficiente para
conferir essa autorização. Ele não pode, sem que se cometa injustiça, ser
compelido a fazer ou abster-se de fazer algo porque será melhor para seu
próprio interesse agir assim, porque isso o fará mais feliz, porque, na opinião
de outros, seria uma ação sábia, ou mesmo justa. Essas são boas razões para
repreendê-lo, ou para ponderar com ele, ou para persuadi-lo, ou para
suplicar-lhe, mas não para forçá-lo, ou castigá-lo com algo ruim caso aja de
outro modo. Para justificar isso, o comportamento que se deseja evitar que ele
tenha deve, na medida em que se possa calcular, causar algum mal a outra
pessoa. O único aspecto do comportamento pelo qual ele é obrigado a fazer
concessões à sociedade é o que diz respeito a outras pessoas. No aspecto que
diz respeito apenas a si mesmo, sua independência é, por direito, absoluta.
Sobre si mesmo, seu próprio corpo e sua mente, o indivíduo é soberano.
Talvez nem seja necessário dizer que se tem
essa doutrina como aplicável somente a seres humanos plenamente maduros em suas
faculdades. Não estamos falando de crianças, ou de jovens com idade inferior à
fixada por lei para se considerar adulto um homem ou uma mulher. Aqueles que
ainda estão num estágio de desenvolvimento em que se requer que sejam cuidados
por outros devem ser protegidos contra suas próprias ações, assim como de danos
causados por fatores externos. Pela mesma razão, não devemos levar em conta
esses estágios atrasados da sociedade nos quais a raça humana pode ser
considerada como em seus primórdios. As primeiras dificuldades no caminho de um
progresso espontâneo são tão grandes que raramente tem-se a opção de meios para
superá-las; e um governante comprometido com a melhora da sociedade fica
autorizado ao uso de quaisquer expedientes que o levem a atingir esse objetivo,
de outra maneira talvez inatingível. O despotismo é um modo legítimo de
governar quando se tem de tratar com bárbaros, desde que visando a seu
aprimoramento, e que os meios se justifiquem por efetivamente levarem a esse
fim. A liberdade, como princípio, não se aplica a nenhum estado de coisas
anterior ao tempo em que a humanidade se tornou capaz de ser aprimorada através
de um debate livre e igualitário. Até então, nada restava para os homens além
de, implicitamente, prestar obediência a um Akbar ou um Carlos Magno, se
tivessem a sorte de encontrarem algum. Mas, assim que a humanidade adquiriu a
capacidade de ser conduzida ao seu próprio aprimoramento por meio de
convencimento e persuasão (um longo período até ser alcançado por todas as
nações que aqui devemos considerar), a coação, seja na forma direta, seja na de
penas e punições por desobediência, não é mais admissível como meio de obter
seu próprio bem, e só é justificável para a segurança dos outros.”
“Há uma esfera de ação na qual a sociedade,
ao contrário do indivíduo, só tem interesse indireto, se é que tem algum; ela
abrange toda a parte da vida e do comportamento de uma pessoa que afeta somente
a si mesma, ou, se também afetar outras pessoas, será somente com seu livre,
espontâneo e inequívoco consentimento e participação. Quando eu digo “somente a
si mesma” estou querendo dizer “diretamente a si mesma”, e em primeira
instância; pois tudo que a afeta pode afetar outros por intermédio dela; e a
objeção que possa se fundamentar em tal contingência será considerada mais
adiante. Este é, portanto, o âmbito apropriado da liberdade humana. Compreende,
em primeiro lugar, o domínio interior da consciência; exigindo liberdade de
consciência em seu sentido mais abrangente; liberdade de pensamento e de
sentimento; liberdade absoluta de opinião e de sentimento em relação a todas as
questões, práticas ou especulativas, científicas, morais ou teológicas. Pode
parecer que a liberdade de expressar e tornar públicas opiniões enquadra-se sob
um princípio diferente, uma vez que pertence à parte do comportamento
individual que diz respeito a outras pessoas; mas, tendo quase a mesma
importância que a própria liberdade de pensamento, e se apoiando em grande
parte nas mesmas razões, é praticamente inseparável desta. Em segundo lugar,
este princípio requer liberdade de gostos e de propósitos; de configurar o
plano de nossa vida de modo a se adequar a nosso próprio caráter; de fazer o
que queremos fazer, sujeitando-nos às consequências que se possam seguir: e sem
o impedimento de nossos semelhantes, enquanto o que fazemos não os prejudicar,
mesmo que considerem nosso comportamento tolo, perverso ou errado. Em terceiro
lugar, dessa liberdade de cada indivíduo advém a liberdade, dentro dos mesmos
limites, de combinação entre os indivíduos; liberdade de se unirem para
qualquer propósito que não acarrete dano a outros; desde que as pessoas que
fazem tal combinação sejam adultas, e não estejam sendo forçadas nem enganadas.
Nenhuma sociedade na qual essas liberdades
não sejam respeitadas em seu todo será livre, qualquer que seja sua forma de
governo; e não será completamente livre nenhuma sociedade na qual elas não
existam de maneira absoluta e irrestrita. A única liberdade que faz jus a esse
nome é a de perseguir nosso próprio bem ao nosso próprio modo, sem tentar
privar os outros do seu, ou impedir seus esforços para obtê-lo. Cada um é o
guardião apropriado de sua própria saúde, seja corporal, seja mental ou
espiritual. A humanidade terá mais a ganhar com mútua tolerância para que cada
um viva de acordo com o que lhe parece melhor para si mesmo do que impondo a
cada um que viva como parece melhor a todos os outros.”
“Nunca podemos ter certeza de que a opinião
que tentamos reprimir é falsa; mesmo que tivéssemos certeza, reprimi-la seria
um mal mesmo assim.”
“Nunca é demais lembrar à humanidade que
existiu uma vez um homem chamado Sócrates, e que entre ele e as autoridades
legais e a opinião pública de seu tempo houve uma colisão memorável. Nascido
numa época e num país em que abundava a grandeza individual, esse homem nos foi
apresentado por aqueles que melhor o conheciam, e a sua época, como o mais
virtuoso dos homens que nela viveu; enquanto nós o conhecemos como o
líder e o protótipo de todos os subsequentes mestres de virtude, a fonte tanto
da majestosa inspiração de Platão como do utilitarismo judicioso de
Aristóteles, “I maëstri di color che sanno”*, os dois principais
mananciais da ética e de todas as outras filosofias. Esse reconhecido mestre de
todos os pensadores eminentes que viveram desde então — cuja fama, ainda
crescendo depois de mais de 2 mil anos, se sobrepõe a de todos os outros nomes
que fazem tão ilustre sua cidade natal — foi levado à morte por seus
compatriotas, após uma condenação judicial por impiedade e imoralidade.
Impiedade, por negar os deuses reconhecidos pelo estado; de fato, seu acusador
afirmou (ver a Apologia)**
que ele não acreditava em nenhum deus. Imoralidade, por ser, com suas doutrinas
e ensinamentos, um “corruptor da juventude”. Há todo fundamento para crer que
foi dessas acusações que o tribunal honestamente o considerou culpado, e
condenou o homem que, provavelmente de todos os nascidos então, merecia o
melhor que a humanidade pudesse oferecer em vez morrer como um criminoso.
Passando desta para outra única instância de
iniquidade judicial cuja menção, após a da condenação de Sócrates, não seria um
anticlímax: o evento que teve lugar no Calvário há mais de 1800 anos. O homem
que deixou na memória dos que testemunharam sua vida e seu discurso uma tal
impressão de grandeza que os dezoito séculos subsequentes o celebraram como o
Todo-Poderoso em pessoa foi ignominiosamente levado à morte como o quê? Como um
blasfemo. Os homens não somente se enganaram com seu benfeitor; eles o
confundiram com exatamente o contrário do que era, e o trataram como sendo esse
prodígio de impiedade em que eles mesmos são tidos pela maneira como o
trataram. Os sentimentos com que a humanidade hoje encara essas lamentáveis
transações, em especial a segunda, a torna extremamente injusta em seu juízo
sobre seus infelizes atores. Estes não foram, para todos os efeitos, homens
ruins — não piores do que os homens comumente são, pelo contrário: eram homens
que possuíam em medida total, ou algo mais do que em medida total, os
sentimentos religiosos, morais e patrióticos de seu tempo e sua gente;
exatamente o tipo de homens que, em todos os tempos, inclusive o nosso, têm
todas as chances de passar pela vida respeitados e sem serem acusados de nada.
O sumo sacerdote*** que rasgou suas vestimentas quando foram pronunciadas as
palavras que, de acordo com todas as ideias do país, se constituíam na mais
negra das culpas, estava sendo muito provavelmente tão sincero em seu horror e
sua indignação quanto a generalidade dos homens respeitáveis e pios é hoje nos
sentimentos morais e religiosos que professa; e em sua maioria aqueles que
agora estremecem ante o comportamento dele, se tivessem vivido em seu tempo e
nascido judeus, teriam agido exatamente como ele. Cristãos ortodoxos que são
tentados a pensar que aqueles que apedrejaram até a morte os primeiros mártires
devem ter sido piores do que eles devem se lembrar que um desses perseguidores
foi são Paulo****.
Acrescentemos mais um exemplo, o mais
eloquente de todos, se for medida a magnitude de um erro pela medida da
sabedoria e de virtude que nele incide. Se alguma vez alguém que detinha o
poder teve fundamentos para se imaginar o melhor e mais ilustrado entre seus
contemporâneos, esse alguém foi o imperador Marco Aurélio. Monarca absoluto de
todo o mundo civilizado, ele preservou ao longo de toda a sua vida não somente
a mais impoluta justiça, mas, o que era menos de se esperar de sua criação
estoica, o mais terno dos corações. As poucas falhas que atribuímos a ele foram
todas relacionadas a sua indulgência — seus escritos, o mais elevado produto
ético da mentalidade antiga, diferem de forma quase imperceptível, se é que
diferem, dos mais característicos ensinamentos de Cristo. Esse homem que em
tudo, menos na percepção dogmática do mundo, era um cristão melhor do que quase
todos os soberanos ostensivamente cristãos, perseguiu o cristianismo. Situado
no topo de todas as conquistas anteriores da humanidade, com uma mentalidade
aberta, não acorrentada, e um caráter que o levou, por si mesmo, a personificar
em seus escritos morais o ideal cristão, ainda assim ele não conseguiu ver que
o cristianismo, com seus deveres, nos quais ele estava tão profundamente
envolvido, era para ser um bem e não um mal para o mundo. Ele sabia que a
sociedade existente se achava num estado deplorável. Mas de acordo com o que
ele via, ou pensava que via, o que a mantinha e evitava que se tornasse pior
era a crença e a reverência às divindades aceitas. Como um governante da
humanidade, ele considerou seu dever não permitir que a sociedade se
fragmentasse; e não via como, se fossem removidos os laços existentes, poderiam
se formar quaisquer outros que de novo a manteriam unida. A nova religião
visava abertamente a desfazer esses laços; a menos, portanto, que fosse seu
dever adotar essa religião, parecia seu dever subjugá-la. Assim, visto que a
teologia do cristianismo não lhe parecia ser verdadeira ou de origem divina;
visto que essa estranha história de um Deus crucificado não era para ele
crível, e um sistema que parecia repousar sobre um fundamento em sua opinião
totalmente inacreditável não poderia ser visto por ele como aquele agente
renovador que, depois de todos os descontos, de fato mostrou que era; o mais
gentil e mais amável dos filósofos e governantes, movido por um solene senso de
dever, autorizou a perseguição ao cristianismo. Em meu entendimento, trata-se
de um dos mais trágicos fatos de toda a história. É um pensamento amargo, o de
quão diferente o cristianismo do mundo poderia ter sido se a fé cristã tivesse
sido adotada como religião do império sob os auspícios de Marco Aurélio e não
os de Constantino. Mas seria igualmente injusto e não corresponderia à verdade
negar que nenhum argumento que possa ser invocado para punir ensinamentos
anticristãos foi invocado por Marco Aurélio para punir, como ele o fez, a
propagação do cristianismo. Nenhum cristão acreditava que o ateísmo fosse
falso, e tendesse à dissolução da sociedade, mais do que Marco Aurélio
acreditava nas mesmas coisas, só que em relação ao cristianismo — ele que, de
todos os homens então viventes, deveria ser o mais apto a apreciá-lo. A menos
que alguém que aprove a punição pela promulgação de opiniões possa se orgulhar
de ser um homem mais sábio e melhor do que Marco Aurélio — mais profundamente
versado na sabedoria de seu tempo, mais sério em sua busca pela verdade, ou
mais coerente em sua devoção a ela uma vez encontrada —, então que se abstenha
de tal suposição de uma infalibilidade conjunta, dele mesmo e da multidão, que
o grande Marco Aurélio Antonino assumiu com tão desafortunada consequência.”
*: “Os mestres daqueles que sabem”, cf.
Dante, Inferno, Canto IV, l. 131.
**: Platão, Apologia,
24b-c; o acusador foi Meleto.
***: Caifás, ver Mateus
26:65.
****: Ver Atos
dos Apóstolos 7:58-8:84
“Na verdade, o dito segundo o qual a verdade
sempre triunfa sobre a perseguição que lhe fazem é uma dessas prazerosas
falsidades que os homens repetem uma atrás da outra até serem consideradas
lugares-comuns, mas que toda experiência refuta. A história está cheia de
ocorrências nas quais a verdade é derrubada pela perseguição. Se não é
suprimida para sempre, pode ser rechaçada por séculos. Para falar apenas de
opiniões religiosas: a Reforma surgiu pelo menos vinte vezes antes de Lutero, e
foi rechaçada. Arnaldo de Bréscia foi rechaçado. Frei Dolcino foi rechaçado.
Savonarola foi rechaçado. Os albigenses foram rechaçados. Os valdenses foram
rechaçados. Os lollardistas foram rechaçados. Os hussitas foram rechaçados.
Mesmo após a época de Lutero, qualquer perseguição empreendida tinha sucesso.
Na Espanha, na Itália, em Flandres, no Império Austríaco, o protestantismo foi
erradicado — e, muito provavelmente, também seria na Inglaterra, se Maria da
Escócia sobrevivesse, ou a rainha Elizabeth morresse. A perseguição sempre teve
sucesso, salvo quando os heréticos eram um partido forte demais para serem
efetivamente perseguidos. Nenhuma pessoa razoável pode duvidar de que o
cristianismo poderia ter sido extirpado no Império Romano. Ele se espalhou, e
se tornou predominante, porque as perseguições eram só ocasionais, duravam
pouco tempo e foram separadas por longos intervalos de uma propaganda quase não
contestada. É coisa de vão e antiquado sentimentalismo crer que a verdade,
meramente como verdade, tenha qualquer poder inerente de proteção contra o
erro, ou que prevaleça sobre a masmorra e a estaca. Os homens não são mais
zelosos pela verdade do que frequentemente são pelo erro, e uma aplicação suficiente
de penalidades legais, ou até mesmo sociais, em geral vai conseguir deter a
propagação de ambos. A real vantagem que tem a verdade consiste em que, quando
uma opinião é verdadeira, ela pode ser extinta uma, duas ou muitas vezes, mas
no decorrer dos tempos em geral se encontrará quem a redescubra, até que uma de
suas reaparições ocorra numa época em que, devido a circunstâncias favoráveis,
ela escapa de ser perseguida até se firmar de modo a resistir a todas as
subsequentes tentativas de suprimi-la.”
“Na época atual, a superfície tranquila da
rotina é frequentemente agitada por tentativas tanto de ressuscitar males do
passado quanto de introduzir novos benefícios. O que se apregoa como um grande
benefício do presente, a revivescência da religião, é sempre, nas mentes
estreitas e não instruídas, e pelo menos na mesma intensidade, a revivescência
da intolerância; e onde existe o forte e permanente fermento da intolerância
nos sentimentos das pessoas, que sempre subsiste nas classes médias deste país,
é preciso muito pouco para incitá-las a perseguir ativamente aqueles que nunca
deixaram de considerar objetos merecedores de perseguição. Porque é isto — é a
opinião que as pessoas abrigam e os sentimentos que acalentam a respeito
daqueles que não têm as crenças que consideram importantes — que faz com que
este país não seja um lugar de liberdade das mentes.”
“Aqueles para quem essa reticência por parte
de heréticos não é um mal deveriam considerar, em primeiro lugar, que em
consequência disso nunca há um debate imparcial e meticuloso das opiniões
heréticas; e que aqueles entre eles que não poderiam sustentar tal debate,
embora possam ser impedidos de se espalharem, não desaparecem. Mas não são as
mentes dos heréticos que estão mais deterioradas, e sim a proibição imposta a
toda inquirição que não termine com as conclusões ortodoxas. O maior dano é o
que atinge aqueles que não são heréticos e a quem todo o desenvolvimento mental
é restringido com o raciocínio subjugado pelo medo da heresia. Quem pode
calcular o que o mundo perde na multidão de intelectos promissores combinados
com temperamentos tímidos, que não ousam acompanhar nenhum curso de pensamento
atrevido, vigoroso, independente, por medo de que poderia levá-los a algo que
se admitiria ser considerado irreligioso ou imoral? Entre eles podemos,
ocasionalmente, ver algum homem de profunda consciência, de entendimento sutil
e refinado, que passa uma vida inteira sofismando com um intelecto que não pode
ser silenciado, e exaurindo todos os recursos da engenhosidade na tentativa de
reconciliar as manifestações de sua consciência e de sua razão com a ortodoxia,
coisa que talvez ainda não tenha conseguido levar a bom termo. Ninguém pode ser
um grande pensador se não reconhecer que, como pensador, é seu dever primeiro
ser fiel a seu intelecto, quaisquer que sejam as conclusões às quais possa
levá-lo. A verdade ganha mais até com os erros de alguém que, com o estudo e o
preparo necessários, pensa por si mesmo, do que com a verdade de opinião
daqueles que só a mantêm porque não se dão ao trabalho de pensar. Não que seja
somente, ou principalmente, para formar grandes pensadores que se requer a
liberdade de pensar. Pelo contrário, ela é tão ou até mais indispensável para
permitir a seres humanos medianos que atinjam a estatura mental que sejam
capazes de atingir. Já houve, e pode haver novamente, grandes pensadores individuais
num ambiente geral de escravidão mental. Mas nunca houve, nem haverá jamais, em
tal ambiente, um povo intelectualmente ativo. Quando algum povo se aproximou
temporariamente desse caráter, isso aconteceu porque o temor que a especulação
heterodoxa inspirava foi interrompido por algum tempo. Quando existe uma
convenção tácita de que princípios não devem ser discutidos, onde o debate
sobre as maiores questões que dizem respeito à humanidade é considerado
encerrado, não podemos esperar encontrar esse nível de atividade mental
geralmente alto que fez serem tão notáveis alguns períodos da história. Sempre
que a controvérsia não evitou que grandes e importantes temas fossem
suficientes para despertar entusiasmo, a mentalidade do povo foi sacudida em
suas bases, ou foi dado o impulso que eleva até mesmo as pessoas de intelecto
mais comum a terem algo da dignidade dos seres pensantes.”
“O segundo maior orador da Antiguidade,
Demóstenes, deixou registrado que sempre estudava a argumentação do adversário
com a mesma intensidade, se não maior, com que estudava a sua própria. O que
Cícero adotava como meio de obter sucesso forense devia ser imitado por todos
que estudam qualquer assunto com a intenção de chegar à verdade. Aquele que
conhece apenas o seu lado do caso sabe pouco sobre ele. Seus argumentos podem
ser bons, e pode ser que ninguém tenha sido capaz de refutá-los. Mas, se ele
for igualmente incapaz de refutar os argumentos do lado contrário, se da mesma
forma ignorar em que consistem, não terá fundamento para optar por qualquer das
opiniões. A posição racional para ele seria a da suspensão do julgamento e, a
menos que se satisfaça com isso, estará ou sendo conduzido pela autoridade ou
adotando, como é prática generalizada no mundo, o lado para o qual sente mais
inclinação. Nem será suficiente que ele ouça os argumentos dos adversários da
boca de seus próprios mestres, apresentados segundo a interpretação deles, e
acompanhados pelas refutações que têm a oferecer. Essa não é a maneira de fazer
justiça aos argumentos, ou de trazê-los para um contato real com a própria
mente. Ele precisa poder ouvi-los de pessoas que realmente acreditam neles; que
os defendem com seriedade, e que dão o que têm de melhor nisso. Ele precisa
conhecê-los em sua forma mais plausível e persuasiva; precisa sentir toda a
força da dificuldade que a visão verdadeira tem de encontrar e tratar; de outra
forma nunca vai estar de posse, ele mesmo, da porção da verdade que enfrenta e
remove essa dificuldade. Noventa e nove entre cem dos que são tidos como homens
instruídos estão nessa condição; mesmo aqueles que estão aptos a argumentar
fluentemente por suas opiniões. Sua conclusão pode ser verdadeira, mas poderia
ser falsa por qualquer motivo que conheçam: eles nunca se colocaram na postura
mental daqueles que pensam de outra maneira ou consideraram o que essas pessoas
poderiam ter a dizer; e consequentemente não conhecem, em qualquer dos sentidos
próprios dessa palavra, a doutrina que eles mesmos professam. Não conhecem as
partes dela que explicam e justificam todo o resto; as considerações que
demonstram que um fato que aparentemente colide com outro pode se conciliar com
ele, ou que, de duas razões aparentemente fortes, uma e não outra deva ser a
preferida. São estranhos a toda essa parte da verdade que pesa na balança e
decide para onde pende o julgamento de uma mente completamente informada; ela
só é realmente conhecida por aqueles que deram atenção aos dois lados com
equanimidade e imparcialidade, e se empenharam por ver as razões de ambos sob a
mais intensa luz. Essa disciplina é tão essencial para uma verdadeira
compreensão dos assuntos morais e humanos que se não existissem oponentes a
todas as verdades importantes seria necessário imaginá-los, e supri-los com os
mais fortes argumentos que o mais talentoso dos advogados do diabo pudesse
conjurar.”
“Se, no entanto, a insidiosa operação de
manter ausente o livre debate, quando as opiniões aceitas são verdadeiras,
fosse limitada a manter os homens ignorantes dos fundamentos dessas opiniões, seria
possível pensar que isso é um mal intelectual, mas não moral, e não afeta o
valor da opinião, sob o aspecto de sua influência sobre o caráter. O fato, no
entanto, é que não só os fundamentos da opinião são esquecidos na ausência do
debate, mas muito frequentemente o próprio significado da opinião. As palavras
que a expressam deixam de sugerir ideias, ou sugerem apenas uma pequena parte
do que sugeriam as originalmente empregadas para comunicá-las. Em vez de uma
vívida concepção e uma crença viva, se tornam apenas umas poucas frases,
guardadas por repetição; ou, se tanto, só a concha e a casca do significado são
mantidas, e sua fina essência, perdida. O grande capítulo da história humana
que esse fato ocupa e preenche não pode ser estudado, nem se pode meditar sobre
ele com seriedade demais.
Ele é ilustrado na experiência de quase todas
as doutrinas éticas e quase todos os credos religiosos. Todos são cheios de
significado e vitalidade para aqueles que os originaram, e para os discípulos
diretos de quem os originou. Seu significado ainda continua a ser sentido com
uma força não diluída, e talvez seja evocado com uma consciência ainda mais
plena, enquanto continua o esforço para dar à doutrina ou ao credo ascendência
sobre outros credos. Finalmente, ele ou prevalece e torna-se a opinião geral,
ou seu progresso cessa, e ele mantém posse do terreno que conquistou, mas para
de se disseminar. Quando qualquer desses resultados se torna aparente,
desfralda-se a controvérsia quanto ao assunto, e gradualmente ela vai morrendo.
A doutrina ocupou seu lugar, se não como uma opinião aceita, como uma das
admitidas seitas ou divisões de opinião: aqueles que a mantêm em geral a
herdaram, não adotaram; e a conversão de uma doutrina para outra, sendo agora
um fato excepcional, ocupa um espaço pequeno nos pensamentos de quem a
professa. Em vez de ficar, como no início, em alerta constante, ou para se
defender contra o mundo ou para trazer o mundo a eles, eles se calam em sua
aquiescência, e nem ouvem, quando poderiam, os argumentos contra seu credo, nem
perturbam dissidentes (se é que os há) com argumentos a seu favor. É desse
momento que se pode datar o início do declínio do poder vívido da doutrina.
Frequentemente ouvimos os defensores de todos os credos lamentando a dificuldade
de manter nas mentes dos crentes uma percepção vivaz da verdade que
nominalmente reconhecem, para que assim ela possa penetrar nos sentimentos e
assumir um verdadeiro domínio de seu portador. Não há queixa de tal dificuldade
enquanto o credo ainda está lutando por sua existência: mesmo os mais fracos
combatentes percebem então pelo que estão lutando, e qual a diferença entre a
sua e outras doutrinas; e nesse período de existência de cada credo não são
poucas as pessoas que se deram conta de seus princípios fundamentais em todas
as formas de pensamento, refletiram e consideraram em todas as suas implicações
importantes, e experimentaram o pleno efeito sobre o caráter que a crença em
tal credo é capaz de produzir numa mente completamente impregnada. Mas, quando
passa a ser um credo hereditário, e que é recebido passiva e não ativamente —
quando a mente já não é compelida, na mesma medida que aquela primeira, a
exercitar suas forças vitais nas questões que sua crença lhe apresenta —, há
uma tendência progressiva de esquecer tudo que envolve a crença exceto suas
formulações mais formais, ou de lhe conceder um obtuso e letárgico
assentimento, como se sua aceitação em confiança dispensasse a necessidade de
compreendê-la em consciência, ou de testá-la pela experiência; até que ela
quase deixa totalmente de se conectar com a vida interior do ser humano. É
então que se veem os casos, tão frequentes nesta época do mundo a ponto de
constituírem a maioria, nos quais o credo permanece como que externo à mente,
incrustando-se e petrificando-se para se defender de todas as outras
influências endereçadas aos mais altos níveis de nossa natureza; manifestando
sua força ao não se deixar penetrar por qualquer convicção fresca e viva, mas
nada fazendo pela mente ou pelo coração, exceto ficar de sentinela para
mantê-los desocupados.”
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