quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Sobre a liberdade (Parte II) – John Stuart Mill

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-8285-046-6
Tradução: Paulo Geiger
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 222
Sinopse: Ver Parte I

“Tanto os pregadores quanto seus discípulos tendem a relaxar assim que não há inimigo à vista.”


“Reconheço que a tendência de todas as opiniões de se tornarem sectárias não é sanada por um debate mais livre, e sim frequentemente ampliada e exacerbada desse modo; a verdade que deveria ter sido enxergada, mas não foi, sendo rejeitada ainda mais violentamente porque proclamada por pessoas consideradas oponentes. Mas não é no defensor inflamado, e sim naquele que assiste ao lado, mais calmo e mais desinteressado, que esse choque de opiniões produz seu efeito salutar. Não é o conflito violento entre partes da verdade, mas a tranquila supressão de metade dela é que constitui um tremendo mal; sempre há esperança quando pessoas são obrigadas a ouvir os dois lados; é quando elas só prestam atenção a um deles que os erros se cristalizam em preconceitos, e a própria verdade deixa de ter o efeito da verdade, por ter sido exagerada até se tornar uma falsidade. E, como há poucos atributos mentais mais raros do que a faculdade de julgar judiciosamente, atributo que deveria presidir o juízo inteligente entre dois lados de uma questão, dos quais somente um está representado por um advogado que o defende, a verdade não tem nenhuma chance a não ser na proporção em que cada um de seus lados, cada opinião que incorpora qualquer fração da verdade, não só encontra quem a defenda, mas é defendida de tal forma que se faz ouvir.”


“Agora reconhecemos a necessidade, para o bem-estar da humanidade (do qual dependem todos os outros bem-estares), de liberdade de opinião e de expressar a opinião, que se apoia em quatro fundamentos distintos, que recapitularemos brevemente.
Primeiro, se qualquer opinião for compelida ao silêncio, essa opinião poderia, com base em algo que certamente podemos estar sabendo, ser verdadeira. Negar isso é supor que sejamos infalíveis.
Segundo, mesmo que a opinião silenciada possa ser errônea, ela pode conter em si, e muito comumente contém, uma parte da verdade; e, como a opinião geral ou a prevalente em qualquer assunto raramente ou nunca representa toda a verdade, é somente com o choque de opiniões contrárias que o restante da verdade tem alguma chance de ser suprido.
Terceiro, mesmo que a opinião aceita não seja somente a verdade, mas toda a verdade, a menos que tenha sido alvo, e ainda seja, de vigorosa e séria contestação ela será mantida, pela maioria dos que a aceitam, na forma de um preconceito, com pouca compreensão ou percepção de seus fundamentos racionais. Não somente isso mas também, em quarto lugar, o significado da própria doutrina correrá o perigo de se perder, ou enfraquecer, e de se ver destituído de seu efeito vital no caráter e no comportamento; o dogma se torna uma profissão meramente formal, ineficaz para o bem, mas que danifica os fundamentos e impede o crescimento de alguma convicção real e sincera a partir da razão ou da experiência pessoal.”


“Ninguém imagina como comportamento de excelência que as pessoas não façam absolutamente nada a não ser se imitarem umas as outras. Ninguém afirmaria que as pessoas não devem introduzir em seu modo de vida, e no comportamento que lhes diz respeito, nenhum cunho a não ser o de seu próprio juízo, ou de seu próprio caráter individual. Por outro lado, seria absurdo defender que as pessoas devam viver como se nada, seja o que for, fosse conhecido no mundo antes de elas terem tido acesso a isso; como se a experiência ainda não tivesse logrado em nada demonstrar que um modo de existência, ou de conduta, é preferível a outro. Ninguém nega que as pessoas devam ser ensinadas e educadas na juventude a conhecer e se beneficiar dos resultados verificados na experiência humana. Mas é privilégio e condição própria da natureza do ser humano, uma vez atingida a maturidade de suas faculdades, usar e interpretar a experiência a sua própria maneira. Cabe a cada um descobrir que parte da experiência registrada é aplicável adequadamente a suas próprias circunstâncias e seu caráter. As tradições e costumes de outras pessoas são, em certa medida, a evidência do que elas aprenderam com sua própria experiência — uma evidência presumível, e como tal, reivindicadora dessa deferência. Mas, em primeiro lugar, sua experiência pode ter sido muito limitada, ou interpretada incorretamente. Segundo, sua interpretação da experiência pode ter sido correta, mas não ser adaptável a seu caso. Costumes são feitos para circunstâncias costumeiras, e para caracteres costumeiros; e suas circunstâncias ou seu caráter podem não ser costumeiros. Terceiro, mesmo que os costumes sejam bons como costumes e também adequados a seu caso, ainda assim se adaptar a um costume, meramente como costume, não as educa nem desenvolve nelas nenhuma das qualidades que constituem o dom diferenciado do ser humano. As faculdades humanas de percepção, juízo, sentimento discriminativo, atividade mental e até de preferência moral só se exercitam quando se faz uma escolha. Aquele que faz qualquer coisa porque tal é o costume não está fazendo escolha. Não adquire prática, seja discernindo, seja aspirando ao que é melhor. O mental e o moral, assim como a força muscular, só se aprimoram com o uso. As faculdades não são exercitadas quando se faz algo meramente porque outros o fazem, e não mais quando se acredita em alguma coisa somente porque outros acreditam. Se os fundamentos de uma opinião não são conclusivos a partir das razões da própria pessoa, suas razões não podem ser fortalecidas, e provavelmente se enfraquecerão ao adotar essa opinião; e, se os motivos que a induzem a uma ação não são consentâneos com seus próprios sentimentos e caráter (onde não se levam em conta afeição ou os direitos dos outros), a tendência é que seus sentimentos e seu caráter se tornem inertes e tórpidos, em vez de ativos e enérgicos.”


“Não é porque os desejos dos homens são fortes que eles agem mal; é porque suas consciências são fracas.”


“Muitas pessoas, sem dúvida, pensam sinceramente que seres humanos assim reprimidos e apequenados correspondem àquilo que seu Criador projetou que fossem; assim como muitos pensam que as árvores são muito melhores quando desbastadas e podadas, ou recortadas em figuras de animais do que como a natureza as criou. Mas, se houver qualquer parte na religião em que se acredite que o homem foi criado por um Ser bom, será mais coerente com essa fé acreditar que esse Ser dotou-o de todas as faculdades humanas para que fossem cultivadas e expandidas, não erradicadas e desperdiçadas, e que Ele se delicia cada vez que suas criaturas se aproximam mais da concepção ideal nelas corporificadas, a cada incremento de qualquer de suas capacidades de compreensão, de ação ou de fruição.”


“Não foi reduzindo à uniformidade tudo que é individual em si mesmo, mas o cultivando e suscitando, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses dos outros, que os seres humanos se tornaram um nobre e belo objeto de contemplação; e, assim como as obras encerram algo do caráter de quem as cria, pelo mesmo processo a vida humana torna-se rica, diversificada e animada, oferecendo alimento mais abundante aos altos pensamentos e aos sentimentos elevados, e fortalecendo os laços que unem cada indivíduo à raça ao fazer valer infinitamente mais a pena pertencer a ela. Na proporção do desenvolvimento de sua individualidade, cada pessoa se torna mais valiosa para si mesma e por isso é capaz de ser mais valiosa para os outros. No que tange a sua própria existência a vida tem mais plenitude, e quando há mais vida nas unidades há mais vida na massa formada por elas. Não se pode dispensar a pressão necessária para evitar que os espécimes mais fortes da natureza humana abusem dos direitos dos outros; mas há uma ampla compensação para isso, mesmo do ponto de vista do desenvolvimento humano. Os meios de desenvolvimento que o indivíduo perde quando impedido de exercer suas inclinações em detrimento dos outros seriam obtidos principalmente a expensas do desenvolvimento de outras pessoas. E até para si mesmo há um equivalente total para essa perda no desenvolvimento da parte social de sua natureza, tornada possível pela restrição imposta à parte egoísta. Ater-se a regras rígidas de justiça em benefício de outros desenvolve os sentimentos e as capacidades que têm o bem dos outros como objetivo. Mas ser restringido em coisas que não afetam seu bem, meramente para seu próprio desagrado, não desenvolve nada que tenha valor, exceto a força de caráter que pode se desdobrar na resistência a essa restrição. Aquiescer a essa restrição embota e entorpece toda a natureza. Para ser justo com a natureza de cada uma, seria essencial que se permitisse que pessoas diferentes levassem vidas diferentes. Na medida em que isso foi exercido em qualquer época, essa época tornou-se notável para a posteridade. Mesmo o despotismo não produz seus piores efeitos enquanto permitir a individualidade; e o que quer que esmague a individualidade é despotismo, seja qual for o nome pelo qual é chamado, e quer professe estar fazendo isso em nome da vontade de Deus ou por injunção do homem.”


“Nesta nossa época, o mero exemplo do não conformismo, a mera recusa de dobrar o joelho ante o costume, é por si mesmo um serviço. Exatamente porque a tirania da opinião é tanta que faz da excentricidade algo condenável é que se torna desejável, para quebrar essa tirania, que as pessoas sejam excêntricas. A excentricidade sempre foi abundante quando e onde abundou a força do caráter; e a medida de excentricidade na sociedade tem geralmente sido proporcional à medida da genialidade, vigor mental e coragem moral que nela se contém. Que tão poucos ousem atualmente ser excêntricos marca o maior dos perigos do presente.”


“Há uma característica da atual orientação da opinião pública especificamente calculada para fazê-la intolerante a qualquer demonstração marcante de individualidade. Na sua média geral, a humanidade não é moderada apenas no intelecto, mas também em suas inclinações: não tem gostos ou vontades fortes o bastante para incliná-la a fazer qualquer coisa pouco habitual, e consequentemente não compreende aqueles que os têm, e classifica todos estes ao lado dos selvagens e destemperados que se acostumou a olhar de cima para baixo. Agora, somando-se a esse fato, que é geral, temos somente de supor que se cria um forte movimento dirigido ao aprimoramento da moral, e está muito claro o que podemos esperar disso. Nestes dias, um movimento assim foi criado; muito, de fato, se realizou na forma de uma crescente regularidade de comportamento e desencorajamento dos excessos; e há um espírito filantrópico circulando, para cujo exercício não há campo mais convidativo do que o aprimoramento da moral e da prudência de nossos semelhantes. Essas tendências da época tornam o público mais disposto do que em períodos anteriores a prescrever regras gerais de conduta, e a se empenhar em fazer com que cada uma esteja em conformidade ao padrão aprovado. E esse padrão, explícito ou tácito, é o de não desejar nada intensamente. Seu ideal de caráter é não ter nenhum caráter marcante; atrofiar por compressão, como o pé de uma dama chinesa, cada parte da natureza humana que seja proeminente e tenda a tornar a pessoa marcadamente dessemelhante em seu perfil do que é o lugar-comum da humanidade.”


“Seria um grande mal-entendido quanto a esta doutrina supor que ela representa um interesse egoísta ao pretender que seres humanos não têm nada a ver com a maneira com que cada um leva a sua vida, e que não têm de se preocupar com a boa conduta ou o bem-estar dos outros, a não ser quando seu próprio interesse estiver envolvido. Em vez de diminuição, há necessidade de um grande incremento num desinteressado empenho em promover o bem dos outros. Mas a benevolência desinteressada pode encontrar outros instrumentos para persuadir as pessoas para seu próprio bem, em lugar de açoites e chicotes, seja do tipo literal, seja do tipo metafórico. Sou a última pessoa a subestimar as virtudes que dizem respeito ao próprio indivíduo; elas só perdem em importância, se é que perdem, para as sociais. É papel da educação cultivar igualmente as duas. Mas até mesmo a educação se processa por convencimento e persuasão assim como por compulsão, e é somente por meio daquelas primeiras que, quando já passou a época da educação, as virtudes que dizem respeito ao próprio indivíduo devem ser inculcadas. Seres humanos deveriam ajudar uns aos outros a distinguir o melhor do pior, e no estímulo a escolher o primeiro e evitar o segundo. Deveriam, sempre, encorajar uns aos outros a um redobrado exercício de suas mais altas faculdades, e a reforçar o direcionamento de seus sentimentos e propósitos para o que é sábio, e não o que é tolo, elevando, em vez de degradando, objetos e contemplações. Mas nem uma única pessoa, nem qualquer grupo de pessoas, está autorizada a dizer a outro ser humano de idade madura o que ele não deve fazer com sua vida, em seu próprio interesse, aquilo que optar por fazer. Ela é a pessoa mais interessada em seu próprio bem-estar: o interesse que qualquer outra pessoa, exceto em casos de grande ligação pessoal, possa ter em relação a ela é insignificante, comparado com seu próprio; o interesse que a sociedade tem por ela individualmente (exceto quanto a sua conduta em relação aos outros) é fracionário, e totalmente indireto; enquanto que, no que diz respeito a conhecer seus próprios sentimentos e suas próprias circunstâncias, os mais comuns dos homens e das mulheres têm meios imensuravelmente maiores do que aqueles que possam ter quaisquer outras pessoas. A intervenção da sociedade no sentido de se sobrepor a seu juízo e seus propósitos naquilo que só a eles diz respeito teria de se fundamentar em pressupostos gerais — que podem estar totalmente errados, e mesmo que estivessem corretos isso não diminuiria a possibilidade de serem mal aplicados a casos individuais por pessoas que não estão mais familiarizadas com as circunstâncias de tais casos do que aquelas que meramente as contemplam de fora. Neste departamento dos assuntos humanos, portanto, a individualidade tem seu próprio campo de ação. No comportamento dos seres humanos em relação uns aos outros é necessário que as regras gerais sejam em sua maioria observadas, para que as pessoas possam saber o que têm a esperar; mas, no que refere à própria pessoa, sua espontaneidade individual tem direito a um livre exercício. Considerações que a ajudem em seu juízo e exortações que fortaleçam sua vontade podem lhe ser oferecidas, até impostas, por outros; mas cabe a ela mesma o julgamento final. Quaisquer erros que possa cometer em relação aos conselhos e advertências que recebe são de longe suplantados pelo mal de permitir que outros a obriguem a fazer o que consideram ser bom para ela. (...)
A distinção entre a perda de consideração em que uma pessoa possa incorrer, com justiça, por falha em sua prudência ou em sua dignidade pessoal, e a reprovação de que será alvo por agredir o direito de outro não é meramente nominal. Faz uma grande diferença, em nossos sentimentos e em nosso comportamento para com ela, se nos desagrada em coisas quanto às quais achamos que temos o direito de controlá-la, ou em coisas quanto às quais sabemos não ter esse direito. Se ela nos desagrada, podemos expressar essa aversão, e podemos nos manter à distância, assim como de alguma coisa que não nos agrada; mas nem por isso nos sentiremos autorizados a incomodá-la. Podemos considerar que ela já está arcando, ou vai arcar, com todo o ônus decorrente de seu erro; se ela estraga a própria vida ao conduzi-la mal, não iremos, por esse motivo, desejar estragá-la ainda mais; em vez de querer puni-la, deveríamos nos empenhar em aliviar sua punição, mostrando-lhe como evitar ou corrigir os males que sua conduta tende a lhe infligir. Ela poderia ser motivo de nossa comiseração, talvez de desgosto, mas não de raiva ou ressentimento; não deveríamos tratá-la como inimiga da sociedade; a pior coisa que poderíamos nos sentir justificados a fazer seria deixá-la entregue a si mesma, já que não estamos interferindo com benevolência nem demonstrando interesse ou preocupação com ela. Será totalmente diferente se a pessoa tiver infringido as regras que são necessárias para a proteção de seus semelhantes, individual ou coletivamente. As consequências ruins de seus atos não recairão neste caso sobre ela mesma, mas sobre outros; e a sociedade, como protetora de todos os seus membros, deve retaliar contra ela; deve fazê-la sofrer com o objetivo expresso de puni-la, e cuidar que a punição seja suficientemente rigorosa. Em um dos casos, ela é a agressora em nosso tribunal, e somos convocados não apenas a julgá-la, mas de uma maneira ou de outra aplicar-lhe nossa própria sentença: no outro caso, não cabe a nós lhe infligir qualquer sofrimento, exceto aquele que incidentalmente decorre quando usamos na condução de nossos assuntos a mesma liberdade que lhe permitimos que ela use na condução de seus próprios assuntos.
Muitas pessoas se recusam a admitir a distinção aqui apontada entre a parte da vida de uma pessoa que só diz respeito a si mesma e aquela que diz respeito a outras. Como (seria possível perguntar) poderia qualquer parte do comportamento do membro de uma sociedade ser objeto da indiferença dos demais membros? Nenhuma pessoa é um ser totalmente isolado; é impossível que alguém faça algo séria e permanentemente danoso a si mesmo sem que esse dano atinja pelo menos suas relações mais próximas, e com frequência muito além delas. Se causa prejuízo a sua propriedade, está prejudicando os que direta ou indiretamente dela obtêm sustento, e muitas vezes diminui, em maior ou menor medida, os recursos da comunidade em geral. Se compromete suas aptidões corporais ou mentais, não só está fazendo mal a todos que dependem dele para qualquer porção de sua felicidade, mas desqualifica a si mesmo para prestar os serviços que geralmente deve prestar a seus semelhantes; talvez tornando-se para eles um fardo, objeto de sua afeição e benevolência; e, se esse tipo de comportamento for muito frequente, dificilmente qualquer agressão cometida subtrairá mais do que isso do acervo geral de coisas boas da sociedade. Por fim, se com tais ações viciosas ou estultas uma pessoa não estiver prejudicando outros diretamente, assim mesmo (seria possível dizer) está sendo injuriosa com seu exemplo; e deveria ser obrigada a controlar a si mesma, em benefício daqueles que seriam corrompidos ou desorientados só de ver ou conhecer seu comportamento.
E mesmo (deve-se acrescentar) se as consequências desse desvio de conduta pudessem ser confinadas apenas ao indivíduo vicioso ou descuidado, deveria a sociedade abandonar a seu próprio juízo aqueles que estão manifestamente incapacitados para isso? Se se admite que é preciso dar proteção contra si mesmas a crianças e menores de idade, não deveria a sociedade da mesma forma fazê-lo em relação a pessoas já maduras mas igualmente incapazes de se autogovernarem? Se o jogo de azar, ou a embriaguez, ou a incontinência, ou a ociosidade, ou a falta de higiene são tão nocivos à felicidade, e tão grande empecilho ao aprimoramento da sociedade, quanto muitas ou a maioria das ações proibidas por lei, por que (seria possível perguntar) não deveria a lei, na medida em que for consistente com a praticidade e a conveniência social, empenhar-se em reprimir essas coisas também? Aqui não se trata (pode-se afirmar) de restringir a individualidade, ou de impedir que se tentem novas e originais experiências de vida. As únicas coisas que se tentaria prevenir são as que foram tentadas e condenadas desde o começo do mundo até agora; coisas que a experiência demonstrou não serem úteis ou adequadas a qualquer indivíduo. É preciso que decorra uma certa extensão de tempo, e que se acumule certo repertório de experiência, para que uma verdade moral ou prudencial possa ser considerada estabelecida; e apenas se se quiser evitar que uma geração após outra caia no mesmo precipício que foi fatal às que as precederam.
Admito plenamente que o mal que uma pessoa faz a si mesma pode afetar com seriedade, por intermédio de suas simpatias e de seus interesses, aqueles que estão em íntima relação com ela e, em menor grau, toda a sociedade. Quando, ao se comportar dessa maneira, uma pessoa é levada a violar uma clara obrigação para com qualquer outra pessoa ou quaisquer outras pessoas, a questão sai do âmbito do que só diz respeito a ela mesma e torna-se passível de desaprovação moral na verdadeira acepção do termo. Se, por exemplo, um homem, por intemperança ou extravagância, torna-se incapaz de pagar suas dívidas ou, tendo assumido a responsabilidade moral por uma família, se torna pelo mesmo motivo incapaz de prover-lhe sustento ou educação, ele será merecidamente desaprovado, e pode ser punido com justiça; mas será por ter faltado ao dever com sua família ou com seus credores, não pela conduta extravagante. Se recursos que deveriam ter sido alocados para ele tiverem sido desviados para um investimento mais prudente, a culpa moral teria sido a mesma.”


“A noção de que é dever de um homem que outro seja religioso foi um dos fundamentos de todas as perseguições religiosas já perpetradas e, se fosse admitida, justificaria plenamente essas perseguições. Embora os sentimentos que eclodem nas repetidas tentativas de deter o transporte em ferrovias nas quais se viaja no domingo, e na resistência à abertura de museus e ocorrências semelhantes, não tenham a crueldade dos antigos perseguidores, o estado de espírito que sinalizam é fundamentalmente o mesmo. É a determinação de não tolerar que outros façam o que sua religião permite porque não é permitido pela religião dos perseguidores. É a crença de que Deus não só abomina a ação de um não crente, mas também de que não nos desculpará se não os molestarmos.”


“A civilização levou a melhor sobre o barbarismo quando o barbarismo dominava o mundo, seria demais professar ter medo de que o barbarismo, depois de subjugado, possa reviver e conquistar a civilização. Uma civilização que possa sucumbir assim a seu inimigo derrotado deverá primeiro se tornar tão degenerada, que nem seus designados sacerdotes e professores, nem qualquer outra pessoa, terá a capacidade, ou se dará ao trabalho, de se levantar para defendê-la. Se for assim, quanto mais cedo tal civilização receber uma intimação para se retirar, melhor. Só pode ir de mal a pior, até ser destruída e regenerada (como o Império Ocidental) por enérgicos bárbaros.”


“O que estou oferecendo são menos aplicações do que modelos de aplicação, que podem servir para esclarecer melhor o significado e os limites das duas máximas que, juntas, formam toda a doutrina deste ensaio, e para dar assistência à capacidade de julgar ao se manter o equilíbrio entre elas, em casos nos quais parece ser duvidoso qual delas deve ser aplicada.
As máximas são: primeiro, que o indivíduo não precisa prestar contas à sociedade por suas ações caso não digam respeito a ninguém além de si mesmo. Recomendação, instrução, persuasão e distanciamento por parte de outras pessoas, se considerarem isso necessário para seu próprio bem, são as únicas medidas com as quais a sociedade pode, justificadamente, expressar seu desagrado com sua conduta, ou sua desaprovação. Segundo, que, pelas ações que sejam prejudiciais aos interesses de outros, o indivíduo pode ter de prestar contas, e pode ser submetido a punição social ou legal, se a sociedade for de opinião de que uma ou outra é requisito necessário a sua proteção.
Em primeiro lugar, não se deve supor de maneira nenhuma — uma vez que o prejuízo, ou a possibilidade de prejuízo, dos interesses de outros pode por si só justificar a intervenção da sociedade — que por isso ela poderá sempre justificar tal intervenção. Em muitos casos, um indivíduo, visando a um objetivo legítimo, causa legitimamente, portanto, sofrimento ou perda a outros, ou impede a realização de um bem que os demais tinham uma razoável esperança de obter. Tais choques de interesses entre indivíduos muitas vezes provêm de instituições sociais ruins, mas são inevitáveis enquanto perdurarem essas instituições — e algumas seriam inevitáveis sob quaisquer instituições. Quem quer que tenha sucesso numa profissão muito concorrida ou num exame em que há muita competição, quem quer que seja preferido a outro em qualquer disputa por um objeto que ambos desejem colhe um benefício da perda de outros, de seu empenho desperdiçado e de seu desapontamento. Mas comumente se admite que é melhor para o interesse geral da humanidade que as pessoas persigam seus objetivos sem se deixarem desencorajar por esse tipo de consequência. Em outras palavras, a sociedade não admite que concorrentes desapontados tenham direito, legal ou moral, a imunidade quanto a esse tipo de sofrimento, e só se sente chamada a intervir quando para o sucesso se empregaram meios cuja permissão contraria o interesse geral — a saber, fraude ou tramoia, e força.”


“Em países de civilização mais avançada e com um espírito mais insurrecional, o público — acostumado a esperar que tudo lhe seja feito pelo Estado, ou pelo menos a nada fazer por si mesmo sem antes pedir ao Estado não somente que o deixe fazer, mas que lhe diga como deve ser feito — considera naturalmente que o Estado é responsável por todo mal que o acomete, e quando o mal excede seu nível de paciência se ergue contra o governo e faz o que se chama de revolução; depois disso, alguém outro, com ou sem legítima autorização da nação, sobe ao poder, expede suas ordens à burocracia e tudo continua do jeito que era antes; a burocracia continua inalterada, ninguém mais é capaz de tomar seu lugar.
Um quadro muito diferente se apresenta para um povo acostumado a levar a efeito seus próprios assuntos. Na França, tendo uma grande parte do povo se engajado no serviço militar, muitos dos quais tendo chegado pelo menos à patente de oficiais não comissionados, em toda insurreição popular há várias pessoas competentes para assumir a liderança e improvisar algum plano de ação tolerável. O que os franceses são nas questões militares, os americanos são em todo tipo de atividade civil; deixem-nos ficar sem um governo, e cada americano será capaz de improvisar um, e de levar adiante esta ou outra atuação pública qualquer com um grau suficiente de inteligência, ordem e capacidade de decisão. Isso é o que todo povo livre deveria ser, e um povo capaz disso certamente será livre; nunca se deixará escravizar por um homem ou um corpo de homens só por sua capacidade de se apoderar e de segurar as rédeas da administração central. Nenhuma burocracia pode esperar ser capaz de obrigar um povo assim a fazer ou se submeter a qualquer coisa de que não goste. Mas, onde tudo é feito através da burocracia, nada a que a burocracia seja contrária de fato poderá ser feito. A constituição de tais países é uma organização da experiência e da capacidade prática da nação na forma de um corpo disciplinado para o propósito de governar o resto; e, quanto mais perfeita for a organização em si mesma, quanto mais sucesso tiver em atrair para si e educar para si as pessoas de maior capacidade de todas as fileiras da comunidade, mais completa será a submissão de todos, inclusive dos membros da burocracia. Porque os governantes são tão escravos de sua organização e de sua disciplina quanto os governados são dos governantes. Um mandarim chinês é um instrumento e uma cria do despotismo tanto quanto o mais humilde lavrador. Um jesuíta é no mais alto grau de rebaixamento um escravo de sua ordem, embora a própria ordem exista para a força coletiva e a importância de seus membros.
Não se deve tampouco esquecer que a absorção dos principais talentos do país pelo corpo de governo é fatal, mais cedo ou mais tarde, para a atividade mental e o progresso desse próprio corpo. Organizado num só bando — operando um sistema que, como todos os sistemas, atua necessariamente em grande medida por regras fixas —, o corpo oficial está sob a permanente tentação de se deixar mergulhar em indolente rotina, ou — se vez por outra abandona essa eterna monotonia — de se deixar levar por qualquer plano mal formulado que porventura atraia a atenção de algum ocupante de alto cargo; e a única verificação dessas duas tendências tão próximas, embora aparentemente opostas, o único estímulo que pode manter a aptidão do próprio corpo num padrão elevado, é ele ser passível de vigilante crítica, de igual aptidão, fora da burocracia. É indispensável, portanto, que existam os meios, independentemente do governo, de formar essa aptidão e supri-la com as oportunidades e a experiência necessárias para um julgamento correto de grandes questões práticas. Se tivéssemos permanentemente um capacitado e eficiente corpo de funcionários — acima de tudo, um corpo capaz de criar e que queira adotar melhorias —, se não tivesse a nossa burocracia degenerado numa pedantocracia, esse corpo não precisaria monopolizar todas as ocupações que formam e cultivam as faculdades requeridas para governar a humanidade. (...)
Um governo sempre deve ter esse tipo de atividade que não só não impede, mas também ajuda e estimula, a aplicação e o desenvolvimento dos indivíduos. O mal começa quando, em vez de incentivar a atividade e os poderes de indivíduos e grupos, ele substitui a atividade deles pela sua própria; quando, em vez de informar, aconselhar e, em certas ocasiões, denunciar, ele os faz trabalhar em grilhões, ou ordena que se afastem enquanto faz o trabalho que deveria ser feito por eles. O valor de um Estado, no longo prazo, é o valor dos indivíduos que o compõem; e um Estado que posterga o interesse de uma expansão e elevação mental deles, por uma capacidade administrativa um pouco maior, ou uma aparência de maior capacidade que a prática provê nos detalhes da atividade; um Estado que apequena seus homens para que sejam instrumentos mais dóceis em suas mãos, mesmo que para fins benéficos; tal Estado vai descobrir que com homens pequenos grandes coisas não poderão realmente ser realizadas, e que a perfeição da máquina pela qual sacrificou tudo no fim não lhe proporcionará nada, por falta de uma força vital a qual, para que a máquina pudesse trabalhar mais suavemente, ele preferiu banir.”

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