quinta-feira, 6 de julho de 2017

Crítica da Razão Prática (Parte II) – Immanuel Kant

Editora: Brasil (Versão digitalizada da obra de 1959)
Tradução e prefácio: Afonso Bertagnoli
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 248
Sinopse: Ver Parte I



“Enquanto a virtude e a felicidade constituem conjuntamente a posse do sumo bem em uma pessoa e enquanto, além disso, estando a felicidade repartida exatamente, em proporção idêntica, à moralidade (como valor da pessoa e da sua dignidade de ser feliz), constituem ambas o sumo bem de um mundo possível, isto significa o mais completo e acabado bem; neste, todavia, a virtude é sempre, como condição, o bem mais elevado, porque não tem sobre si nenhuma outra condição, enquanto a felicidade apresenta alguma coisa que é agradável para aquele que possui, mas sem ser por si mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado que supõe, constantemente, de acordo com a lei, a conduta moral como condição. (...)
O sumo bem é para nós prático; isto é, devemos realizá-lo mediante a nossa vontade, concebendo nele a virtude e a felicidade necessariamente ligados, de modo que não é possível, para uma razão pura prática, admitir aquela e não admitir esta.”


“Torna-se, portanto, fácil compreender de que modo a consciência de uma razão pura prática pode produzir, por esse próprio fato (a virtude) uma consciência de supremacia sobre as nossas próprias inclinações e, por conseguinte, como e até em que ponto podemos considerar a nossa independência delas e, também, em virtude disso mesmo, conhecer tudo o que de inapetecível sempre as acompanha, isto é, consequentemente, um contentamento que, na sua fonte, representa um contentamento do indivíduo para com a sua própria pessoa. Até a liberdade, desse modo (indireto) pode constituir um prazer que não deve ser chamado propriamente de felicidade, porquanto não depende da intervenção positiva de um sentimento e, para sermos mais exatos, também não pode ser denominada, bem-aventurança, pois não encerra uma independência total de inclinações e de necessidades, embora seja semelhante à última quando pelo menos a determinação da vontade pode permanecer livre da influência das inclinações e, pelo menos na sua origem, análoga à qualidade do bastar-se a si mesma, a qual só podemos atribuir ao ser supremo.
Desta solução da antinomia da razão pura prática deduzimos que, nos princípios práticos, uma relação natural e necessária entre a consciência da moralidade e a esperança de uma felicidade que lhe seja proporcionada em consequência daquela, pode ser julgada pelo menos sendo possível (mas nem por isso pode ser imediatamente conhecida e penetrada); pelo contrário, os princípios da procura da felicidade não podem, de modo algum, produzir moralidade e, portanto, resulta que o mais elevado bem (como primacial condição do sumo bem) constitui a moralidade, sendo a felicidade, embora segundo elemento do mesmo, contudo, de tal modo que é a consequência moralmente condicionada, mas não necessária da primeira. Nesta subordinação apenas o sumo bem é o objeto total da razão pura prática, que esta deve representar-se necessariamente como possível, porque é um mandato da mesma contribuir de todo o modo possível para a sua produção.”


“A atuação do sumo bem no mundo é o objeto necessário de uma vontade determinável mediante a lei moral. Mas tal vontade é a total correlação da disposição de ânimo com a lei moral, a mais elevada condição do seu sumo bem. Deve ela, portanto ser tão possível quanto o seu objeto, porque está contida no mesmo mandato de fomentar que o fomenta. Mas a completa correlação da vontade à lei moral constitui a santidade, ou seja, uma perfeição para a qual nenhum ser racional está capacitado no mundo sensível, seja qual for o momento de sua existência. Mas como ela, não obstante a tudo, é exigida como praticamente necessária, não pode, também, ser encontrada fora de um progresso que vai ao infinito, àquela correlação total, sendo que, segundo os princípios da razão pura prática, é necessário admitir tal progressão prática como o objeto real da nossa vontade.
Este progresso infinito, todavia, só é possível sob a suposição de uma existência e personalidade duradoura no infinito do mesmo ser racional (a que chamamos imortalidade da alma). Assim, portanto, o sumo bem só é praticamente viável sob o aspecto da imortalidade da alma, sendo, por conseguinte, esta, ligada inseparavelmente à lei moral como se encontra, um postulado da razão pura prática (pelo qual entendo eu uma proposição teórica mas não demonstrável como tal, enquanto depende inseparavelmente de uma lei prática que possua um valor incondicionado a priori).”


“A lei moral, na análise precedente, conduziu-nos ao problema prático que, sem a intervenção de qualquer motor sensível, está prescrito só pela razão pura como elemento necessário para o conhecimento da primeira parte, a principal e mais complexa do sumo bem: a moralidade e, como este problema só pode ser completamente resolvido mediante a eternidade, também nos conduz ao postulado da imortalidade. Essa mesma lei deve levar-nos, também, à possibilidade do segundo elemento do sumo bem, isto é, à felicidade, adequada àquela moralidade, com o mesmo interesse anterior, unicamente pela razão, imparcial, ou seja, na suposição de uma causa adequada a este efeito na postulação da existência à possibilidade do sumo bem (objeto da nossa vontade que está necessariamente ligado à legislação moral da razão pura).”


“A felicidade é o estado de um ser racional no mundo, para o qual, no conjunto de sua existência, tudo ocorre segundo o desejo de sua vontade; assenta, portanto, na concordância da natureza com a finalidade total a que se propõe e, também, com o fundamento essencial de determinação da sua vontade. Pois bem: a lei moral, como lei da liberdade, ordena por meio de fundamentos de determinação, que devem ser inteiramente independentes da natureza e da coincidência da mesma com a faculdade de desejar (como motor); mas o ser agente racional no mundo não é ao mesmo tempo causa do mundo e da própria natureza. Desse modo, portanto, não há na lei moral o menor fundamento para uma conexão necessária entre a moralidade e a felicidade proporcionada à natureza de um ser pertencente, como parte, ao mundo, e, por conseguinte, por isso mesmo, esse ser não pode ser causa dessa natureza mediante a sua vontade, sendo que, no que concerne à sua felicidade, não pode, pelos seus próprios meios, produzir um acordo contínuo entre essa natureza e seus princípios práticos. Entretanto, no problema prático da razão pura, isto é, na faina necessária do desenvolvimento do sumo bem, tal conexão se postula como necessária: devemos tratar de fomentar o supremo bem (que, portanto, tem que ser possível). Postula-se também, por conseguinte, a existência de uma causa da natureza em seu todo, distinta da natureza e que encerra o fundamento dessa conexão, isto é, da concordância exata entre a felicidade e a moralidade. Mas esta causa superior deve conter o fundamento de uma coincidência da natureza, não só com uma lei da vontade dos seres racionais, como também para com a representação dessa lei, quando estes a colocam como fundamento mais elevado de determinação da vontade, desse modo não só com os costumes, consoante à sua forma, mas também com a sua moralidade como fundamento motor das mesmas, isto é, com a sua disposição de ânimo moral. Assim, portanto, o sumo bem só é possível no mundo enquanto for admitida uma causa superior da natureza, causa essa que encerre uma causalidade consoante à disposição de ânimo moral. Um ser, portanto, que é capaz de ações segundo a representação de leis, constitui uma inteligência (ser racional), sendo a causalidade de um ser semelhante, segundo essa representação das leis, uma vontade do mesmo. Assim, portanto, a causa suprema da natureza, enquanto for ela um pressuposto para o sumo bem, é um ser que, por razão e vontade, constitui a causa (consequentemente, é o autor) da natureza, isto é, Deus. Por conseguinte, o postulado da possibilidade do sumo bem derivado (um mundo ótimo) é ao mesmo tempo o postulado da realidade de um sumo bem originário, isto é, da existência de Deus. Constituía um dever imposto a nós mesmos fomentar o sumo bem; por isso, não só era um direito mas também uma necessidade arraigada ao dever, como exigência, pressupor a possibilidade deste supremo bem, o qual, ocorrendo apenas sob a condição da existência de Deus, congloba inseparavelmente a suposição do mesmo para com o dever, isto é, torna-se moralmente necessário admitir a existência de Deus.
Deve-se notar aqui que esta necessidade moral é subjetiva, ou seja, exigência, e não objetiva, isto é o próprio dever; porquanto não pode haver qualquer dever em aceitar a existência de uma coisa (dado que isto só interessa ao uso teorético da razão). Também não se deve entender com isso que seja necessário admitir a existência de Deus como princípio fundamental de toda a obrigação em geral (porque, como ficou demonstrado de maneira suficiente, este princípio tem a sua base exclusivamente na autonomia da própria razão).”


“Desse modo, a lei moral, mediante o conceito do sumo bem, como objeto e fim último da razão pura prática, conduz à religião, isto é, ao conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos, não como sanções, ou seja, ordens arbitrárias e por si mesmas contingentes de uma vontade estranha, mas sim como leis essenciais de uma vontade livre por si mesma, as quais, não obstante a isso, devem ser consideradas como mandamentos do ser supremo, porque não nos é dado esperar o sumo bem, que a lei moral projeta como um dever colocar-nos qual objeto do nosso esforço, para além de uma vontade moralmente perfeita (santa e boa), ao mesmo tempo onipotente e, por conseguinte, mediante uma concordância com essa vontade. Por isso, aqui tudo ocorre de um modo desinteressado e fundamentado simplesmente sobre o dever, sem que seja necessário colocar o temor ou a esperança em seu fundamento, qual motores, porquanto, se chegam a ser princípios, aniquilam todo o valor moral das ações. A lei moral ordena-me fazer do sumo bem, possível em um mundo, o fim último de toda a minha conduta. Mas eu não posso esperar quando não seja por um acordo de minha vontade com a de um autor santo e bom do mundo; e ainda que a minha própria felicidade se contenha no conceito do sumo bem, como o de um todo no qual esteja representada como ligada, na mais exata proporção, a maior felicidade com o maior conjunto de perfeição moral (possível nas criaturas), todavia, não é ela mais do que a lei moral (que limita, imediata e preferentemente, dentro das condições mais rigorosas, o meu ilimitado desejo) o motivo determinante da vontade que se atém à impulsão do sumo bem. Por isso, a lei moral não é também propriamente a doutrina que nos ensina como nos tornamos felizes, mas, sim, como devemos chegar a ser dignos da felicidade, só depois, quando a realização sobrevém, vemos apresentar-se também a esperança de ser um dia participantes da felicidade na medida em que tratamos de não ser indignos dela.
Alguém é digno da posse de uma coisa ou de um estado, quando o fato de estar nessa posse concorda com o sumo bem. Pode-se compreender agora facilmente que toda a dignidade só depende da conduta moral, porque esta, no conceito do sumo bem, constitui a condição do remanescente (que pertence ao estado), isto é, da participação na felicidade. Deduz-se daqui que nunca se deve tratar a moral em si como doutrina da felicidade, isto é, como uma disciplina para chegar a ser participante da felicidade, porquanto ela só tem relação com a condição racional da última (conditio sine qua non), mas não com um meio de adquiri-la. Entretanto, quando ela (impondo apenas deveres e não dando regras aos desejos interessados) foi inteiramente exposta, só então, depois que despertado o desejo moral fundamentado em uma lei, de fomentar o sumo bem (conduzir a nós o reino de Deus), desejo que não poderia nascer anteriormente em qualquer alma egoísta, e depois de que, para satisfazer esse desejo, foi articulado o passo à religião, podemos denominar esta doutrina moral também doutrina da felicidade, porque a esperança desta última só desperta mediante a religião. Também se pode compreender com isso tudo que, se buscarmos o fim último de Deus na criação do mundo, não se deve aduzir a isso como fim a felicidade dos seres racionais neste mundo, mas sim o sumo bem, o qual acrescenta àquele desejo dos seres racionais ainda uma condição, a saber, a de ser digno da felicidade, isto é, a moralidade de todos esses mesmos seres racionais, que contém a única medida segundo a qual podem eles aspirar à participação da felicidade por mão de um criador sábio. Ainda que, com efeito, a sabedoria, considerada teoricamente, importe no conhecimento do sumo bem e, praticamente, na correlação da vontade ao sumo bem, não se pode atribuir a uma sabedoria suprema, independente, um fim que apenas se fundamentasse na bondade. É que não se pode conceber o efeito da bondade (relativamente à felicidade dos seres racionais) senão sob a condição restritiva de um acordo com a santidade de sua própria vontade como conformada ao sumo bem na sua própria origem. Por isso, aqueles que colocam o fim da criação na honra de Deus (supondo que julgue este antropomorficamente como a inclinação a ser exaltada) encontraram a melhor expressão. É que nada honra tanto a Deus do que tê-lo como o que haja de mais apreciável no mundo: o respeito pelo seu mandato, a observância do santo dever que nos impõe a sua lei, quando vem acrescentar-se a sua magnífica disposição de coroar tão formosa ordem com felicidade que a ela se coadune. Se esta última a torna amável (para falarmos em linguagem humana) é, por outro lado, objeto de adoração para a primeira. Os próprios homens, praticando o bem, podem ser dignos de amor; mas somente com isso não podem conquistar nunca o respeito; desse modo a maior beneficência só os honra quando executada segundo a sua dignidade.
Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja um fim em si mesmo, isto é, não possa nunca ser utilizado só como meio por alguém (nem mesmo por Deus), sem ao mesmo tempo ser um fim; que, portanto, a humanidade, em nossa pessoa, deve ser para nós sagrada, é coisa consequente, porquanto o homem é o sujeito da lei moral, e, por conseguinte, também do que é em si santo, do que permite chamar santo a tudo o que com isso for concordante. É que esta lei moral se fundamenta na autonomia de sua vontade como vontade livre, a qual, necessariamente, deve poder concordar, ao mesmo tempo, segundo as suas leis universais, com tudo aquilo ao qual se deve submeter.”


“Na amplificação prática de um conhecimento puro, deve ser dada uma intenção a priori, isto é, um fim como objeto (da vontade) que, independentemente de todo o princípio teórico, seja representado como praticamente necessário por um imperativo que determine imediatamente a vontade (um imperativo categórico), o que, consiste aqui no sumo bem. Mas este não é possível sem pressupor três conceitos teóricos (para as quais não se pode encontrar qualquer intuição correspondente, porque são eles meros conceitos puros da razão e, por conseguinte, não podemos encontrar para os mesmos realidade objetiva alguma no roteiro teórico), os quais são: liberdade, imortalidade e Deus. Desse modo, portanto, mediante a lei prática, que ordena a existência do sumo bem num mundo, resulta postulada a viabilidade daqueles objetos da razão especulativa, a realidade objetiva que esta razão não podia assegurar-lhes, por meio do que, imediatamente, o conhecimento teórico da razão pura recebe um acréscimo, consistente, muito embora, tão somente no fato daqueles conceitos que para ela são problemáticos (simplesmente imagináveis), são agora afirmados assertoricamente, como conceitos aos quais correspondem realmente objetos, porque a razão prática necessita inevitavelmente da existência dos mesmos para a possibilidade do seu objeto, o sumo bem, que praticamente é em absoluto necessário, resultando a teórica autorizada, portanto, a supô-los.”


“Se, além disso, as ideias de Deus, de um mundo inteligível (o reino de Deus) e da imortalidade, determinadas mediante predicados deduzidos da nossa própria natureza, não se pode considerar esta determinação como representação sensível daquelas ideias racionais puras (antropomorfismo), nem como conhecimento transcendente de objetos suprassensíveis, dado que estes predicados não são outra coisa mais do que a inteligência e a vontade, consideramo-los em relação recíproca, tais como os devemos conceber na lei moral e, por conseguinte, só enquanto deles fizermos um uso puro prático. Então, fazendo abstração de tudo o que depende psicologicamente destes conceitos, isto é, enquanto observamos empiricamente esta nossa faculdade no seu exercício (por exemplo, que o entendimento do homem é discursivo, sendo por conseguinte, as suas representações pensamentos e não intuições; que estas representações ocorrem no tempo; que a sua vontade tem sempre a sua satisfação dependente da existência de seu objeto, etc., fatos esses que não ocorrem desse modo no ser supremo), não resultando assim dos conceitos, mediante os quais nos é dado representar um ser puro do entendimento, nada mais do que é exigido precisamente para a possibilidade de conceber e, por conseguinte, o conhecimento de Deus, mas somente na relação prática. Por isso, se tentarmos distender este conhecimento a um ponto de vista teorético, resultará que possuímos um entendimento que não pensa mas apenas intui; uma vontade que se dirige a objetos de cuja existência não depende, nem em parcela mínima, a sua satisfação (nem ao menos pretendo mencionar os predicados transcendentais, como, por exemplo, uma ampla existência, ou seja duração, mas que não encontra lugar no tempo, único meio possível para representarmos a existência como sendo magnífica), propriedades estas acerca das quais não podemos formular qualquer conceito que sirva para o conhecimento do objeto, concluindo com isso que eles nunca podem ser utilizados para uma teoria de seres suprassensíveis e, portanto, não podem, nesse particular, estabelecer qualquer conhecimento especulativo, cabendo-lhe apenas limitar o seu uso ao exercício da lei moral.”


“Mas em relação ao uso prático, ainda nos resta nas propriedades de um entendimento e de uma vontade, o conceito de uma relação, à qual a lei prática (que determina precisamente a priori esta relação do entendimento com a vontade) proporciona realidade objetiva. Mas uma vez que isso ocorreu, é proporcionada realidade ao conceito do objeto de uma vontade moralmente determinada (ao do sumo bem), e com ele às condições de sua possibilidade, às ideias de Deus, de liberdade e de imortalidade, mas sempre só em relação com o exercício da lei moral (e não para uma necessidade especulativa).
Depois dessa observação, fácil se torna encontrar a resposta à importante questão de se o conceito de Deus é um conceito pertencente à física (por conseguinte também à metafísica, como a que só contém os princípios puros a priori da primeira na significação universal), ou um conceito pertencente à moral. Explicar as disposições naturais, ou as suas mutações, recorrendo a Deus como autor de todas as coisas, não é certamente uma explicação física, constituindo isso, sempre, uma confissão de que é ali onde a filosofia termina a sua tarefa, porquanto desse modo, somos obrigados a admitir algo cujo conceito não as encerra em si mesmo, para podermos formar um conceito da possibilidade daquilo que temos diante da nossa vista. Entretanto, alcançar por meio da metafísica o conceito de Deus e a prova da sua existência mediante conclusões seguras, partindo do conhecimento deste mundo, é impossível, porque não nos compete conhecer este mundo como o todo mais perfeito possível; por conseguinte, para tal fim, deveríamos conhecer todos os mundos possíveis (para podê-los confrontar com este) e, portanto, ser oniscientes, para dizer que esse mundo só é possível mediante um Deus (tal e como nos é dado ter uma ideia desse conceito). Mas, além disso, é absolutamente impossível conhecer a existência deste ser por simples conceitos, porque uma proposição existencial, isto é, aquela que acerca de um ser, do qual eu formulo um conceito, diz que ele existe, é uma proposição sintética, isto é, uma proposição por meio da qual eu vou além daquele conceito, dizendo mais do que foi pensado no conceito, ou seja, que a este conceito do entendimento, corresponde um objeto fora do entendimento, o qual é manifestamente impossível de produzir-se mediante qualquer raciocínio. Desse modo, resta apenas o único procedimento à razão para alcançar esse conhecimento, a saber: que ela, como razão pura, partindo do princípio superior de seu uso puro prático (dirigido este, além disso, só à existência de algo, como consequência da razão), determine o seu objeto, e então mostre-se inevitável no seu problema, isto é, a direção necessária da vontade para o sumo bem, não apenas a necessidade de aceitar esse primeiro em relação com a possibilidade deste bem no mundo, mas, também, o que ainda é mais de notar, alguma coisa que faltava em absoluto ao progresso da razão no caminho da natureza, ou seja, um conceito exatamente determinado por este ser originário. Como só conhecemos deste mundo uma pequena parte e, por isso, não podemos compará-lo com todos os mundos possíveis, embora possamos, pela sua ordem, deduzir que o autor do universo deve ser sábio, bom, poderoso, etc.; isso tudo nos é dado deduzir da ordem, da finalidade e da grandeza do universo, mas não podemos conceber a onisciência, a bondade infinita e a onipotência, etc., deste autor. Podemos, ainda, admitir que temos o direito de suprir a nossa carência de poder para conceber os atributos desse autor mediante uma hipótese totalmente racional e permitida, isto é, que se em todas as partes que se apresentam ao nosso conhecimento brilham a sabedoria, a bondade, etc., em todas as demais deverá ser assim, sendo portanto racional atribuir ao Criador do mundo toda a perfeição possível; mas estas não são conclusões por meio das quais possamos enaltecer a nossa penetração, mas apenas direitos que nos podem ser concedidos e que, apesar de tudo, necessitam de um assentimento alheio para deles fazermos uso. O conceito de Deus resulta, assim, portanto, no caminho empírico (da física) um conceito não exatamente determinado da perfeição do ser primordial, não se podendo considerá-lo adequado ao conceito de uma divindade (em sua parte transcendental, a metafísica, nada se pode levar a cabo).”


“Uma exigência da razão pura prática, é fundamentada em um dever, o de tornar algo (o supremo bem) objeto de minha vontade para fomentá-lo com todas as minhas forças; mas, para isso, devo eu pressupor a possibilidade do mesmo e, por conseguinte, também as condições dessa possibilidade, a saber, Deus, a liberdade e a imortalidade, porque não posso demonstrá-las mediante a minha razão especulativa, nem mesmo repudiá-las. Este dever está fundamentado em uma lei, imediata e inteiramente independente destas últimas pressuposições, apoditicamente certa por si mesma, isto é, na lei moral, não necessitando portanto de qualquer outro apoio em uma opinião teórica sobre a natureza interior das coisas, sobre o fim secreto da ordem no mundo ou sobre um governante que o presida, para obrigar-nos perfeitamente a ações incondicionadas conforme à lei. Mas o efeito subjetivo dessa lei, isto é, a disposição de ânimo a ela adequada e também por ela própria necessária para fomentar o supremo bem praticamente possível, pressupõe, contudo, no mínimo, que este último resulte, possível, porque, do contrário, seria praticamente impossível esforçar-se para o objeto de um conceito que fosse, no fundo, vão e sem objetivo.”


“Acredita sempre que é uma abominável iniquidade preferir a vida à honra, e por amor à vida perder o que a torna digna de ser vivida.” (Juvenal – Sat. 8. 79-84)


“Vê-se portanto que o método se desenrola do seguinte modo: Primeiro se trata só de fazer com que o juízo, por meio de leis morais, venha a ser ocupação natural paralela a todas as ações que nos são próprias, sem contudo perder de vista as ações livres alheias, de forma a chegar ser, por assim dizer, um costume que se fortifique em nossa faculdade de julgar, inquirindo, cada vez com maior penetração e antes de qualquer outra coisa, se a ação está objetivamente conforme à lei moral e a que lei. Distinguimos nisso a atenção àquela lei que só nos é dado proporcionar pelo princípio da obrigação daquela outra que é de fato obrigatória como, por exemplo, a lei que manda aliviar a penúria do homem e o direito desse mesmo homem; a última prescreve deveres essenciais, enquanto a primeira exige deveres acidentais, podendo cada um capacitar-se assim dos diferentes deveres que coincidem na mesma ação. Outro ponto acerca do qual se torna necessário chamar a atenção, é a questão de saber se a ação se realizou também (subjetivamente) prismada, na lei moral e, consequentemente, se está enquadrada na sua máxima; se possui, como fato, a exatidão moral, e se teve, como intenção, um verdadeiro moral. Não resta dúvida de que este exercício e a consciência da cultura que resulta de nossa razão quando formula os seus juízos, atendo-se somente ao prático, deva produzir paulatinamente em nós algum interesse para com a lei que rege a nossa razão e, por conseguinte, as nossas ações moralmente boas, porque, por fim, acabamos por amar aquilo que consideramos como fator principal de conhecimentos amplos no uso mais extenso de nossas faculdades cognoscitivas, extensão esta que devemos precisamente e de forma especial àquilo onde encontramos a exatidão moral, porquanto nessa ordem de coisas podemos encontrar a razão perfeitamente enquadrada nos seus limites quando pode determinar a priori, segundo certos princípios, o que deva ocorrer. Desse modo acaba um observador da natureza por afeiçoar-se aos objetos que de começo repugnam aos seus sentidos, ao descobrir nos mesmos a grande finalidade de sua organização, alimentando assim nessas pesquisas a sua razão. Leibnitz, por exemplo, depois de ter examinado cuidadosamente um inseto ao microscópio, tornou a colocá-lo cuidadosamente na folha onde o encontrara, porque, tendo-o instruído, e portanto proporcionado um benefício, resultara credor de sua gratidão.”


“Todavia, se posso vencer todas essas dúvidas, então fica patente aí a consciência das inclinações e das circunstâncias felizes, além da possibilidade de bastar-se a si mesmo, que sempre me resulta proveitosa sob outros aspectos. Resultará disso que a lei do dever, no valor positivo que a observância da mesma nos faz sentir, encontrará fácil acesso em nosso recôndito, graças ao respeito para com nós mesmos, que se origina na consciência da nossa liberdade. Se este respeito for bem estabelecido, se o homem não teme nada tanto quanto encontrar-se diante de seus próprios olhos em exame de consciência desprezível e repugnante, pode agora fundamentar-se sobre este sentimento todas as boas disposições morais, porque isso constitui a melhor custódia, talvez a única capaz de impedir que instintos pouco nobres, capazes de corrupção, penetrem no ânimo.”

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