Editora: Contraponto
ISBN: 978-85-8591-017-4
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Opinião: ★★★★★
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte
I
“A mercadoria já não pode ser criticada por
ninguém: nem enquanto sistema geral, nem mesmo como essa embalagem determinada
que terá sido conveniente aos empresários pôr nesse momento no mercado. Em todo
o lado onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são aquelas que
querem o espetáculo. Portanto, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem
infringir a omertá que diz respeito a
tudo. Acabou-se com esta inquietante concepção que dominou durante mais de
duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticável e transformável, reformada ou
revolucionada. E isto não foi obtido pelo aparecimento de argumentos novos, mas
muito simplesmente porque os argumentos se tornaram inúteis. Perante este
resultado medir-se-á, em vez da felicidade geral, a força terrível das redes da
tirania.
Jamais a censura foi tão perfeita. Jamais a
opinião daqueles a quem se faz crer ainda, em certos países, que são cidadãos
livres, foi tão pouco autorizada a tornar-se conhecida, cada vez que se trata
duma escolha que afetará a sua vida real. Jamais foi permitido mentir-lhes com
uma tão perfeita ausência de consequência. O espectador é suposto ignorar tudo,
não merecer nada. Quem olha sempre, para saber a continuação, jamais agirá: e
tal deve ser o espectador. Tudo aquilo que nunca é sancionado é verdadeiramente
permitido. É pois arcaico falar de escândalo. Atribui-se a um homem de Estado
italiano de primeiro plano, tendo exercido funções simultaneamente no
ministério e no governo paralelo chamado P.2, Potere due, uma divisa que resume profundamente o período em que
entrou o mundo inteiro, um pouco depois da Itália e dos Estados Unidos: “Havia
escândalos, mas já não há”.
Na obra O
18 Brumário de Louis Bonaparte, Marx descrevia o papel invasor do
Estado na França do Segundo Império, que dispunha então de meio milhão de
funcionários: “Tudo se transforma assim em objeto da atividade governamental,
desde a ponte, à escola, à propriedade comunal de uma aldeia até às linhas do
caminho de ferro, às propriedades nacionais e às universidades de província.” A
famosa questão do financiamento dos partidos políticos punha-se já nessa época,
pois Marx nota que “os partidos que, à vez, lutavam pela supremacia, viam na
tomada de posse deste edifício enorme a principal presa do vencedor”. Eis como
isto soa um pouco bucólico e, como se diz, ultrapassado, já que as especulações
do Estado de hoje dizem respeito preferencialmente às novas cidades e
autoestradas, à circulação subterrânea e à produção de energia eletronuclear, à
exploração petrolífera e aos computadores, à administração dos bancos e dos
centros socioculturais, às modificações da “paisagem audiovisual” e às
exportações clandestinas de armas, à promoção imobiliária e à indústria
farmacêutica, à agroalimentar e à gestão dos hospitais, aos créditos militares
e aos fundos secretos do departamento, em contínuo crescimento, que deve gerir
os numerosos serviços de proteção da sociedade. E, contudo, Marx continua sendo
infelizmente demasiado atual, quando evoca, no mesmo livro, este governo “que
não toma de noite as decisões que quer executar de dia, mas decide o dia e
executa à noite”.”
“Esta democracia tão perfeita fabrica ela
mesma o seu inconcebível inimigo: o terrorismo. Ela quer, com efeito, antes ser julgada pelos seus inimigos que
pelos seus resultados. A história do terrorismo é escrita pelo Estado. É,
portanto, educativa. As populações espectadoras não podem certamente saber tudo
sobre o terrorismo, mas podem sempre saber a esse respeito o suficiente para
ser persuadidas de que, comparado ao terrorismo, tudo o resto deverá
parecer-lhes mais aceitável, em todo o caso mais racional e mais democrático.”
“A dissolução da lógica foi prosseguida,
segundo os interesses fundamentais do novo sistema de dominação, por diferentes
meios que operaram prestando sempre um apoio recíproco. Vários destes meios
estão ligados à instrumentação técnica, que experimentou e popularizou o
espetáculo, mas alguns deles estão preferencialmente ligados à psicologia de
massas da submissão.
De acordo com as técnicas, quando a imagem
construída e escolhida por algum outro
se torna na principal relação do indivíduo com o mundo que antes olhava por si
mesmo, de cada lugar onde podia ir, não se ignora evidentemente que a imagem
vai suportar tudo; porque no interior de uma mesma imagem pode justapor-se sem
contradição seja o que for. O fluxo de imagens domina tudo, e é igualmente
qualquer outro que governa a seu gosto este resumo simplificado do mundo
sensível; que escolhe aonde irá esta corrente, e também o ritmo daquilo que
deverá manifestar-se nela, como perpétua surpresa arbitrária, não deixando
nenhum tempo para a reflexão, e em absoluto, independentemente do que o
espectador possa compreender ou pensar. Nesta experiência concreta da submissão
permanente, encontra-se a raiz psicológica da adesão tão generalizada àquilo
que lá está, que vem a reconhecer-lhe ipso
fato um valor suficiente. O discurso
espetacular cala evidentemente, além de tudo aquilo que é propriamente secreto,
tudo aquilo que não lhe convém. Daquilo que mostra ele isola sempre o meio, o
passado, as intenções, as consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Já
que ninguém pode contradize-lo, o espetáculo tem o direito de contradizer-se a
si mesmo, de ratificar o seu passado. A altiva atitude dos seus servidores
quando têm de fazer saber uma versão nova, por ventura mais mentirosa ainda, de
certos fatos, é de ratificar rudemente a ignorância e as más interpretações
atribuídas ao seu público, ainda que sejam os mesmos que na véspera se
apressavam a difundir esse erro, com a sua habitual certeza. Assim, o ensino do
espetáculo e a ignorância do espectador passam indevidamente por fatores
antagônicos quando nascem um do outro. A linguagem binária do computador é
igualmente uma irresistível incitação a admitir em cada instante, sem reservas,
aquilo que foi programado como muito bem quis qualquer outro, e que se faz
passar pela fonte intemporal duma lógica superior, imparcial e total. Que ganho
de rapidez, e de vocabulário, para julgar de tudo! Político? Social? É preciso
escolher. O que é um não pode ser o outro. A minha escolha impõe-se.
Sopram-nos, e sabe-se para que são estas estruturas. Não é pois surpreendente
que, desde a infância, os alunos facilmente comecem, e com entusiasmo, pelo
Saber Absoluto da informática: enquanto ignoram cada vez mais a leitura, que
exige um verdadeiro julgamento a cada linha; e que só ela pode dar acesso à
vasta experiência humana anti-espetacular. Já que a conversação está quase
morta e em breve também estarão muitos daqueles que sabiam falar.
De acordo com os meios do pensamento das
populações contemporâneas, a primeira causa da decadência está ligada
claramente ao fato de que todo o discurso mostrado no espetáculo não deixa
nenhum lugar para a resposta; e a lógica não se formava socialmente senão no
diálogo. Mas também quando se propagou o respeito por aquele que fala no
espetáculo, que é considerado ser importante, rico, prestigiado, que é a autoridade mesma, a tendência espalha-se
também entre os espectadores, de quererem ser tão ilógicos como o espetáculo,
para alardear um reflexo individual dessa autoridade. Enfim, a lógica não é
fácil, e ninguém deseja ensiná-la. Nenhum drogado estuda lógica; porque não tem
dela necessidade e porque não tem sequer essa possibilidade. Esta preguiça do
espectador é também a de qualquer quadro intelectual, do especialista formado à
pressa, que tentará em todos os casos esconder os estreitos limites dos seus
conhecimentos pela repetição dogmática
de qualquer argumento de autoridade ilógica.”
“O apagamento da personalidade acompanha
fatalmente as condições da existência concretamente submetida às normas
espetaculares, e também cada vez mais separada das possibilidades de conhecer
experiências que sejam autênticas e, através delas, descobrir as suas
preferências individuais. O indivíduo, paradoxalmente, deverá negar-se
permanentemente se pretende ser um pouco considerado nesta sociedade. Esta
existência postula com efeito uma fidelidade sempre variável, uma série de
adesões constantemente enganosas a produtos falaciosos. Trata-se de correr
rapidamente atrás da inflação dos sinais depreciados da vida. A droga ajuda a
conformar-se com esta organização das coisas; a loucura ajuda a fugir dela.”
“O espetáculo não esconde que alguns perigos
cercam a ordem maravilhosa que estabeleceu. A poluição dos oceanos e a
destruição das florestas equatoriais ameaçam a renovação de oxigênio da Terra;
a sua capa de ozone resiste mal ao progresso industrial; as radiações de origem
nuclear acumulam-se irreversivelmente. O espetáculo conclui somente que isso
não tem importância. Não quer discutir senão as datas e as doses. E somente com
isto consegue tranquilizar; o que para um espirito pré-espetacular seria tido
por impossível.
Os métodos da democracia espetacular são de
uma grande flexibilidade, contrariamente à simples brutalidade do diktat totalitário. Pode manter-se o
nome quando a coisa foi secretamente transformada (da cerveja ao bife, passando
por um filósofo). Também pode mudar-se o nome, quando a coisa foi secretamente
continuada: por exemplo, em lnglaterra, a unidade de tratamento de resíduos
nucleares de Windscale levou a fazer chamar Sellafield a sua localidade, a fim
de melhor desviar as suspeitas, depois de um desastroso incêndio em 1957; mas
este rebatismo toponímico não impediu o aumento da mortalidade por câncer e
leucemia nos seus arredores. O governo britânico, viemos a sabê-lo
democraticamente trinta anos mais tarde, tinha decidido, então, manter secreto
um relatório sobre a catástrofe que julgava, e não sem razão, de natureza a
abalar a confiança que o público depositava no nuclear.
As práticas nucleares, militares ou civis,
necessitam de uma dose de segredo mais forte que quaisquer outras – ainda que,
como se sabe, nestas matérias o segredo nunca é demais. Para facilitar a vida,
quer dizer, as mentiras, os sábios escolhidos pelos senhores deste sistema
descobriram a utilidade de mudar também as unidades de medida, diversificá-las
segundo um maior número de pontos de vista, refiná-las para, conforme as
circunstâncias, poder aldrabar com várias dessas cifras dificilmente convertíveis.
É assim que para avaliar a radioatividade, pode dispor-se das seguintes
unidades de medida: o curie, o becquerel, a rontgen, o rad, aliás centigray, o
rem, sem esquecer o fácil milirad e o sivert, que é o mesmo que uma porção de
100 rems. Isto evoca a recordação das subdivisões da moeda inglesa cuja
complexidade dificultava o rápido domínio para os estrangeiros, no tempo em que
Sellafield ainda se chamava Windscale.
Imagina-se o rigor e a precisão que teriam
podido alcançar no século XIX, a história das guerras e, por consequência, os
teóricos da estratégia se – com o objetivo de não fornecer informações
demasiado confidenciais aos comentadores neutros ou aos historiadores inimigos
tivessem habitualmente de ser prestadas contas de uma campanha nestes termos:
“A fase preliminar comporta uma série de confrontos onde, do nosso lado, uma
sólida vanguarda, constituída por quatro generais e pelas unidades colocadas
sob o seu comando, se confronta com um corpo inimigo contando 13.000 baionetas.
Na fase posterior desenrola-se uma batalha campal longamente disputada onde se
usou a totalidade do nosso exército, com os seus 290 canhões e a sua poderosa
cavalaria de 18.000 sabres; enquanto que o adversário lhe opôs tropas que não
contavam com menos de 3.600 tenentes de infantaria, quarenta capitães de
cavalaria ligeira e vinte e quatro de cavalaria pesada. Depois de alternâncias
de reveses e de êxitos de parte a parte, a batalha pôde ser considerada
finalmente coma indecisa. As nossas perdas, muito abaixo da cifra média
habitualmente verificada em combates com uma duração e intensidade comparáveis,
são sensivelmente superiores às dos Gregos em Maratona, mas inferiores às dos
Prussianos em Yena.” Depois deste exemplo, não é impossível a um especialista
fazer uma ideia vaga das forças envolvidas. Mas a condução das operações tem a
segurança de ficar acima de qualquer julgamento.
É certamente uma pena que a sociedade humana
enfrente problemas tão abrasadores no momento em que se tornou materialmente
impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil; no momento em
que a dominação, precisamente porque está protegida pelo espetáculo de toda a
réplica às suas decisões e justificações fragmentárias ou delirantes, crê que já não tem necessidade de pensar;
e verdadeiramente já não sabe pensar. Por inabalável que seja o democrata, não
preferiria que lhe tivessem escolhido senhores mais inteligentes?
Na conferência internacional de experts realizada em Genebra, em
Dezembro de 1986, colocava-se simplesmente a questão duma interdição mundial da
produção de clorofluorcarbonetos, o gás que faz desaparecer desde há pouco, mas
a passos largos, a fina camada de ozônio que protegia este planeta – havemos de
recordá-lo... – contra as efeitos nocivos da radiação cósmica. Daniel Verilhe,
representante da filial de produtos químicos da ELF-Aquitaine, e integrando a
este título uma delegação francesa firmemente oposta a esta interdição, fazia
uma observação plena de sentido: “são necessários pelo menos três anos para pôr
em estado de funcionamento eventuais substitutos e os custos podem ser
multiplicados por quatro.” Sabe-se que esta fugitiva capa de ozônio, a uma tal
altitude, não pertence a ninguém nem tem nenhum valor comercial. Portanto, o
estrategista industrial pôde fazer avaliar aos seus contraditores toda a sua
inexplicável indiferença econômica, através deste chamamento à realidade: “É
muito arriscado basear uma estratégia industrial segundo imperativas de matéria
ambiental.”
Aqueles que, há muito tempo, começaram a
criticar a economia política definindo-a como “a negação acabada do homem”, não
se enganavam. Poder-se-á reconhecê-la neste episódio.”
“A ciência da justificação mentirosa apareceu
naturalmente depois dos primeiros sintomas de decadência da sociedade burguesa,
com a proliferação cancerosa das pseudo-ciências ditas “do homem”; mas, por
exemplo, a medicina moderna pôde fazer-se passar por útil durante algum tempo,
e os que venceram a varíola ou a lepra eram diferentes destes que, com baixeza,
capitularam perante as radiações nucleares ou a química agro-alimentar. Nota-se
rapidamente que a medicina, hoje, indubitavelmente, já não tem o direito de
defender a saúde da população contra o ambiente patogênico, visto que isto
seria opor-se ao Estado, ou pelo menos à indústria farmacêutica. Mas não é
somente por aquilo que é obrigada a calar, que a atividade científica presente
confessa aquilo em que se tornou. É também por aquilo que, muitas vezes, tem a
simplicidade de dizer. Anunciando em Novembro de 1985, depois de uma
experimentação de oito dias com quatro doentes, que talvez tivessem descoberto
um remédio eficaz contra o AIDS, os professores Even e Andrieu, do hospital de
Laennec, viam morrer os seus doentes dois dias depois e suscitavam algumas reservas
por parte de vários médicos, menos avançados ou talvez ciumentos, pela sua
maneira precipitada de correr a registar, algumas horas antes da derrocada, o
que não era mais que uma enganadora aparência de vitória. Aqueles professores
defenderam- se sem se perturbar, afirmando que “apesar de tudo, mais valem
falsas esperanças do que não haver esperança nenhuma”. Eram mesmo demasiado
ignorantes para reconhecer que este argumento, por si só, era uma completa
negação do espírito científico e que tinha historicamente sempre servido para
encobrir as proveitosas fantasias dos charlatães e dos feiticeiros, nos tempos
em que não se lhes confiava a direção dos hospitais.
Quando a ciência oficial vem sendo conduzida
deste modo, como todo o resto do espetáculo social que, sob uma apresentação
materialmente modernizada e enriquecida, não fez mais que retomar as
antiquíssimas técnicas do teatro de feira – ilusionistas, vendedores da banha
da cobra e vigaristas –, não pode surpreender ver que grande autoridade retomam
paralelamente, um pouco por todo o lado, os bruxos e as seitas, o zen embalado
em vácuo, ou a teologia dos Mórmons.”
“Invertendo uma fórmula famosa de Hegel, já
em 1967 notava eu que “num mundo realmente
invertido, o verdadeiro é um momento do falso”.
“Os terroristas conhecidos, ou considerados
como tais, são combatidos abertamente duma maneira terrorista.”
“O poder tornou-se tão misterioso que, depois
do assunto das vendas ilegais de armas ao Irã pela Presidência dos Estados
Unidos, pode perguntar-se quem governa verdadeiramente nos Estados Unidos, a
mais forte potência do mundo dito democrático? E, portanto, que diabo pode
comandar o mundo democrático?”
“O general Noriega tornou-se num instante
conhecido mundialmente no princípio do ano de 1988. Era ditador sem título do
Panamá, país sem exército, onde comandava a Guarda Nacional. Pois o Panamá não
é verdadeiramente um Estado soberano: foi escavado pelo seu canal e não o
contrário. O dólar é a sua moeda, e o verdadeiro exército ali estacionado é
igualmente estrangeiro. Noriega tinha feito toda a sua carreira, nisto
perfeitamente idêntica à de Jaruzelski na Polônia, como general-polícia ao
serviço do ocupante. Era importador de droga para os Estados Unidos, pois o
Panamá não produz o suficiente, e exportava para a Suíça os seus capitais
“panamenhos”. Tinha trabalhado com a C.I.A. contra Cuba e, para ter a cobertura
adequada às suas atividades econômicas, tinha também denunciado às autoridades
americanas, tão obcecadas por este problema, um certo número dos seus rivais na
importação. O seu principal conselheiro em matéria de segurança, que provocava
inveja em Washington, era o melhor do mercado, Michael Harari, antigo oficial
da Mossad, o serviço secreto de Israel. Quando os americanos quiseram
desfazer-se do personagem, porque alguns dos seus tribunais o tinham
imprudentemente condenado, Noriega declarou-se disposto a defender-se durante
mil anos, por patriotismo panamiano, simultaneamente contra o seu povo em
revolta e contra o estrangeiro, e rapidamente recebeu a aprovação pública dos
ditadores burocráticos mais austeros de Cuba e da Nicarágua, em nome do
anti-imperialismo.
Longe de ser uma estranheza estritamente
panamiana, este general Noriega, que vende
tudo e simula tudo num mundo que por todo o lado faz o mesmo, era, ao mesmo
tempo, como espécie de homem duma espécie de Estado, como espécie de general,
como capitalista, perfeitamente representativo do espetacular integrado; e dos
êxitos que este permite nas direções mais variadas da sua política interior e
internacional. É um modelo do príncipe do
nosso tempo; e entre aqueles que se destinam a chegar e a ficar no poder,
em qualquer sítio onde este possa estar, os mais capazes assemelham-se lhe
bastante. Não é o Panamá que produz tais maravilhas, é esta época.”
“O segredo domina este mundo, e em primeiro
lugar como segredo da dominação. Segundo o espetáculo, o segredo não seria mais
que uma necessária exceção à regra da informação abundantemente oferecida por
toda a superfície da sociedade, do mesmo modo que a dominação, neste “mundo
livre” do espetacular integrado, se reduziria a não ser mais que um
Departamento executivo ao serviço da democracia. Mas ninguém acredita
verdadeiramente no espetáculo. Como aceitariam os espectadores a existência do
segredo que garante, por si só, que não podem gerir um mundo do qual ignoram as
principais realidades, se a título extraordinário se lhes pedisse
verdadeiramente a sua opinião sobre a maneira de preceder? É um fato que o segredo
não aparece a quase ninguém na sua pureza inacessível, e na sua generalidade
funcional. Todos admitem que exista
uma pequena zona de segredo reservada aos especialistas; e para a generalidade
das coisas, muitos acreditam estar no segredo.
La Boétie demonstrou, no Discurso
sobre a servidão voluntária, como o poder de um tirano deve encontrar
numerosos apoios entre os círculos concêntricos dos indivíduos que nele
encontram, ou creem encontrar, o seu proveito. Da mesma maneira muitos, entre
os políticos ou midiáticos que estão convencidos de que não se pode suspeitar
deles como sendo irresponsáveis,
conhecem muitas coisas pelas relações e pelas confidências. Aquele que se
contenta com estar dentro da confidência, não é muito impelido a criticá-la;
nem portanto a reparar que, em todas as confidências, a parte principal da
realidade ser-lhe-á sempre escondida. Pela benevolente proteção dos
trapaceiros, conhece umas poucas cartas mais, mas que podem ser falsas; e nunca
o método que dirige e explica o jogo. Identifica-se, assim, em seguida com os
manipuladores e despreza a ignorância que no fundo partilha. Pois as migalhas
da informação oferecidas a estes familiares da tirania mentirosa estão
normalmente infectadas de mentira, incontroláveis, manipuladas: Contudo,
satisfazem aqueles que a elas acedem, porque se sentem superiores a todos os
que não sabem nada. De resto, não valem senão para melhor fazer aceitar a
dominação, e nunca para a compreender efetivamente. Elas constituem o
privilégio dos espectadores de primeira
classe: aqueles que têm a palermice de acreditar que podem compreender
algo, não servindo-se daquilo que se lhes esconde, mas acreditando naquilo que se lhes revela!”
“Em Janeiro de 1988, a Máfia colombiana da
droga publicava um comunicado destinado a retificar a opinião pública sobre a
sua pretendida existência. A maior exigência duma Máfia, onde quer que possa
estar constituída, é naturalmente estabelecer que não existe, ou que foi vítima
de calúnias pouco científicas; esta é a primeira semelhança com o capitalismo.
Mas na circunstância, esta Máfia irritada por ser a única posta em evidência
chegou a evocar os outros agrupamentos que queriam fazer-se esquecer,
tornando-a abusivamente por bode expiatório. Declarava: “Nós não pertencemos à
Máfia burocrática e política, nem à dos banqueiros e financeiros, nem à dos
milionários, nem à Máfia dos grandes contratos fraudulentos, à dos monopólios
ou à do petróleo, nem à dos grandes meios de comunicação.”
Pode seguramente considerar-se que os autores
desta declaração, como os outros, têm interesse em verter as suas práticas no
vasto rio de águas turvas da criminalidade e das ilegalidades banais, que
inunda em toda a sua extensão a sociedade atual; mas também é justo reconhecer
que se trata de pessoas que, por profissão, sabem melhor que ninguém do que
falam.”
“Só se fala continuamente de “Estado de
Direito”, a partir do momento em que o Estado moderno dito democrático deixou
em geral de o ser. Não é de modo nenhum por acaso que a expressão só foi
popularizada pouco depois de 1970 e, em primeiro lugar, justamente na Itália.
Em muitos domínios, fazem-se mesmo leis precisamente para que sejam contornadas, por aqueles que justamente possuirão
todos os meios para isso. A ilegalidade em certas circunstâncias, por exemplo,
à volta do comércio mundial de todo o tipo de armamentos, e mais frequentemente
envolvendo produtos da mais alta tecnologia, não é mais que uma espécie de
força de apoio da operação econômica, que se encontrará muito mais rentável.
Hoje muitos negócios são necessariamente desonestos
como o século, e não como eram outrora aqueles que praticavam, em séries
claramente delimitadas, os homens que tinham escolhido os caminhos da
desonestidade.”
“As verdadeiras influências permanecem
escondidas e as últimas intenções não podem ser senão muito dificilmente
percebidas, quase nunca compreendidas. De modo que ninguém pode dizer que não é
enganado ou manipulado, mas é só em raros instantes que o próprio manipulador
pode saber se foi vencedor. E, por outro lado, encontrar-se do lado ganhador da
manipulação não quer dizer que se tenha escolhido com justeza a perspectiva
estratégica. É assim que êxitos táticos podem atolar grandes forças em maus
caminhos.
Numa mesma rede, perseguindo aparentemente um
mesmo fim, aqueles que não constituem senão uma parte da rede são obrigados a
ignorar todas as hipóteses e conclusões das outras partes, e sobretudo do seu
núcleo dirigente. O fato bastante notório de que todas as informações sobre
qualquer assunto observado podem ser também completamente imaginárias, ou
gravemente falseadas, ou interpretadas muito inadequadamente, complica e torna
pouco seguros, numa vasta medida, os cálculos dos inquisidores; pois aquilo que
é suficiente para condenar alguém não é tão seguro quando se trata de o
conhecer ou de o utilizar. Já que as fontes de informação são rivais, as
falsificações o são também.”
“O espetáculo é uma miséria, mais que uma conspiração.
E os que escrevem nos jornais do nosso tempo não nos escondem nada da sua
inteligência.”