sexta-feira, 7 de julho de 2017

A Sociedade do Espetáculo (Parte III) – Guy Debord

Editora: Contraponto
ISBN: 978-85-8591-017-4
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Opinião: ★★★★★
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I
  


“A mercadoria já não pode ser criticada por ninguém: nem enquanto sistema geral, nem mesmo como essa embalagem determinada que terá sido conveniente aos empresários pôr nesse momento no mercado. Em todo o lado onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são aquelas que querem o espetáculo. Portanto, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem infringir a omertá que diz respeito a tudo. Acabou-se com esta inquietante concepção que dominou durante mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticável e transformável, reformada ou revolucionada. E isto não foi obtido pelo aparecimento de argumentos novos, mas muito simplesmente porque os argumentos se tornaram inúteis. Perante este resultado medir-se-á, em vez da felicidade geral, a força terrível das redes da tirania.
Jamais a censura foi tão perfeita. Jamais a opinião daqueles a quem se faz crer ainda, em certos países, que são cidadãos livres, foi tão pouco autorizada a tornar-se conhecida, cada vez que se trata duma escolha que afetará a sua vida real. Jamais foi permitido mentir-lhes com uma tão perfeita ausência de consequência. O espectador é suposto ignorar tudo, não merecer nada. Quem olha sempre, para saber a continuação, jamais agirá: e tal deve ser o espectador. Tudo aquilo que nunca é sancionado é verdadeiramente permitido. É pois arcaico falar de escândalo. Atribui-se a um homem de Estado italiano de primeiro plano, tendo exercido funções simultaneamente no ministério e no governo paralelo chamado P.2, Potere due, uma divisa que resume profundamente o período em que entrou o mundo inteiro, um pouco depois da Itália e dos Estados Unidos: “Havia escândalos, mas já não há”.
Na obra O 18 Brumário de Louis Bonaparte, Marx descrevia o papel invasor do Estado na França do Segundo Império, que dispunha então de meio milhão de funcionários: “Tudo se transforma assim em objeto da atividade governamental, desde a ponte, à escola, à propriedade comunal de uma aldeia até às linhas do caminho de ferro, às propriedades nacionais e às universidades de província.” A famosa questão do financiamento dos partidos políticos punha-se já nessa época, pois Marx nota que “os partidos que, à vez, lutavam pela supremacia, viam na tomada de posse deste edifício enorme a principal presa do vencedor”. Eis como isto soa um pouco bucólico e, como se diz, ultrapassado, já que as especulações do Estado de hoje dizem respeito preferencialmente às novas cidades e autoestradas, à circulação subterrânea e à produção de energia eletronuclear, à exploração petrolífera e aos computadores, à administração dos bancos e dos centros socioculturais, às modificações da “paisagem audiovisual” e às exportações clandestinas de armas, à promoção imobiliária e à indústria farmacêutica, à agroalimentar e à gestão dos hospitais, aos créditos militares e aos fundos secretos do departamento, em contínuo crescimento, que deve gerir os numerosos serviços de proteção da sociedade. E, contudo, Marx continua sendo infelizmente demasiado atual, quando evoca, no mesmo livro, este governo “que não toma de noite as decisões que quer executar de dia, mas decide o dia e executa à noite”.”


“Esta democracia tão perfeita fabrica ela mesma o seu inconcebível inimigo: o terrorismo. Ela quer, com efeito, antes ser julgada pelos seus inimigos que pelos seus resultados. A história do terrorismo é escrita pelo Estado. É, portanto, educativa. As populações espectadoras não podem certamente saber tudo sobre o terrorismo, mas podem sempre saber a esse respeito o suficiente para ser persuadidas de que, comparado ao terrorismo, tudo o resto deverá parecer-lhes mais aceitável, em todo o caso mais racional e mais democrático.”


“A dissolução da lógica foi prosseguida, segundo os interesses fundamentais do novo sistema de dominação, por diferentes meios que operaram prestando sempre um apoio recíproco. Vários destes meios estão ligados à instrumentação técnica, que experimentou e popularizou o espetáculo, mas alguns deles estão preferencialmente ligados à psicologia de massas da submissão.
De acordo com as técnicas, quando a imagem construída e escolhida por algum outro se torna na principal relação do indivíduo com o mundo que antes olhava por si mesmo, de cada lugar onde podia ir, não se ignora evidentemente que a imagem vai suportar tudo; porque no interior de uma mesma imagem pode justapor-se sem contradição seja o que for. O fluxo de imagens domina tudo, e é igualmente qualquer outro que governa a seu gosto este resumo simplificado do mundo sensível; que escolhe aonde irá esta corrente, e também o ritmo daquilo que deverá manifestar-se nela, como perpétua surpresa arbitrária, não deixando nenhum tempo para a reflexão, e em absoluto, independentemente do que o espectador possa compreender ou pensar. Nesta experiência concreta da submissão permanente, encontra-se a raiz psicológica da adesão tão generalizada àquilo que lá está, que vem a reconhecer-lhe ipso fato um valor suficiente. O discurso espetacular cala evidentemente, além de tudo aquilo que é propriamente secreto, tudo aquilo que não lhe convém. Daquilo que mostra ele isola sempre o meio, o passado, as intenções, as consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Já que ninguém pode contradize-lo, o espetáculo tem o direito de contradizer-se a si mesmo, de ratificar o seu passado. A altiva atitude dos seus servidores quando têm de fazer saber uma versão nova, por ventura mais mentirosa ainda, de certos fatos, é de ratificar rudemente a ignorância e as más interpretações atribuídas ao seu público, ainda que sejam os mesmos que na véspera se apressavam a difundir esse erro, com a sua habitual certeza. Assim, o ensino do espetáculo e a ignorância do espectador passam indevidamente por fatores antagônicos quando nascem um do outro. A linguagem binária do computador é igualmente uma irresistível incitação a admitir em cada instante, sem reservas, aquilo que foi programado como muito bem quis qualquer outro, e que se faz passar pela fonte intemporal duma lógica superior, imparcial e total. Que ganho de rapidez, e de vocabulário, para julgar de tudo! Político? Social? É preciso escolher. O que é um não pode ser o outro. A minha escolha impõe-se. Sopram-nos, e sabe-se para que são estas estruturas. Não é pois surpreendente que, desde a infância, os alunos facilmente comecem, e com entusiasmo, pelo Saber Absoluto da informática: enquanto ignoram cada vez mais a leitura, que exige um verdadeiro julgamento a cada linha; e que só ela pode dar acesso à vasta experiência humana anti-espetacular. Já que a conversação está quase morta e em breve também estarão muitos daqueles que sabiam falar.
De acordo com os meios do pensamento das populações contemporâneas, a primeira causa da decadência está ligada claramente ao fato de que todo o discurso mostrado no espetáculo não deixa nenhum lugar para a resposta; e a lógica não se formava socialmente senão no diálogo. Mas também quando se propagou o respeito por aquele que fala no espetáculo, que é considerado ser importante, rico, prestigiado, que é a autoridade mesma, a tendência espalha-se também entre os espectadores, de quererem ser tão ilógicos como o espetáculo, para alardear um reflexo individual dessa autoridade. Enfim, a lógica não é fácil, e ninguém deseja ensiná-la. Nenhum drogado estuda lógica; porque não tem dela necessidade e porque não tem sequer essa possibilidade. Esta preguiça do espectador é também a de qualquer quadro intelectual, do especialista formado à pressa, que tentará em todos os casos esconder os estreitos limites dos seus conhecimentos pela repetição dogmática de qualquer argumento de autoridade ilógica.”


“O apagamento da personalidade acompanha fatalmente as condições da existência concretamente submetida às normas espetaculares, e também cada vez mais separada das possibilidades de conhecer experiências que sejam autênticas e, através delas, descobrir as suas preferências individuais. O indivíduo, paradoxalmente, deverá negar-se permanentemente se pretende ser um pouco considerado nesta sociedade. Esta existência postula com efeito uma fidelidade sempre variável, uma série de adesões constantemente enganosas a produtos falaciosos. Trata-se de correr rapidamente atrás da inflação dos sinais depreciados da vida. A droga ajuda a conformar-se com esta organização das coisas; a loucura ajuda a fugir dela.”


“O espetáculo não esconde que alguns perigos cercam a ordem maravilhosa que estabeleceu. A poluição dos oceanos e a destruição das florestas equatoriais ameaçam a renovação de oxigênio da Terra; a sua capa de ozone resiste mal ao progresso industrial; as radiações de origem nuclear acumulam-se irreversivelmente. O espetáculo conclui somente que isso não tem importância. Não quer discutir senão as datas e as doses. E somente com isto consegue tranquilizar; o que para um espirito pré-espetacular seria tido por impossível.
Os métodos da democracia espetacular são de uma grande flexibilidade, contrariamente à simples brutalidade do diktat totalitário. Pode manter-se o nome quando a coisa foi secretamente transformada (da cerveja ao bife, passando por um filósofo). Também pode mudar-se o nome, quando a coisa foi secretamente continuada: por exemplo, em lnglaterra, a unidade de tratamento de resíduos nucleares de Windscale levou a fazer chamar Sellafield a sua localidade, a fim de melhor desviar as suspeitas, depois de um desastroso incêndio em 1957; mas este rebatismo toponímico não impediu o aumento da mortalidade por câncer e leucemia nos seus arredores. O governo britânico, viemos a sabê-lo democraticamente trinta anos mais tarde, tinha decidido, então, manter secreto um relatório sobre a catástrofe que julgava, e não sem razão, de natureza a abalar a confiança que o público depositava no nuclear.
As práticas nucleares, militares ou civis, necessitam de uma dose de segredo mais forte que quaisquer outras – ainda que, como se sabe, nestas matérias o segredo nunca é demais. Para facilitar a vida, quer dizer, as mentiras, os sábios escolhidos pelos senhores deste sistema descobriram a utilidade de mudar também as unidades de medida, diversificá-las segundo um maior número de pontos de vista, refiná-las para, conforme as circunstâncias, poder aldrabar com várias dessas cifras dificilmente convertíveis. É assim que para avaliar a radioatividade, pode dispor-se das seguintes unidades de medida: o curie, o becquerel, a rontgen, o rad, aliás centigray, o rem, sem esquecer o fácil milirad e o sivert, que é o mesmo que uma porção de 100 rems. Isto evoca a recordação das subdivisões da moeda inglesa cuja complexidade dificultava o rápido domínio para os estrangeiros, no tempo em que Sellafield ainda se chamava Windscale.
Imagina-se o rigor e a precisão que teriam podido alcançar no século XIX, a história das guerras e, por consequência, os teóricos da estratégia se – com o objetivo de não fornecer informações demasiado confidenciais aos comentadores neutros ou aos historiadores inimigos tivessem habitualmente de ser prestadas contas de uma campanha nestes termos: “A fase preliminar comporta uma série de confrontos onde, do nosso lado, uma sólida vanguarda, constituída por quatro generais e pelas unidades colocadas sob o seu comando, se confronta com um corpo inimigo contando 13.000 baionetas. Na fase posterior desenrola-se uma batalha campal longamente disputada onde se usou a totalidade do nosso exército, com os seus 290 canhões e a sua poderosa cavalaria de 18.000 sabres; enquanto que o adversário lhe opôs tropas que não contavam com menos de 3.600 tenentes de infantaria, quarenta capitães de cavalaria ligeira e vinte e quatro de cavalaria pesada. Depois de alternâncias de reveses e de êxitos de parte a parte, a batalha pôde ser considerada finalmente coma indecisa. As nossas perdas, muito abaixo da cifra média habitualmente verificada em combates com uma duração e intensidade comparáveis, são sensivelmente superiores às dos Gregos em Maratona, mas inferiores às dos Prussianos em Yena.” Depois deste exemplo, não é impossível a um especialista fazer uma ideia vaga das forças envolvidas. Mas a condução das operações tem a segurança de ficar acima de qualquer julgamento.
É certamente uma pena que a sociedade humana enfrente problemas tão abrasadores no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil; no momento em que a dominação, precisamente porque está protegida pelo espetáculo de toda a réplica às suas decisões e justificações fragmentárias ou delirantes, crê que já não tem necessidade de pensar; e verdadeiramente já não sabe pensar. Por inabalável que seja o democrata, não preferiria que lhe tivessem escolhido senhores mais inteligentes?
Na conferência internacional de experts realizada em Genebra, em Dezembro de 1986, colocava-se simplesmente a questão duma interdição mundial da produção de clorofluorcarbonetos, o gás que faz desaparecer desde há pouco, mas a passos largos, a fina camada de ozônio que protegia este planeta – havemos de recordá-lo... – contra as efeitos nocivos da radiação cósmica. Daniel Verilhe, representante da filial de produtos químicos da ELF-Aquitaine, e integrando a este título uma delegação francesa firmemente oposta a esta interdição, fazia uma observação plena de sentido: “são necessários pelo menos três anos para pôr em estado de funcionamento eventuais substitutos e os custos podem ser multiplicados por quatro.” Sabe-se que esta fugitiva capa de ozônio, a uma tal altitude, não pertence a ninguém nem tem nenhum valor comercial. Portanto, o estrategista industrial pôde fazer avaliar aos seus contraditores toda a sua inexplicável indiferença econômica, através deste chamamento à realidade: “É muito arriscado basear uma estratégia industrial segundo imperativas de matéria ambiental.”
Aqueles que, há muito tempo, começaram a criticar a economia política definindo-a como “a negação acabada do homem”, não se enganavam. Poder-se-á reconhecê-la neste episódio.”


“A ciência da justificação mentirosa apareceu naturalmente depois dos primeiros sintomas de decadência da sociedade burguesa, com a proliferação cancerosa das pseudo-ciências ditas “do homem”; mas, por exemplo, a medicina moderna pôde fazer-se passar por útil durante algum tempo, e os que venceram a varíola ou a lepra eram diferentes destes que, com baixeza, capitularam perante as radiações nucleares ou a química agro-alimentar. Nota-se rapidamente que a medicina, hoje, indubitavelmente, já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente patogênico, visto que isto seria opor-se ao Estado, ou pelo menos à indústria farmacêutica. Mas não é somente por aquilo que é obrigada a calar, que a atividade científica presente confessa aquilo em que se tornou. É também por aquilo que, muitas vezes, tem a simplicidade de dizer. Anunciando em Novembro de 1985, depois de uma experimentação de oito dias com quatro doentes, que talvez tivessem descoberto um remédio eficaz contra o AIDS, os professores Even e Andrieu, do hospital de Laennec, viam morrer os seus doentes dois dias depois e suscitavam algumas reservas por parte de vários médicos, menos avançados ou talvez ciumentos, pela sua maneira precipitada de correr a registar, algumas horas antes da derrocada, o que não era mais que uma enganadora aparência de vitória. Aqueles professores defenderam- se sem se perturbar, afirmando que “apesar de tudo, mais valem falsas esperanças do que não haver esperança nenhuma”. Eram mesmo demasiado ignorantes para reconhecer que este argumento, por si só, era uma completa negação do espírito científico e que tinha historicamente sempre servido para encobrir as proveitosas fantasias dos charlatães e dos feiticeiros, nos tempos em que não se lhes confiava a direção dos hospitais.
Quando a ciência oficial vem sendo conduzida deste modo, como todo o resto do espetáculo social que, sob uma apresentação materialmente modernizada e enriquecida, não fez mais que retomar as antiquíssimas técnicas do teatro de feira – ilusionistas, vendedores da banha da cobra e vigaristas –, não pode surpreender ver que grande autoridade retomam paralelamente, um pouco por todo o lado, os bruxos e as seitas, o zen embalado em vácuo, ou a teologia dos Mórmons.”


“Invertendo uma fórmula famosa de Hegel, já em 1967 notava eu que “num mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”.


“Os terroristas conhecidos, ou considerados como tais, são combatidos abertamente duma maneira terrorista.”


“O poder tornou-se tão misterioso que, depois do assunto das vendas ilegais de armas ao Irã pela Presidência dos Estados Unidos, pode perguntar-se quem governa verdadeiramente nos Estados Unidos, a mais forte potência do mundo dito democrático? E, portanto, que diabo pode comandar o mundo democrático?”


“O general Noriega tornou-se num instante conhecido mundialmente no princípio do ano de 1988. Era ditador sem título do Panamá, país sem exército, onde comandava a Guarda Nacional. Pois o Panamá não é verdadeiramente um Estado soberano: foi escavado pelo seu canal e não o contrário. O dólar é a sua moeda, e o verdadeiro exército ali estacionado é igualmente estrangeiro. Noriega tinha feito toda a sua carreira, nisto perfeitamente idêntica à de Jaruzelski na Polônia, como general-polícia ao serviço do ocupante. Era importador de droga para os Estados Unidos, pois o Panamá não produz o suficiente, e exportava para a Suíça os seus capitais “panamenhos”. Tinha trabalhado com a C.I.A. contra Cuba e, para ter a cobertura adequada às suas atividades econômicas, tinha também denunciado às autoridades americanas, tão obcecadas por este problema, um certo número dos seus rivais na importação. O seu principal conselheiro em matéria de segurança, que provocava inveja em Washington, era o melhor do mercado, Michael Harari, antigo oficial da Mossad, o serviço secreto de Israel. Quando os americanos quiseram desfazer-se do personagem, porque alguns dos seus tribunais o tinham imprudentemente condenado, Noriega declarou-se disposto a defender-se durante mil anos, por patriotismo panamiano, simultaneamente contra o seu povo em revolta e contra o estrangeiro, e rapidamente recebeu a aprovação pública dos ditadores burocráticos mais austeros de Cuba e da Nicarágua, em nome do anti-imperialismo.
Longe de ser uma estranheza estritamente panamiana, este general Noriega, que vende tudo e simula tudo num mundo que por todo o lado faz o mesmo, era, ao mesmo tempo, como espécie de homem duma espécie de Estado, como espécie de general, como capitalista, perfeitamente representativo do espetacular integrado; e dos êxitos que este permite nas direções mais variadas da sua política interior e internacional. É um modelo do príncipe do nosso tempo; e entre aqueles que se destinam a chegar e a ficar no poder, em qualquer sítio onde este possa estar, os mais capazes assemelham-se lhe bastante. Não é o Panamá que produz tais maravilhas, é esta época.”


“O segredo domina este mundo, e em primeiro lugar como segredo da dominação. Segundo o espetáculo, o segredo não seria mais que uma necessária exceção à regra da informação abundantemente oferecida por toda a superfície da sociedade, do mesmo modo que a dominação, neste “mundo livre” do espetacular integrado, se reduziria a não ser mais que um Departamento executivo ao serviço da democracia. Mas ninguém acredita verdadeiramente no espetáculo. Como aceitariam os espectadores a existência do segredo que garante, por si só, que não podem gerir um mundo do qual ignoram as principais realidades, se a título extraordinário se lhes pedisse verdadeiramente a sua opinião sobre a maneira de preceder? É um fato que o segredo não aparece a quase ninguém na sua pureza inacessível, e na sua generalidade funcional. Todos admitem que exista uma pequena zona de segredo reservada aos especialistas; e para a generalidade das coisas, muitos acreditam estar no segredo.
La Boétie demonstrou, no Discurso sobre a servidão voluntária, como o poder de um tirano deve encontrar numerosos apoios entre os círculos concêntricos dos indivíduos que nele encontram, ou creem encontrar, o seu proveito. Da mesma maneira muitos, entre os políticos ou midiáticos que estão convencidos de que não se pode suspeitar deles como sendo irresponsáveis, conhecem muitas coisas pelas relações e pelas confidências. Aquele que se contenta com estar dentro da confidência, não é muito impelido a criticá-la; nem portanto a reparar que, em todas as confidências, a parte principal da realidade ser-lhe-á sempre escondida. Pela benevolente proteção dos trapaceiros, conhece umas poucas cartas mais, mas que podem ser falsas; e nunca o método que dirige e explica o jogo. Identifica-se, assim, em seguida com os manipuladores e despreza a ignorância que no fundo partilha. Pois as migalhas da informação oferecidas a estes familiares da tirania mentirosa estão normalmente infectadas de mentira, incontroláveis, manipuladas: Contudo, satisfazem aqueles que a elas acedem, porque se sentem superiores a todos os que não sabem nada. De resto, não valem senão para melhor fazer aceitar a dominação, e nunca para a compreender efetivamente. Elas constituem o privilégio dos espectadores de primeira classe: aqueles que têm a palermice de acreditar que podem compreender algo, não servindo-se daquilo que se lhes esconde, mas acreditando naquilo que se lhes revela!


“Em Janeiro de 1988, a Máfia colombiana da droga publicava um comunicado destinado a retificar a opinião pública sobre a sua pretendida existência. A maior exigência duma Máfia, onde quer que possa estar constituída, é naturalmente estabelecer que não existe, ou que foi vítima de calúnias pouco científicas; esta é a primeira semelhança com o capitalismo. Mas na circunstância, esta Máfia irritada por ser a única posta em evidência chegou a evocar os outros agrupamentos que queriam fazer-se esquecer, tornando-a abusivamente por bode expiatório. Declarava: “Nós não pertencemos à Máfia burocrática e política, nem à dos banqueiros e financeiros, nem à dos milionários, nem à Máfia dos grandes contratos fraudulentos, à dos monopólios ou à do petróleo, nem à dos grandes meios de comunicação.”
Pode seguramente considerar-se que os autores desta declaração, como os outros, têm interesse em verter as suas práticas no vasto rio de águas turvas da criminalidade e das ilegalidades banais, que inunda em toda a sua extensão a sociedade atual; mas também é justo reconhecer que se trata de pessoas que, por profissão, sabem melhor que ninguém do que falam.”


“Só se fala continuamente de “Estado de Direito”, a partir do momento em que o Estado moderno dito democrático deixou em geral de o ser. Não é de modo nenhum por acaso que a expressão só foi popularizada pouco depois de 1970 e, em primeiro lugar, justamente na Itália. Em muitos domínios, fazem-se mesmo leis precisamente para que sejam contornadas, por aqueles que justamente possuirão todos os meios para isso. A ilegalidade em certas circunstâncias, por exemplo, à volta do comércio mundial de todo o tipo de armamentos, e mais frequentemente envolvendo produtos da mais alta tecnologia, não é mais que uma espécie de força de apoio da operação econômica, que se encontrará muito mais rentável. Hoje muitos negócios são necessariamente desonestos como o século, e não como eram outrora aqueles que praticavam, em séries claramente delimitadas, os homens que tinham escolhido os caminhos da desonestidade.”


“As verdadeiras influências permanecem escondidas e as últimas intenções não podem ser senão muito dificilmente percebidas, quase nunca compreendidas. De modo que ninguém pode dizer que não é enganado ou manipulado, mas é só em raros instantes que o próprio manipulador pode saber se foi vencedor. E, por outro lado, encontrar-se do lado ganhador da manipulação não quer dizer que se tenha escolhido com justeza a perspectiva estratégica. É assim que êxitos táticos podem atolar grandes forças em maus caminhos.
Numa mesma rede, perseguindo aparentemente um mesmo fim, aqueles que não constituem senão uma parte da rede são obrigados a ignorar todas as hipóteses e conclusões das outras partes, e sobretudo do seu núcleo dirigente. O fato bastante notório de que todas as informações sobre qualquer assunto observado podem ser também completamente imaginárias, ou gravemente falseadas, ou interpretadas muito inadequadamente, complica e torna pouco seguros, numa vasta medida, os cálculos dos inquisidores; pois aquilo que é suficiente para condenar alguém não é tão seguro quando se trata de o conhecer ou de o utilizar. Já que as fontes de informação são rivais, as falsificações o são também.”


“O espetáculo é uma miséria, mais que uma conspiração. E os que escrevem nos jornais do nosso tempo não nos escondem nada da sua inteligência.”

A Sociedade do Espetáculo (Parte II) – Guy Debord

Editora: Contraponto
ISBN: 978-85-8591-017-4
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Opinião: ★★★★★
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I



“O raciocínio sobre a história é inseparavelmente raciocínio sobre o poder.”


“Assim, a burguesia fez conhecer e impôs à sociedade um tempo histórico irreversível, mas recusa-lhe a utilização. “Houve história, mas já não há mais”, porque a classe dos possuidores da economia, que não deve romper com a história econômica, deve recalcar assim como uma ameaça imediata qualquer outro emprego irreversível do tempo. A classe dominante, feita de especialistas da possessão das coisas, que por isso são eles próprios uma possessão das coisas, deve ligar a sua sorte à manutenção desta história reificada, à permanência de uma nova imobilidade na história. Pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente estranho à história, porque é agora pela sua base que a sociedade se move irreversivelmente. Na reivindicação de viver o tempo histórico que ele faz, o proletariado encontra o simples centro inesquecível do seu projeto revolucionário; e cada uma das tentativas, até aqui geradas, de execução deste projeto marca um ponto de partida possível da nova vida histórica.”


“O tempo pseudocíclico consumível é o tempo espetacular, ao mesmo tempo como tempo de consumo das imagens, no sentido restrito, e como imagem do consumo do tempo em toda a sua extensão. O tempo do consumo das imagens, média de todas as mercadorias, é inseparavelmente o campo onde plenamente atuam os instrumentos do espetáculo e a finalidade que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna – quer se trate da velocidade dos transportes ou da utilização de sopas em pacotes – se traduzem positivamente para a população dos Estados Unidos neste fato: de que só a contemplação da televisão a ocupa em média três a seis horas por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente dominada pelos momentos de ócio e de férias, momentos representados à distância e desejáveis, por postulado, como toda a mercadoria espetacular. Esta mercadoria é aqui explicitamente dada como o momento da vida real de que se trata esperar o regresso cíclico. Mas mesmo nestes momentos destinados à vida, é ainda o espetáculo que se dá a ver e a reproduzir, atingindo um grau mais intenso. O que foi representado como vida real, revela-se simplesmente como a vida mais realmente espetacular.
Esta época, que mostra a si própria o seu tempo como sendo essencialmente o regresso precipitado de múltiplas festividades, é igualmente uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, é impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Quando as suas pseudo-festas vulgarizadas, paródias do diálogo e do dom, excitam a um excedente de dispêndio econômico, elas não trazem senão a decepção sempre compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna deve, no espetáculo, gabar-se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduziu. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo.”


“Imobilizada no centro falsificado do movimento do seu mundo, a consciência espectadora já não conhece na sua vida uma passagem para a sua realização e para a sua morte. A publicidade dos seguros de vida insinua somente que é repreensível morrer sem ter assegurado a regulação do sistema depois desta perda econômica; e a do american way of death insiste sobre a sua capacidade de manter neste encontro a maior parte das aparências da vida. Sobre todo o resto da frente do bombardeamento publicitário é terminantemente proibido envelhecer. Tratar-se-ia de poupar, em cada qual, um “capital-juventude” que por não ter sido senão mediocremente empregado não pode, todavia, pretender adquirir a realidade durável e cumulativa do capital financeiro. Esta ausência social da morte é idêntica a ausência social da vida.”


“Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distração de ir ver o que se tornou banal. A ordenação econômica da frequentação de lugares diferentes é já por si mesma a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço.”


“O urbanismo é a concretização moderna da tarefa ininterrupta que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido. A luta constante que teve de ser levada a cabo contra todos os aspectos desta possibilidade de encontro descobre no urbanismo o seu campo privilegiado. O esforço de todos os poderes estabelecidos desde as experiências da Revolução Francesa, para aumentar os meios de manter a ordem na rua, culmina finalmente na supressão da rua. “Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controle muito mais eficaz”, constata Lewis Mumford em Através da História, ao descrever um “mundo doravante único”. Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: as fábricas como as casas da cultura, as aldeias de férias como os “grandes conjuntos habitacionais”, são especialmente organizados para os fins desta pseudo-coletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espetacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem o seu pleno poderio.”


“A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido na sociedade histórica, dividida em classes; o que se resume em dizer que ela é esse poder de generalização existindo à parte, como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão. A cultura desligou-se da unidade da sociedade do mito, “quando o poder de unificação desaparece da vida do homem, e os contrários perdem a sua relação e a sua interação vivas e adquirem autonomia.” (Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling). Ao ganhar a sua independência, a cultura começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo tempo, o declínio da sua independência. A história, que cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas quanto a esta autonomia, exprime-se também como história da cultura. E toda a história conquistadora da cultura pode ser compreendida como a história da revelação da sua insuficiência, como uma marcha para a sua auto-supressão. A cultura é o lugar da procura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, a cultura como esfera separada é, ela própria, obrigada a negar-se.”


“O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. Elas são, ainda que só de um modo relativamente consciente, contemporâneas do último grande assalto do movimento revolucionário proletário; e o revés deste movimento, que as deixava encerradas no próprio campo artístico de que elas tinham proclamado a caducidade, é a razão fundamental da sua imobilização. O dadaísmo e o surrealismo estão, ao mesmo tempo, historicamente ligados e em oposição. Nesta oposição, que constitui também para cada um a parte mais consequente e radical da sua contribuição, aparece a insuficiência interna da sua crítica, desenvolvida unilateralmente tanto por uma como por outra. O dadaísmo quis suprimir a arte sem a realizar; e o surrealismo quis realizar a arte sem a suprimir. A posição crítica elaborada posteriormente pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.”


“O conjunto dos conhecimentos, que continua a desenvolver-se atualmente como pensamento do espetáculo, deve justificar uma sociedade sem justificações, e constituir-se em ciência geral da falsa-consciência. Ela é inteiramente condicionada pelo fato de não poder nem querer pensar na sua própria base material no sistema espetacular.”


“O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, “a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem”. O “novo poderio do embuste” que se concentrou aí tem a sua base nesta produção pela qual “com a massa dos objetos cresce (...) o novo domínio dos seres estranhos aos quais o homem está submetido”. É o estádio supremo duma expansão que virou a necessidade contra a vida. “A necessidade de dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz” (Manuscritos econômico-filosóficos). O espetáculo alarga a toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe como o do dinheiro; é “a vida do que está morto movendo-se em si própria”.”


“O paralelismo entre a ideologia e a esquizofrenia estabelecido por Gabel (A Falsa Consciência) deve ser inserido neste processo econômico de materialização da ideologia. O que a ideologia já era, a sociedade acabou por ser. A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialética que a acompanha, eis o que é imposto a cada hora da vida quotidiana submetida ao espetáculo; que é necessário compreender como uma organização sistemática do “desfalecimento da faculdade de encontro” e como sua substituição por um fato alucinatório social: a falsa consciência do encontro, a “ilusão do encontro”. Numa sociedade em que ninguém pode já ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer a sua própria realidade. A ideologia está em sua casa; a separação construiu o seu mundo.
“Nos quadros clínicos da esquizofrenia”, diz Gabel, “decadência da dialética da totalidade (tendo como forma extrema a dissociação) e decadência da dialética do devir (tendo como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias”. A consciência espectadora, prisioneira dum universo estreitado, limitada pelo ecrã do espetáculo, para trás do qual a sua vida foi deportada, não conhece mais do que os interlocutores fictícios que lhe falam unilateralmente da sua mercadoria e da política da sua mercadoria. O espetáculo, em toda a sua extensão, é o seu “sinal do espelho”. Aqui se põe em cena a falsa saída dum autismo generalizado.”


“Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipacão da nossa época. Esta “missão histórica de instaurar a verdade no mundo”, nem o indivíduo isolado, nem a multidão atomizada, submetida às manipulações, a podem realizar, mas ainda e sempre a classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes, ao reduzir todo o poder à forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática se controla a si própria e vê a sua ação. Lá, somente, onde os indivíduos estão “diretamente ligados à história universal”; lá, somente, onde o diálogo se estabeleceu para fazer vencer as suas próprias condições.”


“Por críticas que possam ser as situações e as circunstâncias em que te encontres, não desesperes; é nas ocasiões em que tudo é temível, que nada há que temer; é quando se está rodeado de todos os perigos, que não há que temer nenhum; é quando se está sem nenhum recurso, que há que contar com todos; é quando se está surpreendido, que é preciso surpreender o inimigo.” (Sun-Tzu, A Arte da Guerra)


“A sociedade modernizada até ao estágio do espetacular integrado caracteriza-se pelo efeito combinado de cinco traços principais, que são: a renovação tecnológica incessante; a fusão econômico-estatal; o segredo generalizado; o falso sem réplica; um presente perpétuo.
O movimento de inovação tecnológica dura já há muito tempo e é constitutivo da sociedade capitalista, dita por vezes industrial ou pós-industrial. Mas desde que tomou a sua mais recente aceleração, (no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial), reforça ainda mais a autoridade espetacular, já que através dele cada um encontra-se inteiramente entregue ao conjunto de especialistas, aos seus cálculos e aos seus julgamentos sempre satisfeitos com estes cálculos. A fusão econômico-estatal é a tendência mais manifesta deste século; e aí está ela tornada, no mínimo, o motor do desenvolvimento econômico mais recente. A aliança defensiva e ofensiva concluída entre estes dois poderes, a Economia e o Estado, assegurou-lhes os maiores benefícios comuns em todos os domínios: pode dizer-se que cada um possui o outro; é absurdo opô-los, ou distinguir as suas razões ou as suas desinteligências. Esta união mostrou-se também extremamente favorável ao desenvolvimento da dominação espetacular, que, desde a sua formação, não era senão precisamente isso. Os três últimos traços são os efeitos diretos dominação, no seu estado integrado.
O segredo generalizado mantém-se por detrás do espetáculo, como o complemento decisivo daquilo que ele mostra e, se aprofundamos mais as coisas, como a sua mais importante operação.
O simples fato de estar a partir de agora sem réplica deu ao falso uma qualidade completamente nova. É ao mesmo tempo o verdadeiro que deixou de existir quase por todo o lado ou, no melhor caso, viu-se reduzido ao estado de uma hipótese que nunca pode ser demonstrada. O falso sem réplica acabou por fazer desaparecer a opinião pública, que de início se encontrava incapaz de se fazer ouvir; depois, rapidamente em seguida, de somente se formar. Isto acarreta evidentemente importantes consequências na política, nas ciências aplicadas, na justiça, no conhecimento artístico.
A construção de um presente onde mesmo a moda, do vestuário aos cantores, se imobilizou, que quer esquecer o passado e que já não dá a impressão de acreditar num futuro, é obtida pela incessante passagem circular da informação girando continuamente sobre uma lista muito sucinta das mesmas banalidades, anunciadas apaixonadamente como importantes descobertas; enquanto só muito raramente, e por sacudidelas, passam as notícias verdadeiramente importantes sobre aquilo que efetivamente muda.
Dizem sempre respeito à condenação que este mundo parece ter pronunciado contra a sua existência, as etapas da sua autodestruição programada.”


“A primeira intenção da dominação espetacular era fazer desaparecer o conhecimento histórico em geral; e em primeiro lugar quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o mais recente passado. Uma evidência tão flagrante não necessita ser explicada. O espetáculo organiza com mestria a ignorância do que acontece e, logo em seguida, o esquecimento daquilo que pôde apesar de tudo tornar-se conhecido. O mais importante é o mais escondido. Vinte anos depois, nada foi mais recoberto de tantas mentiras comandadas como a história de Maio de 1968. Contudo, lições úteis foram tiradas de alguns estudos desmitificados sobre essas jornadas e as suas origens, mas são segredo de Estado.
Na Franca, há já uma dezena de anos, um Presidente da República, esquecido em seguida, mas flutuando, então, à superfície do espetáculo, exprimia inocentemente a alegria que ressentia, “sabendo que viveremos a partir de agora num mundo sem memória, onde, como na superfície da água, a imagem afasta indefinidamente a imagem”. É efetivamente cômodo para quem está nos negócios; e sabe manter-se neles. O fim da história é um agradável repouso para todo o poder presente. Garante-lhe absolutamente o êxito do conjunto das suas iniciativas, ou pelo menos o ruído do êxito.
Um poder absoluto suprime tanto mais radicalmente a história, quanto tem de ocupar-se dos interesses ou das obrigações mais imperiosas, e principalmente conforme encontrou mais ou menos grandes facilidades práticas de execução. Ts’in Che Hoang Ti mandou queimar os livros, mas não conseguiu fazê-los desaparecer todos. Stalin levava mais longe a realização de um projeto semelhante no nosso século, mas, apesar das cumplicidades de toda a espécie que encontrou fora das fronteiras do seu império, ficava uma vasta zona do mundo inacessível à sua polícia, onde se riam das suas imposturas. O espetacular integrado fez melhor, com novíssimos métodos, e operando desta vez mundialmente. A inépcia faz-se respeitar por todo o lado, já não é permitido rir dela; em todo o caso, tornou-se impossível fazer saber que se riem dela.
O domínio da história era o memorável, a totalidade dos acontecimentos cujas consequências se manifestariam durante muito tempo. Era inseparavelmente o conhecimento que deveria durar e ajudaria a compreender, pelo menos parcialmente, aquilo que aconteceria de novo: “uma aquisição para sempre”, diz Tucídides. Por isso, a história era a medida duma novidade verdadeira; e quem vende a novidade tem todo o interesse em fazer desaparecer o meio de a medir. Quando o importante se faz socialmente reconhecer como aquilo que é instantâneo, e vai sê-lo no instante seguinte, e no outro e noutro ainda, e que substituirá sempre uma outra importância instantânea, pode também dizer-se que o meio utilizado garante uma espécie de eternidade desta não-importância, que fala tão alto.
A preciosa vantagem que o espetáculo retirou deste pôr fora-da-lei da história, de ter já condenado toda a história recente a passar à clandestinidade, e de ter conseguido fazer esquecer muito frequentemente o espírito histórico na sociedade, é antes de tudo cobrir a sua própria história: o próprio movimento da sua recente conquista do mundo. O seu poder aparece já familiar, como se tivesse estado lá desde sempre. Todos os usurpadores quiseram fazer esquecer que acabam de chegar.”


“Com a destruição da história é o próprio acontecimento contemporâneo que se afasta imediatamente a uma distância fabulosa, entre os seus relatos inverificáveis, as suas estatísticas incontroláveis, as suas explicações inacreditáveis e os seus raciocínios insustentáveis. A todas as idiotices que são avançadas espetacularmente, não há senão os midiáticos que poderiam responder através de algumas respeitosas retificações ou repreensões, mas mesmo nisso são parcos, porque para além da sua extrema ignorância, a sua solidariedade de ofício e de coração, com a autoridade generalizada do espetáculo, e com a sociedade que ele exprime, gera-lhes um dever e também um prazer de jamais se desviarem desta autoridade, cuja majestade não deve ser lesada. É preciso não esquecer que todo o midiático, por salário e por outras recompensas ou gorjetas, tem sempre um senhor, às vezes vários, e que todo o midiático se sabe substituível.
Todos os experts são midiático-estatais, e apenas por isso são reconhecidos. Todo o expert serve o seu senhor, porque cada uma das antigas possibilidades de independência foi pouco mais ou menos reduzida a nada, pelas condições de organização da sociedade presente. O expert que serve melhor é, seguramente, o expert que mente. Aqueles que têm necessidade do expert são, por motivos diferentes, o falsificador e o ignorante. Lá onde o indivíduo não reconhece mais nada por si mesmo, será formalmente tranquilizado pelo expert. Antes era normal que houvesse experts na arte dos Etruscos; e eram sempre competentes, porque a arte etrusca não estava no mercado. Mas, por exemplo, uma época que acha rentável falsificar quimicamente a maioria dos vinhos célebres, não poderá vendê-los, a não ser que tenha formado experts em vinhos que levarão os otários a gostar dos seus novos aromas, mais reconhecíveis. Cervantes observa que “debaixo de uma má capa, encontra-se muitas vezes um bom bebedor”. Aquele que conhece o vinho ignora a maioria das vezes as regras da indústria nuclear; mas a dominação espetacular estima que, já que um expert se riu dele a propósito da indústria nuclear, um outro expert poderá gozá-lo melhor a propósito do vinho. Sabe-se, por exemplo, quanto o expert em meteorologia midiática, que anuncia as temperaturas ou as chuvas previstas para as próximas quarenta e oito horas, é obrigado a muitas reservas pela obrigação de manter os equilíbrios econômicos, turísticos e regionais, quando tanta gente circula tão frequentemente por tantas estradas, entre lugares igualmente desolados; de modo que ele será melhor sucedido como animador.
Um aspecto do desaparecimento de todo o conhecimento histórico objetivo manifesta-se a propósito de qualquer reputação pessoal, que se tornou maleável e retificável à vontade pelos que controlam toda a informação, aquela que recolhem e também aquela, bem diferente, que difundem; eles têm portanto toda a permissão para falsificar. Porque uma evidência histórica da qual nada se quer saber no espetáculo, já não é uma evidência. Lá onde ninguém tem senão a celebridade que lhe foi atribuída como um favor pela benevolência de uma Corte espetacular, a desgraça pode acontecer instantaneamente. Uma notoriedade anti-espetacular tornou-se qualquer coisa de extremamente rara. Eu próprio sou um dos últimos vivos a possuir uma; a nunca ter tido outra. Mas esta também se tornou extraordinariamente suspeita. A sociedade proclamou-se oficialmente espetacular. Ser conhecido à margem das relações espetaculares equivale já a ser conhecido como inimigo da sociedade.
É permitido mudar completamente o passado de qualquer um, de o modificar radicalmente, de o recriar no estilo dos processos de Moscou; e sem que seja mesmo necessário recorrer às fadigas de um processo. Pode matar-se com menos custos. Os falsos testemunhos, talvez desajeitados – mas que capacidade de sentir esta inabilidade poderá ainda restar aos espectadores que serão testemunhas das façanhas destes falsos testemunhos? – e os falsos documentos, sempre excelentes, não podem faltar àqueles que governam o espetacular integrado, ou aos seus amigos. Portanto, já não é possível acreditar, sobre ninguém, em nada daquilo que não tenha sido conhecido por si mesmo e diretamente. Mas, de fato, já não há muitas vezes a necessidade de acusar falsamente alguém. Desde que se detém o mecanismo de comando da única verificação social que se faz plenamente e universalmente reconhecer, diz-se o que se quer. O movimento da demonstração espetacular prova-se simplesmente andando à roda: voltando, repetindo-se, afirmando continuamente sobre o único terreno onde reside doravante aquilo que pode afirmar-se publicamente, e fazer-se acreditar, pois que é disso somente que todo o mundo será testemunha. A autoridade espetacular pode igualmente negar seja o que for, uma vez, três vezes, e dizer que não falará mais disso, e falar de outra coisa, sabendo bem que já não arrisca mais nenhuma outra réplica no seu próprio terreno, nem em nenhum outro. Porque já não existe ágora de comunidade geral, nem mesmo de comunidades restritas aos corpos intermédios ou às instituições autônomas, aos salões ou cafés, aos trabalhadores de uma só empresa; nenhum lugar onde o debate, sobre as verdades que dizem respeito àqueles que lá estão, possa libertar-se de forma duradoura da esmagadora presença do discurso midiático, e das diferentes forças organizadas para o substituir. Atualmente já não existe julgamento com a garantia de relativa independência, daqueles que constituíam o mundo erudito; daqueles que, por exemplo, antigamente, manifestavam o seu orgulho numa capacidade de verificação, permitindo a aproximação àquilo a que se chamava a história imparcial dos fatos, de acreditar pelo menos que ela merecia ser conhecida. Já nem existe mesmo verdade bibliográfica incontestável, e os resumos informatizados dos ficheiros das bibliotecas nacionais poderão suprimir ainda melhor os traços. Perder-nos-íamos pensando naquilo que foram noutros tempos os magistrados, os médicos, os historiadores, e nas obrigações imperativas em que eles se reconheciam, na maior parte das vezes, nos limites das suas competências: os homens parecem-se mais com o seu tempo do que com o seu pai.
Aquilo de que o espetáculo pode deixar de falar durante três dias é como se não existisse. Pois ele fala, então, de outra coisa qualquer e é isso que, portanto, a partir daí, em suma, existe. As consequências práticas, como se vê, são imensas. Acreditava-se saber que a história tinha aparecido, na Grécia, com a democracia. Pode verificar-se que ela desaparece do mundo com ela.
É preciso porém acrescentar a esta lista de triunfos do poder, um resultado para ele negativo: um Estado, em cuja gestão se instala duravelmente um grande déficit de conhecimentos históricos, já não pode ser conduzido estrategicamente.”

A Sociedade do Espetáculo (Parte I) – Guy Debord

Editora: Contraponto
ISBN: 978-85-8591-017-4
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Opinião: ★★★★★
Páginas: 240
Sinopse: Mais importante obra teórica produzida no contexto que precedeu os acontecimentos de Maio de 1968, A sociedade do espetáculo é um livro genial e único, precursor de toda análise crítica da moderna sociedade de consumo. Para Antonio Negri, é um dos dez livros mais importantes do século. Para Jean–Jacques Pauvert, “não antecipou 1968, como normalmente se diz; antecipou o século XXI”. Está certo: nunca a tirania das imagens e a submissão alienante ao império da mídia, denunciadas por Debord, foram tão fortes como agora. Nunca os profissionais do espetáculo tiveram tanto poder: invadiram todas as fronteiras e conquistaram todos os domínios — da arte à economia, da vida cotidiana à política —, passando a organizar de forma consciente e sistemática o império da passividade. O livro é, sem dúvida, a mais aguda crítica à sociedade que se organiza em torno dessa falsificação da vida comum. A edição brasileira inclui dois trabalhos posteriores — um de 1979, outro de 1988 — em que Debord comenta sua própria obra.
Filósofo, agitador social, diretor de cinema, Guy Debord se definia como ‘doutor em nada’ e pensador radical. Ligou-se nos anos 50 à geração herdeira do dadaísmo e do surrealismo.



“É sabida a forte tendência dos homens para repetir inutilmente os fragmentos simplificados das teorias revolucionárias antigas, cuja usura lhes é escondida pelo simples fato de que não tentam aplicá-las a qualquer luta efetiva, para transformar as condições em que se encontram verdadeiramente; de tal forma que compreendem pouco melhor como estas teorias puderam, com sortes diversas, ser determinantes nos conflitos doutros tempos. Apesar disto, não oferece dúvida para quem examina friamente a questão, que aqueles que querem abalar realmente uma sociedade estabelecida devem formular uma teoria que explique fundamentalmente esta sociedade; ou pelo menos que tenha todo o ar de dar dela uma explicação satisfatória. Assim que esta teoria é um pouco divulgada, na condição de que o seja nos afrontamentos que perturbam a tranquilidade pública, e mesmo antes dela chegar a ser exatamente compreendida, o descontentamento por toda a parte em suspenso será agravado e atiçado, pelo simples conhecimento vago da existência de uma condenação teórica da ordem das coisas. E depois, é começando a dirigir com cólera a guerra da liberdade, que todos os proletários podem tornar-se estrafegas.”


“Os terroristas se movem às vezes pelo desejo de fazer com que se fale deles.”


“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.
O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung* tornada efetiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou.
O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um suplemento ao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário, o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são, identicamente, a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.”
*: cosmovisão.


“Não se pode opor abstratamente o espetáculo e a atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é efetivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, e retoma em si própria a ordem espetacular dando-lhe uma adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.
No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso.
Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível.”


“O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.
O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.
A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculosa. No espetáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio.
Enquanto indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, e enquanto setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.
O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia se desenvolvendo para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.
A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o “ter” efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, diretamente dependente do poderio social, por ele moldada. Somente nisto em que ela não é, lhe é permitido aparecer.”


“Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.”


“À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.”


“O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento funda a técnica e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias”. O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.”


“A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em nenhum lado, porque o espetáculo está em toda a parte.”


“O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.”


“É o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis” que se realiza absolutamente no espetáculo, onde o mundo sensível se encontra substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência.”


“O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social. Não só a relação com a mercadoria é visível, como nada mais se vê senão ela: o mundo que se vê é o seu mundo.”


“O espetáculo é uma permanente guerra do ópio para fazer aceitar a identificação dos bens às mercadorias; e da satisfação à sobrevivência, aumentando segundo as suas próprias leis. Mas se a sobrevivência consumível é algo que deve aumentar sempre, é porque ela não cessa de conter a privação. Se não há nenhum além para a sobrevivência aumentada, nenhum ponto onde ela poderia cessar o seu crescimento, é porque ela própria não está para além da privação, mas é sim a privação tornada mais rica. (...)
É a realidade desta chantagem, o fato de o uso sob a sua forma mais pobre (comer, habitar) já não existir senão aprisionado na riqueza ilusória da sobrevivência aumentada, que é a base real da aceitação da ilusão em geral no consumo das mercadorias modernas. O consumidor real toma-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamente real, e o espetáculo a sua manifestação geral.”


“Esta constante da economia capitalista, que é a baixa tendencial do valor de uso, desenvolve uma nova forma de privação no interior da sobrevivência aumentada, a qual não está, por isso, mais liberta da antiga penúria, visto que exige a participação da grande maioria dos homens, como trabalhadores assalariados, no prosseguimento infinito do seu esforço; e que cada qual sabe que é necessário submeter-se lhe ou morrer. É a realidade desta chantagem, o fato de o uso sob a sua forma mais pobre (comer, habitar) já não existir senão aprisionado na riqueza ilusória da sobrevivência aumentada, que é a base real da aceitação da ilusão em geral no consumo das mercadorias modernas. O consumidor real toma-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamente real, e o espetáculo a sua manifestação geral.”


“O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. Mas se o dinheiro dominou a sociedade enquanto representação da equivalência central, isto é, do caráter permutável dos bens múltiplos cujo uso permanecia incomparável, o espetáculo e o seu complemento moderno desenvolvido, onde a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco como uma equivalência geral ao que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que se olha somente, pois nele é já a totalidade do uso que se trocou com a totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é somente o servidor do pseudo-uso. É já, em si próprio, o pseudo-uso da vida.”


“A vitória da economia autônoma deve ser, ao mesmo tempo, a sua perda. As forças que ela desencadeou suprimem a necessidade econômica que foi a base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento econômico infinito, ela não pode senão substituir a satisfação das primeiras necessidades, sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudonecessidades que se reduzem à única pseudonecessidade da manutenção do seu reino. Mas a economia autônoma separa-se para sempre da necessidade profunda, na própria medida em que sai do inconsciente social que dela dependia sem o saber. “Tudo o que é consciente se usa. O que é inconsciente permanece inalterável. Mas uma vez liberto, não cai por sua vez em ruínas?” (Freud).”


“A consciência do desejo e o desejo da consciência são identicamente este projeto que, sob a sua forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, a posse direta pelos trabalhadores de todos os momentos da sua atividade. O seu contrário é a sociedade do espetáculo onde a mercadoria se contempla a si mesma num mundo que ela criou.”


“O espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como esta, ele edifica a sua unidade sobre o dilaceramento. A contradição, quando emerge no espetáculo, é por sua vez contradita por uma reinversão do seu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária, enquanto que a unidade mostrada está dividida.”


“Não é somente pela sua hegemonia econômica que a sociedade portadora do espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espetáculo. Lá onde a base material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social de cada continente. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside à sua constituição. Do mesmo modo que apresenta os pseudobens a cobiçar, ela oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução.”


“É a unidade da miséria que se esconde sob as aposições espetaculares. Se formas diversas da mesma alienação se combatem sob as máscaras da escolha total, é porque elas são todas identificadas sobre as contradições reais recalcadas. Conforme as necessidades do estádio particular da miséria, que ele desmente e mantém, o espetáculo existe sob uma forma concentrada ou sob uma forma difusa. Nos dois casos, ele não é mais do que uma imagem de unificação feliz, cercada de desolação e de pavor, no centro tranquilo da infelicidade.”


“O espetacular concentrado pertence essencialmente ao capitalismo burocrático, embora possa ser importado como técnica do poder estatal sobre economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avançado. A própria propriedade burocrática é efetivamente concentrada, no sentido em que o burocrata individual não tem relações com a posse da economia global senão por intermédio da comunidade burocrática, senão enquanto membro desta comunidade. Além disso, a produção menos desenvolvida das mercadorias apresenta-se, também, sob uma forma concentrada: a mercadoria que a burocracia detém é o trabalho social total, e o que ela revende à sociedade é a sua sobrevivência em bloco. A ditadura da economia burocrática não pode deixar às massas exploradas nenhuma margem notável de escolha, visto que ela teve de escolher tudo por si própria, e que toda outra escolha exterior, quer diga respeito à alimentação ou à música, é já a escolha da sua destruição completa. Ela deve acompanhar-se de uma violência permanente. A imagem imposta do bem, no seu espetáculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra-se normalmente num único homem, que é a garantia da sua coesão totalitária. Com esta vedete absoluta, deve cada um identificar-se magicamente, ou desaparecer. Pois se trata do senhor do seu não-consumo, e da imagem heroica de um sentido aceitável para a exploração absoluta, que é na realidade a acumulação primitiva acelerada pelo terror. Se cada chinês deve aprender Mao, e assim ser Mao, é que ele não tem mais nada para ser. Lá onde domina o espetacular concentrado domina também a polícia.”


“Sem dúvida, a pseudonecessidade imposta no consumo moderno não pode ser oposta a nenhuma necessidade ou desejo autêntico, que não seja, ele próprio, modelado pela sociedade e sua história. Mas a mercadoria abundante está lá como a ruptura absoluta de um desenvolvimento orgânico das necessidades sociais. A sua acumulação mecânica liberta um artificial ilimitado, perante o qual o desejo vivo fica desarmado. A potência cumulativa de um artificial independente conduz, em toda a parte, à falsificação da vida social.”


“A própria impostura da satisfação deve denunciar-se ao substituir-se, ao seguir a mudança dos produtos e das condições gerais da produção. Aquilo que afirmou, com o mais perfeito descaramento, a sua própria excelência definitiva muda não só no espetáculo difuso, mas também no espetáculo concentrado, e é só o sistema que deve continuar: Stalin, como a mercadoria fora de moda, é denunciado por aqueles mesmos que o impuseram. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da sua mentira precedente. Cada derrocada de uma figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava unanimemente e que não era mais do que um aglomerado de solidões sem ilusões.”


“A unidade irreal que o espetáculo proclama é a máscara da divisão de classe sobre a qual repousa a unidade real do modo de produção capitalista. O que obriga os produtores a participar na edificação do mundo é também o que disso os afasta. O que põe em relação os homens libertos das suas limitações locais e nacionais é também o que os distancia. O que obriga ao aprofundamento do racional é também o que alimenta o racional da exploração hierárquica e da repressão. O que faz o poder abstrato da sociedade faz a sua não-liberdade concreta.”


“O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa, ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sítio na sociedade capitalista, pelo qual esta sociedade se salva e se dota de uma primeira racionalização de urgência, fazendo intervir maciçamente o Estado na sua gestão. Mas uma tal racionalização é, ela própria, agravada pela imensa irracionalidade do seu meio. Se o fascismo se lança na defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), reunindo a pequena burguesia e os desempregados desnorteados pela crise ou desiludidos pela impotência da revolução socialista, ele próprio não é fundamentalmente ideológico. Ele apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação numa comunidade definida por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. O seu ersatz decomposto do mito é retomado no contexto espetacular moderno, do mesmo modo que a sua parte na destruição do antigo movimento operário faz dele uma das potências fundadoras da sociedade presente; mas como também acontece que o fascismo é a forma mais dispendiosa da manutenção da ordem capitalista, ele devia normalmente abandonar a boca da cena que ocupam os grandes papéis desempenhados pelos Estados capitalistas, eliminado por formas mais racionais e mais fortes desta ordem.”


“Neste desenvolvimento complexo e terrível, que arrastou a época das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industrializados perdeu completamente a afirmação da sua perspectiva autônoma e, em última análise, as suas ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Permanece irredutivelmente existente na alienação intensificada do capitalismo moderno: ele é a imensa maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o emprego da sua vida, e que, desde que o sabem, se redefinem como o proletariado, o negativo em marcha nesta sociedade. Este proletariado é, objetivamente, reforçado pelo movimento do desaparecimento do campesinato, como pela extensão da lógica do trabalho na fábrica, que se aplica a uma grande parte dos “serviços” e das profissões intelectuais. É subjetivamente que este proletariado está ainda afastado da sua consciência prática de classe, não só nos empregados, mas também nos operários que ainda não descobriram senão a impotência e a mistificação da velha política. Porém, quando o proletariado descobre que a sua própria força exteriorizada concorre para o reforço permanente da sociedade capitalista, já não só sob a forma de trabalho seu, mas também sob a forma dos sindicatos, dos partidos ou do poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar, descobre também pela experiência histórica concreta que ele é a classe totalmente inimiga de toda a exteriorização petrificada e de toda a especialização do poder. Ele traz a revolução que não pode deixar nada no exterior de si própria, a exigência da dominação permanente do presente sobre o passado, e a crítica total da separação; e é disto que ele deve encontrar a forma adequada na ação. Nenhuma melhoria quantitativa da sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é um remédio durável para a sua insatisfação, porque o proletariado não pode reconhecer-se veridicamente num dano particular que teria sofrido, nem, portanto, na reparação de um dano particular, nem de um grande número desses danos, mas somente no dano absoluto de estar posto à margem da vida.”


“A história existiu sempre, mas não sempre sob a sua forma histórica. A temporalização do homem, tal como ela se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo manifesta-se e torna-se verdadeiro na consciência histórica.
O movimento propriamente histórico, embora ainda escondido, começa na lenta e insensível formação da “natureza real do homem”, esta “natureza que nasce na história humana – no ato gerador da sociedade humana” –, mas a sociedade que então dominou uma técnica e uma linguagem, se é já o produto da sua própria história, não tem consciência senão de um presente perpétuo. Todo o conhecimento, limitado à memória dos mais velhos, é sempre aí levado pelos vivos. Nem a morte nem a procriação são compreendidas como uma lei do tempo. O tempo permanece imóvel como um espaço fechado. Quando uma sociedade mais complexa acaba por tomar consciência do tempo, o seu trabalho é bem mais o de negar, porque ela vê no tempo não o que passa, mas o que regressa.”