terça-feira, 22 de agosto de 2017

Discurso da Servidão Voluntária – Étienne de La Bóetie

Editora: Instituto Ludwig von Mises Brasil
Tradução: Laymert Garcia dos Santos e Fernando Fiori Chiocca (introdução)
ISBN: Opúsculo distribuído
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 27
Sinopse: Poucos anos antes de morrer, aos 32 anos, Étienne de La Boétie (1530-1563) deixou em testamento seus escritos a Montaigne, o qual, mais tarde, destacou os méritos nos Ensaios e em várias cartas, apontando este autor como um importante homem daquele século.
O prestígio de La Boétie vem desta obra – Discurso da servidão voluntária –, em que afirma que é possível resistir à opressão sem recorrer à violência – a tirania se destrói sozinha quando os indivíduos se recusam a consentir com sua própria escravidão.
Como a autoridade constrói seu poder principalmente com a obediência consentida dos oprimidos, uma estratégia de resistência sem violência é possível, organizando coletivamente a recusa de obedecer ou colaborar. Foi com essa ideia que se construíram inúmeras lutas de desobediência civil no século XX, e a mesma ideia levou, entre outros motivos, à queda pacífica de muitas ditaduras.



“Não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver. Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado.”


“Tal é a fraqueza humana: temos frequentemente de nos curvar perante a força, somos obrigados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes.”


“Está na nossa natureza o deixarmos que os deveres da amizade ocupem boa parte da nossa vida. É justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem, renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem. Assim também, quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governá-los, arrojado a defendê-los e cuidadoso a guiá-los, passam a obedecer-lhe em tudo e a conceder-lhe certas prerrogativas; é uma prática reprovável, porque vão acabar por afastá-lo da prática do bem e empurrá-lo para o mal. Mas em tais casos julga-se que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem.
Mas o que vem a ser isto, afinal?
Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só? Não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um só indivíduo, que muitas vezes é o mais covarde e mulherengo de toda a nação, acostumado não tanto à poeira das batalhas como à areia dos torneios, menos dotado para comandar homens do que para ser escravo de mulheres?”


“O mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele.
Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.
Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.
Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.
São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir.
É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?
Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.
Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil? (...)
Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto.
Os audazes, para que obtenham o que procuram, não receiam perigo algum, os avisados não recusam passar por problemas e privações. Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males nem recuperar o bem.”


“Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas; e todo esse estrago, essa desgraça, essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos, mas de um só inimigo, daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós, por amor de quem marchais corajosamente para a guerra, por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas.
Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.
Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?
Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas?
Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos?
Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha?
Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?
Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?
Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés. Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueá-las, criais as vossas filhas para que ele tenho em quem cevar sua luxúria.
Criais filhos a fim de que ele, quando lhe apetecer, venha recrutá-los para a guerra e conduzi-los ao matadouro, fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças.
Matai-vos a trabalhar para que ele possa regalar-se e refestelar-se em prazeres vis e imundos.
Enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrearvos.
E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos, se as sentissem, não suportariam, de todas podeis libertar-vos, se tentardes não digo libertar-vos, mas apenas querer fazê-lo.
Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.”


“Creio firmemente que, se nós vivêssemos de acordo com a natureza e com os seus ensinamentos, seríamos naturalmente obedientes ao país, submissos à razão e de ninguém escravos. (...)
Esta boa mãe deu-nos a todos a terra para nela morarmos, albergou-nos a todos numa mesma casa, moldou-nos a todos numa mesma massa, para assim todos podermos mirar-nos e reconhecer-nos uns nos outros; a todos em comum outorgou o grande dom da voz e da palavra para sermos mais amigos e mais irmãos e, pela comum e mútua declaração dos nossos pensamentos, estabelecermos a comunhão de nossas vontades.
E pois ela buscou por todos os meios apertar e estreitar mais fortemente os nós da nossa aliança e sociedade, e por todas as formas mostrou mais desejar ver-nos unidos do que unos, não há dúvida de que somos todos companheiros e ninguém poderá jamais admitir que a natureza, integrando-nos a todos numa sociedade, tenha destinado uns para escravos.”


“Começamos a domesticar o cavalo, desde o momento em que ele nasce, preparamo-lo para nos servir e não podemos glorificar-nos de que, uma vez domado, ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos, como se (assim parece) quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir.
Que dizer perante isto? Que
Até os bois sob o jugo andam gemendo


“Sendo diversos os modos de alcançar o poder, a forma de reinar é sempre idêntica.
Os eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem lida com escravos naturais.”


“Nunca se lastima o que não se conhece, só se tem desgosto depois de ter gozado o prazer, depois de se ter conhecido o bem e se recordar a alegria passada. É natural no homem o ser livre e o querer sê-lo; mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá.”


“Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam. (...)
A primeira razão que leva os homens a servirem de boamente é o terem nascidos e sido criados na servidão. A esta soma-se outra que é a de, sob a tirania, os homens se tornarem covardes e efeminados.”


“Razão tinha Momo para zombar, quando censurou o homem forjado por Vulcano, por não lhe ter feito no coração uma janela através da qual pudessem ser vistos os seus pensamentos.”

2 comentários:

Ita Souza disse...

interessante, mas o número de páginas está certo, 27 ?

Doney disse...

É só um opúsculo, mesmo.