sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

1968: O ano que não terminou (Parte II), de Zuenir Ventura

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-361-5

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 286

Sinopse: Ver Parte I


 

“Se cada época tem o seu som, o de 68 vai ser encontrado nas ruas, em meio aos ruídos de bombas, cascos de cavalos, sirenes.”

 

 

“– O senhor se lembra daquela foto do Vladimir na Passeata dos 100 Mil publicada pela revista O Cruzeiro, cercado de seguranças? – diverte-se agora o general no seu apartamento na Tijuca. – Pois bem, pelo menos três deles eram sargentos nossos.

O general lamenta não ter, para mostrar, um pôster que durante muito tempo ornamentou o departamento por ele dirigido na época.

– Se o senhor quiser, traz aqui uma revista que eu mostro. Agora não tem mais perigo porque os três já estão mortos.

Não é por falta de orgulho que esse general se mantém no anonimato, e sim por recato e segurança. Na época ele era um poderoso coronel que ajudou a implantar um dos órgãos de informação das Forças Armadas. Suas convicções ideológicas hoje provocam riso pela extravagância da radicalidade – e porque estão em recesso. Ele é um general da reserva.

– Dizem que eu sou de direita, mas isso é uma injustiça. Nunca fui e não sou de direita. O seu rosto, habitualmente sisudo, começa a esboçar um sorriso que promete mais do que sua boca acaba de dizer. Uma demorada tragada protela o desfecho. Ele já deve ter testado antes o efeito desse suspense. Finalmente diz:

– Eu sou de extrema-direita.

O número é de fato irresistível. Num país onde é raríssimo alguém se confessar de direita, dizer-se orgulhosamente de extrema-direita não deixa de ser um feito inédito. A gargalhada que se ouve agora vai na certa anunciar outra atração:

– Eu estou à direita de Hitler, eu estou à direita de Gengis Khan.

Em fevereiro de 1988 essas declarações, como não têm consequências práticas, produzem hilaridade. Mas em fins da década de 60, começos de 70, a cabeça que defende essas ideias ajudava a pensar a estratégia da repressão.”

 

 

“A ocupação militar, causara um forte trauma na população da capital federal, especialmente entre os parlamentares. Protegidos por 200 soldados da PM, 100 agentes do DOPS haviam invadido o campus universitário para prender o estudante Honestino Guimarães, presidente da Federação dos Estudantes universitários de Brasília, e mais quatro colegas que estavam com prisão preventiva decretada. Foi uma operação de guerra utilizando metralhadoras, mosquetões, pistolas, cassetetes e vários tipos de bombas.

Ao ser arrastado pela polícia, Honestino pediu socorro, dizendo que estavam quebrando seu braço. O major José Leopoldino Silva, do Serviço Secreto da XI Região Militar não se comoveu: “Hoje é nosso dia!” gritou. Os colegas de Honestino reagiram com paus e pedras e se refugiaram no Instituto Central de Ciências. Eram cerca de 500 Estudantes resistindo ao cerco e à invasão dos soldados. A batalha durou 20 minutos. No final, o aluno Valdemar Alves da Silva Filho estava caído, ferido com um tiro na testa com risco de perder um olho. Após se renderem, os estudantes foram levados para a quadra de basquete.

Nessa altura, vários parlamentares já chegavam ao campus, ou para prestar solidariedade aos estudantes, ou à procura de filhos. Um dos primeiros a chegar foi o deputado Santili Sobrinho, acompanhado do filho, em busca da filha. Foi logo cercado por soldados e, enquanto se identificava, o cassetete descia sobre a cabeça do filho. Abraçou-se então ao rapaz para protegê-lo e passou a apanhar também. “Eu sou deputado”, apelou, e foi pior. “É por isso mesmo”, gritaram as dez vozes que brandiam os cassetetes. O deputado Davi Lerer teve um cano de metralhadora encostado no umbigo. “Senti o frio do aço”, revelou depois. Os seus colegas Mário Covas, Martins Rodrigues, Amaral Peixoto, entre outros, passaram por situações parecidas. Covas estava traumatizado: “Dessa vez ninguém me contou, eu vi tudo. Foi horrível”. Mais sintomática, porém, foi a reação do deputado Clóvis Stenzel, da Arena, conhecido por suas posições radicais. Estarrecido com o que estava assistindo, disse: “Eu, que sou identificado como homem da linha-dura, acho tudo isso uma barbaridade”.

Eram compreensíveis o clima de indignação e a violência dos discursos no Congresso nos dias que se seguiram àquelas cenas de guerra. Por isso, ao chegar a sua vez, Márcio Moreira Alves, o Marcito, se perguntava: “Que é que eu vou dizer?” Já caminhava em direção à tribuna quando lhe veio como inspiração a lembrança da peça Lisístrata. O discurso começou advertindo que estava próximo o 7 de Setembro e as “cúpulas militares”, certamente, iriam pedir aos colégios que desfilassem “junto aos algozes dos estudantes”. O orador chamava a atenção dos pais de que “a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas”. E perguntava: “Até quando o Exército vai ser o valhacouto de torturadores?”. (...)

Por mais desastrado que tenha sido o pronunciamento de Marcito, costuma-se insistir, à direita e à esquerda, na injustiça de considerá-lo a causa da edição do AI-5 – e não apenas um pretexto. Nos últimos vinte anos, armazenaram-se dezenas de indícios comprovando que naquela altura do ano as forças radicais, cada vez mais fortes dentro do governo, não mais abririam mão das medidas de exceção. A própria invasão da UnB fazia parte desse plano de empurrar o país a um impasse cuja solução levasse ao endurecimento. Às sete horas da noite da quarta-feira, 28, véspera da invasão, o presidente Costa e Silva terminava o expediente acompanhado do seu chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, do chefe do SNI, general Garrastazu Médici. A outra pessoa presente, o secretário de Imprensa Heráclio Sales, descreve a cena: “Ele estava com o rosto sombrio e o sobrecenho caído, sintoma inconfundível de preocupação”. Antes de se retirar, Costa e Silva resolveu mandar chamar o chefe do Gabinete Militar:

– Portella, diga a essa gente que, contra a universidade, nada. Eu quero ir para casa tranquilo.

– Pois fique tranquilo, presidente, que eu tomo conta disso – respondeu Portella, enquanto pegava o telefone para transmitir a recomendação presidencial àquela “gente”, que eles sabiam de quem se tratava.

Só então Costa e Silva se dirigiu para o Alvorada.

Na manhã seguinte, ele seria surpreendido com a invasão e o espancamento de parlamentares, violências que, sem dúvida, estavam previstas na operação.

“Não é a primeira vez que isso acontece”, disse em editorial o Jornal do Brasil. “Tudo indica que os auxiliares diretos do presidente da República se desvelam para que ele seja o último a saber das ”.

“Nessa altura”, acredita Heráclio, “a situação já fugia do controle dele”.

No dia 30, uma sexta-feira, a “Coluna do Castello” informava:

Partiu do Ministro da Justiça, professor Gama e Silva, a ordem para a Polícia Federal invadir a UnB e retirar de lá estudantes que estavam com prisão preventiva decretada. Não se sabe se a operação correu ao gosto do professor, mas pode-se antecipar que os resultados políticos da agressão armada cobrem os notórios objetivos do ministro que mais pleiteia do presidente medidas de exceção. A ordem, executada com requinte, elimina as veleidades do governo de criar no país um clima de otimismo e repõe no ambiente aquela ansiedade pânica, que é a matéria-prima dos radicais.

O ministro Gama e Silva apressou-se em desmentir Castelinho, que manteve taxativamente o que havia escrito, resguardando no entanto a fonte – aliás, das melhores. Agora, o colunista pode revelar: Jarbas Passarinho. Ao ministro do Trabalho, aborrecido e preocupado com aquela violência, o boquirroto Gaminha havia confessado que ele mesmo ordenara a invasão. (...)

No dia seguinte ao discurso, Marcito comprou os principais jornais do país. Só em um, a Folha de S. Paulo, num canto de página, encontrou um pequeno registro do seu feito.

Em suas memórias desses tempos, o general Jayme Portella escreveu que o que mais irritara os militares fora o destaque dado pelos jornais: “O discurso daquele deputado havia sido publicado em toda a imprensa, servindo de manchetes”. Era uma completa inverdade.

A ausência de noticiário, porém, não impediu que os quartéis recebessem dezenas de cópias do texto e que, em seguida, o Gabinete Militar passasse a ser inundado por uma suspeita correspondência exigindo revanche.

“Foi como uma chuva sobre o Palácio”, conta Heráclio. “Uma chuva torrencial de telegramas de todas as guarnições militares, exigindo punição para o autor do discurso. Era, evidentemente, uma coisa organizada”.

Era setembro, a nossa primavera ia começar. Para a política, uma primavera às avessas.”

 

 

“No primeiro dia do mês, o deputado Maurílio Ferreira Lima, do MDB de Pernambuco, denunciava na Câmara um plano de policiais da Aeronáutica para desvirtuar as funções do Para-Sar, uma unidade de paraquedistas especializada em socorro e salvamento, principalmente na selva. O plano previa a sua utilização no sequestro de 40 líderes políticos, que seriam “lançados de avião a 40 quilômetros da costa, no oceano”, entre outras operações.

Na mesma edição em que o discurso do deputado era publicado, noticiava-se a exoneração do major-brigadeiro Itamar Rocha do cargo de diretor-geral de Rotas Aéreas do Ministério da Aeronáutica. A exoneração, seguida de uma prisão domiciliar por dois dias, era consequência do que ficou sendo conhecido como “Caso Para-Sar”. (...)

Começava a ser desvendado naquele inicio de mês um dos mais sinistros planos terroristas da nossa história contemporânea. Se tivesse tido sucesso, a operação provocaria não só a execução de personalidades políticas, mas também a morte de cerca de 100 mil habitantes do Rio, já que previa a explosão de um gasômetro no início da avenida Brasil, às 18 horas, isto é, na hora do rush, e a destruição da represa de Ribeirão das Lajes. A responsabilidade pelos atentados seria atribuída aos comunistas.

Para quem – como os radicais de direita – buscava um pretexto para dar início à caça às bruxas, nada mais diabolicamente perfeito.

Um militar, sem motivação ideológica ou partido político, impediu a sua execução: o capitão paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que, 20 anos depois, ainda sofre as consequências de seu ato heroico.

A resistência do capitão Sérgio levou um dia o lendário brigadeiro Eduardo Gomes, um dos “18 do Forte”, a escrever:

Foi a admirável ação de um simples capitão, verdadeiramente inspirado por Deus, que evitou outros rumos para a história do Brasil.

Que “admirável ação” seria essa, capaz de mudar os rumos de nossa história? O clímax desse script de horror, que o diretor Costa-Gavras quis filmar, pode ser situado numa reunião realizada as 13 horas do dia 14 de junho, no 11º andar do prédio do então Ministério da Aeronáutica, na avenida Churchill, centro do Rio. Eram mais de 40 as pessoas ali reunidas guardadas por uma dezena de soldados armados de metralhadoras – para ouvir a exposição do brigadeiro João Paulo Burnier, que respondia pela chefia de Gabinete do ministro da Aeronáutica.

Tenso, andando de um lado para o outro, esmurrando a própria mão, o orador passou a informar quais seriam as novas tarefas do Para-Sar:

1. No caso de uma guerra, ante a necessidade e resgatar um companheiro ou prisioneiro, a exemplo do que faz o Para-sar dos Estados Unidos no Vietnã, o Para-sar poderia matar para cumprir sua missão;

2. No caso de uma guerra civil, contrarrevolucionários compatriotas, estes teriam que ser eliminados pelos homens do Para-Sar:

3. No caso de paz, mas em agitações de rua, o para-sar também deveria desempenhar a mesma missão.

A Terceira hipótese vinha acompanhada com observações como estas:

Para cumprir missões de morte na guerra, é preciso matar na paz.

Matar com sangue frio, sem que a mão trema, como aconteceu com os companheiros do exército, os paraquedistas.

Figuras políticas como Carlos Lacerda, esse canalha, que alguns pensam que é meu amigo, já deveriam estar mortas, senão fosse a mão dos paraquedistas ter tremido, eles se perderam em considerações se a ordem era certa ou errada; ordens dessa natureza não comportam perguntas nem dúvidas, cumprem-se e não se fazem comentários posteriores;

Elementos indesejáveis serão lançados de navio, ou avião, a 40 quilômetros da costa.

Ao final da explanação, o brigadeiro dirigiu-se a alguns oficiais:

– Concorda comigo, major?

– Sim, senhor – respondeu o comandante da esquadrilha, major Gil Lessa de Carvalho.

– E o senhor, capitão Guaranys?

– Sim, senhor – disse o capitão Roberto Camara Lima Ipiranga dos Guaranys.

A mesma pergunta, seguida das mesmas respostas, foi feita ainda ao capitão Loris Areias Cordovil ( Bororó) e ao tenente João Batista Magalhães.

A essa altura, o capitão Sérgio já estava irritado, revela agora, “porque as perguntas tinham sido feitas justamente aos quatro pilantras que estavam na trama”.

– E o senhor, capitão Sérgio?

Burnier gritou essa pergunta com o rosto quase colado ao do interlocutor, de tal maneira que este teve a sensação de estar sendo cuspido, o que aumentou a sua irritação:

– Com as duas primeiras hipóteses, concordo. Mas não concordo com a terceira, que considero imoral, inadmissível a um militar de carreira. Enquanto eu estiver vivo isso não acontecerá neste país.

Olhos nos olhos, as armas a alguns centímetros das mãos, entre os dois só havia lugar para a espuma que saía junto com os gritos.

– Não se estenda em considerações – berrou o brigadeiro. – Cale a boca!

– Não me calo e o ministro será sabedor desses fatos – revidou no mesmo tom o capitão.

Os gritos provocaram uma perigosa movimentação na sala. De repente, os jovens portadores de metralhadoras se viram praticamente cercados pelos sargentos e cabos do Para-Sar. A tensão se espalhava. “Nós dois estávamos armados”, relembra Sérgio, “e ele deveria ter dado voz de prisão. Se desse, eu não acataria e tudo poderia ocorrer ali. Mas ele, que depois passaria à história como um emérito torturador, assassino, de vermelhão ficou lívido. Baixou a cabeça e se retirou da sala, acompanhado dos quatro pilantras”. (...)

Tempos depois, o capitão recebia uma mensagem de rádio, cifrada do Brigadeiro Burnier convocando-o para uma reunião. No dia 12 de junho Sérgio era recebido no gabinete do ministro da aeronáutica por Burnier e pelo Brigadeiro Hipólito da costa, recém-chegado da zona do canal do Panamá. (...)

– O senhor tem quatro medalhas por bravura, não tem? – perguntou Burnier.

Aos 37 anos, com seis mil horas de voo e 900 saltos em missão, Sérgio já tinha de fato recebido quatro “medalhas de sangue em tempos de paz”. O seu trabalho nas selvas, salvando índios e pacificando tribos, transformara-o numa legenda dentro do Para-Sar, que ajudou a fundar e tinha atraído a admiração de indianistas como os irmãos Vilas-Boas, o médico Noel Nutels e o antropólogo Darcy Ribeiro. Amigo de caciques como Raoni, Kremure, Kretire, Megaron e Krumari, entre outros, o “Nambiguá caraíba” (Homem branco amigo), como era conhecido pelos índios, chegara a evitar uma guerra entre os txucarramães e os jurunas e kaiabis, pulando de pára-quedas no meio dos guerreiros.

Sérgio limitou-se a responder “sim” ao seu superior.

– Pois a quinta – anunciou com orgulho Burnier –, quem vai colocar no seu peito sou eu.

As razões para essa prometida condecoração iriam deixar o capitão estarrecido. Ele chegou a achar que estava participando de uma sessão de humor negro. Não era possível ser verdade.

– Capitão, se o gasômetro da avenida Brasil explodir às seis horas da tarde, quantas pessoas morrem?

Sérgio quis ainda acreditar que a pergunta se referia à hipótese de um acidente.

– Nessa hora de movimento, umas 100 mil pessoas.

O comentário seguinte ainda não esclarecia tudo:

– É, vale a pena para livrar o Brasil do comunismo.

De repente, como num pesadelo, o horror ia ganhando forma. Aquilo era um plano, não havia mais dúvida, e previa várias missões, uma das quais seria o sequestro de 40 personalidades, a serem lançadas ao mar. E cinco já estavam até escaladas: Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, Dom Hélder Câmara e o general Olímpio Mourão Filho. As outras seriam anunciadas de cinco em cinco.

A primeira parte do plano programaria “pequenos incidentes”, já que a escalada terrorista deveria ser gradativa: cargas na porta da Sears, do Citybank, da Embaixada Americana, com pequeno número de mortes.

“Num dia X, que ele definiria, o clímax do processo: as explosões do gasômetro e de Ribeirão das Lages no mesmo instante, controladas por controle remoto”.

As cargas de efeito retardado, seriam colocadas pelo capitão Sergio, que ficaria de stand by no Campo dos Afonsos. “Quando aparecesse o clarão da direita, o do gasômetro, nós decolaríamos de helicópteros e aportaríamos no local da tragédia para dar socorro aos milhares de feridos e mortos”.

Como o ato seria atribuído aos comunistas, o capitão Sérgio, comandando a equipe de socorro e resgate surgiria naturalmente como herói – um herói capaz de receber sua quinta medalha. (...)

Punido logo com uma transferência para o Recife, julgado e absolvido pelo Superior Tribunal Militar, reformado pela Junta Militar em setembro de 69, o capitão Sérgio poderia ter sido anistiado, mas recusou a anistia.

“Anistia-se a quem cometeu alguma falta”, costuma dizer. “Eu não posso ser anistiado pelo crime que evitei”. (...)

Perseguido e discriminado, Sérgio teve que viver durante anos, da solidariedade moral e material de alguns amigos. Em 1970, necessitando de um tratamento da coluna, foi aconselhado a não se internar em hospital militar. Um médico da Aeronáutica avisou Eduardo Gomes: “A vida do Sérgio, se ele entrar em um hospital militar de qualquer das três armas, não vale 10 centavos”.

Graças ao jornalista Darwin Brandão, com o auxilio do médico Sérgio Carneiro, o oficial acabou sendo tratado clandestinamente no Hospital Miguel Couto. Um outro amigo, ex-capitão da Marinha e empresário, ajudou-o com 3 mil dólares. (...)

No começo de 88, ao prestar um depoimento para este livro, o ex-ministro da Aeronáutica Márcio de Souza Mello não deu a menor importância ao episódio: “O senhor conhece esse rapaz? Ele, sim, é que tinha esse plano”. Mesmo quando se alega o testemunho de 37 cabos e sargentos do próprio Para-Sar, o brigadeiro tem um argumento definitivo para quem está acostumado a hierarquizar o mundo, as coisas e até o valor das palavras de acordo com as patentes: “É a palavra de cabos e sargentos contra a palavra de oficiais”.

Num momento em que a insanidade ameaçou se transformar em norma, esse estranho no ninho pareceu de fato um louco. Mas foi graças ao seu não que hoje se conta essa história como se ela não tivesse passado de um pesadelo, desses que desaparecem com o amanhecer.

Ao recusar sua quinta medalha, escolhendo uma guerra perdida, o capitão Sérgio virou um personagem de Camus – um herói solitário, um herói ético, um homem revoltado pela própria consciência, só por ela.”

 

 

“O hoje coronel Aguiar ainda se lembra da expressão do presidente. “As olheiras profundas indicavam que ele não tinha dormido aquela noite”. Assim, quando o general Médici chegou para transmitir o seu relato da situação, Costa e Silva já tinha lido os jornais e ouvido o noticiário radiofônico – todos devidamente censurados. Faltava apenas ouvir o que o general Médici guardara para o final da sua exposição:

– O senhor não caiu durante a noite porque é o senhor. Outro no seu lugar teria caído.

Bondade do futuro ditador. Na verdade, Costa e Silva não caiu porque durante a noite, de maneira velada ou explícita, vazou a única informação que poderia aplacar a voracidade dos radicais (que exigiam a radicalização da ditadura): o presidente estava decidido a capitular.”

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Crítica do programa de Gotha, de Karl Marx

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-189-5

Seleção, tradução e notas: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 144

Sinopse: Em 1875, Marx encaminhou à cidade de Gotha um conjunto de observações críticas ao programa do futuro Partido Social-Democrata da Alemanha, resultado da unificação dos dois partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, dirigida por Ferdinand Lassalle, e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores, dirigido por Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e August Bebel, socialistas próximos de Marx.

O projeto de programa proposto no congresso de união privilegiava as teses de Lassalle, o que suscitou críticas virulentas de Marx em forma de carta direcionada aos dirigentes. Sua oposição devia-se não à fusão dos partidos – quanto a isso era da opinião de que ‘cada passo do movimento real é mais importante do que uma dezena de programas’ –, mas ao estatismo exacerbado que ganhara espaço nas diretrizes do novo partido.

Nem a favor do poder absoluto do Estado proposto por Lassalle, nem da ausência de Estado proposta pelos anarquistas: a proposição de Marx era a ‘ditadura revolucionária do proletariado’, forma de Estado que teria lugar durante o período de transformação revolucionária que conduziria ao advento da sociedade comunista. Segundo ele, as cooperativas ‘só têm valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses’.

Essas glosas marginais sobre o Programa de Gotha somente foram publicadas em 1891, muito depois da morte de Marx, por Friedrich Engels, na revista socialista Die Neue Zeit, dirigida por Karl Kautsky. Ao longo do século XX, esse conjunto disperso de notas tornou-se documento coerente de combate contra o socialismo aliado ao Estado.

Novas luzes também são lançadas sobre outros temas: ‘Se lermos esse documento à luz dos debates do século XXI, alguns de seus aspectos ganham novo interesse no contexto dos atuais debates sobre a ecologia. É o caso da afirmação categórica de que o trabalho não é o único gerador de riqueza, a natureza o é tanto quanto ele. Assim, a crítica de muitos ecologistas a Marx – só o trabalho é fonte de valor – revela-se um mal-entendido: o valor de uso, que é a verdadeira riqueza, também é um produto da natureza’, afirma o sociólogo Michael Löwy no prefácio da primeira edição em língua portuguesa de Crítica do Programa de Gotha, pela Boitempo. Com amplo material complementar, como diversas cartas de Karl Marx e Friedrich Engels, incluindo a famosa carta deste a August Bebel, de março de 1875, analisada por Lenin em O Estado e a revolução (1917), esta edição situa o texto em seu contexto histórico e traz um dos pronunciamentos mais detalhados de Marx sobre assuntos revolucionários, tendo em vista o comunismo. O volume inclui também as atas do Congresso de Gotha, documentos raríssimos e de grande valor para estudiosos do marxismo. Outra novidade é a inclusão dos comentários de Marx ao livro Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin, redigidos na mesma época de Crítica do Programa de Gotha. Nesses escritos, Marx rebate as críticas de Bakunin sobre o suposto estatismo marxista e sua proximidade com Lassalle.


 

“Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas.”

 

 

“O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana.

Essa frase pode ser encontrada em todos os manuais infantis e está correta, desde que se subentenda que o trabalho se realiza com os objetos e os meios a ele pertinentes. Mas um programa socialista não pode permitir que tais fraseologias burguesas possam silenciar as condições que, apenas elas, dão algum significado a essas fraseologias. Apenas porque desde o princípio o homem se relaciona com a natureza como proprietário, a primeira fonte de todos os meios e objetos de trabalho, apenas porque ele a trata como algo que lhe pertence, é que seu trabalho se torna a fonte de todos os valores de uso, portanto, de toda riqueza. Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força sobrenatural de criação; pois precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas do trabalho. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, só pode viver com sua permissão.”

 

 

“O trabalho só se torna fonte da riqueza e da cultura como trabalho social ou, o que dá no mesmo, na e por meio da sociedade.”

 

 

“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”.”

 

 

“A distribuição dos meios de consumo é, em cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção; contudo, esta última é uma característica do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, baseia-se no fato de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente da condição pessoal de produção, da força de trabalho. Estando assim distribuídos os elementos da produção, daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual. O socialismo vulgar* (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição.

* Assim Marx e Engels chamam o socialismo eclético, que Engels, por exemplo, identifica no socialismo francês daqueles anos (cf. infra, nota 9) e que se concentrava sobretudo na exigência de uma distribuição “mais justa” do produtos do trabalho, sem considerar suficientemente o nexo essencial entre a distribuição e as relações de produção, elemento central da teoria marxiana. (N. T.)

9 Em sua obra A subversão da ciência pelo sr. Eugen Düring [Anti-Düring], publicada em 1878, em Leipzig, Engels caracterizava o socialismo francês da época “como uma espécie de socialismo eclético e medíocre”, que, “comportando nuances extremamente variadas, apresenta uma mistura das mais opacas omissões críticas, sentenças econômicas e ideias do futuro da sociedade de diversos fundadores de seitas”. (N. E. A.)

 

 

“No Manifesto Comunista, diz-se:

De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.*

A burguesia é concebida aqui como classe revolucionária – como portadora da grande indústria – em face da aristocracia feudal e das classes médias, que desejam conservar todas as posições sociais criadas por modos de produção ultrapassados. Elas não formam, portanto, juntamente com a burguesia, uma só massa reacionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista, o qual a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “quando [as camadas médias] se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado”**.

Desse ponto de vista, é também um absurdo dizer que as classes médias, “juntamente com a burguesia” e, sobretudo, com a aristocracia feudal, “formam uma só massa reacionária” diante da classe trabalhadora.

Por acaso, nas últimas eleições, gritou-se aos artesãos, aos pequenos industriais etc. e aos camponeses: “Comparados a nós, vocês formam, juntamente com a burguesia e a aristocracia feudal, uma só massa reacionária”?

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, tanto quanto seus fiéis sabem os escritos sagrados que ele produz. Portanto, quando ele o falsificou de modo tão grosseiro, foi apenas com o objetivo de enfeitar sua aliança com os adversários absolutistas e feudalistas contra a burguesia***.

No parágrafo em questão, aliás, sua sentença oracular é introduzida arrastada pelos cabelos, sem qualquer conexão com a distorcida citação dos Estatutos da Internacional. Não passa, aqui, de uma impertinência e, em verdade, uma impertinência do tipo que não desagrada nem um pouco ao sr. Bismarck, uma dessas grosserias baratas de cujo comércio vive o Marat de Berlim11.”

* São Paulo, Boitempo, 1998, p. 49. (N. E.)

** Idem. (N. E.)

*** Cf. supra, p. 26, nota 3. (N. T.)

11 Wilhelm Hasselmann. (N. E. A.)

 

 

“Desde a morte de Lassalle, impôs-se em nosso partido o ponto de vista científico de que o salário não é o que aparenta ser, isto é, o valor do trabalho ou seu preço, mas apenas uma forma disfarçada do valor ou preço da força de trabalho. Com isso, foi descartada toda a concepção burguesa do salário até hoje, assim como toda a crítica a ela dirigida, e ficou claro que o trabalhador assalariado só tem permissão de trabalhar para sua própria vida, isto é, para viver, desde que trabalhe de graça um determinado tempo para o capitalista (por isso, também para aqueles que, juntamente com ele, consomem a mais-valia); que o sistema inteiro da produção capitalista gira em torno do aumento desse trabalho gratuito graças ao prolongamento da jornada de trabalho ou do crescimento da produtividade, uma maior pressão sobre a força de trabalho etc.; que, por conseguinte, o sistema do trabalho assalariado é um sistema de escravidão e, mais precisamente, de uma escravidão que se torna tanto mais cruel na medida em que as forças produtivas sociais do trabalho se desenvolvem, sendo indiferente se o trabalhador recebe um pagamento maior ou menor. (...)

No lugar da vaga fraseologia que conclui o parágrafo – “pela eliminação de toda desigualdade social e política” –, dever-se-ia dizer que, com a abolição das diferenças de classes, desaparece por si mesma toda desigualdade social e política delas derivada.”

 

 

“Tornar o Estado “livre” não é de modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da estreita consciência do súdito. No Império alemão, o “Estado” é quase tão “livre” quanto na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela, e ainda hoje as formas de Estado são mais ou menos livres, de acordo com o grau em que limitam a “liberdade do Estado”.”

 

 

“Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão? Essa pergunta só pode ser respondida de modo científico, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema.

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Mas o programa é alheio tanto a esta última quanto ao futuro ordenamento estatal da sociedade comunista.”

 

 

“Dever-se-ia ter deixado de lado todo esse palavreado sobre o Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado em sentido próprio. O Estado popular foi sobejamente jogado em nossa cara pelos anarquistas, embora já o escrito de Marx contra Proudhon*e, mais tarde, o Manifesto Comunista digam de maneira explícita que, com a instauração da ordem socialista da sociedade, o Estado dissolve-se por si só e desaparece. Não sendo o Estado mais do que uma instituição transitória, da qual alguém se serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isso, nossa proposta seria substituir, por toda parte, a palavra Estado por Gemeinwesen**, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune***.

“Eliminação de toda desigualdade social e política”, em vez de “superação de toda distinção de classe”, é também uma expressão muito duvidosa. De um país para outro, de uma província para outra e até mesmo de um lugar para outro, sempre existirá certa desigualdade de condições de vida, que poderá ser reduzida a um mínimo, mas nunca completamente eliminada. Os habitantes dos Alpes terão sempre condições de vida diferentes das dos povos das planícies. A representação da sociedade socialista como o reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade, igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase de desenvolvimento, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso, descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão.” (Friedrich Engels)

* Referência à obra A miséria da filosofia (São Paulo, Expressão Popular, 2009), de Marx, publicada em 1847. (N. T.)

** Comunidade. (N. T.)

*** Comuna. (N. T.)

 

 

“Em geral, importa menos o programa oficial de um partido do que seus atos. Mas um novo programa é sempre uma bandeira que se hasteia publicamente e a partir da qual o mundo exterior julga o partido.”

 

 

“Se duas frações se unem, não se põe no programa de união aquilo que é controverso.” (Friedrich Engels)

 

 

“O todo é no mais alto grau desordenado, confuso, sem unidade, ilógico e vergonhoso. Se na imprensa burguesa houvesse um único cérebro crítico, ele teria esquadrinhado esse programa frase por frase, buscando em cada uma o conteúdo real, destacando sensivelmente o absurdo da coisa, demonstrando as contradições e as patacoadas econômicas (por exemplo, que hoje os meios de trabalho são “monopólio da classe capitalista”, como se não houvesse proprietários fundiários, ou a ideia da “libertação do trabalho”, em vez da classe trabalhadora, uma vez que o trabalho propriamente dito é bastante livre hoje em dia!) e levando todo o nosso partido ao mais terrível ridículo. Em vez disso, os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas essa circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa. Enquanto nossos oponentes e também os trabalhadores atribuírem a esse programa os nossos pontos de vista, poderemos silenciar sobre isso.” (Friedrich Engels)

 

 

“A mim, pessoalmente, isso só pode ser de uma forma: nenhum partido, em nenhum país, pode me condenar ao silêncio quando estou decidido a falar. Mas eu gostaria de sugerir a vocês que refletissem se não fariam melhor sendo um pouco menos melindrosos e, na ação, menos prussianos. Vocês – o partido – precisam da ciência socialista, e esta não pode viver sem liberdade de movimento. Para isso, é preciso tolerar as inconveniências, e isso se faz mantendo a compostura, sem vacilar.” (Friedrich Engels)

 

 

Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores* (excertos)

Considerando,

 

Que a emancipação das classes trabalhadoras tem de ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras;

Que a luta pela emancipação das classes trabalhadoras significa não a luta por privilégios e monopólios, mas por iguais direitos e deveres e pela abolição de todo domínio de classe;

Que a sujeição econômica do homem que trabalha para o monopolizador dos meios de trabalho, isto é, das fontes de vida, repousa no âmago da servidão em todas as suas formas, de toda miséria social, degradação mental e dependência política;

Que a emancipação econômica das classes trabalhadoras é, portanto, o grande fim ao qual todo movimento político deve estar subordinado como meio;

Que todos os esforços visando esse grande fim falharam até hoje por falta de solidariedade entre as várias divisões do trabalho em cada país e pela ausência de um vínculo fraternal entre as classes trabalhadoras dos diferentes países;

Que a emancipação do trabalho não é uma emancipação local nem nacional, mas um problema social que abrange todos os países em que existe a sociedade moderna e depende, para sua solução, da confluência prática e teórica de todos os países avançados;

Que o atual reavivamento das classes trabalhadoras nos países mais industrializados da Europa, ao mesmo tempo que representa uma nova esperança, traz uma advertência solene contra a recaída em velhos erros e conclama para a combinação imediata dos movimentos ainda desconexos;

 

Por essas razões:

A Associação Internacional dos Trabalhadores foi fundada.

 

Ela declara:

Que todas as sociedades e indivíduos que a ela aderirem reconhecerão a verdade, a justiça e a moralidade como base de sua conduta uns para com os outros e para com cada homem, sem considerações de cor, credo ou nacionalidade;

Que não reconheçam nenhum direito sem deveres, nem deveres sem direitos;

E, nesse espírito, as seguintes regras foram traçadas:

1. Essa Associação é estabelecida para proporcionar um meio central de comunicação e cooperação entre sociedades operárias de diferentes países que visam a mesma finalidade, isto é, a proteção, o avanço e a completa emancipação das classes trabalhadoras. (...)

 

Art. 7a. Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo num partido político particular, o qual se confronta com todos os partidos anteriores formados pelas classes possuidoras.

Essa unificação do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e seu fim último – a abolição das classes.

A união das forças dos trabalhadores, que já é obtida mediante a luta econômica, tem de tornar-se, nas mãos dessa classe, uma alavanca em sua luta contra o poder político de seus exploradores.

Como os senhores do solo e do capital se servem de seus privilégios políticos para proteger e perpetuar seus monopólios econômicos, assim como para escravizar o trabalho, então a conquista do poder político torna-se uma grande obrigação do proletariado.”

* Marx esboçou os Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores entre 21 e 27 de outubro de 1864. Os excertos aqui apresentados são o texto aprovado na conferência de Londres da Associação Internacional dos Trabalhadores. O artigo 7a, uma afirmação categórica – contra o anarquismo – da importância do caráter político do movimento operário, foi aprovado no congresso de Londres como “resolução” e acrescentado aos Estatutos da Internacional em setembro de 1872, no congresso de Haia. Este, palco da luta final entre marxistas e bakuninistas, culminou na expulsão do líder máximo dos anarquistas dos quadros da Internacional. (N. T.)

 

 

Programa de Erfurt (1891)

O desenvolvimento econômico da sociedade burguesa conduz, com necessidade natural, à ruína da pequena empresa, assentada sobre a propriedade privada dos meios de produção pelo trabalhador. Ela separa o trabalhador de seus meios de produção e o transforma num proletário sem posses, enquanto os meios de produção se tornam o monopólio de um número comparativamente pequeno de capitalistas e grandes proprietários fundiários.

Essa monopolização dos meios de produção é acompanhada da eliminação das pequenas empresas fragmentadas por empresas colossais, da transformação da ferramenta em máquina, do gigantesco crescimento da produtividade do trabalho humano. Mas todas as vantagens dessa transformação são monopolizadas pelos capitalistas e grandes proprietários fundiários. Para o proletariado e para as camadas médias em declínio – pequeno-burgueses, camponeses –, elas significam o aumento crescente da insegurança de sua existência, da miséria, da opressão, da servidão, da humilhação e da exploração.

Quanto maior o número de proletários, mais maciço o exército de trabalhadores excedentes, mais brutal a oposição entre exploradores e explorados, mais aguda a luta de classe entre burguesia e proletariado que divide a sociedade moderna em dois quartéis inimigos e constitui a característica comum de todos os países industrializados.

O abismo entre possuidores e não possuidores torna-se ainda mais profundo com as crises inerentes à essência do modo de produção capitalista, crises que se tornam cada vez mais abrangentes e devastadoras, ultrapassando a tal ponto a insegurança geral própria das condições normais da sociedade que a propriedade privada dos meios de produção torna-se inconciliável com sua utilização conforme a um fim e com seu pleno desenvolvimento.

A propriedade privada dos meios de produção, que outrora foi o meio de assegurar ao produtor a propriedade de seu produto, tornou-se hoje o meio de expropriar os camponeses, os artesãos e os pequenos comerciantes e conferir aos não trabalhadores – capitalistas, grandes proprietários fundiários – a posse do produto dos trabalhadores. Apenas a transformação da propriedade privada capitalista dos meios de produção – solo, subterrâneos e minas, matérias-primas, ferramentas, máquinas, meios de transporte – em propriedade social e a transformação da produção de mercadorias em produção socialista, realizada para e pela sociedade, podem ter como efeito que a grande empresa e a produtividade sempre crescente do trabalho social se convertam, para as classes até então exploradas, de fonte de miséria e opressão em fonte da mais alta prosperidade e pleno e harmônico aperfeiçoamento.

Tal transformação social significa a libertação não só do proletariado, mas do gênero humano, que padece sob as atuais condições. Mas ela só pode ser obra da classe trabalhadora, uma vez que todas as outras classes, apesar dos conflitos de interesses entre si, encontram-se sobre o solo da propriedade privada dos meios de produção e têm como meta comum a manutenção das bases da sociedade atual.

A luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista é necessariamente uma luta política. A classe trabalhadora não pode conduzir suas lutas econômicas nem desenvolver seus direitos políticos sem tomar posse do poder político.

Fazer da luta da classe trabalhadora uma luta consciente e uniforme e indicar a ela seu escopo inexorável – tal é a tarefa do Partido Social-Democrata.

Os interesses da classe trabalhadora são os mesmos em todos os países com modo de produção capitalista. Com a expansão do intercâmbio mundial e da produção para o mercado mundial, a situação dos trabalhadores de cada um desses países torna-se cada vez mais dependente da situação dos trabalhadores nos outros países. A libertação da classe trabalhadora é assim uma obra da qual participam, em igual medida, os trabalhadores de todos os países civilizados. Ciente disso, o Partido Social-Democrata da Alemanha sente-se e declara-se em união com os trabalhadores conscientes de sua classe em todos os países.

O Partido Social-Democrata da Alemanha luta, portanto, não por novos privilégios e imunidades de classe, mas pela abolição do domínio de classe e das próprias classes e por iguais direitos e iguais deveres para todos, sem distinção de sexo e ascendência. Partindo dessa concepção, ele combate na sociedade atual não apenas a exploração e a opressão do trabalhador assalariado, mas toda forma de exploração e opressão, seja ela voltada contra uma classe, um partido, um sexo ou uma raça.

 

Partindo desses princípios, o Partido Social-Democrata da Alemanha exige imediatamente:

 

1. Sufrágio universal, igual e direto, com voto secreto garantido a todos os membros do Império maiores de 20 anos, sem distinção de sexo, para todas as eleições e votações. Sistema eleitoral proporcional e, até que este seja introduzido, nova divisão legal dos distritos eleitorais após cada senso populacional. Intervalo eleitoral de dois anos. Realização das eleições e votações num dia oficial de folga. Recompensa para o representante eleito. Supressão de todas as limitações aos direitos políticos, a não ser em casos de interdição.

2. Legislação direta pelo povo, com direito a proposição e veto. Autodeterminação e autoadministração do povo no Império, no Estado, na província e no município. Eleição das autoridades pelo povo; responsabilidade e punibilidade das autoridades. Aprovação anual dos impostos.

3. Instrução para defesa geral. Milícia popular no lugar do exército permanente. Decisão sobre guerra e paz mediante representação popular. Mediação de todos os conflitos internacionais por tribunais de arbitragem.

4. Abolição de todas as leis que limitam ou suprimem a livre expressão da opinião e o direito de associação e reunião.

5. Anulação de todas as leis que prejudicam a mulher em benefício do homem, seja numa relação de direito público, seja de direito privado.

6. Declaração da religião como questão privada. Abolição de toda aplicação de recursos públicos para fins religiosos ou eclesiásticos. As comunidades eclesiásticas e religiosas devem ser consideradas associações privadas que tratam seus assuntos de modo totalmente independente.

7. Secularização das escolas. Frequentação obrigatória das escolas primárias públicas. Gratuidade do ensino, dos materiais didáticos e da alimentação nas escolas primárias, assim como nos estabelecimentos públicos de ensino superior, para aqueles estudantes que, graças à sua capacidade, são considerados aptos a uma educação ulterior.

8. Gratuidade da justiça e da assistência jurídica. Jurisdição mediante juízes eleitos pelo povo. Apelação em causas penais. Indenização para os inocentes injustamente acusados, presos e condenados. Abolição da pena capital.

9. Gratuidade da assistência médica, inclusive obstetrícia e medicamentos. Gratuidade dos sepultamentos.

10. Imposto de renda e de patrimônio progressivos para o custeio de todos os gastos públicos, numa medida tal que estes possam ser cobertos pelos impostos. Imposto de herança gradualmente progressivo de acordo com o volume da herança e do grau de parentesco. Abolição de todos os impostos indiretos, tarifas alfandegárias e demais medidas político-econômicas que sacrificam os interesses da coletividade aos interesses de uma minoria privilegiada.

 

Para a proteção da classe trabalhadora, o Partido Social-Democrata da Alemanha exige imediatamente:

 

1. Uma legislação eficaz de proteção dos trabalhadores, nacional e internacional, sobre os seguintes fundamentos:

a) Consolidação de uma jornada normal de trabalho de oito horas no máximo;

b) Proibição do trabalho remunerado para crianças menores de catorze anos;

c) Proibição do trabalho noturno, a não ser para aqueles ramos da indústria que, em virtude de sua natureza, requerem trabalho noturno por razões técnicas ou em nome do bem-estar público;

d) Um período de descanso de no mínimo 36 horas por semana para cada trabalhador;

e) Proibição do pagamento dos trabalhadores com mercadorias.

2. Vigilância de todos os estabelecimentos industriais, investigação e regulação das relações de trabalho na cidade e no campo mediante uma secretaria do trabalho do Império, secretarias distritais do trabalho e câmaras do trabalho. Rigorosa higiene industrial.

3. Equiparação legal dos trabalhadores agrícolas e empregados domésticos com os trabalhadores da indústria; eliminação dos Regulamentos da Criadagem*.

4. Asseguramento do direito de associação.

5. Assunção por parte do Império da seguridade total do trabalhador, com a cooperação ativa dos trabalhadores em sua administração.”

* Leis prussianas que regulavam – e asseguravam – a submissão do criado ao patrão. As leis da criadagem só foram abolidas na Alemanha em 1918, juntamente com a introdução do voto feminino. (N. T.)