segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Os sertões: campanha de canudos (Parte II), de Euclides da Cunha

Editora: Clube de Literatura Clássica

ISBN: 978-65-8703-620-5

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 690

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Sinopse: Ver Parte I


POPULAÇÃO MULTIFORME. POLÍCIA DE BANDIDOS. O TEMPLO. ESTRADA PARA O CÉU.

Lá se firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante.

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas, todas as condições do estádio social inferior. Na falta da irmandade do sangue, a consanguinidade moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.

O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades — jagunço.

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais dispares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas à maneira de um polipeiro719 humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência proteica720 — de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo721 claudicante —estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.

Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na terra.

Eram-lhe inúteis. Canudos era o cosmos.

E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam722 sem demora; o último pouso na travessia de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus...

Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota-parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado mortal do bem-estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam-se bem, vendo-se em andrajos. Este desprendimento levado às últimas consequências chegava a despi-los das belas qualidades morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.

O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras suportadas.

De todas as páginas de catecismo que soletrara ficara-lhe preceito único:

Bem-aventurados os que sofrem...723

A extrema dor era a extrema-unção.724 O sofrimento duro a absolvição plenária;725 e teriaga726 infalível para a peçonha dos maiores vícios.

Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão de somenos.727 Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas e todas as escorralhas728 de uma vida infame caíssem, afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.

Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade729 de um devasso maculara incauto donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:

 

“Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal!”

 

Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo730 infrene.731 Os filhos espúrios não tinham à fronte o labéu732 indelével da origem, a situação infamante dos bäncklings733 entre os germanos. Eram legião.

Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá-los734 agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial inteiro! — saiu, do banquete minúsculo, repleto, empanzinado, como se volvesse de festim soberbo.

Este regímen severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais vibrátil a enervação enferma dos crentes e preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.

Canudos era o homizio735 de famigerados736 facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia monstruoso dentre aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos Batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários...

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a poeira, no dizer dos jagunços — viam-se diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.

Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica,737 no clã policiado por facínoras. Visava uma delinquência especial, traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando738 penas severíssimas sobre leves faltas.

O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! dipsomaníaco739 incorrigível que rompesse o interdito imposto!

Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso.740 Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas,741 amargos bolos742 com que os presenteara aquela gente ingrata.

Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas, fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras,743 chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembleia Estadual da Bahia.

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se744 fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da Vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razzia escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranhas745 para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.746

Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava conta dos desmandos.

Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.

Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo747 qualquer; e para o estraçoamento748 das atas; e para as mazorcas749 periódicas que a lei marca, denominando-as “eleições”, eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.

Ora, estas arrancadas750 eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém , exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado — ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que lhes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões:

 

Do céu veio uma luz

Que Jesus Cristo mandou

Santo Antônio Aparecido

Dos castigos nos livrou!

***

Quem ouvir e não aprender

Quem souber e não ensinar

No dia do Juízo

A sua alma penará!751

 

Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivam-lhe, porventura, os últimos tragos da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por excelência.

O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos752 de uma penitência, que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego,753 remorado754 pelas muletas e pelas anquiloses,755 lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo.

A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a pureza principal da religião antiga.

Era necessário que se lhe contrapusesse a arx756 monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.

Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã757 enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para fazer o saco758 nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em piquetes759 vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando760 quem chegava, o resto do povo moirejava761 na missão sagrada.

Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto.762 Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.

É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet...763

Devia ser como foi. Devia surgir, mole764 formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhes a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores...

Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos,765 sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas766 impossíveis, cabriolando767 num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas768 horrorosas, esburacada de troneiras;769 informe e brutal, feito a testada de um hipogeu770 desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante.

Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus771 bamboantes772. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide773 errante sobre o edifício monstruoso.

Não faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.

Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.

Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas facinadoramente traiçoeiras que levam ao inferno. Canudos, imunda antessala do paraíso, pobre peristilo774 dos céus, devia ser assim mesmo — repugnante, aterrador, horrendo...

Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentando esperanças singulares. “Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.”

Chegavam.

Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas...

Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam no misticismo lamentável...”

*: “Face” em latim, também grafada “fácies”; designa o conjunto de características ou configuração de determinado campo, aqui, geográfico. 719. Colônia de pólipos; seus mais conhecidos representantes são os corais, anêmonas e medusas. 720. Multiforme (relativo a Proteu). 721. Monge budista; por extensão: pessoa preguiçosa, ou sonsa. 722. Levantariam acampamento. 723. Mateus 5, 10: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus”. 724. Sacramento dos moribundos, em que o sacerdote os unge com os óleos santos. “Extrema” tem o sentido de “última”. 725. Absolvição de todos os pecados. 726. Composto químico antigo com mais de 60 substâncias, usado como preventivo e contra o veneno de animais; teria sido criado por Andrômaco de Creta, médico de Nero. 727. Nota do autor: Montanus ne prenait même pas la peine d'interdire un acte devenu absolument insignifiant, du moment que l'humanité en était à son dernier soir. La porte se trouvait ainsi ouverte à la débauche. — Renan, Marc-Aurèle, p. 215. Tradução do editor: “Montano nem mesmo se dava ao trabalho de proibir um ato que se tornara absolutamente insignificante a partir do momento em que a humanidade estava em seu último crepúsculo. A porta se encontrava assim aberta à devassidão.” 728. Literalmente, resíduo líquido que fica no fundo das vasilhas. 729. Sensualidade. 730. Sistema de prostituição na Grécia antiga; na antropologia, designa um modelo primitivo de sociedade e que as relações sexuais são praticadas livremente, em comunidade. 731. Desenfreado. 732. Mancha, desonra. 733. Bastardos. 734. Desperdiçá-los (os conselhos). 735. Esconderijo. 736. Famosos (em sentido pejorativo). 737. Contraditória, incoerente. 738. Impondo. 739. Beberrão. 740. Proibido. 741. Literalmente, pancadas de palmatória. 742. Golpes. 743. Incursões a cavalo em terras inimigas. 744. Devastavam-se, arrasavam-se. 745. Apêndices bucais da aranha; a expressão significa “estar em apuros, em situação difícil”. 746. A “coroa” refere-se à tonsura sacerdotal. Trata-se de uma revolta contra o casamento civil: o escrivão teria usurpado as funções do sacerdote, por isso o castigo de lhe tosquiarem a cabeça. 747. Tiranete. O latim regulus é o diminutivo de rex; portanto: “reizinho”. 748. Espedaçamento. 749. Tumultos, badernas. 750. Investidas. 751. Nota do autor: Sílvio Romero, Estudos sobre a poesia popular no Brasil. O escritor transcrevia aquelas quadras em 1879, precedendo-as com o seguinte comentário: “Era um missionário a seu jeito. Com tão poucos recursos fanatizou as povoações que visitou, que o tinham por Santo Antônio Aparecido”. Já em 1879!... 752. Hábito reles, usado pelos penitentes acusados pela Inquisição. 753. Arrastado, dificultoso. 754. Retardado, demorado. 755. Imobilidade ou inflexibilidade das articulações. 756. Em latim, cidadela, fortaleza. 757. Madrugada, logo antes de amanhecer. 758. Bernucci cita a definição do próprio Euclides: “ganhar o que dê para alguns dias, uma semana”. 759. Corpos de guarda. 760. Vigiando, espionando. 761. Labutava, trabalhava duro (como mouros). 762. Fortificação no interior de outra, para servir à última resistência. 763. Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704) foi um bispo francês, considerado o maior orador sacro da língua francesa. 764. Construção de vastas proporções. 765. Unidades de medida que regulam as proporções e dimensões de uma construção.

 

 

POR QUE NÃO PREGAR CONTRA A REPÚBLICA?

Pregava contra a República; é certo.

O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso.

Mas não traduzia o mais pálido intuito político; o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.

Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.

Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente,823 ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século XVII, porém, nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas824 de Verzegnis ou entre os stundistas da Rússia.825 Porque essas psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas superiores.

Os perfectionistas826 exagerados rompem, então, lógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Stürmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã...827

Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam828 reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respigando,829 em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...

E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas. reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras...

Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regímen, capaz de derruir as instituições nascentes.

E Canudos era a Vendeia...830

Entretanto, quando nos últimos dias do arraial foi permitido o ingresso nos casebres estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.

Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos831 imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política, permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado mortal de um povo —heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do Anticristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvairos em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloquente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.832

Copiemos ao acaso alguns:

 

“Saiu D. Pedro segundo

Para o reino de Lisboa

Acabosse a monarquia

O Brasil ficou à toa!”

 

A República era a impiedade:

 

“Garantidos pela lei

Aqueles malvados estão

Nós temos a lei de Deus

Eles têm a lei do cão!”

 

***

 

“Bem desgraçados são elles

Pra fazerem a eleição

Abatendo a lei de Deus

Suspendendo a lei do cão!”

 

“Casamento vão fazendo

Só para o povo iludir

Vão casar o povo todo

No casamento civil!”

 

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

 

“D. Sebastião já chegou

E traz muito regimento

Acabando com o civil

E fazendo o casamento!”

 

“O Anticristo nasceu

Para o Brasil governar

Mas aí está o Conselheiro

Para delle nos livrar!”

 

***

 

“Visita nos vem fazer

“Nosso rei D. Sebastião.

“Coitado daquelle pobre

“Que estiver na lei do cão!

 

A lei do cão...

Este era o apotegma834 mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentários.

Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados...

Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.

Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain;835 e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala.”

825. Os stundistas são um grupo evangélico que se original entre os ucranianos do Império Russo. Seu nome deriva do alemão Stunde (“hora”), e professam uma moral rígida. 826. Grupo religioso fundado em Oneida, NY, em 1848. Os perfectionists criam que Jesus já havia retornado, e que era possível eles mesmos construírem o milênio e serem perfeitos, aqui mesmo na Terra. John Humphrey Noyes, o líder da seita, disse, após a comunidade ter alcançado 200 adeptos, que eles haviam atingido a santidade, sendo por isso impossível que pecassem: toda a propriedade privada foi abolida, e o sexo era livre. A comunidade durou até 1881, quando se converteu numa empresa de cutelaria, a Oneida Limited, até hoje ativa. 827. Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803) foi um poeta alemão, autor de Der Messias e um dos maiores nomes da renovação literária no domínio da língua alemã. O adjetivo stürmisch refere-se aqui ao movimento Sturm und Drang, que colocou a literatura alemã no patamar das grandes literaturas europeias. 828. Aqui, aparecem palidamente. 829. Catando. 830. Departamento francês, na fronteira com a Espanha. Ficou conhecida pelas Guerras da Vendeia, durante a Revolução, por ter oferecido uma resistência monarquista e católica aos revolucionários republicanos e laicistas. Até hoje o departamento tem o Sagrado Coração de Jesus em seus símbolos cívicos. 831. Ricos, abundantes. 832. No capítulo 28 de seu já referido livro, Renan faz um balanço dos grandes personagens do Cristianismo do segundo século, classificando-os de grosseiros. Analisa também os seus escritos: (p. 513): “A mesma reflexão pode ser aplicada aos escritos que nos deixaram essas eras antigas. Eles são superficiais, simples, grosseiros, ingênuos, análogos às cartas sem ortografia que escrevem hoje em dia os sectários comunistas mais desprezíveis. Tiago e Judas lembram Cabet ou Babick, tal fanático de 1848 ou de 1871, convencido, mas não sabendo a sua língua, se exprimindo a esmo, de modo tocante, sua aspiração ingênua à consciência. E, contudo, é esse gaguejar do povo que se tornou a segunda Bíblia do gênero humano. O tapeceiro Paulo escrevia em grego tão mal quanto Babick em francês.” Tradução e grifos nossos. 833. Nota do autor: Conservamos os originais destas quadras cuja ortografia alteramos em parte. Complemento do editor: Preferimos atualizar a ortografia. O original mantido por Euclides é basicamente a ortografia vigente na época. 834. Máxima, aforismo. 835. Rifle belga muito usado, na América do Sul, pelos exércitos brasileiro e chileno.

 

 

“Antônio Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de uma peregrinação incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma cidade; de Chorrochó à Vila do Conde, de Itapicuru a Jeremoabo, não havia uma só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude; insurgira-se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras de cidades que invadira; destroçara completamente, em 1893, forte diligencia policial, em Macete, e fizera voltar outra, de oitenta praças de linha, que seguira até Serrinha; em 1894, fora, nu Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão na qual, impugnando a proposta de um deputado, chamando a atenção dos poderes públicos para a “parte dos sertões perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro”, outros eleitos do povo, e entre eles um sacerdote, apresentaram-no como benemérito do qual os conselhos se modelavam pela ortodoxia a cristã mais rígida; fizera voltar, abortícia, em 1895, a missão apostólica planeada pelo arcebispo baiano, e no relatório alarmante a propósito escrito por frei João Evangelista afirmara o missionário a existência, em Canudos — excluídas as mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos — de mil homens, mil homens robustos e destemerosos “armados até aos dentes”; por fim, sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam havia, em toda a parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam...”

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