quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Marx, Engels, Lenin: a história em processo (Parte II) — Florestan Fernandes

Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-203-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Ver Parte I



“Nas outras correntes das ciências sociais, o processo de maturação científica foi mais demorado, oscilante e ambíguo (envolvendo intermitências e relações contraditórias entre gerações distintas”. De um lado, ficou quase sempre faltando uma opção clara pelo materialismo. As várias correntes positivistas e espiritualistas mantiveram dentro da ciência uma herança filosófica que ou não era repudiada, ou não era questionada até o fundo. De outro, a cientifização, nessas correntes, ficou presa ao fascínio das ciências da natureza (da física à biologia) e às suas técnicas empíricas e lógicas de observação e de interpretação. Nenhuma delas logrou combinar a universalidade lógica do raciocínio científico à compreensão dialética do movimento (na sociedade e na história). Daí resultou que somente K. Marx construiu um modelo de explicação científica que apanhava a transformação da sociedade como um processo histórico-social, isto é, em termos de tempo histórico real. Tais reflexões deixam patente que o rápido avanço do materialismo histórico repousava em dois fatores. Um era o próprio Karl Marx, cuja personalidade como investigador científico, homem de pensamento e de ação, e capacidade inventiva devem ficar fora de discussão. O outro era o ponto de partida específico, no qual, pela primeira vez na história da ciência moderna, a afirmação mais pura do raciocínio científico não excluía o aproveitamento de uma rica herança filosófica, escoimada de seus “vícios de origem”. No texto transcrito, F. Engels detém-se tão-somente no significado imediato daquele ponto de partida, no qual ele incluía a refutação do antigo materialismo (naturalista e mecanicista) e da filosofia (idealista) da história. O primeiro confundia “as forças motrizes ideais” com “as causas últimas”, permanecendo no nível das aparências e deixando de indagar quais seriam “as forças motrizes das forças motrizes”. A segunda ia além desse circuito limitado, principalmente graças a Hegel, penetrando nas forças realmente determinantes. No entanto, ela negligenciava a própria história, porque preteria os fatos pelas ideias. Ao pôr de lado o antigo materialismo e a filosofia da história, K. Marx não se propunha realizar uma “síntese de perspectivas”, como diria K. Mannheim, extraindo o que havia de “bom “em um e na outra, mediante uma posição interpretativa eclética. Ao contrário, ele estabelecia um ponto de partida novo, que negava as duas concepções da história e da sociedade, ultrapassando-as através de um “materialismo consequente”, que oferecia à ciência a possibilidade de romper com todos os idola, ou seja, de realizar-se plenamente, com toda a objetividade e independência que lhe devem ser intrínsecas.
É assim que se desenharia a concepção materialista da história. Ela busca descobrir as “forças motrizes da história” (ou melhor, as “forças motrizes das forças motrizes”). Estas surgem na superfície da cena histórica e parecem conscientes. Porém, são na maioria das vezes predominantemente inconscientes e não se confundem com os motivos mais visíveis e transparentes da “ação dos homens na história”. Seguindo a ótica aberta por A sagrada família e por A ideologia alemã: o que possui importância decisiva são os motivos que transcendem e sublimam socialmente o querer individual, que “põem em movimento as grandes massas, povos inteiros, classes inteiras da população”; motivos “que os impulsionam não como fogo de palha que se extingue rapidamente, mas como ação durável visando a uma grande transformação histórica”. Portanto, o materialismo histórico propõe-se investigar as “forças motrizes que se refletem aqui no espírito das massas em ação e dos seus chefes — aqueles que se chamam ordinariamente grandes homens”. Como nas ciências da natureza, a investigação pretende descobrir as leis que “dominam a história universal e a história das diferentes épocas e dos diferentes países”. Em suma, o caos aparente da história oculta, nas situações históricas mais lábeis — similares ou contrastantes — a manifestação ordenada e a transformação determinada da existência humana em sociedade, ambas regidas por “leis gerais” de natureza histórica.”


“Na natureza operam fatores inconscientes e cegos. Na “história da sociedade, ao revés, prevalece o fim consciente, refletido e desejado”. “Homens dotados de consciência, agindo com reflexão ou paixão e visando a fins determinados.” No entanto, como na ciência da natureza, cabe ao investigador da “história da sociedade” submeter à observação as relações reais e “descobrir as leis gerais do desenvolvimento da sociedade”. Na aparência, a vida em sociedade é um caos, como se a indeterminação imperasse sobre as ações e as relações sociais dos indivíduos. Na realidade, o desenvolvimento da sociedade é regulado por “leis gerais internas”, o que quer dizer que a sociedade, como a natureza, está submetida à determinação. O acaso reina na superfície. Acima dos motivos pessoais e ideais, que aparentemente dirigem as ações dos homens e sua história, ficam as causas históricas, mais ou menos ocultas e mais ou menos inconscientes, que se transformam naqueles motivos “no cérebro dos homens que agem”. Por conseguinte, as “forças motrizes” da história refletem dois tipos de componentes dinâmicos. Os motivos pessoais e ideais, que parecem ser decisivos, apenas “possuem uma importância secundária para o resultado final”, qualquer que seja a importância deles para o estudo histórico. As causas materiais, que se ocultam por trás daqueles motivos, é que são verdadeiramente “forças determinantes” e permitem explicar, através das ações e das relações dos homens entre si, os acontecimentos e o curso dos processos históricos.”


O modo de produção capitalista engendra uma estratificação em classes da sociedade, que torna tudo claramente perceptível. Ao contrário de outras formas antagônicas de sociedade, a sociedade burguesa não esconde a sua essência pela aparência. Essa simplificação facilita a pesquisa das “causas motrizes” da história e resolve o enigma de todas as sociedades antagônicas. Tornam-se evidentes, também, quais são as três grandes classes dessa sociedade, o antagonismo de seus interesses e a luta que elas travam entre si. Engels afirma, mesmo, que seria “preciso fechar os olhos propositadamente para não ver a força motriz da história moderna”.”


“Sem subestimar a contribuição teórica de Lenin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o aprofundamento do marxismo, como no estudo da penetração do capitalismo na agricultura, das condições e efeitos do desenvolvimento desigual ou do imperialismo, na explicação da guerra e da revolução, na sistematização das explicações marxistas do Estado e da própria utopia marxista, tão mal representada e conhecida antes dele etc.), é no terreno da prática que se acha o eixo da transmutação leninista do marxismo. Isto não quer dizer que esta prática estivesse desligada da teoria — pois nunca esteve ou poderia estar no pensamento dialético-materialista — nem tampouco que Marx, Engels e os seus seguidores tivessem negligenciado, na teoria e na ação, as várias dimensões da prática (especialmente a política). Mas significa, isso sim, que Lenin se impôs como tarefa de sua vida a adequação instrumental, institucional e política do marxismo à concretização da revolução proletária. O marxismo, depois de Lenin, não é mais a mesma coisa, porque ele incorporou um “modelo” de como passar da ditadura burguesa à ditadura do proletariado.
Esse modelo desloca o âmago do marxismo para a reflexão política, ou seja, para as condições concretas da ação política e da transformação política, quando se focalizam dialeticamente as relações de classes como relações de poder (a luta de classes como um processo que conduz à formação e ao controle do Estado que mantém a ordem, ou à constituição de um Estado que a destrói e instaura a transição para o socialismo), Antes de Lenin, semelhante elemento político estava incluído no marxismo como uma previsão e, também, como um momento da vontade política. Com Lenin, esse elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e do próprio marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos paralisadoras da democracia burguesa, como dar ao proletariado — classe que pode arrastar atrás de si a massa não possuidora e constituir-se em núcleo hegemônico de uma maioria atuante — a capacidade de converter seu poder potencial em poder real? Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade de classes; e, como marxista, não apenas para explicar como a minoria pode suplantar a maioria e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo agonizante”, mas também para descobrir como transformar o inócuo poder potencial da maioria em poder especificamente político, concentrado e disciplinado de forma revolucionária.
Atento às estruturas de poder e aos efeitos da dominação de classe inerentes à democracia burguesa, Lenin chegou rapidamente à conclusão de que a revolução proletária possui um padrão histórico. Em contraste com a revolução burguesa, ela não pode iniciar-se antes da tomada do poder pelo proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o problema estratégico da luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso revolucionário do espaço político que a classe operária pode conquistar e manejar com relativa autonomia, ilegal e legalmente, no seio da sociedade de classes. Como a dominação burguesa também implica socialização ideológica e política do resto da sociedade pela burguesia, tal uso do espaço político impunha, naturalmente, certas condições básicas: 1) formação de uma minoria contestadora fortemente organizada, capaz de atuar legal e ilegalmente, sem vacilações, como vanguarda revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com todas as formas diretas ou indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem democrática burguesa; 3) a educação política do proletariado e, na medida do possível das massas pobres e da pequena burguesia, através de situação e de reivindicações concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização (nos níveis econômico, sociocultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha em primeiro plano a questão da organização do partido revolucionário do proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma nova mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com sua base e com a massa.
Com referência à organização do partido, Lenin fixou normas de racionalização que deviam ser iguais ou superiores às que têm vigência na grande empresa capitalista, no exército moderno ou no Estado democrático burguês. Em consequência, as tarefas de agitação e de propaganda podiam irradiar-se por toda a sociedade, embora concentrando-se com maior intensidade na classe operária; e as tarefas políticas, imediatas e de largos prazos, podiam ser definidas segundo critérios específicos de flexibilidade e de eficácia. A ideia básica consistia em que a revolução não nasce pronta e acabada — o partido revolucionário do proletariado deveria travar suas batalhas, clandestina ou abertamente, tendo em vista as combinações que poderiam favorecer, em determinado momento, ou o fortalecimento da democracia burguesa, ou o deslocamento desta no sentido de uma democracia operária, ou a tomada pura e simples do poder.
Todas essas estratégias foram exploradas, com as táticas correspondentes, e Lenin foi o mestre das principais diretrizes (embora a sua produção intelectual e política, nessa direção, aguarde estudo sistemático). Por sua vez, para cumprir essa missão era indispensável interromper a infiltração ou a corrupção burguesa, impedindo as soluções de compromisso ou de aparente “revolução dentro da ordem” (ambas de exclusivo interesse para a dominação burguesa e a consolidação do status quo). Daí a necessidade imperiosa de combater sem tréguas o oportunismo, o reformismo e o ultraesquerdismo, por vários motivos dissolventes do espírito revolucionário, da atuação revolucionária racional e da solidariedade política do proletariado. Por fim, uma vanguarda revolucionária do proletariado não podia nem devia representar-se e comportar-se como uma elite e segundo valores elitistas. Se ela devia contribuir para a expansão da consciência de classe do proletariado de “fora para dentro” (isto é, imprimindo às suas tarefas políticas um teor pedagógico), ela nunca foi concebida por Lenin, em si mesma, como o polo decisivo. Este tinha de ser, naturalmente, o proletariado, como sujeito da ação revolucionária em escala coletiva, já que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução proletária ou da contrarrevolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um esquema dialético: para dirigir o processo político, aquele partido teria de sintonizar-se com a classe operária e com as massas, acompanhando as evoluções de sua aprendizagem e de sua socialização política através das flutuações da luta de classes.”


“Como Marx, Lenin assimila a formação social (ou “a formação econômica da sociedade”) “à marcha da natureza e à sua história”.13 Mas repudia, por igual, as concepções naturalista e subjetivista da sociologia, defendidas por autores como “Spencer e consortes”, que discutem a “sociedade em geral, o fim e a essência da sociedade em geral etc.” Prefere, antes, indagar por que Marx fala da sociedade “moderna” (enquanto os economistas e sociólogos que o precederam falavam da sociedade em geral); em que sentido Marx emprega a palavra “moderno”; em virtude de que critérios comprova essa modernidade; ou em que sentido fala da lei econômica da sociedade, que chama alhures de lei da natureza. O que está em jogo, portanto, é a concepção materialista da sociologia, que situa o homem e a sociedade na natureza, mas os compreende como uma realidade específica e de uma perspectiva histórica, dialético-causal. Retomando um largo excerto de A crítica da Economia Política, procede à caracterização da sociologia assim concebida, a qual envolve, de um lado, o estudo científico das formações sociais concretas, consideradas nas condições de sua constituição e evolução,14 e, de outro, o estudo meticuloso dos fatos correspondentes.15 Esse estudo requer um tratamento analítico especial (no nível da técnica de observação experimental dos fenômenos), que permitiu a Marx chegar à sua ideia fundamental de que “o desenvolvimento das formações econômicas da sociedade é um processo de história natural” e abrange dois movimentos da inteligência-inquiridora: “Estudando à parte, entre as diversas esferas da vida social, a esfera econômica; estudando parte, entre todas as relações sociais, as relações de produção, consideradas fundamentais, primordiais, e determinando todas as outras relações”16. A reelaboração de ideias e pontos de vista de Marx revela a própria posição central de Lenin em face da ciência social. Por isso, é essencial ler-se atentamente o longo excerto seguinte, transcrito do ensaio em questão:17
(...) Essa ideia do materialismo em sociologia, já é, por si mesma. uma ideia genial. Ela não era ainda, naturalmente, mais que uma hipótese, porém uma hipótese que, pela primeira vez, permitia abordar problemas históricos e sociais de um ponto de vista estritamente científico. Incapazes então de descer ao conhecimento de fatos tão simples e primordiais, como são as relações de produção, os sociólogos procediam diretamente à análise e ao estudo das formas políticas e jurídicas. Eles enfrentavam uma realidade na qual essas formas surgiam de tais ou tais ideias da humanidade, em uma época dada e não iam além disso. Assim, as relações sociais teriam sido estabelecidas conscientemente pelos homens. Mas essa dedução, que encontrou sua plena expressão na ideia de contrato social (cujos traços são muito visíveis em todos os sistemas do socialismo utópico), estava em completa contradição com todas as observações históricas. Nunca, tanto no passado quanto atualmente, os membros da sociedade representaram o conjunto das relações sociais no meio das quais vivessem, como um todo bem definido, inspirado em um princípio fundamental; ao contrário, a massa se adapta inconscientemente a essas relações, e ela está tão longe de concebê-las como relações históricas particulares que, por exemplo, a explicação das relações de troca, as quais presidiram a vida dos homens durante séculos, não foi formulada senão nos últimos tempos. O materialismo suprimiu essa contradição, estendendo a análise mais ao fundo, até a própria origem das ideias sociais do homem; e sua conclusão, segundo a qual o curso das ideias depende do curso das coisas, é a única compatível com a psicologia científica. De outro lado, essa hipótese elevou a sociologia, pela primeira vez, à posição de uma ciência. Até então, os sociólogos mal conseguiam distinguir, na complexa rede dos fenômenos sociais, os que eram importantes e os que não eram (aí está a raiz do subjetivismo em sociologia); eles não podiam fundamentar essa distinção sobre um critério objetivo. O materialismo forneceu um critério perfeitamente objetivo, isolando as “relações de produção” como estrutura da sociedade e abrindo a possibilidade de aplicar a essas relações o critério científico geral da repetição, que os subjetivistas consideravam inaplicável à sociologia. Enquanto se restringiam às relações sociais ideológicas (ou seja, às relações que, antes de se constituírem, passam pela consciência18 dos homens), eles não podiam descobrir a repetição e a regularidade nos fenômenos sociais de diferentes países, e sua ciência não era, no melhor dos casos, mais do que uma descrição desses fenômenos, que uma acumulação de dados brutos. A análise das relações sociais materiais (quer dizer, daquelas que se constituem sem passar pela consciência dos homens: ao trocarem produtos, os homens entram nas relações de produção sem mesmo tomar conhecimento que aí se trata de relações de produção sociais), a análise, portanto, das relações sociais materiais, permite constatar, de imediato, a repetição e a generalidade, e generalizar os sistemas dos diversos países para chegar a uma só concepção fundamental, a de formação social. Só essa generalização permitiu passar da descrição dos fenômenos sociais (e de sua apreciação de um ponto de vista ideal) à sua análise estritamente científica, a qual põe em evidência, por exemplo; o que distingue um país capitalista de outro e estuda o que é comum a todos. (...) Em terceiro lugar, por fim, uma outra razão pela qual essa hipótese tornou possível, pela primeira vez, uma sociologia científica: reduzindo-se as relações sociais às relações de produção e estas últimas ao nível das forças produtivas, descobriu-se a única base sólida que permite estudar o desenvolvimento das formações sociais como um processo de história natural. É evidente que, se não se toma esse ponto de vista, é impossível uma ciência da sociedade. (Os subjetivistas, por exemplo, embora admitissem que os fenômenos históricos se conformam a leis, eram não obstante incapazes de considerar sua evolução como um processo de história natural, e isso precisamente porque se limitavam às ideias e aos fins sociais dos homens, sem saber reduzir essas ideias e esses fins às relações sociais materiais).
Segundo Lenin, esse é 0 esqueleto de O capital. Todavia, Marx não se limitou a esse esqueleto, já que ultrapassou a “teoria econômica” em seu sentido ordinário. Ao explicar “a estrutura e o desenvolvimento da formação social considerada exclusivamente pelas relações de produção”, ele sempre “analisou as superestruturas correspondentes a essas relações de produção, e revestiu o esqueleto de carne e de sangue”. Por conseguinte, O capital revela a
formação social capitalista como uma coisa viva, com os fatos da vida corrente, com as manifestações sociais concretas do antagonismo das classes inerentes às relações de produção, com a superestrutura política burguesa que protege a dominação da classe dos capitalistas, com as ideias burguesas de liberdade, igualdade etc., com as relações de família burguesa.
Em suma, Marx pôs fim
à concepção segundo a qual a sociedade era um agregado mecânico de indivíduos que sofrem todas as espécies de transformações à mercê das autoridades (ou, o que dá no mesmo, mercê da sociedade e do governo), que nasce e se transforma ao acaso. Ele foi o primeiro a fundar a sociologia sobre uma base científica, analisando a noção de formação econômica da sociedade como um conjunto de relações dadas, e estabelecendo que o desenvolvimento dessas relações é um processo de história natural.
Atualmente — depois do aparecimento de O capital — a concepção materialista da história não é mais uma hipótese, porém uma doutrina cientificamente demonstrada. E enquanto não tivermos outra tentativa de explicar cientificamente o funcionamento e a evolução de uma formação social, precisamente, e não dos usos e costumes de um país ou de um povo, ou mesmo de uma classe — uma outra tentativa que, como o materialismo, seja capaz de colocar a ordem nos “fatos correspondentes”, de traçar um quadro vivo de uma formação fornecendo uma explicação estritamente científica —, a concepção materialista da história será sinônimo de ciência da sociedade. O materialismo não é “por excelência uma concepção científica da história”, como acredita o senhor Mikhailovski, mas é a única concepção científica.”
13 LENIN, V., “Ce que sont les ‘amis du peuple’ et comment ils luttent contre les social-democrates”. (In: Oeuvres. 4 ed. Paris/Moscou: Éditions Sociales/Editions en Langues Étrangères, 1958. v. 1, p. 150). Obra escrita e publicada em 1894. Relembramos que usamos a 4ed, de suas Obras Completas. (Lenin transcreve um trecho do prefácio à 1ª ed. de O capital).
14 “Marx apenas fala de uma só formação econômica da sociedade, a formação capitalista”, e somente afirma “ter analisado a lei de evolução dessa formação” (cf. LENIN, V., op. cit., p. 150)
15 LENIN, V., op. cit., p. 150-151.
16 Ibid., p. 162.
17 Ibid., p. 153-155. (textos transcritos como no original).


“Para explicar, do “ponto de vista dialético, é preciso não só apanhar o que é essencial na manifestação do fenômeno, mas ainda fazê-lo de maneira a compreender o essencial” em termos de sua estrutura interna, do seu funcionamento e da sua evolução. Isso significa que, para Lenin, as “estruturas” não podem ser tomadas em si e por si mesmas, o mesmo sucedendo com os “dinamismos” da vida social. “Estruturas” e “dinamismos” são interdependentes e se dão simultaneamente in concreto, sendo preciso reconstruí-los, empírica e analiticamente, nessa condição.
É a partir dessa matéria-prima que se procede à observação e à descrição das causas, através da interpretação dialética. Pois, como escreve, “a dialética exige que um fenômeno social seja estudado sob todos os ângulos, e que a aparência, o aspecto exterior seja reduzido às forças motrizes capitais, ao desenvolvimento das forças produtivas e à luta de classes”.22 Ou, ainda, como afirma em outra passagem mais elaborada:
A lógica dialética exige que cheguemos mais longe. Para conhecer realmente um objeto, é preciso apanhar e estudar todos os seus aspectos, todas as suas ligações e “mediações”. Nós não o conseguimos jamais completamente, mas a necessidade de considerar todos os aspectos nos protege de erros e de lapsos. Eis um primeiro ponto. Segundo: a lógica dialética exige que se considere um objeto em seu desenvolvimento, seu “movimento próprio” (como o diz às vezes Hegel), sua transformação. (...) Terceiro: toda a prática do homem deve entrar na “definição” completa do objeto, a um tempo como critério da verdade e como determinante prático da ligação do objeto com o que é necessário ao homem. Quarto: a lógica dialética ensina que “não há verdade abstrata”, que “a verdade é sempre concreta”, como gostava de dizer, seguindo Hegel, o falecido Plekhanov.23
22 LENIN, V. Oeuvres. v, 21 (agosto de 1914/dezembro de 1915), p. 221.
23 Ibid. v. 32 (dezembro de 1920/agosto de 1921), p. 94.

Marx, Engels, Lenin: a história em processo (Parte I) — Florestan Fernandes

Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-203-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Os dois textos reunidos nesse oportuno, e desde já, indispensável livro evidenciam o inteiro domínio de Florestan Fernandes no trato das obras seminais daqueles clássicos e explicitam sua opção de classe e seu compromisso político com “os de baixo”.
O leitor verá aqui preciosas análises teóricas sobre decisivos componentes históricos de ruptura societária nos quais concorrem temas próprios ao processo revolucionário: a consciência de classe, a relação vanguarda (partido)/massa, a questão da transição e a problemática do sujeito da revolução proletária. Encontrará também brilhantes reflexões que dão conta de eventos revolucionários tratados como história em (permanente) processo, apreendida como realidade concreta, “como totalidade histórica na qual se fundem o que parece ser superficial e o que é tido como profundo”.
Tanto o texto sobre Marx-Engels quanto o ensaio sobre Lenin são atualíssimos e extremamente úteis àqueles que buscam se aprofundar no conhecimento da obra desses clássicos. Os escritos de Florestan Fernandes coligidos neste volume são uma preciosa arma para a crítica teórica que fará todo o sentido para estudantes, pesquisadores e militantes sociais se eles atribuírem à leitura o que mais desejariam Marx, Engels, Lenin e Florestan: a translação do pensamento para a ação política revolucionária.


“Sem dúvida, a “posição radical” de Marx e Engels oferece um bom ângulo para avaliar o modo rápido, coerente e íntegro segundo o qual eles se confrontaram com a verdade histórica de sua consciência, do mundo em que viviam e de sua época. No entanto, a revolução de que se tornaram porta-vozes e militantes não brotou das formas intelectuais da consciência — ela emergiu do próprio curso da história. Se o radicalismo de ambos lhes permitia compreender essa revolução no seu íntimo e incorporá-la a seu modo profundo de ser, de pensar e de agir, eles não a inventaram nem a criaram. Como eles testemunham de maneira eloquente, serviram-na. Serviram-na com todo o ardor e sem desfalecimentos — mesmo e principalmente quando a sorte se mostrou por demais severa e os fatos pareciam contrariar todas as esperanças revolucionárias.
Nesse caso, é óbvio, eles refletiam, no plano intelectual, político e ideológico, o que ocorria na sociedade real. Só que eles refletiam sem deformações, de forma direta, consciente e livre. A evolução psicológica, intelectual, moral e política, que vai dos anos de aprendizagem até o célebre encontro dos dois em Paris (na primavera de 1844), preparou-os e armou-os para fazer face às tarefas teóricas e práticas que deveriam realizar, para suplantarem em um ápice o extremismo burguês, o “humanismo realista” e o materialismo filosófico; para fundirem ciência, dialética materialista e comunismo de uma perspectiva proletária; e para se identificarem, objetiva e subjetivamente — o que envolvia tanto a proletarização de sua consciência pessoal, quanto a proletarização da relação de ambos com o mundo — com a situação de classe, as lutas sociais e as aspirações políticas do proletariado. De fato, uma situação histórica revolucionária engendrou formas de consciência de classe revolucionárias. K. Marx e F. Engels captaram o processo em sua manifestação “decisiva” e “mais avançada” exatamente porque tiveram perspicácia, coragem e sabedoria suficientes para se alinharem entre os proletários, se engajarem em suas organizações de luta de classe e fomentarem o internacionalismo proletário. Vista deste ângulo, a ciência social histórica, que nasce em conexão com o polo operário da luta de classes/e com a revolução social, não se mascara nem se mistifica. Ela se abre para o cotidiano da vida operária e para as grandes transformações da sociedade burguesa, como teoria e como prática, fundadas na fusão da ciência rigorosa e incorruptível com a ação radicalmente inconformista do proletariado. Por isso, tal ciência é, de um lado, dialética e materialista, e, de outro, comunista (só que esta polarização é explícita — o que a economia política, por exemplo, não o fazia com o liberalismo, que ficava submerso no “ponto de vista científico”).
Se se parte da “Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1844) e se chega ao prefácio da Contribuição à crítica da Economia Política (1859), passando-se pelo Manifesto do Partido Comunista (1848), verifica-se objetivamente como se constitui e se desenvolve essa ciência social histórica, que não é um “epifenômeno da revolução burguesa]”, mas uma manifestação viva e instrumental da revolução proletária em gestação histórica.
Sem dúvida, a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, a força material não pode ser abatida senão pela força material, mas a teoria, desde que ela se apodere das massas, também se torna uma força material. A teoria é capaz de se apoderar das massas desde que ela demonstre ad hominem, e ela demonstra ad hominem desde que ela se torne radical. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, a raiz, para o homem, é o próprio homem. (...) Ao anunciar a dissolução da ordem anterior do mundo, o proletariado não faz mais que enunciar o segredo de sua própria existência, pois ele é a dissolução de fato dessa ordem. (...) A filosofia encontra no proletariado suas armas materiais assim como o proletariado encontra na filosofia suas armas intelectuais, e desde que o raio do pensamento tenha atingido até a medula esse solo popular virgem se fará a emancipação que converterá em homens os alemães (...) A filosofia não pode se realizar sem abolir o proletariado, o proletariado não pode se abolir sem realizar a filosofia9.
Ora, atrás do Manifesto do Partido Comunista o que se descobre é o inverso. É a apropriação do intelectual revolucionário e do pensamento revolucionário pelo proletariado. Ao servir, o intelectual incorpora-se à vanguarda da classe e não fala em nome dela. Ao contrário, é ela quem fala através de seus intelectuais de vanguarda, que enunciam, pela ótica do comunismo, as condições objetivas da formação e evolução da classe, as quais são, por sua vez, as condições objetivas da revolução proletária (isto é, da dissolução da sociedade burguesa e da instauração de uma sociedade nova). Essa relação aparece de modo mais acabado e perfeito no prefácio da Contribuição à crítica da Economia Política. Pois o cientista que se coloca fora da ordem estabelecida por causa de sua vinculação com o proletariado também fica acima das deformações que ela impõe à pesquisa científica. O polo proletário não é, portanto, só uma opção, uma via de inspiração, de defesa e de auto-afirmação do intelectual revolucionário. Ele é, por sua própria existência, uma garantia de que o curso das coisas não pode ser alterado, e, por sua atividade inquebrantável, a segurança de que os progressos do capitalismo desembocam em uma crise social insuperável e em uma nova época histórica. Marx não se exprime nesse prefácio como um “filho do Povo”. A sua linguagem é serena, sintética e severa. Tal como convinha a alguém que enunciava a teoria da revolução social inerente à consciência de classe e ao futuro político do proletariado, dos quais participava intimamente — como militante proletário, como cientista social e como estrategista do movimento socialista revolucionário. O que interessa, aqui, é que o centro de gravidade de uma posição de classe, por ser a posição de uma classe revolucionária em ascensão histórica, assegurava ao cientista social uma extrema autonomia. Ele não precisava curvar-se às deformações ideológicas impostas pela ordem. Tampouco estava sujeito a novas deformações, porque uma classe social revolucionária não pode travar e vencer seus combates freando a contribuição da ciência ao alargamento e ao aprofundamento de sua consciência histórica e de sua capacidade de ação coletiva histórica.”
8: Ver adiante, parte IV, tópico 4, carta reproduzida sob o título “O que é novo no materialismo histórico”.
9 Ver Marx, K. Contribution à la critique de la Philosophie du Droit de Hegel. In: Critique du Droit Politique hégélien, p. 205 e 211-2. Contribuição à crítica da filosofia do direito — introdução.


No conjunto, sobressaem três elementos em interação: situação histórica do proletariado; consciência de classe revolucionária; e ciência da história. Ao constituir-se como ciência, a história tinha de sair de sua pele (o envoltório burguês), destruir o seu pesado lastro filosófico-especulativo e empirista-abstrato, armar-se com recursos apropriados à pesquisa empírica rigorosa, à reconstrução histórica objetiva, e à explicação causal de totalidades históricas (isto é, totalidades que pressupõem ação histórica dos homens e que envolvem processos que se repetem e variam, que parecem uma coisa e são outra, que são parcialmente conscientes e amplamente inconscientes, que se elevam à consciência de forma ilusória e deformada, ou seja, ideológica, etc.). A consciência histórica burguesa podia contentar-se com uma história ao nível da superfície, pulverizadora e mistificadora, porque a burguesia como classe só instrumentalizou revolucionariamente a liberdade da existência das classes e sua própria hegemonia.
A consciência histórica proletária requer uma história científica, que investigue as “relações reais”, a partir das “relações históricas primárias” e dos fatores materiais do “desenvolvimento histórico”, isto é, uma história em profundidade, totalizadora e desmistificadora. O proletariado como classe defronta-se com a tarefa histórica de extinguir a divisão do trabalho social, a dominação de classe, o “estranhamento” ou a alienação do trabalho, a propriedade privada, o capital e o regime de classes. A sua história desencava todas as relações que encadeiam o homem e a sociedade à natureza, todas as relações que ligam a formação e a transformação dos modos de produção à constituição e transformação das formações sociais, da consciência social, do Estado e das formas ideológicas correspondentes. Ela põe no centro das investigações a sociedade civil, o comércio e a indústria e encara a sociedade civil como a “verdadeira fonte e teatro de toda a história”.”


Deixando de lado a maestria de Marx e Engels, que projetaram o debate sobre a situação histórica global (perspectivas de alianças do proletariado com vários estratos de classes), pelo menos três pontos devem ser postos em destaque.
Primeiro, os riscos de uma aliança entre oprimidos “desiguais”, em um país com desenvolvimento industrial atrasado, como a Alemanha na época. Os estratos pequeno-burgueses estavam fortemente empenhados em abolir traços do passado feudal e em implantar inovações que interessavam diretamente às classes operárias. No entanto, alertam Marx e Engels com vigor, os proletários não deveriam deixar-se corromper “com esmolas mais ou menos veladas” e tampouco deveriam trocar uma “melhoria temporária de sua situação” pela debilitação de sua própria força revolucionária. A questão que sobe à tona é a das duas revoluções em presença. A pequena-burguesia tentava fortalecer e acelerar uma débil revolução democrático-burguesa. O proletariado constituía a única classe que poderia ser portadora de uma nova revolução social. Nesse contexto histórico, o que era um fim, para a pequena-burguesia, não passava de um meio para o proletariado. Assim se coloca o tema da revolução permanente: os benefícios da revolução democrático-burguesa não deviam desviar os proletários de sua própria revolução. Aí está a parte mais forte e de raro poder expressivo do texto. Os pequeno-burgueses queriam
concluir a revolução o mais rapidamente possível, depois de terem obtido, no máximo, os reclamos supramencionados. Os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente, até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado – etc. (...) Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova.*
*: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas.


O título história em processo evoca uma maneira de apanhar a história em seu movimento de vir-a-ser cotidiano (ou seja, como ela brota aos “nossos olhos”; ou se desenrolou em um presente vivido e em um passado que possa ser descrito “dinamicamente”). A história em processo é a história dos homens, o modo como eles produzem socialmente a sua vida, ligando-se ou opondo-se uns aos outros, de acordo com sua posição nas relações de produção, na sociedade e no Estado, gerando, assim, os eventos e processos históricos que evidenciam como a produção, a sociedade e o Estado se preservam ou se alteram ao longo do tempo.”


A história da vida cotidiana e do presente em processo, encarada da perspectiva do materialismo histórico, propõe-se lidar, simultaneamente, com os fatos históricos que permitem descrever tanto o “superficial”, quanto o “profundo” na cena histórica. No plano descritivo, ela busca a reconstrução da situação histórica total; no plano interpretativo, ela se obriga a descobrir a rede (ou as redes) da causação histórica, associando reciprocamente as transformações das relações de produção às transformações da sociedade e das superestruturas políticas, jurídicas, artísticas, científicas, religiosas, etc.”


“A descrição histórica praticada por Marx era despojada, sincera, direta, em cima dos fatos, mas pegava-os através de seu caráter essencial no encadeamento que os ligava entre si em termos de relações de sucessão. A descrição histórica marxista combina, magistralmente, a consciência histórica concreta dos fatos (através de agentes privilegiados das várias classes e frações de classes), o seu desmascaramento por uma análise raramente explicitada e o curso histórico límpido, que o investigador pode introduzir porque considera ocorrências e processos históricos ex eventu. O que quer dizer que Marx explora três planos simultâneos de observação da realidade (e, por vezes, deixa-os evidentes na exposição). O que apresenta, como “produto final”, não é uma reconstrução histórica que reproduza “fielmente” a realidade no plano empírico. Por encarar o concreto como totalidade, a reconstrução histórica é um passo preliminar, uma técnica ou processo de trabalho, que o investigador não pode evitar. Os elementos essenciais do quadro histórico total são retirados daí (ou por esse meio) e submetidos a uma representação sinótica. Contudo, a exposição só é atingida depois de concluído outro levantamento mais importante: a determinação das várias séries ou cadeias de fatos essenciais, relacionados entre si por conexões causais conhecidas e comprovadas (relações de causa e efeito interdependentes e em ação recíproca). Esta etapa da observação (de análise e de interpretação) era a que recebia maior cuidado da parte de Marx.”



“As estruturas econômicas e sociais não “se refletem”, apenas, elas também se objetivam e materializam ao nível dos acontecimentos e dos agentes do drama histórico (as funções de uma Assembléia Nacional Constituinte ou de um presidente e do seu ministério, etc., na descrição de Marx).
Do mesmo modo, os acontecimentos e os agentes do drama histórico não são, apenas, “determinados pela base econômica e social” (pois esta não é um engenho autossuficiente), eles concentram e desencadeiam forças que preservam ou alteram aquela “base”. O esquema interpretativo materialista e dialético não só permitia passar de um nível a outro: ele exigia uma representação do processo histórico como realidade concreta, isto é, como totalidade histórica, na qual se fundem o que parece ser superficial e o que é tido como profundo.
Tomando a luta de classes como elemento dinâmico central da realidade e como uma posição estratégica de observação, Marx descobria na forma de manifestação objetiva das contradições econômicas, sociais e políticas na luta de classes as indicações de que precisava para compor sua visão da situação histórica como totalidade. Essas indicações permitiam conhecer: 1.°) quais eram as forças dinâmicas, que procediam do estado de equilíbrio ou de desequilíbrio das relações sociais de produção, e como essas forças irrompiam na cena histórica, convertendo-se em acontecimentos, ações de personagens históricos, atividades das instituições e da própria ordem existente, ou outros processos histórico-sociais; 2.°) se essas forças dinâmicas podiam ser canalizadas pelos meios institucionais de controle, devido a uma baixa ativação da luta de classes ou ao seu amortecimento por vias normais e excepcionais; 3.°) ou se tais forças dinâmicas caíam em um campo de fermentação incontrolável e crescente, devido a uma forte ativação da luta de classes (entre frações das classes dominantes e, principalmente, do proletariado e outros estratos das classes subalternas com as classes dominantes), provocando o aumento do volume daquelas forças dinâmicas, bem como o aparecimento de outras novas, e liberando, assim, pressões específicas, originadas na sociedade civil e na esfera política, sobre a alteração das relações de produção (ou em um limite extremo sobre a sua dissolução).
Marx podia, pois, superar os diversos dilemas da antiga filosofia da história e dos historiadores empiristas e unificar a descrição histórica (em termos da interpretação e, naturalmente, da exposição dos resultados). Acresce que, no plano expositivo, ele tinha toda a liberdade de omitir (ou não) determinações da situação econômica conhecidas, que só sobrecarregariam a descrição e dificultariam o entendimento do leitor. O conhecimento das determinações preenchia a função de  conferir segurança ao expositor (se uma periodização, que parecia “bater com os fatos”, tinha ou não sentido, quando levados em conta os fatores de larga duração, etc.). Além disso, nem sempre é necessário passar das relações das classes para as determinações do desenvolvimento econômico. Essa é uma ideia ingênua e que, se fosse posta em prática obstinadamente, obrigaria cada investigador a começar de novo o estudo da gênese do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa.
Certas determinações econômicas e sociais são bem estabelecidas e só interessa aprofundar a investigação da “base material das relações sociais de produção” se as alterações em processo afetarem essas relações. Por isso, Marx se ateve, com frequência, à caracterização das relações e dos conflitos entre as classes, que pressupunham um certo estágio do desenvolvimento da referida “base material” (mas não tornavam necessário o seu estudo independente). Daí o fato aparentem ente singular: ele procede como historiador, introduzindo os resultados das sondagens econômicas somente em certos momentos da exposição, nos quais eles eram indispensáveis.”


A análise histórica corrente lida com acontecimentos ou com processos históricos produzidos. Fala-se em história de “fatos mortos” e em história de “fatos vivos”. Mas, na verdade, concede-se pouca (ou nenhuma) atenção às condições de produção dos acontecimentos e processos históricos, como se a história fosse, sempre, algo dado. Marx vai em direção oposta: faz de sua reflexão um expediente para remontar à história viva do passado (ou de vários passados), apanhando nas malhas da indagação as condições de produção dos acontecimentos e processos históricos.”


“A teoria do materialismo histórico esclarece esses processos através de sua base econômica (a produção e a reprodução das relações de produção capitalista implicam produção e reprodução da sociedade burguesa, e, portanto, da “civilização industrial moderna”). Sem reduzir esta civilização a certas estruturas e dinamismos econômicos e sociais fundamentais, pois ela entra na teia tecnológica das relações de produção e de organização da sociedade de classes e aparece como um elemento unificador e dinâmico na esfera das superestruturas políticas, ideológicas, religiosas, artísticas, científicas, etc., é óbvio que sua persistência, a sua transformação e o seu desaparecimento dependem diretamente do que ocorre na “produção e reprodução material” da vida humana. K. Marx não se voltou para esses aspectos: ele estava empenhado em explicar o modo especial de produção capitalista. No entanto, seu esquema de interpretação geral e os resultados teóricos de suas investigações histórico-sociológicas lançam luz sobre os processos mencionados e permitem entender como economia, sociedade e civilização se relacionam reciprocamente sob a existência e o desenvolvimento do modo de produção capitalista. De outro lado, agregando-se a civilização ao quadro geral das relações entre forças produtivas, relações de produção e superestruturas, obtém-se uma visão mais completa da situação histórica total. Em particular, pode-se observar melhor como estas últimas são ativadas normalmente, como influências condicionadoras e, mesmo, determinantes (elas fazem parte de redes articuladas de efeitos: em termos de leis derivadas, atuam como fatores dinâmicos funcionais, que reproduzem o sistema capitalista parcialmente ou como um todo; em termos de causalidade, é evidente que diversos elementos das superestruturas se convertem de efeitos em causas, por fazerem parte de uniformidades de sequência dotadas de maior ou menor autonomia relativa). Em suma, existem várias razões para que se examinem as contribuições da teoria do materialismo histórico de uma perspectiva mais ampla, e um livro como O capital acaba sendo mais importante, nesse sentido, do que os especialistas costumam imaginar. Em uma sociedade de forma antagônica extrema, como a sociedade burguesa, a virulência e as consequências revolucionárias e contrarrevolucionárias dos antagonismos e das lutas de classes acabam conferindo à civilização vigente uma soma de influências históricas (funcionais umas e causais outras), que não podem ser ignoradas ou subestimadas e, principalmente, que só podem ser mantidas distantes da explicação materialista e dialética em detrimento da teoria (e da prática correspondente).
O primeiro excerto incide diretamente no que interessa:
Nenhuma sociedade pode produzir constantemente, isto é, reproduzir, transformar constantemente de novo uma parte dos seus produtos em meios de produção ou elementos de nova produção. — Em resumo — todo processo social é, portanto, ao mesmo tempo processo de reprodução.95
É lógico que pelo menos duas coisas precisam ficar claras. De um lado, que à forma capitalista de produção corresponde uma forma capitalista de reprodução. Graças ao trabalho assalariado, ao dissociar o trabalhador dos meios de produção, o capitalista se apropria de mais-valia, de trabalho não pago. O trabalho não pago gera valor, que não fica com o produtor, mas com o capitalista. Na reprodução, o que se reproduz é o valor antecipado com o capital, o que quer dizer que “o valor se valoriza”, isto é, ele cresce através da apropriação da mais-valia. De outro lado, a reprodução simples é caracterizada como “a simples continuidade da produção capitalista” (o capital pode realizar, em um determinado período de tempo, às custas do trabalho não pago, o seu equivalente em valor). Isso significa que a reprodução simples é um processo pelo qual todo capital se transforma em “capital acumulado ou mais-valia capitalizada” (ou seja, no fim do referido período de tempo, o trabalhador nada obteve para si, senão a sua subsistência; mas o capitalista viu a sua riqueza material convertida em capital, desfrutou a vida e pôde contar com a continuidade do processo). O que interessa, à investigação histórica, é o procedimento empregado por K. Marx para chegar ao fundo das coisas. Ele não está preocupado, aí, com a origem pretérita da acumulação capitalista. É o processo mesmo que ele observa e caracteriza. Os atores — o trabalhador e o capitalista; a relação — trabalho assalariado e capital; o produto econômico direto — salário, mais-valia e mais-valia capitalizada; o produto social — a base material das relações entre capital e trabalho assalariado como o núcleo da existência e reprodução da sociedade capitalista e de sua civilização. Este último tema pode ser inferido do texto selecionado. Porém, K. Marx o formula explicitamente, em passagem que não foi transcrita:
As coisas mudam de aspecto assim que, em lugar do capitalista e do operário isolado, consideramos a classe capitalista e a classe operária; em lugar do processo de produção de uma mercadoria, o processo de produção capitalista em seu curso e em sua extensão social. Quando o capitalista inverte em força de trabalho uma parte de seu capital, valoriza todo o seu capital. Com um tiro mata dois passarinhos. Aproveita não só o que recebe do operário, mas também o que dá a este. O capital alienado em troca de força de trabalho é transformado em meios de subsistência, cujo consumo serve para reproduzir a substância muscular, nervosa, óssea e cerebral dos operários existentes e para engendrar novos operários. Dentro dos limites do absolutamente necessário, o consumo individual da classe trabalhadora é, pois, a transformação dos meios de subsistência alienados pelo capital em troca de força de trabalho por nova força de trabalho explorável pelo capital. É a produção e a reprodução do meio de produção mais indispensável para o capitalista, o próprio operário.96
Essa é a dialética do capitalista e do trabalhador assalariado. A produção e a reprodução criam e recriam o operário e a classe operária. Essa descrição límpida não é histórica? Trata-se de uma relação elementar e repetitiva (pelo menos onde e enquanto existir o modo de produção capitalista). Contudo, ela é mais explicativa, historicamente falando, que os acontecimentos ou processos que aparecem à superfície da cena histórica. Pois estes — será preciso dizer? — dificilmente podem ser objetivamente descritos e explicados sem aquela relação elementar (embora a reprodução simples esteja, como forma histórica do desenvolvimento capitalista, em certos países da Europa, no umbral da história moderna).”
95 MARX, K., O Capital: crítica da economia política, 2011, p. 661.
96 MARX, K., El Capital, vol. II, p. 72, (ed. cit. p. 667).

domingo, 5 de janeiro de 2020

Evidências do real: os Estados Unidos pós-11 de setembro – Susan Willis

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-110-9
Tradução: Marcos Fabris e Marcos Soares
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 128
Sinopse: Evidências do real não é apenas mais um livro sobre os Estados Unidos pós-11 de Setembro. Trata-se de um estudo das relações entre a história, a realidade norte-americana atual e a produção cultural que eclodiu, tendo como objetivo conter a crise deflagrada pelos atentados terroristas.
A obra fura o bloqueio da censura imposta pelo governo Bush a todos que pretenderam emitir críticas ou opiniões contrárias ao conjunto de medidas tomadas após os atentados, medidas essas já amplamente analisadas por intelectuais de outros países. Evidências do real traz o olhar de Susan Willis, estudiosa norte-americana de cultura popular, diretamente do olho do furacão.
O cotidiano da população dos Estados Unidos, segundo a autora, está relacionado a uma série de ficções culturais populares, veiculadas pelos meios de comunicação de massa e engolidas sem maiores reflexões. Exemplos como a produção do baralho “Ases do mal”, com as figuras dos “terroristas mais procurados”, e programas governamentais que pretendem transformar cidadãos comuns em espiões de vizinhos dizem muito sobre a conjuntura do país. Mais ainda quando a análise aproveita os mesmos elementos utilizados nessas construções. O livro, segundo Willis, “desmonta a cultura com as armas da cultura”.
Os ensaios que compõem esta obra preservam uma linguagem que procura capturar a forma de expressão norte-americana. Tomam como ponto de partida, eventos ou fenômenos que tenham sido tratados de modo trivial ou reducionista. Abordam temas como patriotismo de massa, o fenômeno do antraz no contexto do consumo de massa, canção popular, governo paralelo, estatuto do risco e violência.
Willis demonstra que, por mais banais e aleatórios que pareçam, esses elementos são evidências da realidade histórica norte americana. Nas palavras da autora, “o livro é uma cartilha sobre os modos de ler tais evidências como indicadores da nossa realidade”


“Logo após a queda do World Trade Center, com os números dos investimentos comerciais em profunda desordem e a economia caminhando rumo a uma recessão que ninguém até então queria admitir, mandaram que fôssemos às compras. Comprar para mostrar que somos norte-americanos patriotas. Comprar para mostrar nosso caráter resiliente à morte e à destruição. Comprar porque na sociedade capitalista essa é a única forma de participação. Contrariamente aos apelos presidenciais para consumirmos, muitos norte-americanos escolheram doar sangue como forma de laço eucarístico de nossa vida e corpo com os atingidos e mutilados. O desejo de estabelecer contato físico com os outros, de descrever a comunidade na troca e circulação de sangue, contrasta com o modelo consumista da sociedade, no qual as pessoas se articulam como consumidores individuais ao invés de membros de uma coletividade. Ao mesmo tempo que esse modelo de comunidade aponta contrastes, ele já está sendo reciclado no consumismo: um grande número de escritores distópicos (Leslie Marmon Silko, por exemplo) começou a imaginar um mundo no qual os pobres são cultivados pelos seus órgãos, uma situação que se tornou realidade na China, onde compradores ricos podem dar lances em leilões de órgãos de prisioneiros sentenciados à morte que aguardam a execução da sentença.”


“Com bandeiras em nossas camisetas, expressamos o sincero desejo de adicionar nossa confiança individual ao empenho coletivo mesmo quando reconhecemos que o esforço norte-americano se resume ao consumo de mercadorias e à garantia de sua distribuição mundial. Imediatamente após os ataques de 11 de Setembro, muitos anúncios de camisetas enfatizavam que elas eram made in America. Faria alguma diferença se nossas camisetas com bandeiras fossem feitas em sweatshops do Haiti, já que muitos dos produtos “oficiais” da Disney vêm de tais lugares, onde por vezes são feitos por crianças da mesma idade de crianças norte-americanas que consomem essa parafernália? Por sua trivialidade, a bandeira na camiseta materializa a circulação global da mercadoria. É o emblema mundano da aliança entre o mercado e o império. Finalmente, por toda a parte do mundo podemos comprar a América, mesmo que rapidamente se aproxime o dia no qual nada mais será made in America. Não importa; todos os cidadãos do planeta poderão comercializar nossas logomarcas. Nossos amigos e aliados podem achar cool vestir nossa bandeira, enquanto nossos inimigos a encontrarão no lixo das zonas de guerra de seus países, estampada nos fragmentos de minas, bombas e granadas – sinal de que a retribuição também é made in America.”


(Posteriormente aos ataques terroristas por antraz, inúmeros trotes de novos ataques com esta substância alarmaram os EUA)
“Como criptograma da nossa própria indústria bioterrorista e metáfora da poluição industrial asfixiante, o antraz é os Estados Unidos, nosso logo mais apropriado. Poderia ainda ser a marca de uma mercadoria mais conhecida do que a banda de heavy metal Anthrax. No mundo do capitalismo da mercadoria, em que grande parte da vida diária é encenada num fluxo de imagens, a definição de espetáculo de Guy Debord é um truísmo. No contexto de uma sociedade embasbacada diante do seu próprio espetáculo, o trote funciona contra-intuitivamente como a verdade que desmascara a mentira por nós considerada realidade. Divergindo dramaticamente de John Ashcroft, para quem as falsas ameaças de antraz levaram a um “alarme ilegítimo”, o golpe pode ser um dos poucos incidentes capazes de suscitar sentimentos verdadeiros em uma cultura que vive a pseudo-realidade da mercadoria. Mesmo a destruição das Torres Gêmeas foi rebaixada a um espetáculo, cuja réplica é exibida e transformada em memorial para ser difundida novamente pelos meios de comunicação em todas as ocasiões possíveis. Num excesso de realidade transformada em imagem, o trote enquanto mentira rompe com a complacência da vida diária. Ele nos arranca da nossa anomia e pede que indaguemos por que tantos cidadãos cumpridores da lei decidiram quebrá-la.
Não é possível que estejamos insatisfeitos! Não somos a nação dos bem abastecidos e tão distantes da necessidade que, em breve, morreremos de obesidade? Não somos a nação cujo contentamento se manifestou logo após 0 11 de Setembro com um índice de 90% de aprovação presidencial? Será possível que os golpes envolvendo o antraz estariam mascarando um descontentamento latente, o reprimido humor negro da insatisfação?
Assim como admitimos a satisfação vazia da mercadoria — quão desbotada ela parece uma vez que a levamos para casa e a desembrulhamos — talvez pudéssemos reconhecer a natureza opaca do nosso presidente, legitimado por ordem da Corte Suprema. Assim como a fraude da mercadoria, poderíamos ver nosso presidente preparando seu próprio roteiro, junto com seu governo de sombras, numa refilmagem do Dr. Fantástico. Comentando a “fraude da satisfação16, Debord aponta para um infindável ciclo de consumo, com cada nova mercadoria criada com o intuito de superar a insatisfação da anteri0r. De modo semelhante, olhamos para um novo ciclo eleitoral, tentando ludibriar nosso desespero com a recém-aprovada reforma das finanças eleitorais. Na economia política da insatisfação do consumidor, o trote funciona como uma negação. Ele intervém em um ciclo de desejos abastecidos pela mercadoria cuja penetração do político se revela nas pesquisas de popularidade do nosso presidente e suas fotografias tiradas em escolas primárias. Ele é o incidente negativo que interrompe a dinâmica usual dos negócios. O trote não pode imaginar uma nova ordem política, mas ele emperra aquela que já existe.
O trote é uma manobra simbólica que mira o espetacular. É o irreal que evoca o real. Ele dá aos indivíduos descontentes um poder tremendo sobre outros indivíduos igualmente descontentes. De modo dramático, ele convoca a polícia, especialistas, toneladas de equipamento, os meios de comunicação; e lança todos para além de uma situação de normalidade, para uma nova, dura e cortante realidade de vida e morte. Ele fratura o tempo, rompe com a monótona linearidade temporal do trabalho ou da escola, todas aquelas horas que somamos e traduzimos em contracheques e impostos – o que Debord chama de a “infinita acumulação de intervalos equivalentes”17. Como uma ferramenta enfiada entre os dentes da engrenagem da opressão diária, o trote rompe com o tempo transformado em mercadoria. Seu produto é o não-produto do atraso. Tempo é dinheiro, seja no trabalho ou nas férias. Ganhamos e gastamos. O trote enfatiza a temporalidade negativa do tempo perdido. Cria um hiato, um oásis de antitemporalidade na tirania do tempo linear. É de admirar que muitos juízes tenham multado os golpistas do antraz na quantia monetária equivalente ao tempo perdido em virtude de sua brincadeira? Tais regras sugerem que nosso sistema não suporta a ausência de produção e tem de utilizar as multas como renda compensatória.
MAS ISSO TUDO É UMA BRINCADEIRA, um evento coreografado. Como espetáculo, o trote traduz nossa experiência real em hiper-real. Segundo Jean Baudrillard, a simulação existe para criar a veracidade do real18. Para ele, a Disneylândia existe somente para que o resto de Los Angeles possa parecer a sua verdade antitética. No entanto, a sutileza da simulação é como Los Angeles, a volátil terra natal do sofrimento amoroso e da ilusão; nem a Disneylândia, o parque de diversões dos desejos transformados em temas, é real. Do mesmo modo, o antraz real e o falso dão sentido um ao outro. A fraude é produzida como se fosse real, e o real é produzido como espetáculo pelos meios de comunicação. Na verdade, os meios de comunicação exigem a diferença — ainda que indistinguível, exceto em seus resultados — entre o real retratado como espetáculo e a farsa vivida como real — ambos presos na réplica espectral que mina a realidade dos dois termos. É significativo que na longa lista dos golpistas do antraz não haja apresentadores de noticiários de TV ou rádio. Sua ausência responde pela fusão da indústria do entretenimento e das notícias, união banalizada a partir da assimilação das redes de comunicação pelos gigantes da indústria do lazer como a Disney. A decisão governamental de cancelar seus planos para um “Gabinete de Informação Estratégica”, com o intuito de disseminar várias camadas de falsidade em todo lugar, menos nos EUA, simplesmente elimina uma redundância. Em uma sociedade que não distingue entre a informação equivocada e a real, a farsa serve como álibi para aquilo que tomamos como real.
O que há de mais real sobre os golpes do antraz é o fato de que a vasta maioria dos norte-americanos não os percebeu como brincadeiras. Sob o manto do terror, suprimimos a comédia. Minutos antes dos ataques, ríamos com Molly Ivins sobre as impropriedades verbais do nosso presidente. Segundos mais tarde, nos tornamos sérios. Perdidos ficaram a sátira, a estratégia central das críticas liberais e de esquerda; a ironia, lugar-comum da condição pós-moderna; e até mesmo o sarcasmo, a amarga pílula da geração pós-punk. No lugar deles, o trauma, intensificado e perpetuado por meios de comunicação chorando suas lamúrias de forma obsessiva; e o fundamentalismo, uma adesão culturalmente redutora à interpretação mais literal de todas as coisas. O patriotismo se tornou a cura dos traumas e a demonstração do fundamentalismo. Como pacientes da ala psiquiátrica, fomos totalmente envolvidos e amarrados por um patriotismo tão onipresente que beirou o fascismo. Instruídos a controlar nossa língua, pensamentos e atos, abraçamos o bombardeamento militar do Afeganistão e a criação do novo Gabinete de Segurança.
Foi essa atmosfera que gerou os trotes do antraz. Com todos os caminhos para o humor bloqueados, o horrível e inocente pó branco começou a aparecer sobre escrivaninhas e em maçanetas. Um rumor, um murmúrio, uma dúvida, ele se espalhava por nossa correspondência enquanto agitávamos entusiasticamente nossas bandeiras. Em uma atmosfera de fundamentalismo na qual a crítica equivale ao terrorismo e todas as formas de terror são igualmente absolutas, fracassamos na interpretação dos trotes como atos simbólicos. Deixamos de ver nessa experiência a expressão de toda a profunda e comezinha insatisfação da vida diária. Pouca atenção foi dada aos caminhos intuitivos que os trotes sinalizaram, de modo a apontar abertamente os significados mais básicos da nossa cultura. No desdobramento do 11 de Setembro, perdemos a chance de interpretar os contra-significados dos trotes. Reféns do medo, optamos por não voar.”
16 Guy Debord, Society of the Spectacle (Detroit, Black and Red, 1977), tese 70.
17 Ibidem, tese 147.
18 Jean Baudrillard, Selected Writings (Cambridge, Mark Poster Polity Press, 1988), p. 172.


“Embora os EUA estejam sempre prontos para encontrar soluções militares para dilemas que, no fundo, são de natureza política e econômica, desde 0 11 de Setembro tem havido alguma discussão sobre os motivos que criam tamanha hostilidade contra os norte-americanos. É claro que George Bush insiste no fato de que os terroristas odeiam nossas liberdades – enquanto sua administração está ocupada monitorando essas liberdades por meio do Departamento de Segurança. Mas não há nada a temer, pois com canalhas como John Pointdexter e Henry Kissinger — ambos há pouco ressuscitados com fichas limpas— a liberdade há de necessariamente prevalecer.”


“Nos meses que se seguiram ao 11 de Setembro, o serviço norte-americano teve não apenas de enfrentar cartas infestadas de antraz, mas também de decidir sobre o que fazer com “pilhas de cartas endereçadas a Osama bin Laden”1. A maioria dessas cartas foi enviada para o Afeganistão até que os investigadores do Departamento de Justiça pudessem obter um mandato autorizando a apreensão do líder da Al Qaeda. Como grande parte das cartas jamais foi aberta (exceto talvez pelo próprio Osama), podemos apenas tecer especulações sobre seu conteúdo. Certamente muitas deviam trazer ameaças. Os norte-americanos, sofrendo o trauma do ataque e dispostos a tomar medidas imediatas, podem muito bem ter descarregado todo seu rancor e frustração em cartas endereçadas ao responsável pelo seu sofrimento e sua raiva. Será que existem invectivas suficientes na língua inglesa para expressar tamanho ódio? Talvez algumas das cartas estivessem contaminadas com antraz.
Entretanto, é mais provável que elas estivessem impregnadas de perfume. Não é de esperar que as diversas mulheres que contaram a seus analistas sobre o perturbador sonho de terem dormido com Bin Laden tenham aproveitado a oportunidade para escrever cartas de sedução ao terrorista? Será que o rosto sombrio e atraente de Osama arriscou um sorriso ao abrir uma carta de amor enviada por uma norte-americana? Ou será que tal carta foi o beijo da morte, uma violação ainda mais tóxica que o antraz?
Maldição ou sedução, as cartas sinalizam uma relação ingênua com o real. Numa época em que a maioria dos norte-americanos envia mensagens eletrônicas a colegas, familiares, amigos, companhias e instituições, uma folha (escrita à mão ou datilografada) dobrada e colocada num envelope, selado, endereçado e enviado representa uma ligação tangível com um real desejado. As cartas remetidas a Osama realizam um tipo de mágica amigável por meio da qual o terrorista fantasmagórico, aquele rosto terrível, visto nos vídeos transmitidos pela Al Jazira, se torna um homem de carne e osso. Do mesmo modo que milhares de crianças norte-americanas escrevem cartas ao Papai Noel e as enviam para o Polo Norte, escrevemos cartas a Osama e as enviamos para o Afeganistão. A carta da criança procura confirmar a crença. Ela corrobora a realidade do Papai Noel por meio da lógica que equaciona uma carta real com um destinatário real. Do mesmo modo, Osama, misteriosamente místico para a imaginação ocidental, e o Afeganistão, tão remoto quanto o Polo Norte, são circunscritos pelo molde do real por meio da existência das cartas. (...)
Se uma leitura reducionista de Lacan considera que o simbólico, o imaginário e o real constituem categorias distintas, as cartas a Osama manifestam uma indistinção das fronteiras na qual o simbólico se impõe sobre o imaginário para revelar a existência do real. O resultado é uma versão do real que só existe como uma ficção. Numa série de ensaios sobre o estado do real no período pós-11 de Setembro, Slavoj Žižek recomenda que “é preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o núcleo duro do Real que só temos condições de suportar se o transformarmos em ficção”2. Sem dúvida, os investigadores teriam sido capazes de discernir o “núcleo do real” se tivessem tido acesso às cartas. Certamente tal núcleo teria fornecido uma base para levar os autores das cartas ao tribunal ou, numa virada para o irreal, ajudado a enviá-los ao limbo de cúmplices ilegais do terror. Infelizmente, tais núcleos teriam reduzido o real à banalidade. Muito mais interessantes são os núcleos que jamais nos serão revelados, aqueles imbricados na ficção particular do autor de cada carta.
O que persegue 0 mundo de Setembro é 0 espectro do real, o horror de que possamos um dia exceder o código amarelo e os alertas laranjas até atingir em cheio o vermelho. Só então saberemos 0 que significa uma catástrofe real. Não só esses eventos esporádicos e isolados — um World Trade Center aqui, uma carta com antraz ali — mas o estrondo final que apenas validará Bush, Cheney e Rumsfeld, mas também os aniquilará. A explosão final é tanto um fragmento da imaginação quanto a noção “do Real definitivo oculto sob camadas de véus imaginários e/ou simbólicos”3. Ao designar esta “a aparição definitiva”4, Žižek argumenta que a noção de uma definitiva e absolutamente pura “Coisa Real é um espectro fantasmagórico cuja presença garante a consistência de nosso edifício simbólico”5.
Em nenhum outro lugar a qualidade fantasmática do real fica mais aparente do que em nosso próprio governo paralelo. Ficamos atordoados — perplexos — quando descobrimos, após seis meses do ataque ao World Trade Center, que não apenas temos um governo paralelo, mas também que a sua “sede segura e secreta” serviu de esconderijo para o vice-presidente Dick Cheney logo depois do 11 de Setembro. A base do nosso governo paralelo está em quarenta abrigos subterrâneos construídos em montanhas num raio de cem milhas de Washington, nossa própria Tora Bora. A localização de alguns desses lugares não é mais “secreta”. Por exemplo, em monte Weather, Virgínia, há um esconderijo destinado ao porta-voz do Congresso, a chefes de gabinetes e oficiais da Suprema Corte. Longe de ser uma caverna no Afeganistão, o monte Weather seria um paraíso para os talibãs. Descrito como uma pequena cidade”7, o espaço inclui “vastos escritórios, espaço para abrigar os tesouros artísticos da nação, [e] acomodação para milhares de pessoas”8. O fato de que o espaço pode funcionar tanto como abrigo quanto como túmulo fica evidente por duas características: a existência de “um reservatório privado e de um crematório”9. Talvez nosso governo esteja planejando seu próprio martírio.”
1 “Osama’s Got Mail”, The Washington Post, 28/9/2002, p. C3.
2 Slavoj Žižek, Bem-vindo ao deserto do Real! (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 34.
3 Ibidem, p. 46.
4 Idem.
5 Idem.
6 “Secret of the US Nuclear Bunkers”, Guardian Unlimited, 2/3/2002.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.


“Nós, os cidadãos da superpotência mundial, nos percebemos impotentes. Em nenhum outro lugar isso é tão abjeto e evidente quanto nas filas para revista nos aeroportos. Voluntariamente despimo-nos, removemos nossos sapatos e passamos por detectores de metais como submissos penitentes. Alguns de nós até felicitam os agentes de segurança por nos julgarem culpados até que os raios x nos provem inocentes. Vivemos sob o terrível poder de ação preventiva de nossa nação com a docilidade resignada de um rebanho de gado. As insinuações e os boatos triunfam. Conversas na internet nos previnem para o fato de que nossas pontes e estações nucleares tornaram-se alvos, uma fé cabalística em numerologia é causa suficiente para o cancelamento de certos voos intercontinentais e uma piada inoportuna manda um turista francês a Rikers Island*. Dispostos a acreditar no pior e submetidos a um perpétuo estado de pânico, chegamos a conclusões precipitadas. Cada acidente aéreo, cada blecaute é imediatamente atribuído a terroristas. As forças políticas e os meios de comunicação conluiam-se numa campanha de dominação pelo medo. Nosso presidente, vestido como piloto de aviação, pousa em um porta-aviões para proclamar o fim das hostilidades no Iraque. Mas as baixas subsequentes aumentam, enquanto nossos comboios são presas fáceis dos dispositivos explosivos improvisados. A missão das Nações Unidas explode e centenas de “colaboradores” iraquianos tornam-se alvos. Nesse meio-tempo, Rumsfeld faz asneiras, Powell contradiz seu superior e o comandante-chefe bamboleia como uma marionete sob o comando de Cheney e Halliburton. São essas as imagens que nos fornecem todos os dias. É possível enxergar a vitória nessa fotografia?”
* A maior prisão da cidade de Nova York. Situa-se na ilha homônima, entre os bairros de Queens e Bronx. (N. T.)


“Em um nível mais simples e mundano, nossos heróis sinalizam realidades sobre nosso mundo as quais evitamos ou tentamos esconder. Nossa sociedade procura não reconhecer as consequências de seus atos no mundo. Reprimimos nossas verdades em um mar de esquecimentos e ansiedade paralisantes. Mas nossos esforços de autopoliciamento não são totalmente bem-sucedidos. Como o corpo de uma vítima de assassinato que emerge à superfície do lago para denunciar o crime, nossos realizadores de proeza vieram à superfície de uma banalidade sufocante. (...)
Temerosos, mas confortados por nosso superpoder nacional, imaginamos um mundo onde os traumas e as desigualdades gritantes acontecem (e são contidos) em outros lugares. Mas o mundo globalizado é contínuo e seus horrores circulam livremente. Se nossos realizadores de proeza são clones assimétricos de um outro horror, eles confirmam a influência de fatores contextuais — o privilégio e a riqueza que permitem que nossa cultura produza proezas, enquanto outros mundos geram sequestradores, pobres, imigrantes e prisioneiros políticos. Cegos diante da história e sufocados pelo entretenimento, estamos condenados a ler evidências como mero espetáculo.”