domingo, 13 de outubro de 2013

Bem-vindo ao deserto do real!, de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo

Tradução: Paulo Cezar Castanheira

ISBN: 978-85-7559-035-5

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 192

Sinopse: Bem-vindo ao deserto do real! é uma coletânea de cinco ensaios de Slavoj Žižek, onde o autor aborda os acontecimentos de 11 de Setembro e suas consequências.

O filósofo esloveno firmou-se como um importante interlocutor nos debates sobre o destino do pensamento político de esquerda, ao mesmo tempo em que se transformou em figura de destaque dos cultural studies norte-americanos, ao fornecer uma outra via de abordagem da cultura contemporânea.

Em Bem- vindo ao deserto do real!, Slavoj Žižek usa a provocativa frase ‘Com essa esquerda, quem precisa de direita?’ para comentar a atuação da esquerda no período posterior aos atentados de 2001. Atuação essa que permitiu que a ideologia hegemônica se apropriasse da tragédia e impusesse sua mensagem de que é preciso escolher um lado na ‘guerra contra o terrorismo’.

Para o autor, a tentação de escolher um dos lados deve ser evitada. Segundo Žižek, quando as escolhas parecem muito claras, a ideologia se encontra em seu estado mais puro, obscurecendo as verdadeiras opções. A ‘democracia liberal’ não é a alternativa ao ‘fundamentalismo’ muçulmano, coloca.

Publicado pela Boitempo dentro da coleção Estado de Sítio, Bem-vindo ao deserto do Real! não é apenas mais um livro sobre os desafios políticos impostos pelo 11 de Setembro. Movendo-se no interior de um terreno para onde convergem a crítica da cultura, a psicanálise, a teoria social, a análise cinematográfica e a política, Žižek sabe diagnosticar os sintomas da sociabilidade contemporânea e desvendar articulações onde menos se espera.

Suas conclusões ultrapassam a análise circunstancial de um fato e levam o leitor ao cerne dos impasses do nosso tempo. Um tempo em que a busca pela realidade objetiva que há por trás das aparências é falsa, funcionando como ‘o estratagema definitivo para evitar o confronto com o Real’.



“A especificidade da Revolução Cubana é mais bem expressa pela dualidade entre Fidel e Che Guevara: Fidel, o verdadeiro líder, autoridade suprema do Estado, versus Che, o eterno rebelde revolucionário que não se resignou a apenas governar um Estado. Não seria parecido com a União Soviética onde Trotsky não fosse rejeitado como o arquitraidor? Imaginemos que, em meados da década de 1920, Trotsky tivesse emigrado e renunciado à cidadania soviética para trabalhar pela revolução permanente no mundo, e pouco depois morresse – depois de sua morte, Stalin o teria elevado à condição de culto... É evidente que tal devoção à Causa (“Socialismo o muerte!”), uma vez que a Causa está corporificada no Líder, pode facilmente degenerar em o Líder decidir sacrificar, não a si próprio em prol do país, mas o país em prol de si mesmo, da sua Causa. (Da mesma forma, a prova da verdadeira fidelidade ao Líder não é o fato de se estar disposto a receber uma bala atirada contra ele; acima disso, é necessário estar pronto a receber uma bala atirada por ele – aceitar ser abandonado ou até sacrificado por ele em nome de objetivos mais altos).”

 

 

“Hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição contemporânea da política como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política; ou mesmo do multiculturalismo tolerante de nossos dias, a experiência do Outro sem sua Alteridade (o Outro idealizado que tem danças fascinantes e uma abordagem holística ecologicamente sadia da realidade, enquanto práticas como o espancamento das mulheres ficam ocultas...)? A Realidade Virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do Real – assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida como a realidade sem o ser. Mas o que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria “realidade real” como uma entidade virtual. Para a grande maioria do público, as explosões do WTC aconteceram na tela dos televisores, e a imagem exaustivamente repetida das pessoas correndo aterrorizadas em direção às câmeras seguidas pela nuvem de poeira da torre derrubada foi enquadrada de forma a lembrar as tomadas espetaculares dos filmes de catástrofe, um efeito especial que superou todos os outros, pois – como bem sabia Jeremy Bentham – a realidade é a melhor aparência de si mesma.”

 

 

“E a mesma desrealização do horror continuou depois do colapso do WTC: apesar de se repetir constantemente o número de vítimas – 3.000 –, o que impressiona é ser tão pequena a quantidade de carnificina exibida – não se veem corpos desmembrados, não há sangue, nem os rostos desesperados de pessoas agonizantes, num claro contraste com as catástrofes do Terceiro Mundo, em que se faz questão de mostrar a imagem de algum detalhe mórbido: somalis morrendo de inanição, mulheres bósnias violentadas, homens com a garganta cortada. Essas imagens são sempre precedidas por um aviso de que “as imagens mostradas a seguir são extremamente chocantes e podem afetar crianças” – uma advertência que não se viu nas reportagens sobre a destruição do WTC. Não seria isso prova adicional de como, mesmo nesse momento trágico, persiste a distância que nos separa deles, da realidade deles: o verdadeiro horror acontece lá, não aqui.”

 

 

“O grande sucesso dos irmãos Wachowski, Matrix (1999), levou essa lógica ao seu clímax: a realidade material que todos sentimos e vemos à nossa volta é virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador a que estamos todos ligados; quando acorda na “realidade real”, o herói, interpretado por Keanu Reeves, se vê numa paisagem desolada cheia de ruínas carbonizadas – o que sobrou de Chicago depois de uma guerra global. O líder da resistência, Morpheus, lança-lhe uma estranha saudação: “Bem-vindo ao deserto do real”. Esse resumo não é semelhante ao que sucedeu em Nova Iorque no dia 11 de setembro? Seus cidadãos foram então apresentados ao “deserto do real” – para nós, corrompidos por Hollywood, as imagens da queda das torres só poderiam ser uma reprodução das cenas mais emocionantes das grandes produções sobre catástrofes”.

 

 

“O ridículo do ataque americano contra o Afeganistão é um exemplo: se a maior potência do mundo bombardeia um dos países mais pobres, onde os camponeses mal conseguem sobreviver em montanhas estéreis, não estamos diante de um exemplo definitivo de acting out impotente? O Afeganistão, por outro lado, é o alvo ideal: um país já reduzido a ruínas, sem infraestrutura, repetidamente destruído pela guerra ao longo das duas últimas décadas... Não podemos deixar de pensar que a escolha do Afeganistão também foi determinada por considerações econômicas: não é melhor manifestar a própria raiva contra um país para o qual ninguém dá importância e onde não há mais nada a destruir? Infelizmente, a escolha do Afeganistão traz à memória a história do louco que procura uma chave perto do poste de luz; quando lhe perguntam por que procurar ali, se ele tinha perdido a chave num canto escuro, ele responde: “Mas é mais fácil procurar onde está claro!”. Não é a ironia definitiva o fato de, já antes do bombardeio americano, Kabul já estar igual ao sul de Manhattan depois do 11 de Setembro? A “guerra contra o terrorismo” funciona então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura convicção de que nada mudou realmente.”

 

 

“Estamos entrando numa nova era de guerra paranoica em que a principal tarefa será identificar o inimigo e suas armas. Nessa nova guerra, os agentes vão cada vez menos assumir publicamente os seus atos: não somente os próprios “terroristas” terão menos interesse em assumir a responsabilidade por seus atos (nem mesmo a notória Al-Qaeda assumiu explicitamente os ataques de 11 de setembro, para não mencionar o mistério com relação às cartas com antraz); as medidas “antiterroristas” do Estado também são ocultas por um manto de segredo – e tudo isso forma o caldo de cultura ideal para teorias conspiratórias e paranoia social generalizada.

Com o pânico gerado pelo antraz em outubro de 2001, o Ocidente teve o primeiro gosto dessa nova guerra “invisível” em que – um aspecto que se deve ter sempre em mente – nós, cidadãos comuns, ficamos totalmente dependentes das autoridades para saber o que está ocorrendo: nada vemos nem ouvimos; tudo o que sabemos nos chega da mídia oficial. Uma superpotência bombardeia um deserto desolado e, ao mesmo tempo, é refém de uma bactéria invisível – é essa, não a explosão do WTC, a primeira imagem da guerra do século XXI. Em vez de um rápido acting out, deveremos enfrentar algumas perguntas difíceis: qual será o significado de “guerra” no século XXI? Quem serão “eles”, se eles não são claramente nem Estados nem gangues criminosas? Aqui, não resisto à tentação de relembrar a oposição freudiana entre o direito público e seu supereu obsceno: da mesma forma, não seriam as “organizações terroristas internacionais” o lado obsceno de uma grande empresa multinacional – a máquina rizomática definitiva, onipresente, mas sem base territorial definida? Não são elas a forma em que os “fundamentalismos” nacionalistas e/ou religiosos se acomodaram ao capitalismo global? Não corporificam a contradição última, com seu conteúdo particular ou exclusivo e funcionamento dinâmico global?”.

 

 

“Sob a oposição entre sociedades “liberais” e “fundamentalistas”, “McWorld versus Jihad”, oculta-se um embaraçoso terceiro termo: países como a Arábia Saudita e Kuwait, monarquias profundamente conservadoras, mas aliados econômicos dos americanos, completamente integrados ao capitalismo ocidental. Nesse caso, os Estados Unidos têm um interesse muito preciso e simples: para poder contar com as  reservas de petróleo desses países, estes devem continuar sendo não democráticos (a noção subjacente é evidentemente a de que qualquer despertar democrático poderia dar ensejo a atitudes antiamericanas). É uma velha história, cujo infame primeiro capítulo, depois da Segunda Guerra Mundial, foi o coup d’état orquestrado pela CIA contra o governo democraticamente eleito do primeiro-ministro Muhammad Mossadegh, em 1953 – ali não havia “fundamentalismo”, nem mesmo uma “ameaça soviética”, apenas um despertar democrático, baseado na ideia de que o país deveria assumir o controle de suas reservas de petróleo e quebrar o monopólio das companhias ocidentais. Durante a Guerra do Golfo, em 1990, descobriu-se até onde os Estados Unidos estão dispostos a chegar a fim de manter esse pacto, quando soldados judeus americanos aquartelados na Arábia Saudita tiveram de ser transportados por helicóptero até os porta-aviões no Golfo para orar, pois os ritos não-maometanos são proibidos em solo saudita.

A posição “pervertida” dos verdadeiros “fundamentalistas” dos regimes árabes conservadores é a chave das charadas (geralmente cômicas) da política americana no Oriente Médio: eles representam o ponto em que os EUA são forçados a reconhecer explicitamente a primazia da economia sobre a democracia – ou seja, o caráter secundário e manipulativo das intervenções internacionais legitimadoras – quando afirmam proteger a democracia e os direitos humanos. O que não se pode deixar de ter em mente acerca do Afeganistão é que, até a década de 1970 – ou seja, antes da época em que o país se envolveu na luta das superpotências –, ele era uma das sociedades maometanas mais tolerantes, com uma tradição secular: Kabul era conhecida como uma cidade de vibrante vida cultural e política. O paradoxo, portanto, é que a ascensão do Talibã, essa aparente “regressão” ao ultrafundamentalismo, longe de expressar uma profunda tendência “tradicionalista”, foi o resultado de o país ter caído no vórtice da política internacional – foi não somente uma reação a ela, mas também resultado direto do apoio das potências estrangeiras (Paquistão, Arábia Saudita e os próprios EUA).

Quanto ao “choque de civilizações”, é bom lembrar a carta de uma menina americana de sete anos cujo pai era piloto na guerra do Afeganistão: ela escreveu que – embora amasse muito seu pai, estava pronta a deixá-lo morrer, a sacrificá-lo por seu país. Quando o presidente Bush citou suas palavras, elas foram entendidas como manifestação “normal” de patriotismo americano; vamos conduzir uma experiência mental simples, e imaginar uma menina árabe maometana pateticamente lendo para as câmeras as mesmas palavras a respeito do pai que lutava pelo Talibã – não é necessário pensar muito sobre qual teria sido a nossa reação: mórbido fundamentalismo islâmico que não rejeita nem mesmo a cruel manipulação e exploração das crianças... Toda característica atribuída ao Outro já está presente no coração mesmo dos EUA. (...) George W. Bush foi forçado a reconhecer que os prováveis autores dos ataques com antraz não eram terroristas maometanos, mas fundamentalistas cristãos da extrema direita americana – mais uma vez, o fato de atos antes atribuídos a um inimigo externo poderem na verdade ser perpetrados dentro da própria Amérique profonde não nos ofereceria uma confirmação inesperada da tese de que o verdadeiro choque é o choque no interior de cada civilização?”

 

 

“Em 11 de setembro os EUA tiveram a oportunidade de entender a espécie de mundo de que eles fazem parte. Poderiam ter aproveitado a oportunidade – mas não o fizeram; pelo contrário, optaram por reafirmar seus compromissos ideológicos tradicionais: abaixo os sentimentos de responsabilidade e culpa com relação à miséria do Terceiro Mundo, agora nós somos as vítimas! Assim, quando Timothy Garton Ash afirma pateticamente com relação ao Tribunal de Haia: “Nenhum Führer, nem Duce, nem Pinochet, nem Idi Amin, nem Pol Pot poderão mais se proteger da intervenção da justiça do povo atrás dos portões dos palácios da soberania”, é bom notar quem está ausente dessa série de nomes que, à parte os nomes consagrados de Hitler e Mussolini, contêm três ditadores do Terceiro Mundo: onde está pelo menos um nome dos Sete Grandes – alguém como Kissinger, por exemplo?”

 

 

“Não sabemos ainda quais serão as consequências desse acontecimento para a economia, a ideologia, a política e a guerra, mas uma coisa é certa: os EUA, que até hoje achavam que eram uma ilha protegida desse tipo de violência, vendo-a apenas da distância segura da tela do televisor, estão agora diretamente envolvidos. Assim, a alternativa é: decidirão os EUA fortificar ainda mais a sua “esfera”, ou se arriscarão a sair dela? Ou persistem – e até reforçam – a atitude profundamente imoral de perguntar: “Por que isso teve de acontecer conosco? Esse tipo de coisa não acontece aqui!”, levando a mais agressividade contra o ameaçador Exterior – em suma: um paranoico acting out. Ou os EUA finalmente se arriscam a ultrapassar a tela fantasmática que os separa do Mundo Exterior, e aceitam sua chegada no mundo real, fazendo um movimento já muito retardado: o de, em vez de dizer que “esse tipo de coisa não deveria acontecer aqui!”, passar a dizer que “esse tipo de coisa não deveria acontecer em lugar nenhum!”. É esta a verdadeira lição dos ataques: a única forma de assegurar que isso não vai acontecer aqui é evitar que aconteça em qualquer lugar. Resumindo, a América deve aprender humildemente a aceitar sua própria vulnerabilidade enquanto parte deste mundo, impondo a punição aos responsáveis como um dever triste, não como uma excitante retaliação – mas o que está acontecendo é a reafirmação do papel excepcional dos EUA como a polícia do mundo, como se a causa do ressentimento contra os EUA não fosse o excesso, e sim a falta, de poder.”

 

 

“Com essa “esquerda” (que temos hoje), quem precisa de direita?”

 

 

“Ao longo do século XX, percebe-se o mesmo padrão: para esmagar seu verdadeiro inimigo, o capitalismo começou a brincar com fogo, e mobilizou seu excesso obsceno disfarçado de fascismo; mas esse excesso assumiu vida própria, e se tornou tão forte que o capitalismo “liberal” foi forçado a unir forças com seu verdadeiro inimigo (o comunismo) para derrotá-lo. Significativamente, a guerra entre o capitalismo e o comunismo foi uma guerra fria, ao passo que a grande guerra quente foi lutada contra o fascismo. E o caso do Talibã não seria idêntico? Depois de criar um fantasma para combater o comunismo, eles o transformaram em seu principal inimigo. Consequentemente, mesmo que o terrorismo nos mate a todos, a guerra americana contra o terrorismo não é a nossa luta, mas uma luta interna do universo capitalista. O primeiro dever de um intelectual progressista (se é que esse termo tem ainda hoje algum significado) não é lutar as lutas de seu inimigo por ele.”

 

 

“As “férias da história” dos EUA foram uma farsa: a paz americana foi comprada com catástrofes que aconteciam por toda parte. Nos dias de hoje, a imagem dominante é a de um olhar inocente que confronta o Mal indizível que atacou do Exterior – e mais uma vez, com relação a esse olhar, é preciso reunir forças para aplicar a ele o conhecido dito hegeliano de que o Mal reside (também) no olhar inocente que percebe o Mal em tudo.”

 

 

“Na velha República Democrática Alemã era impossível uma pessoa combinar três características: convicção (fé na ideologia oficial), inteligência e honestidade. Quem acreditava e era inteligente, não era honesto; quem era inteligente e honesto, não acreditava; quem acreditava e era honesto não podia ser inteligente. O mesmo não se aplica à ideologia da democracia liberal? Quem finge levar a sério a ideologia liberal hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto: ou é estúpido ou um cínico corrompido. Portanto, se me permitem uma alusão de mau gosto ao Homo sacer de Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante de subjetividade hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba sendo ele o verdadeiro explorado.”

 

 

“Homens que começam lutando contra a Igreja em nome da liberdade e humanidade acabam por abrir mão da liberdade e da humanidade para poder lutar contra a Igreja”, diz Chesterton. A primeira coisa a acrescentar hoje a esta passagem é que o mesmo vale para os advogados da religião: quantos defensores fanáticos da religião começaram pelo ataque feroz à cultura secular e terminaram por abandonar a própria religião (perdendo toda experiência religiosa significativa)? E não é verdade que, de forma exatamente homóloga, os guerreiros liberais ficam tão ávidos para lutar contra o fundamentalismo antidemocrático que terminam por eliminar a liberdade e a democracia, se isto for necessário para lutar contra o terrorismo? Têm tamanha paixão por demonstrar que o fundamentalismo não cristão é a maior ameaça à liberdade que estão prontos a recair na posição de que é preciso limitar nossa própria liberdade aqui e agora, nas nossas sociedades supostamente cristãs. Se os “terroristas” estão prontos a destruir este mundo por amor ao próximo, nossos guerreiros contra o terrorismo estão prontos a destruir seu próprio mundo democrático por ódio ao outro muçulmano. Alter e Dershowitz amam tanto a dignidade humana que estão prontos a legalizar a tortura – a degradação última da dignidade humana – para defendê-la.”

 

 

“A principal imagem do tratamento das “populações locais” como Homo sacer talvez seja a do avião de guerra voando sobre o Afeganistão: nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou pacotes de alimentos.”

 

 

“O inesperado precursor dessa “biopolítica” paralegal em que as medidas administrativas substituem gradualmente o domínio do Direito foi o regime autoritário de direita de Alfredo Stroessner no Paraguai durante as décadas de 1960 e 70, que trouxe a lógica do estado de exceção ao mais extremo absurdo. Sob Stroessner, o Paraguai era – em termos da ordem constitucional – uma democracia parlamentar “normal” com a garantia de todas as liberdades; como, entretanto, conforme a alegação de Stroessner, vivemos todos em estado de emergência por causa da luta mundial entre a liberdade e o comunismo, a implementação total da Constituição era sempre adiada e proclamado um permanente estado de emergência. Esse estado de emergência só era suspenso por um dia a cada quatro anos para que houvesse as eleições que legitimavam o governo do Partido Colorado de Stroessner com uma maioria de 90 por cento – digna dos adversários comunistas... O paradoxo é que esse estado de emergência era o estado normal, ao passo que a liberdade democrática “normal” era uma exceção de curtíssima duração.”

 

 

“Esses paradoxos também oferecem a chave para entender como as duas lógicas do estado de emergência se relacionam uma com a outra: a atual emergência liberal-totalitária da “guerra ao terrorismo” e o autêntico estado revolucionário de emergência, primeiramente articulado por São Paulo no que ele denominou a emergência da aproximação do “fim do tempo”. A resposta é clara: quando uma instituição estatal proclama o estado de emergência, ela o faz, por definição, como parte de uma estratégia desesperada para evitar a verdadeira emergência e “retornar ao estado normal das coisas”. Há uma característica comum a todas as proclamações reacionárias de “estado de emergência”: foram todas dirigidas contra a agitação popular (“confusão”) e apresentadas como medidas para restaurar a normalidade. Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os militares proclamaram um estado de emergência a fim de controlar o “caos” da politização generalizada. “Essa loucura tem de terminar; as pessoas devem retomar seus empregos, o trabalho tem de continuar!”. Em resumo, a proclamação reacionária do estado de emergência é uma defesa desesperada contra o verdadeiro estado de emergência.”

 

 

“Em fevereiro de 2002 foi anunciado um plano – rapidamente arquivado – de estabelecer um “Departamento de Influência Estratégica”, entre cujas tarefas incluía-se a disseminação de inverdades na mídia estrangeira para propagar a imagem dos EUA no mundo. O problema desse departamento não era apenas a admissão clara da mentira; ela ajustava-se à conhecida declaração: “Se há uma coisa pior que um homem que mente, é um homem que não está à altura de suas mentiras!”. (Essa história se refere à reação de uma mulher ao amante, que desejava toda forma de sexo que não a penetração, para não ter de mentir à esposa quando dissesse que não estava mantendo relações sexuais – ou seja, ele queria dar uma de Bill Clinton com ela. Nessas circunstâncias, a mulher tinha todo o direito de dizer que a mentira completa – a negativa de relações sexuais – teria sido mais honesta que a estratégia adotada de mentir usando meia-verdade.) É natural, então, que o plano tenha sido rapidamente abandonado: uma agência do governo anunciar abertamente que seu objetivo, entre outros, é disseminar mentiras é inviável. O que isso quer dizer, evidentemente, é que a disseminação oficial de mentiras vai continuar: a ideia de uma agência do governo dedicada à mentira foi, de certa forma, honesta demais – teve de ser abandonada precisamente para permitir a divulgação eficiente de mentiras.”

 

 

“Liberdade é a liberdade dos que pensam diferente” (Rosa Luxemburgo).

 

 

“Um acontecimento notável ocorreu em Israel em janeiro ou fevereiro de 2002: a recusa organizada de centenas de reservistas a servir nos territórios ocupados. Esses refuseniks (como são chamados) não são simplesmente “pacifistas”: em sua proclamação pública, enfatizaram que cumpririam o seu dever de lutar por Israel nas guerras contra os Estados árabes, nas quais alguns deles foram altamente condecorados. Alegavam simplesmente (e há sempre algo simples num ato ético) que não concordavam em lutar “para dominar, expulsar, reduzir à fome e humilhar todo um povo”. Essas alegações estão documentadas nas descrições detalhadas das atrocidades cometidas pela Força de Defesa de Israel (FDI), desde a matança de crianças até a destruição de propriedade palestina. É assim que Gil Nemesh relata a “realidade do pesadelo nos territórios” no website dos refuseniks (seruv.org.il):

Meus amigos – forçando um velho a se humilhar, ferindo crianças, agredindo pessoas por divertimento, e mais tarde vangloriando-se de tudo isso, rindo dessa brutalidade terrível. Não sei se ainda quero chamá-los de meus amigos. Deixaram que se perdesse a própria humanidade, não por pura maldade, mas por ser difícil demais enfrentar isto de qualquer outra forma.

Passa-se então a perceber certa realidade: a realidade de centenas de pequenas – e outras não tão pequenas assim – humilhações diárias sistemáticas a que são submetidos os palestinos – os palestinos, e até os árabes israelenses (oficialmente cidadãos de Israel, com todos os direitos de cidadania), são discriminados na alocação de água, nos negócios envolvendo patrimônio, e assim por diante. Mas, ainda mais importante, é a sistemática “micropolítica” de humilhação psicológica: os palestinos são tratados basicamente como crianças malcriadas que devem ser reeducadas para uma vida honesta por meio de disciplina e castigos. Basta considerar o ridículo da situação em que as forças de segurança palestinas são bombardeadas, e ao mesmo tempo se cobra delas a repressão aos terroristas do Hamas. Como esperar que elas retenham um mínimo de autoridade aos olhos da população palestina se são humilhadas diariamente pelos ataques que sofrem e, pior ainda, pela expectativa de que suportem caladas esses ataques – caso se defendam e ofereçam resistência serão consideradas terroristas? No final de março de 2002, essa situação atingiu seu ridículo apogeu: Arafat foi sitiado e isolado nos três cômodos de seu escritório em Ramallah, ao mesmo tempo em que se lhe cobrava o combate ao terror, como se ele tivesse poder absoluto sobre os palestinos... Resumindo, não encontramos no tratamento israelense dado à Autoridade Palestina (atacá-la militarmente, enquanto exige que ela combata os terroristas que vivem entre os palestinos) uma espécie de paradoxo pragmático em que a mensagem explícita (a ordem de combater o terrorismo) é subvertida pela mensagem implícita contida no próprio modo de transmissão da mensagem explícita? Não está escandalosamente claro que a Autoridade Palestina é, dessa forma, colocada numa posição insustentável: obrigada a perseguir seu próprio povo enquanto está sob o fogo israelense? E a verdadeira ordem implícita não seria exatamente oposta: queremos que vocês resistam para poder esmagá-los?”

 

 

“A principal notícia que chegou da China em 2002 foi a emergência de um movimento operário de grande escala que protesta contra as condições de trabalho, que são o preço pago pela China para se tornar rapidamente o principal centro de manufatura do mundo, e a forma brutal como as autoridades o dobraram – mais uma prova, se é que há necessidade de prova, de que a China é hoje o Estado capitalista ideal: liberdade para o capital, cabendo ao Estado o “trabalho sujo” de controle dos operários.”

 

 

“Esses aparelhos de Estado têm um papel crucial no obverso da globalização. Recentemente, uma decisão abominável da União Europeia passou quase sem ser notada: o plano de estabelecer uma força policial de fronteira para toda a Europa a fim de assegurar o isolamento do território da União e assim evitar a entrada de imigrantes. Esta é a verdade da globalização: a construção de novos muros isolando os europeus prósperos do fluxo de imigrantes. Tem-se a tentação de ressuscitar aqui a velha oposição “humanista” marxista entre “relações entre coisas” e “relações entre pessoas”: na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo global, são as “coisas” (mercadorias) que circulam livremente, ao passo que a circulação das “pessoas” é cada vez mais controlada. O novo racismo do mundo desenvolvido é, de certa forma, mais brutal que os anteriores: sua legitimação implícita não é naturalista (a superioridade natural do Ocidente desenvolvido) nem culturalista (nós, ocidentais, também queremos preservar nossa identidade cultural), mas um desavergonhado egoísmo econômico – o divisor fundamental é o que existe entre os que estão incluídos na esfera de (relativa) prosperidade econômica e os que dela estão excluídos. O que se esconde atrás dessas medidas de proteção é a mera consciência de que o modelo atual de prosperidade capitalista recente não pode ser universalizado.”

 

 

“De acordo com um antigo tópos marxista, a evocação do inimigo externo serve para deslocar o foco da verdadeira origem das tensões, o antagonismo inerente ao sistema – basta lembrar a explicação comum do antissemitismo como o deslocamento para a figura do judeu, este intruso externo no nosso corpo social, da causa dos antagonismos que ameaçam a harmonia desse corpo.”

 

 

“O verdadeiro ensinamento de Lênin – que aponta a diferença entre “liberdade formal” e “liberdade atual” – consiste em mostrar como a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas.” (Vladimir Safatle – posfácio)

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