Editora: Boitempo
Tradução: Paulo Cezar Castanheira
ISBN: 978-85-7559-035-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 192
Sinopse: Bem-vindo
ao deserto do real! é uma coletânea de cinco ensaios de Slavoj Žižek, onde o
autor aborda os acontecimentos de 11 de Setembro e suas consequências.
O filósofo esloveno firmou-se como um importante interlocutor
nos debates sobre o destino do pensamento político de esquerda, ao mesmo tempo em
que se transformou em figura de destaque dos cultural studies norte-americanos,
ao fornecer uma outra via de abordagem da cultura contemporânea.
Em Bem- vindo ao deserto do real!, Slavoj Žižek usa
a provocativa frase ‘Com essa esquerda, quem precisa de direita?’ para comentar
a atuação da esquerda no período posterior aos atentados de 2001. Atuação essa que
permitiu que a ideologia hegemônica se apropriasse da tragédia e impusesse sua mensagem
de que é preciso escolher um lado na ‘guerra contra o terrorismo’.
Para o autor, a tentação de escolher um dos lados deve ser
evitada. Segundo Žižek, quando as escolhas parecem muito claras, a ideologia se
encontra em seu estado mais puro, obscurecendo as verdadeiras opções. A ‘democracia
liberal’ não é a alternativa ao ‘fundamentalismo’ muçulmano, coloca.
Publicado pela Boitempo dentro da coleção Estado de Sítio,
Bem-vindo ao deserto do Real! não é apenas mais um livro sobre os desafios
políticos impostos pelo 11 de Setembro. Movendo-se no interior de um terreno para
onde convergem a crítica da cultura, a psicanálise, a teoria social, a análise cinematográfica
e a política, Žižek sabe diagnosticar os sintomas da sociabilidade contemporânea
e desvendar articulações onde menos se espera.
Suas conclusões ultrapassam a análise circunstancial de um
fato e levam o leitor ao cerne dos impasses do nosso tempo. Um tempo em que a busca
pela realidade objetiva que há por trás das aparências é falsa, funcionando como
‘o estratagema definitivo para evitar o confronto com o Real’.
“A especificidade da Revolução Cubana é mais bem
expressa pela dualidade entre Fidel e Che Guevara: Fidel, o verdadeiro líder, autoridade
suprema do Estado, versus Che, o eterno rebelde revolucionário que não se resignou
a apenas governar um Estado. Não seria parecido com a União Soviética onde Trotsky
não fosse rejeitado como o arquitraidor? Imaginemos que, em meados da década de
1920, Trotsky tivesse emigrado e renunciado à cidadania soviética para trabalhar
pela revolução permanente no mundo, e pouco depois morresse – depois de sua morte,
Stalin o teria elevado à condição de culto... É evidente que tal devoção à Causa
(“Socialismo o muerte!”), uma vez que a Causa está corporificada no Líder, pode
facilmente degenerar em o Líder decidir sacrificar, não a si próprio em prol do
país, mas o país em prol de si mesmo, da sua Causa. (Da mesma forma, a prova da
verdadeira fidelidade ao Líder não é o fato de se estar disposto a receber uma bala
atirada contra ele; acima disso, é necessário estar pronto a receber uma bala atirada
por ele – aceitar ser abandonado ou até sacrificado por ele em nome de objetivos
mais altos).”
“Hoje encontramos no mercado uma série de produtos
desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem
gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual,
o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado,
é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição contemporânea da política como a
arte da administração competente, ou seja, a política sem política; ou mesmo do
multiculturalismo tolerante de nossos dias, a experiência do Outro sem sua Alteridade
(o Outro idealizado que tem danças fascinantes e uma abordagem holística ecologicamente
sadia da realidade, enquanto práticas como o espancamento das mulheres ficam ocultas...)?
A Realidade Virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto
esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância,
do núcleo duro e resistente do Real – assim como o café descafeinado tem o aroma
e o gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida
como a realidade sem o ser. Mas o que acontece no final desse processo de virtualização
é que começamos a sentir a própria “realidade real” como uma entidade virtual. Para
a grande maioria do público, as explosões do WTC aconteceram na tela dos televisores,
e a imagem exaustivamente repetida das pessoas correndo aterrorizadas em direção
às câmeras seguidas pela nuvem de poeira da torre derrubada foi enquadrada de forma
a lembrar as tomadas espetaculares dos filmes de catástrofe, um efeito especial
que superou todos os outros, pois – como bem sabia Jeremy Bentham – a realidade
é a melhor aparência de si mesma.”
“E a mesma desrealização do horror continuou depois
do colapso do WTC: apesar de se repetir constantemente o número de vítimas – 3.000
–, o que impressiona é ser tão pequena a quantidade de carnificina exibida – não
se veem corpos desmembrados, não há sangue, nem os rostos desesperados de pessoas
agonizantes, num claro contraste com as catástrofes do Terceiro Mundo, em que se
faz questão de mostrar a imagem de algum detalhe mórbido: somalis morrendo de inanição,
mulheres bósnias violentadas, homens com a garganta cortada. Essas imagens são sempre
precedidas por um aviso de que “as imagens mostradas a seguir são extremamente chocantes
e podem afetar crianças” – uma advertência que não se viu nas reportagens sobre
a destruição do WTC. Não seria isso prova adicional de como, mesmo nesse momento
trágico, persiste a distância que nos separa deles, da realidade deles: o verdadeiro
horror acontece lá, não aqui.”
“O grande sucesso dos irmãos Wachowski, Matrix
(1999), levou essa lógica ao seu clímax: a realidade material que todos sentimos
e vemos à nossa volta é virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador
a que estamos todos ligados; quando acorda na “realidade real”, o herói, interpretado
por Keanu Reeves, se vê numa paisagem desolada cheia de ruínas carbonizadas – o
que sobrou de Chicago depois de uma guerra global. O líder da resistência, Morpheus,
lança-lhe uma estranha saudação: “Bem-vindo ao deserto do real”. Esse resumo não
é semelhante ao que sucedeu em Nova Iorque no dia 11 de setembro? Seus cidadãos
foram então apresentados ao “deserto do real” – para nós, corrompidos por Hollywood,
as imagens da queda das torres só poderiam ser uma reprodução das cenas mais emocionantes
das grandes produções sobre catástrofes”.
“O ridículo do ataque americano contra o Afeganistão
é um exemplo: se a maior potência do mundo bombardeia um dos países mais pobres,
onde os camponeses mal conseguem sobreviver em montanhas estéreis, não estamos diante
de um exemplo definitivo de acting out impotente? O Afeganistão, por outro
lado, é o alvo ideal: um país já reduzido a ruínas, sem infraestrutura, repetidamente
destruído pela guerra ao longo das duas últimas décadas... Não podemos deixar de
pensar que a escolha do Afeganistão também foi determinada por considerações econômicas:
não é melhor manifestar a própria raiva contra um país para o qual ninguém dá importância
e onde não há mais nada a destruir? Infelizmente, a escolha do Afeganistão traz
à memória a história do louco que procura uma chave perto do poste de luz; quando
lhe perguntam por que procurar ali, se ele tinha perdido a chave num canto escuro,
ele responde: “Mas é mais fácil procurar onde está claro!”. Não é a ironia definitiva
o fato de, já antes do bombardeio americano, Kabul já estar igual ao sul de Manhattan
depois do 11 de Setembro? A “guerra contra o terrorismo” funciona então como um
ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura convicção de que
nada mudou realmente.”
“Estamos entrando numa nova era de guerra paranoica
em que a principal tarefa será identificar o inimigo e suas armas. Nessa nova guerra,
os agentes vão cada vez menos assumir publicamente os seus atos: não somente os
próprios “terroristas” terão menos interesse em assumir a responsabilidade por seus
atos (nem mesmo a notória Al-Qaeda assumiu explicitamente os ataques de 11 de setembro,
para não mencionar o mistério com relação às cartas com antraz); as medidas “antiterroristas”
do Estado também são ocultas por um manto de segredo – e tudo isso forma o caldo
de cultura ideal para teorias conspiratórias e paranoia social generalizada.
Com o pânico gerado pelo antraz em outubro de
2001, o Ocidente teve o primeiro gosto dessa nova guerra “invisível” em que – um
aspecto que se deve ter sempre em mente – nós, cidadãos comuns, ficamos totalmente
dependentes das autoridades para saber o que está ocorrendo: nada vemos nem ouvimos;
tudo o que sabemos nos chega da mídia oficial. Uma superpotência bombardeia um deserto
desolado e, ao mesmo tempo, é refém de uma bactéria invisível – é essa, não a explosão
do WTC, a primeira imagem da guerra do século XXI. Em vez de um rápido acting
out, deveremos enfrentar algumas perguntas difíceis: qual será o significado
de “guerra” no século XXI? Quem serão “eles”, se eles não são claramente nem Estados
nem gangues criminosas? Aqui, não resisto à tentação de relembrar a oposição freudiana
entre o direito público e seu supereu obsceno: da mesma forma, não seriam as “organizações
terroristas internacionais” o lado obsceno de uma grande empresa multinacional –
a máquina rizomática definitiva, onipresente, mas sem base territorial definida?
Não são elas a forma em que os “fundamentalismos” nacionalistas e/ou religiosos
se acomodaram ao capitalismo global? Não corporificam a contradição última, com
seu conteúdo particular ou exclusivo e funcionamento dinâmico global?”.
“Sob a oposição entre sociedades “liberais” e
“fundamentalistas”, “McWorld versus Jihad”, oculta-se um embaraçoso terceiro termo:
países como a Arábia Saudita e Kuwait, monarquias profundamente conservadoras, mas
aliados econômicos dos americanos, completamente integrados ao capitalismo ocidental.
Nesse caso, os Estados Unidos têm um interesse muito preciso e simples: para poder
contar com as reservas de petróleo desses
países, estes devem continuar sendo não democráticos (a noção subjacente é evidentemente
a de que qualquer despertar democrático poderia dar ensejo a atitudes antiamericanas).
É uma velha história, cujo infame primeiro capítulo, depois da Segunda Guerra Mundial,
foi o coup d’état orquestrado pela CIA contra o governo democraticamente
eleito do primeiro-ministro Muhammad Mossadegh, em 1953 – ali não havia “fundamentalismo”,
nem mesmo uma “ameaça soviética”, apenas um despertar democrático, baseado na ideia
de que o país deveria assumir o controle de suas reservas de petróleo e quebrar
o monopólio das companhias ocidentais. Durante a Guerra do Golfo, em 1990, descobriu-se
até onde os Estados Unidos estão dispostos a chegar a fim de manter esse pacto,
quando soldados judeus americanos aquartelados na Arábia Saudita tiveram de ser
transportados por helicóptero até os porta-aviões no Golfo para orar, pois os ritos
não-maometanos são proibidos em solo saudita.
A posição “pervertida” dos verdadeiros “fundamentalistas”
dos regimes árabes conservadores é a chave das charadas (geralmente cômicas) da
política americana no Oriente Médio: eles representam o ponto em que os EUA são
forçados a reconhecer explicitamente a primazia da economia sobre a democracia –
ou seja, o caráter secundário e manipulativo das intervenções internacionais legitimadoras
– quando afirmam proteger a democracia e os direitos humanos. O que não se pode
deixar de ter em mente acerca do Afeganistão é que, até a década de 1970 – ou seja,
antes da época em que o país se envolveu na luta das superpotências –, ele era uma
das sociedades maometanas mais tolerantes, com uma tradição secular: Kabul era conhecida
como uma cidade de vibrante vida cultural e política. O paradoxo, portanto, é que
a ascensão do Talibã, essa aparente “regressão” ao ultrafundamentalismo, longe de
expressar uma profunda tendência “tradicionalista”, foi o resultado de o país ter
caído no vórtice da política internacional – foi não somente uma reação a ela, mas
também resultado direto do apoio das potências estrangeiras (Paquistão, Arábia Saudita
e os próprios EUA).
Quanto ao “choque de civilizações”, é bom lembrar
a carta de uma menina americana de sete anos cujo pai era piloto na guerra do Afeganistão:
ela escreveu que – embora amasse muito seu pai, estava pronta a deixá-lo morrer,
a sacrificá-lo por seu país. Quando o presidente Bush citou suas palavras, elas
foram entendidas como manifestação “normal” de patriotismo americano; vamos conduzir
uma experiência mental simples, e imaginar uma menina árabe maometana pateticamente
lendo para as câmeras as mesmas palavras a respeito do pai que lutava pelo Talibã
– não é necessário pensar muito sobre qual teria sido a nossa reação: mórbido fundamentalismo
islâmico que não rejeita nem mesmo a cruel manipulação e exploração das crianças...
Toda característica atribuída ao Outro já está presente no coração mesmo dos EUA.
(...) George W. Bush foi forçado a reconhecer que os prováveis autores dos ataques
com antraz não eram terroristas maometanos, mas fundamentalistas cristãos da extrema
direita americana – mais uma vez, o fato de atos antes atribuídos a um inimigo externo
poderem na verdade ser perpetrados dentro da própria Amérique profonde não
nos ofereceria uma confirmação inesperada da tese de que o verdadeiro choque é o
choque no interior de cada civilização?”
“Em 11 de setembro os EUA tiveram a oportunidade
de entender a espécie de mundo de que eles fazem parte. Poderiam ter aproveitado
a oportunidade – mas não o fizeram; pelo contrário, optaram por reafirmar seus compromissos
ideológicos tradicionais: abaixo os sentimentos de responsabilidade e culpa com
relação à miséria do Terceiro Mundo, agora nós somos as vítimas! Assim, quando Timothy
Garton Ash afirma pateticamente com relação ao Tribunal de Haia: “Nenhum Führer,
nem Duce, nem Pinochet, nem Idi Amin, nem Pol Pot poderão mais se proteger da intervenção
da justiça do povo atrás dos portões dos palácios da soberania”, é bom notar quem
está ausente dessa série de nomes que, à parte os nomes consagrados de Hitler e
Mussolini, contêm três ditadores do Terceiro Mundo: onde está pelo menos um nome
dos Sete Grandes – alguém como Kissinger, por exemplo?”
“Não sabemos ainda quais serão as consequências
desse acontecimento para a economia, a ideologia, a política e a guerra, mas uma
coisa é certa: os EUA, que até hoje achavam que eram uma ilha protegida desse tipo
de violência, vendo-a apenas da distância segura da tela do televisor, estão agora
diretamente envolvidos. Assim, a alternativa é: decidirão os EUA fortificar ainda
mais a sua “esfera”, ou se arriscarão a sair dela? Ou persistem – e até reforçam
– a atitude profundamente imoral de perguntar: “Por que isso teve de acontecer conosco?
Esse tipo de coisa não acontece aqui!”, levando a mais agressividade contra o ameaçador
Exterior – em suma: um paranoico acting out. Ou os EUA finalmente se arriscam
a ultrapassar a tela fantasmática que os separa do Mundo Exterior, e aceitam sua
chegada no mundo real, fazendo um movimento já muito retardado: o de, em vez de
dizer que “esse tipo de coisa não deveria acontecer aqui!”, passar a dizer que “esse
tipo de coisa não deveria acontecer em lugar nenhum!”. É esta a verdadeira lição
dos ataques: a única forma de assegurar que isso não vai acontecer aqui é evitar
que aconteça em qualquer lugar. Resumindo, a América deve aprender humildemente
a aceitar sua própria vulnerabilidade enquanto parte deste mundo, impondo a punição
aos responsáveis como um dever triste, não como uma excitante retaliação – mas o
que está acontecendo é a reafirmação do papel excepcional dos EUA como a polícia
do mundo, como se a causa do ressentimento contra os EUA não fosse o excesso, e
sim a falta, de poder.”
“Com essa “esquerda” (que temos hoje), quem precisa
de direita?”
“Ao longo do século XX, percebe-se o mesmo padrão:
para esmagar seu verdadeiro inimigo, o capitalismo começou a brincar com fogo, e
mobilizou seu excesso obsceno disfarçado de fascismo; mas esse excesso assumiu vida
própria, e se tornou tão forte que o capitalismo “liberal” foi forçado a unir forças
com seu verdadeiro inimigo (o comunismo) para derrotá-lo. Significativamente, a
guerra entre o capitalismo e o comunismo foi uma guerra fria, ao passo que a grande
guerra quente foi lutada contra o fascismo. E o caso do Talibã não seria idêntico?
Depois de criar um fantasma para combater o comunismo, eles o transformaram em seu
principal inimigo. Consequentemente, mesmo que o terrorismo nos mate a todos, a
guerra americana contra o terrorismo não é a nossa luta, mas uma luta interna do
universo capitalista. O primeiro dever de um intelectual progressista (se é que
esse termo tem ainda hoje algum significado) não é lutar as lutas de seu inimigo
por ele.”
“As “férias da história” dos EUA foram uma farsa:
a paz americana foi comprada com catástrofes que aconteciam por toda parte. Nos
dias de hoje, a imagem dominante é a de um olhar inocente que confronta o Mal indizível
que atacou do Exterior – e mais uma vez, com relação a esse olhar, é preciso reunir
forças para aplicar a ele o conhecido dito hegeliano de que o Mal reside (também)
no olhar inocente que percebe o Mal em tudo.”
“Na velha República Democrática Alemã era impossível
uma pessoa combinar três características: convicção (fé na ideologia oficial), inteligência
e honestidade. Quem acreditava e era inteligente, não era honesto; quem era inteligente
e honesto, não acreditava; quem acreditava e era honesto não podia ser inteligente.
O mesmo não se aplica à ideologia da democracia liberal? Quem finge levar a sério
a ideologia liberal hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto:
ou é estúpido ou um cínico corrompido. Portanto, se me permitem uma alusão de mau
gosto ao Homo sacer de Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante
de subjetividade hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os
outros, acaba sendo ele o verdadeiro explorado.”
“Homens que começam lutando contra a Igreja em
nome da liberdade e humanidade acabam por abrir mão da liberdade e da humanidade
para poder lutar contra a Igreja”, diz Chesterton. A primeira coisa a acrescentar
hoje a esta passagem é que o mesmo vale para os advogados da religião: quantos defensores
fanáticos da religião começaram pelo ataque feroz à cultura secular e terminaram
por abandonar a própria religião (perdendo toda experiência religiosa significativa)?
E não é verdade que, de forma exatamente homóloga, os guerreiros liberais ficam
tão ávidos para lutar contra o fundamentalismo antidemocrático que terminam por
eliminar a liberdade e a democracia, se isto for necessário para lutar contra o
terrorismo? Têm tamanha paixão por demonstrar que o fundamentalismo não cristão
é a maior ameaça à liberdade que estão prontos a recair na posição de que é preciso
limitar nossa própria liberdade aqui e agora, nas nossas sociedades supostamente
cristãs. Se os “terroristas” estão prontos a destruir este mundo por amor ao próximo,
nossos guerreiros contra o terrorismo estão prontos a destruir seu próprio mundo
democrático por ódio ao outro muçulmano. Alter e Dershowitz amam tanto a dignidade
humana que estão prontos a legalizar a tortura – a degradação última da dignidade
humana – para defendê-la.”
“A principal imagem do tratamento das “populações
locais” como Homo sacer talvez seja a do avião de guerra voando sobre o Afeganistão:
nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou pacotes de alimentos.”
“O inesperado precursor dessa “biopolítica” paralegal
em que as medidas administrativas substituem gradualmente o domínio do Direito foi
o regime autoritário de direita de Alfredo Stroessner no Paraguai durante as décadas
de 1960 e 70, que trouxe a lógica do estado de exceção ao mais extremo absurdo.
Sob Stroessner, o Paraguai era – em termos da ordem constitucional – uma democracia
parlamentar “normal” com a garantia de todas as liberdades; como, entretanto, conforme
a alegação de Stroessner, vivemos todos em estado de emergência por causa da luta
mundial entre a liberdade e o comunismo, a implementação total da Constituição era
sempre adiada e proclamado um permanente estado de emergência. Esse estado de emergência
só era suspenso por um dia a cada quatro anos para que houvesse as eleições que
legitimavam o governo do Partido Colorado de Stroessner com uma maioria de 90 por
cento – digna dos adversários comunistas... O paradoxo é que esse estado de emergência
era o estado normal, ao passo que a liberdade democrática “normal” era uma exceção
de curtíssima duração.”
“Esses paradoxos também oferecem a chave para
entender como as duas lógicas do estado de emergência se relacionam uma com a outra:
a atual emergência liberal-totalitária da “guerra ao terrorismo” e o autêntico estado
revolucionário de emergência, primeiramente articulado por São Paulo no que ele
denominou a emergência da aproximação do “fim do tempo”. A resposta é clara: quando
uma instituição estatal proclama o estado de emergência, ela o faz, por definição,
como parte de uma estratégia desesperada para evitar a verdadeira emergência e “retornar
ao estado normal das coisas”. Há uma característica comum a todas as proclamações
reacionárias de “estado de emergência”: foram todas dirigidas contra a agitação
popular (“confusão”) e apresentadas como medidas para restaurar a normalidade. Na
Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os militares proclamaram
um estado de emergência a fim de controlar o “caos” da politização generalizada.
“Essa loucura tem de terminar; as pessoas devem retomar seus empregos, o trabalho
tem de continuar!”. Em resumo, a proclamação reacionária do estado de emergência
é uma defesa desesperada contra o verdadeiro estado de emergência.”
“Em fevereiro de 2002 foi anunciado um plano –
rapidamente arquivado – de estabelecer um “Departamento de Influência Estratégica”,
entre cujas tarefas incluía-se a disseminação de inverdades na mídia estrangeira
para propagar a imagem dos EUA no mundo. O problema desse departamento não era apenas
a admissão clara da mentira; ela ajustava-se à conhecida declaração: “Se há uma
coisa pior que um homem que mente, é um homem que não está à altura de suas mentiras!”.
(Essa história se refere à reação de uma mulher ao amante, que desejava toda forma
de sexo que não a penetração, para não ter de mentir à esposa quando dissesse que
não estava mantendo relações sexuais – ou seja, ele queria dar uma de Bill Clinton
com ela. Nessas circunstâncias, a mulher tinha todo o direito de dizer que a mentira
completa – a negativa de relações sexuais – teria sido mais honesta que a estratégia
adotada de mentir usando meia-verdade.) É natural, então, que o plano tenha sido
rapidamente abandonado: uma agência do governo anunciar abertamente que seu objetivo,
entre outros, é disseminar mentiras é inviável. O que isso quer dizer, evidentemente,
é que a disseminação oficial de mentiras vai continuar: a ideia de uma agência do
governo dedicada à mentira foi, de certa forma, honesta demais – teve de ser abandonada
precisamente para permitir a divulgação eficiente de mentiras.”
“Liberdade é a liberdade dos que pensam diferente”
(Rosa Luxemburgo).
“Um acontecimento notável ocorreu em Israel em
janeiro ou fevereiro de 2002: a recusa organizada de centenas de reservistas a servir
nos territórios ocupados. Esses refuseniks (como são chamados) não são simplesmente
“pacifistas”: em sua proclamação pública, enfatizaram que cumpririam o seu dever
de lutar por Israel nas guerras contra os Estados árabes, nas quais alguns deles
foram altamente condecorados. Alegavam simplesmente (e há sempre algo simples num
ato ético) que não concordavam em lutar “para dominar, expulsar, reduzir à fome
e humilhar todo um povo”. Essas alegações estão documentadas nas descrições detalhadas
das atrocidades cometidas pela Força de Defesa de Israel (FDI), desde a matança
de crianças até a destruição de propriedade palestina. É assim que Gil Nemesh relata
a “realidade do pesadelo nos territórios” no website dos refuseniks
(seruv.org.il):
Meus amigos – forçando um velho a se humilhar,
ferindo crianças, agredindo pessoas por divertimento, e mais tarde vangloriando-se
de tudo isso, rindo dessa brutalidade terrível. Não sei se ainda quero chamá-los
de meus amigos. Deixaram que se perdesse a própria humanidade, não por pura maldade,
mas por ser difícil demais enfrentar isto de qualquer outra forma.
Passa-se então a perceber certa realidade: a realidade
de centenas de pequenas – e outras não tão pequenas assim – humilhações diárias
sistemáticas a que são submetidos os palestinos – os palestinos, e até os árabes
israelenses (oficialmente cidadãos de Israel, com todos os direitos de cidadania),
são discriminados na alocação de água, nos negócios envolvendo patrimônio, e assim
por diante. Mas, ainda mais importante, é a sistemática “micropolítica” de humilhação
psicológica: os palestinos são tratados basicamente como crianças malcriadas que
devem ser reeducadas para uma vida honesta por meio de disciplina e castigos. Basta
considerar o ridículo da situação em que as forças de segurança palestinas são bombardeadas,
e ao mesmo tempo se cobra delas a repressão aos terroristas do Hamas. Como esperar
que elas retenham um mínimo de autoridade aos olhos da população palestina se são
humilhadas diariamente pelos ataques que sofrem e, pior ainda, pela expectativa
de que suportem caladas esses ataques – caso se defendam e ofereçam resistência
serão consideradas terroristas? No final de março de 2002, essa situação atingiu
seu ridículo apogeu: Arafat foi sitiado e isolado nos três cômodos de seu escritório
em Ramallah, ao mesmo tempo em que se lhe cobrava o combate ao terror, como se ele
tivesse poder absoluto sobre os palestinos... Resumindo, não encontramos no tratamento
israelense dado à Autoridade Palestina (atacá-la militarmente, enquanto exige que
ela combata os terroristas que vivem entre os palestinos) uma espécie de paradoxo
pragmático em que a mensagem explícita (a ordem de combater o terrorismo) é subvertida
pela mensagem implícita contida no próprio modo de transmissão da mensagem explícita?
Não está escandalosamente claro que a Autoridade Palestina é, dessa forma, colocada
numa posição insustentável: obrigada a perseguir seu próprio povo enquanto está
sob o fogo israelense? E a verdadeira ordem implícita não seria exatamente oposta:
queremos que vocês resistam para poder esmagá-los?”
“A principal notícia que chegou da China em 2002
foi a emergência de um movimento operário de grande escala que protesta contra as
condições de trabalho, que são o preço pago pela China para se tornar rapidamente
o principal centro de manufatura do mundo, e a forma brutal como as autoridades
o dobraram – mais uma prova, se é que há necessidade de prova, de que a China é
hoje o Estado capitalista ideal: liberdade para o capital, cabendo ao Estado o “trabalho
sujo” de controle dos operários.”
“Esses aparelhos de Estado têm um papel crucial
no obverso da globalização. Recentemente, uma decisão abominável da União Europeia
passou quase sem ser notada: o plano de estabelecer uma força policial de fronteira
para toda a Europa a fim de assegurar o isolamento do território da União e assim
evitar a entrada de imigrantes. Esta é a verdade da globalização: a construção de
novos muros isolando os europeus prósperos do fluxo de imigrantes. Tem-se a tentação
de ressuscitar aqui a velha oposição “humanista” marxista entre “relações entre
coisas” e “relações entre pessoas”: na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo
global, são as “coisas” (mercadorias) que circulam livremente, ao passo que a circulação
das “pessoas” é cada vez mais controlada. O novo racismo do mundo desenvolvido é,
de certa forma, mais brutal que os anteriores: sua legitimação implícita não é naturalista
(a superioridade natural do Ocidente desenvolvido) nem culturalista (nós, ocidentais,
também queremos preservar nossa identidade cultural), mas um desavergonhado egoísmo
econômico – o divisor fundamental é o que existe entre os que estão incluídos na
esfera de (relativa) prosperidade econômica e os que dela estão excluídos. O que
se esconde atrás dessas medidas de proteção é a mera consciência de que o modelo
atual de prosperidade capitalista recente não pode ser universalizado.”
“De acordo com um antigo tópos marxista,
a evocação do inimigo externo serve para deslocar o foco da verdadeira origem das
tensões, o antagonismo inerente ao sistema – basta lembrar a explicação comum do
antissemitismo como o deslocamento para a figura do judeu, este intruso externo
no nosso corpo social, da causa dos antagonismos que ameaçam a harmonia desse corpo.”
“O verdadeiro ensinamento de Lênin – que aponta
a diferença entre “liberdade formal” e “liberdade atual” – consiste em mostrar como
a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou
mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar
o próprio conjunto de coordenadas.” (Vladimir Safatle – posfácio)
Nenhum comentário:
Postar um comentário