Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-203-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
“Nas outras
correntes das ciências sociais, o processo de maturação científica foi mais
demorado, oscilante e ambíguo (envolvendo intermitências e relações
contraditórias entre gerações distintas”. De um lado, ficou quase sempre
faltando uma opção clara pelo materialismo. As várias correntes
positivistas e espiritualistas mantiveram dentro da ciência uma herança
filosófica que ou não era repudiada, ou não era questionada até o fundo. De
outro, a cientifização, nessas correntes, ficou presa ao fascínio das ciências
da natureza (da física à biologia) e às suas técnicas empíricas e lógicas de
observação e de interpretação. Nenhuma delas logrou combinar a universalidade
lógica do raciocínio científico à compreensão dialética do movimento (na
sociedade e na história). Daí resultou que somente K. Marx construiu um modelo
de explicação científica que apanhava a transformação da sociedade como um
processo histórico-social, isto é, em termos de tempo histórico real. Tais
reflexões deixam patente que o rápido avanço do materialismo histórico
repousava em dois fatores. Um era o próprio Karl Marx, cuja personalidade como
investigador científico, homem de pensamento e de ação, e capacidade inventiva
devem ficar fora de discussão. O outro era o ponto de partida específico, no
qual, pela primeira vez na história da ciência moderna, a afirmação mais pura
do raciocínio científico não excluía o aproveitamento de uma rica herança
filosófica, escoimada de seus “vícios de origem”. No texto transcrito, F.
Engels detém-se tão-somente no significado imediato daquele ponto de partida,
no qual ele incluía a refutação do antigo materialismo (naturalista e
mecanicista) e da filosofia (idealista) da história. O primeiro confundia “as
forças motrizes ideais” com “as causas últimas”, permanecendo no nível das
aparências e deixando de indagar quais seriam “as forças motrizes das forças
motrizes”. A segunda ia além desse circuito limitado, principalmente graças a
Hegel, penetrando nas forças realmente determinantes. No entanto, ela
negligenciava a própria história, porque preteria os fatos pelas ideias. Ao pôr
de lado o antigo materialismo e a filosofia da história, K. Marx não se
propunha realizar uma “síntese de perspectivas”, como diria K. Mannheim,
extraindo o que havia de “bom “em um e na outra, mediante uma posição
interpretativa eclética. Ao contrário, ele estabelecia um ponto de partida
novo, que negava as duas concepções da história e da sociedade,
ultrapassando-as através de um “materialismo consequente”, que oferecia à
ciência a possibilidade de romper com todos os idola, ou seja, de realizar-se plenamente, com toda a
objetividade e independência que lhe devem ser intrínsecas.
É assim
que se desenharia a concepção materialista da história. Ela busca descobrir as “forças motrizes da história” (ou
melhor, as “forças motrizes das forças motrizes”). Estas surgem na superfície
da cena histórica e parecem conscientes. Porém, são na maioria das vezes
predominantemente inconscientes e não se confundem com os motivos mais visíveis
e transparentes da “ação dos homens na história”. Seguindo a ótica aberta por A sagrada família e por A ideologia alemã: o que possui importância decisiva
são os motivos que transcendem e sublimam socialmente o querer individual, que
“põem em movimento as grandes massas, povos inteiros, classes inteiras da
população”; motivos “que os impulsionam não como fogo de palha que se extingue
rapidamente, mas como ação durável visando a uma grande transformação
histórica”. Portanto, o materialismo histórico propõe-se investigar as “forças
motrizes que se refletem aqui no espírito das massas em ação e dos seus chefes
— aqueles que se chamam ordinariamente grandes homens”. Como nas ciências da
natureza, a investigação pretende descobrir as leis que “dominam a história
universal e a história das diferentes épocas e dos diferentes países”. Em suma,
o caos aparente da história oculta, nas situações históricas mais lábeis —
similares ou contrastantes — a manifestação ordenada e a transformação
determinada da existência humana em sociedade, ambas regidas por “leis gerais”
de natureza histórica.”
“Na
natureza operam fatores inconscientes e cegos. Na “história da sociedade, ao
revés, prevalece o fim consciente, refletido e desejado”. “Homens dotados de
consciência, agindo com reflexão ou paixão e visando a fins determinados.” No
entanto, como na ciência da natureza, cabe ao investigador da “história da
sociedade” submeter à observação as relações reais e “descobrir as leis gerais
do desenvolvimento da sociedade”. Na aparência, a vida em sociedade é um caos,
como se a indeterminação imperasse sobre as ações e as relações sociais dos
indivíduos. Na realidade, o desenvolvimento da sociedade é regulado por “leis
gerais internas”, o que quer dizer que a sociedade, como a natureza, está
submetida à determinação. O acaso reina na superfície. Acima dos motivos
pessoais e ideais, que aparentemente dirigem as ações dos homens e sua
história, ficam as causas históricas, mais ou menos ocultas e mais ou menos
inconscientes, que se transformam naqueles motivos “no cérebro dos homens que
agem”. Por conseguinte, as “forças motrizes” da história refletem dois tipos de
componentes dinâmicos. Os motivos pessoais e ideais, que parecem ser decisivos,
apenas “possuem uma importância secundária para o resultado final”, qualquer
que seja a importância deles para o estudo histórico. As causas materiais, que
se ocultam por trás daqueles motivos, é que são verdadeiramente “forças
determinantes” e permitem explicar, através das ações e das relações dos homens
entre si, os acontecimentos e o curso dos processos históricos.”
“O modo de produção capitalista
engendra uma estratificação em classes da sociedade, que torna tudo claramente
perceptível. Ao contrário de outras formas antagônicas de sociedade, a
sociedade burguesa não esconde a sua essência pela aparência. Essa
simplificação facilita a pesquisa das “causas motrizes” da história e resolve o
enigma de todas as sociedades antagônicas. Tornam-se evidentes, também, quais
são as três grandes classes dessa sociedade, o antagonismo de seus interesses e
a luta que elas travam entre si. Engels afirma, mesmo, que seria “preciso fechar
os olhos propositadamente para não ver a força motriz da história moderna”.”
“Sem subestimar a contribuição teórica de
Lenin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o aprofundamento do marxismo,
como no estudo da penetração do capitalismo na agricultura, das condições e
efeitos do desenvolvimento desigual ou do imperialismo, na explicação da guerra
e da revolução, na sistematização das explicações marxistas do Estado e da
própria utopia marxista, tão mal representada e conhecida antes dele etc.), é
no terreno da prática que se acha o eixo da transmutação leninista do marxismo.
Isto não quer dizer que esta prática estivesse desligada da teoria — pois nunca
esteve ou poderia estar no pensamento dialético-materialista — nem tampouco que
Marx, Engels e os seus seguidores tivessem negligenciado, na teoria e na ação,
as várias dimensões da prática (especialmente a política). Mas significa, isso sim,
que Lenin se impôs como tarefa de sua vida a adequação instrumental,
institucional e política do marxismo à concretização da revolução proletária. O
marxismo, depois de Lenin, não é mais a mesma coisa, porque ele incorporou um “modelo”
de como passar da ditadura burguesa à ditadura do proletariado.
Esse modelo desloca o âmago do
marxismo para a reflexão política, ou seja, para as condições concretas da ação
política e da transformação política, quando se focalizam dialeticamente as
relações de classes como relações de poder (a luta de classes como um
processo que conduz à formação e ao controle do Estado que mantém a ordem, ou à
constituição de um Estado que a destrói e instaura a transição para o
socialismo), Antes de Lenin, semelhante elemento político estava incluído no
marxismo como uma previsão e, também, como um momento da vontade política. Com Lenin,
esse elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e do próprio
marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos paralisadoras
da democracia burguesa, como dar ao proletariado — classe que pode arrastar
atrás de si a massa não possuidora e constituir-se em núcleo hegemônico de uma
maioria atuante — a capacidade de converter seu poder potencial em poder real?
Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade de classes; e,
como marxista, não apenas para explicar como a minoria pode suplantar a maioria
e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo agonizante”, mas também para descobrir como
transformar o inócuo poder potencial da maioria em poder especificamente
político, concentrado e disciplinado de forma revolucionária.
Atento às estruturas de poder e aos efeitos
da dominação de classe inerentes à democracia burguesa, Lenin chegou
rapidamente à conclusão de que a revolução proletária possui um padrão histórico.
Em contraste com a revolução burguesa, ela não pode iniciar-se antes da tomada
do poder pelo proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o problema
estratégico da luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso
revolucionário do espaço político que a classe operária pode conquistar e manejar
com relativa autonomia, ilegal e legalmente, no seio da sociedade de classes.
Como a dominação burguesa também implica socialização ideológica e política do
resto da sociedade pela burguesia, tal uso do espaço político impunha,
naturalmente, certas condições básicas: 1) formação de uma minoria contestadora
fortemente organizada, capaz de atuar legal e ilegalmente, sem vacilações, como
vanguarda revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com todas as formas
diretas ou indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem democrática
burguesa; 3) a educação política do proletariado e, na medida do possível das
massas pobres e da pequena burguesia, através de situação e de reivindicações
concretas, do desenvolvimento da consciência de classe e da agudização (nos
níveis econômico, sociocultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha
em primeiro plano a questão da organização do partido revolucionário do
proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma nova
mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com sua base e
com a massa.
Com referência à organização do partido,
Lenin fixou normas de racionalização que deviam ser iguais ou superiores às que
têm vigência na grande empresa capitalista, no exército moderno ou no Estado
democrático burguês. Em consequência, as tarefas de agitação e de propaganda
podiam irradiar-se por toda a sociedade, embora concentrando-se com maior
intensidade na classe operária; e as tarefas políticas, imediatas e de largos
prazos, podiam ser definidas segundo critérios específicos de flexibilidade e
de eficácia. A ideia básica consistia em que a revolução não nasce pronta e acabada
— o partido revolucionário do proletariado deveria travar suas batalhas, clandestina
ou abertamente, tendo em vista as combinações que poderiam favorecer, em
determinado momento, ou o fortalecimento da democracia burguesa, ou o
deslocamento desta no sentido de uma democracia operária, ou a tomada pura e
simples do poder.
Todas essas estratégias foram exploradas, com
as táticas correspondentes, e Lenin foi o mestre das principais diretrizes
(embora a sua produção intelectual e política, nessa direção, aguarde estudo
sistemático). Por sua vez, para cumprir essa missão era indispensável
interromper a infiltração ou a corrupção burguesa, impedindo as soluções de
compromisso ou de aparente “revolução dentro da ordem” (ambas de exclusivo
interesse para a dominação burguesa e a consolidação do status quo). Daí
a necessidade imperiosa de combater sem tréguas o oportunismo, o reformismo e o
ultraesquerdismo, por vários motivos dissolventes do espírito revolucionário,
da atuação revolucionária racional e da solidariedade política do proletariado.
Por fim, uma vanguarda revolucionária do proletariado não podia nem devia
representar-se e comportar-se como uma elite e segundo valores elitistas. Se
ela devia contribuir para a expansão da consciência de classe do proletariado
de “fora para dentro” (isto é, imprimindo às suas tarefas políticas um teor pedagógico),
ela nunca foi concebida por Lenin, em si mesma, como o polo decisivo. Este
tinha de ser, naturalmente, o proletariado, como sujeito da ação revolucionária
em escala coletiva, já que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução
proletária ou da contrarrevolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário
do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um esquema
dialético: para dirigir o processo político, aquele partido teria de
sintonizar-se com a classe operária e com as massas, acompanhando as evoluções
de sua aprendizagem e de sua socialização política através das flutuações da
luta de classes.”
“Como Marx, Lenin assimila a formação social
(ou “a formação econômica da sociedade”) “à marcha da natureza e à sua história”.13
Mas repudia, por igual, as concepções naturalista e subjetivista da sociologia,
defendidas por autores como “Spencer e consortes”, que discutem a “sociedade em
geral, o fim e a essência da sociedade em geral etc.” Prefere, antes, indagar
por que Marx fala da sociedade “moderna” (enquanto os economistas e sociólogos
que o precederam falavam da sociedade em geral); em que sentido Marx emprega a
palavra “moderno”; em virtude de que critérios comprova essa modernidade; ou em
que sentido fala da lei econômica da sociedade, que chama alhures de lei da
natureza. O que está em jogo, portanto, é a concepção materialista da sociologia,
que situa o homem e a sociedade na natureza, mas os compreende como uma
realidade específica e de uma perspectiva histórica, dialético-causal.
Retomando um largo excerto de A
crítica da Economia Política, procede à caracterização da sociologia assim
concebida, a qual envolve, de um lado, o estudo científico das formações
sociais concretas, consideradas nas condições de sua constituição e evolução,14
e, de outro, o estudo meticuloso dos fatos correspondentes.15 Esse
estudo requer um tratamento analítico especial (no nível da técnica de
observação experimental dos fenômenos), que permitiu a Marx chegar à sua ideia
fundamental de que “o desenvolvimento das formações econômicas da sociedade é
um processo de história natural” e abrange dois movimentos da
inteligência-inquiridora: “Estudando à parte, entre as diversas esferas da vida
social, a esfera econômica; estudando parte, entre todas as relações sociais,
as relações de produção, consideradas fundamentais, primordiais, e
determinando todas as outras relações”16. A reelaboração de ideias e
pontos de vista de Marx revela a própria posição central de Lenin em face da
ciência social. Por isso, é essencial ler-se atentamente o longo excerto
seguinte, transcrito do ensaio em questão:17
(...) Essa ideia do materialismo em sociologia, já é, por si mesma. uma
ideia genial. Ela não era ainda, naturalmente, mais que uma hipótese, porém uma
hipótese que, pela primeira vez, permitia abordar problemas históricos e
sociais de um ponto de vista estritamente científico. Incapazes então de descer
ao conhecimento de fatos tão simples e primordiais, como são as relações de
produção, os sociólogos procediam diretamente à análise e ao estudo das formas
políticas e jurídicas. Eles enfrentavam uma realidade na qual essas formas
surgiam de tais ou tais ideias da humanidade, em uma época dada e não iam além
disso. Assim, as relações sociais teriam sido estabelecidas conscientemente
pelos homens. Mas essa dedução, que encontrou sua plena expressão na ideia de contrato
social (cujos traços são muito visíveis em todos os sistemas do socialismo
utópico), estava em completa contradição com todas as observações históricas.
Nunca, tanto no passado quanto atualmente, os membros da sociedade
representaram o conjunto das relações sociais no meio das quais vivessem, como
um todo bem definido, inspirado em um princípio fundamental; ao contrário, a
massa se adapta inconscientemente a essas relações, e ela está tão longe de
concebê-las como relações históricas particulares que, por exemplo, a
explicação das relações de troca, as quais presidiram a vida dos homens durante
séculos, não foi formulada senão nos últimos tempos. O materialismo suprimiu
essa contradição, estendendo a análise mais ao fundo, até a própria origem das
ideias sociais do homem; e sua conclusão, segundo a qual o curso das ideias
depende do curso das coisas, é a única compatível com a psicologia científica.
De outro lado, essa hipótese elevou a sociologia, pela primeira vez, à posição
de uma ciência. Até então, os sociólogos mal conseguiam distinguir, na complexa
rede dos fenômenos sociais, os que eram importantes e os que não eram (aí está
a raiz do subjetivismo em sociologia); eles não podiam fundamentar essa
distinção sobre um critério objetivo. O materialismo forneceu um critério
perfeitamente objetivo, isolando as “relações de produção” como estrutura da
sociedade e abrindo a possibilidade de aplicar a essas relações o critério
científico geral da repetição, que os subjetivistas consideravam inaplicável à
sociologia. Enquanto se restringiam às relações sociais ideológicas (ou seja,
às relações que, antes de se constituírem, passam pela consciência18
dos homens), eles não podiam descobrir a repetição e a regularidade nos
fenômenos sociais de diferentes países, e sua ciência não era, no melhor dos
casos, mais do que uma descrição desses fenômenos, que uma acumulação de dados
brutos. A análise das relações sociais materiais (quer dizer, daquelas que se
constituem sem passar pela consciência dos homens: ao trocarem produtos, os
homens entram nas relações de produção sem mesmo tomar conhecimento que aí se
trata de relações de produção sociais), a análise, portanto, das relações
sociais materiais, permite constatar, de imediato, a repetição e a
generalidade, e generalizar os sistemas dos diversos países para chegar a uma
só concepção fundamental, a de formação social. Só essa generalização
permitiu passar da descrição dos fenômenos sociais (e de sua apreciação de um
ponto de vista ideal) à sua análise estritamente científica, a qual põe em
evidência, por exemplo; o que distingue um país capitalista de outro e estuda o
que é comum a todos. (...) Em terceiro lugar, por fim, uma outra razão pela
qual essa hipótese tornou possível, pela primeira vez, uma sociologia científica:
reduzindo-se as relações sociais às relações de produção e estas últimas ao
nível das forças produtivas, descobriu-se a única base sólida que permite
estudar o desenvolvimento das formações sociais como um processo de história
natural. É evidente que, se não se toma esse ponto de vista, é impossível uma
ciência da sociedade. (Os subjetivistas, por exemplo, embora admitissem que os
fenômenos históricos se conformam a leis, eram não obstante incapazes de
considerar sua evolução como um processo de história natural, e isso
precisamente porque se limitavam às ideias e aos fins sociais dos homens, sem
saber reduzir essas ideias e esses fins às relações sociais materiais).
Segundo Lenin, esse é 0 esqueleto de O
capital. Todavia, Marx não se limitou a esse esqueleto, já que ultrapassou
a “teoria econômica” em seu sentido ordinário. Ao explicar “a estrutura e o
desenvolvimento da formação social considerada exclusivamente pelas
relações de produção”, ele sempre “analisou as superestruturas correspondentes
a essas relações de produção, e revestiu o esqueleto de carne e de sangue”. Por
conseguinte, O capital revela a
formação social capitalista como uma coisa viva, com os fatos da vida
corrente, com as manifestações sociais concretas do antagonismo das classes
inerentes às relações de produção, com a superestrutura política burguesa que
protege a dominação da classe dos capitalistas, com as ideias burguesas de
liberdade, igualdade etc., com as relações de família burguesa.
Em suma, Marx pôs fim
à concepção segundo a qual a sociedade era um agregado mecânico de indivíduos
que sofrem todas as espécies de transformações à mercê das autoridades (ou, o
que dá no mesmo, mercê da sociedade e do governo), que nasce e se transforma ao
acaso. Ele foi o primeiro a fundar a sociologia sobre uma base científica,
analisando a noção de formação econômica da sociedade como um conjunto de
relações dadas, e estabelecendo que o desenvolvimento dessas relações é um
processo de história natural.
Atualmente — depois do aparecimento de O
capital — a concepção materialista da história não é mais uma hipótese,
porém uma doutrina cientificamente demonstrada. E enquanto não tivermos outra
tentativa de explicar cientificamente o funcionamento e a evolução de uma
formação social, precisamente, e não dos usos e costumes de um país ou de um povo,
ou mesmo de uma classe — uma outra tentativa que, como o materialismo, seja
capaz de colocar a ordem nos “fatos correspondentes”, de traçar um quadro vivo
de uma formação fornecendo uma explicação estritamente científica —, a
concepção materialista da história será sinônimo de ciência da sociedade. O
materialismo não é “por excelência uma concepção científica da história”, como
acredita o senhor Mikhailovski, mas é a única concepção científica.”
13 LENIN, V., “Ce que sont les ‘amis du peuple’ et comment ils luttent
contre les social-democrates”. (In: Oeuvres. 4 ed. Paris/Moscou: Éditions Sociales/Editions en Langues Étrangères,
1958. v. 1, p. 150). Obra escrita e publicada em 1894. Relembramos que usamos a
4ed, de suas Obras Completas. (Lenin transcreve um trecho do prefácio à
1ª ed. de O capital).
14 “Marx apenas fala de uma só formação
econômica da sociedade, a formação capitalista”, e somente afirma “ter
analisado a lei de evolução dessa formação” (cf. LENIN, V., op. cit., p.
150)
15 LENIN, V., op. cit., p. 150-151.
16 Ibid., p. 162.
17 Ibid., p. 153-155. (textos transcritos
como no original).
“Para explicar, do “ponto de vista
dialético, é preciso não só apanhar o que é essencial na manifestação do
fenômeno, mas ainda fazê-lo de maneira a compreender o essencial” em termos de
sua estrutura interna, do seu funcionamento e da sua evolução. Isso significa que,
para Lenin, as “estruturas” não podem ser tomadas em si e por si mesmas, o
mesmo sucedendo com os “dinamismos” da vida social. “Estruturas” e “dinamismos”
são interdependentes e se dão simultaneamente in concreto, sendo preciso
reconstruí-los, empírica e analiticamente, nessa condição.
É a partir dessa matéria-prima que se procede
à observação e à descrição das causas, através da interpretação dialética.
Pois, como escreve, “a dialética exige que um fenômeno social seja estudado sob
todos os ângulos, e que a aparência, o aspecto exterior seja reduzido às forças
motrizes capitais, ao desenvolvimento das forças produtivas e à luta de classes”.22
Ou, ainda, como afirma em outra passagem mais elaborada:
A lógica dialética exige que cheguemos mais longe. Para conhecer
realmente um objeto, é preciso apanhar e estudar todos os seus aspectos, todas
as suas ligações e “mediações”. Nós não o conseguimos jamais completamente, mas
a necessidade de considerar todos os aspectos nos protege de erros e de lapsos.
Eis um primeiro ponto. Segundo: a lógica dialética exige que se considere um
objeto em seu desenvolvimento, seu “movimento próprio” (como o diz às vezes
Hegel), sua transformação. (...) Terceiro: toda a prática do homem deve entrar
na “definição” completa do objeto, a um tempo como critério da verdade e como
determinante prático da ligação do objeto com o que é necessário ao homem.
Quarto: a lógica dialética ensina que “não há verdade abstrata”, que “a verdade
é sempre concreta”, como gostava de dizer, seguindo Hegel, o falecido
Plekhanov.23”
22 LENIN, V. Oeuvres. v, 21 (agosto de
1914/dezembro de 1915), p. 221.
23 Ibid. v. 32 (dezembro de
1920/agosto de 1921), p. 94.
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