Editora: Vozes
ISBN: 978-65-571-3083-4
Tradução: Stephania
Matousek
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 232
Sinopse: Este
livro tem por objetivo insistir sobre a importância do imaginário na história,
mas também mostrar que a Idade Média criou heróis e maravilhas destinados a
alimentar sonhos a longo termo, na maior parte das vezes através da sublimação
das realidades sociais e materiais daquela época: catedrais, cavaleiros, amor,
divertimentos e espetáculos, mulheres excepcionais que se situam entre Deus e
satã.
“O
domínio do imaginário constitui-se pelo conjunto das representações que
ultrapassam o limite imposto pelas constatações da experiência vivida e pelas
deduções correlatas que ela autoriza, o que equivale a dizer que toda cultura,
portanto toda sociedade e mesmo todos os níveis de uma sociedade complexa,
possui o seu imaginário. Em outras palavras, o limite entre o real e o
imaginário mostra-se variável, ao mesmo tempo em que o território coberto por
esse limite permanece, ao contrário, idêntico em qualquer tempo e lugar, visto
que não se trata de outra coisa senão do campo completo da experiência humana,
desde o mais coletivamente social até o mais intimamente pessoal[1][2]”(Évelyne Patlagean)
Já
tentei definir esse domínio do imaginário no meu livro O imaginário medieval[3]. Antes de tudo, é preciso distingui-lo de outros
conceitos aproximados. Do de representação em primeiro lugar. Évelyne Patlagean
tem razão ao dizer que o imaginário reúne um conjunto de representações, mas
este vocábulo bastante amplo engloba toda tradução mental de uma realidade
exterior que é percebida. “O imaginário faz parte do campo da representação,
mas ele ocupa neste último a parte da tradução não reprodutora, não
simplesmente transposta em imagens do intelecto, mas criadora, poética no
sentido etimológico do termo.” O imaginário transborda o território da
representação e é levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra. O
imaginário constrói e alimenta lendas e mitos. Podemos defini-lo como o sistema
de quimeras de uma sociedade, de uma civilização que transforma a realidade em
visões ardentes do intelecto. Em seguida, o imaginário deve ser distinguido da
simbólica. O pensamento do Ocidente medieval realizava-se através de um sistema
simbólico, a começar pelas constantes correspondências entre o Novo e o Antigo
Testamentos, pois o primeiro é a tradução simbólica do segundo. Para tomar o
exemplo da definição de uma das maravilhas deste livro por Victor Hugo, quando
o poeta diz de Notre Dame de Paris vista por Quasímodo: “Para ele, a catedral
não representava apenas a sociedade, mas, mais do que isso, o universo, a
natureza inteira”, ele cria não somente uma catedral simbólica, como também uma
catedral imaginária, pois “toda a igreja louvava uma coisa fantástica,
sobrenatural, horrível, aqui e ali olhos e bocas abriam-se”. Por fim, é
necessário diferenciar o imaginário e o ideológico. O ideológico é investido
por uma concepção do mundo que tende a impor à representação um sentido que
perverte tanto o “real” material quanto esse outro real, o “imaginário”. A
mentalidade e o verbo medievais são estruturados por esse ideológico que coloca
o imaginário a seu serviço para melhor persuadir, como por exemplo o tema dos
dois gládios que simbolizam poder espiritual e poder temporal, posto a serviço
da ideologia eclesiástica de modo a subjugar o gládio temporal ao espiritual em
paralelo à imagem do gládio, da espada, um dos elementos essenciais desse
imaginário medieval imbuído de ardor guerreiro. O termo “imaginário” sem dúvida
remete-nos à imaginação, mas a história do imaginário não é uma história da
imaginação no sentido tradicional, trata-se de uma história da criação e do uso
das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar, visto que resultam da
mentalidade, da sensibilidade e da cultura que as impregnam e animam. Essa
história tornou-se possível há algumas décadas a partir da nova utilização das
imagens pelos historiadores[4]. Jean-Claude
Schmitt, um dos historiadores que mais se dedicaram a essa nova história
das imagens e pela imagem, enfatiza que o novo sentido da imagem para o
historiador corresponde muito bem aos significados do termo imago na
Idade Média.
De fato, essa noção encontra-se no âmago da
concepção medieval do mundo e do homem. Ela remete não somente aos objetos
figurados, como também às “imagens” da linguagem, ela refere-se igualmente às
imagens “mentais” da meditação e da memória, das quimeras e das visões [...].
Por fim, a noção de imagem diz respeito à antropologia cristã por inteiro,
tendo em vista que é o homem que a Bíblia qualifica de “imagem” logo nas suas
primeiras palavras: Javé diz que ele fabrica o homem ad imaginem et
similitudinem nostram (Gn 1,26)[5].”
[1]. PATLAGEAN, E. A história do imaginário.
In: LE GOFF, J. (org.). A história nova.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[2]. A maioria das citações desta edição foi
traduzida livremente [N.T.].
[3]. LE GOFF, J. O
imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994.
[4]. Sobre as imagens e
o historiador, cf. SCHMITT, J.-C. Imagens. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J.-C.
(orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. Bauru/São Paulo: Edusc/Imprensa Oficial
do Estado, 2002. • BASCHET, J. & SCHMITT, J.-C. (orgs.). L’image –
Fonctions et usages des images dans l’Occident Médiéval. Paris: Le Léopard
d’Or, 1996 [Cahiers du Léopard d’Or, n. 5]. • LE GOFF, J. Un Moyen Âge en
images. Paris: Hazan, 2000. • WIRTH, J. L’image medieval: naissance
et développement (XIe-XVe siècle). Paris: Klincksieck,
1989. Sobre o simbólico, cf. o incrível livro de PASTOUREAU, M. Une histoire
symbolique du Moyen Âge Occidental. Paris: Seuil, 2003.
[5]. SCHMITT, J.-C.
Imagens. Op. cit.
“O termo “herói”, que na Antiguidade designava uma personagem fora do comum em função da sua coragem e vitórias sem que por isso ela pertencesse às categorias superiores dos deuses e semideuses, desapareceu da cultura e da linguagem com a Idade Média e o cristianismo no Ocidente. Os homens que a partir de então eram considerados como heróis – sem que este termo fosse empregado – eram um novo tipo de homem, o santo, e um tipo de governante promovido ao primeiro plano, o rei. (...)
Como foram elevados ao mesmo nível que os
homens e as mulheres da Idade Média, eles ilustram também a ausência de
fronteiras entre o mundo puramente imaginário e o mundo transformado em
fantasia que caracteriza o universo medieval, o qual ignorava qualquer
demarcação entre o natural e o sobrenatural, esta terra e o além, a realidade e
a fantasia.”
“O milagre é reservado a Deus e se manifesta
por um ato divino que desafia as leis da natureza. A magia, embora subsista uma
forma lícita de magia branca, é essencialmente uma forma condenável de
feitiçaria atribuível ou ao inimigo do gênero humano, o diabo, ou aos seus
servidores, como os demônios e bruxos. O maravilhoso, mesmo sendo surpreendente
e incompreensível, faz parte da ordem da natureza. Em seu livro Otia imperialia, enciclopédia escrita
pelo Imperador Otton IV por volta de 1210, o inglês Gervais de Tilbury define o
maravilhoso: “O que foge à nossa compreensão, embora seja natural”. A categoria
do maravilhoso não parou de se estender ao longo da Idade Média, pois ela
introduzia no território terrestre e humano belezas de certa forma roubadas de
Deus pela indústria dos homens.”
“Desde a Idade Média, ele às vezes
era confundido com o palácio, mas é preciso distingui-los com cuidado na
história da realidade e do mito. O palácio apresenta duas características
específicas que o diferenciam do castelo medieval. Primeiro, trata-se
essencialmente de uma residência real, ou pelo menos principesca, ao passo que
o castelo medieval pertence a um simples senhor, embora os reis possam ter
construído castelos medievais enquanto senhores. Além disso, das duas funções
essenciais do castelo, a militar e a residencial, é esta última que o palácio
privilegia, ao passo que o castelo medieval caracteriza-se pela primeira.
O
castelo medieval está estreitamente ligado ao feudalismo, e a imagem recorrente
que o imaginário europeu constrói dele confirma que a época e o sistema feudal,
desde o século X até a Revolução Francesa, formaram uma camada fundamental das
realidades materiais, sociais e simbólicas da Europa. De modo geral, pode-se
identificar uma evolução lenta, mas constante, do castelo medieval, que passa
da posição de fortaleza à de residência. Como ele está intimamente associado à
atividade militar, é notável que sua transformação tenha sido suscitada de
forma decisiva por uma revolução técnica nos séculos XIV-XV, ou seja, a
artilharia. Suas muralhas não resistem mais ao canhão, e o castelo medieval
passa a ter o status de relíquia, símbolo, ruína e, para muitos,
nostalgia.”
“Do século X ao XII, o castelo medieval surge
primeiro sob duas formas: na Europa do Norte, com torres e habitações modestas
e fortificadas erigidas sobre lugares altos naturais ou artificiais (trata-se
do castelo em cima de um montículo); na Europa Meridional, este castelo precoce
é erguido mais frequentemente sobre locais altos naturais e rochosos, os
rochedos. Ao contrário do que às vezes se diz, os castelos sobre montículos ou
rochedos não foram construídos essencialmente em madeira, mas sim em pedra
desde o início – assim como a catedral, o castelo é testemunha da volta e da
promoção da pedra na Idade Média. De modo geral, o castelo, bem como o
claustro, não pode ser separado do seu ambiente natural. O castelo enraizou o
feudalismo no solo. Ao oposto da catedral, integrada à cidade – apesar de a
dominar –, que só evoca a natureza quando o imaginário romântico faz dela uma
floresta, o castelo permanece associado ao campo e mais ainda à natureza,
embora em certas regiões da Europa ele seja construído dentro das cidades, como
na Normandia (Caen), na Flandres (Gante) e principalmente na Itália. Ele
constitui a unidade do conjunto espacial de habitação estabelecido pelo
feudalismo na realidade e no imaginário europeu.
O desenvolvimento dos castelos sobre
montículos suscitou nos séculos XI e XII a construção de fortalezas que
ficariam gravadas no imaginário europeu como uma das formas espetaculares do
castelo medieval. Surgiu a torre central do castelo, chamada de donjon em francês (termo oriundo de dominionem, local senhorial), cuja
etimologia indica bem o que o castelo medieval era fundamentalmente: um centro
de comando. O direito de fortificação, e consequentemente de construção de um
castelo medieval, era um privilégio real. Porém, uma das características do
feudalismo era o desapossamento dos privilégios da realeza em benefício dos
senhores. Os castelãos a quem os soberanos inicialmente concederam castelos
passaram bem rápido a ser os donos destes. E a reaquisição destes castelos
pelos reis e príncipes constitui um longo e significativo episódio da época
feudal, posterior ao tempo do que Georges Duby chamou de “castelanias
independentes”, ou seja, o período que vai do início do século XI à metade do
XII. Duques da Normandia, reis da Inglaterra, condes de Barcelona e reis de
Aragão readquiriram bem facilmente o poder sobre os castelos de suas
aristocracias, mas longa e difícil foi a luta dos primeiros reis capetianos
contra os castelãos da Île-de-France nos séculos XI e XII. (...)
Seja
em seu tempo, seja no imaginário moderno e contemporâneo, certos castelos
medievais adquiriram uma personalidade impressionante. Não contando com a
espiritualidade da catedral, o castelo medieval proclama o seu poder simbólico
e impõe-se como imagem inconsciente da força e do poder. O conflito que começou
no século XII entre a França e a Inglaterra, um dos primeiros grandes embates
entre nações cristãs, presenciou, por exemplo, a construção da fortaleza de
Château-Gaillard, edificada no final do século XIII pelo rei da Inglaterra
Ricardo Coração de Leão no centro do espaço francês disputado pelos ingleses.
Sua posição em uma ilha do Rio Sena ilustra esse aspecto ambiental e
espetacular do castelo medieval.
Por
volta de 1240, o imperador da Alemanha e rei da Sicília, Frederico II, mandou
construir Castel del Monte na Apúlia. Com sua arquitetura e ornamentação,
Frederico II fez deste castelo de forma octogonal uma obra de arte que combina
as grandes tradições arquiteturais cristãs e muçulmanas de sua época.
Reconstruído
pelo Conde Enguerrand III entre 1225 e 1245, o Castelo de Coucy é habitualmente
considerado como um resto exemplar do castelo medieval. Eis a descrição que um
arqueólogo[1] fez dele: “É realmente uma fortaleza
típica daquela época e uma das mais impressionantes, com o seu desenho
trapezoidal, suas torres nos quatro ângulos, sua enorme torre central
sobreposta à fachada mais longa, totalmente isolado do muro cortina e até da
sua muralha camisa por um fosso profundo: as dimensões fazem dele uma
formidável fortaleza: muros de seis metros, torres de quarenta metros de
altura, uma torre central de 55 metros de altura e 31 de diâmetro”.
[1]. PESEZ, J.-M. Cf. bibliografia.
“Tendo em vista que o cavaleiro é antes de
tudo um guerreiro, o que explica em grande parte o seu prestígio em uma
sociedade na qual a guerra é onipresente, apesar de suas aspirações à paz,
convém comentarmos imediatamente o seu equipamento militar. Suas principais
armas são a longa espada de gume duplo, a lança com cabo de madeira de freixo
ou de faia e ponta larga de ferro e o escudo de madeira revestido de couro que
tomava diversas formas: circulares, oblongas ou ovoides. A rígida couraça dos
romanos dá lugar à brunea, um gibão de couro recoberto de escamas de metal
imbricadas como as telhas de um telhado. O elmo geralmente não é mais do que
uma calota de ferro, às vezes formada por uma armadura metálica revestida de
couro. A principal evolução deste equipamento ao longo da Idade Média foi a
substituição da brunea pela cota de malha que cobria o corpo interior, desde os
ombros até os joelhos, e que era aberta por baixo para permitir cavalgar, como
se vê no bordado de Bayeux já no final do século XI. Estas cotas de malha ou hauberks, extremamente eficazes contra
os golpes de espada, não bastam para se proteger da ponta da lança manejada de
acordo com uma nova técnica de investida que constitui o principal progresso da
tática militar medieval. Como bem nota Jean Flori, o cavaleiro medieval
necessita de importantes recursos financeiros para pagar seu/s cavalo/s e
equipamento pesado, além de tempo, pois, em paralelo a um treinamento
frequente, ele deve afirmar-se em combates festivos, torneios e no exercício da
caça, que na maior parte das vezes é o seu privilégio exclusivo fora das
reservas que os reis concedem a si mesmos desde a Idade Média. Tudo isso para
dizer que, começando pelo ponto de vista militar, a cavalaria tende a se
restringir a uma elite aristocrática.”
“Vimos a propósito do cavaleiro que uma das
relações fundamentais do homem medieval com o espaço era a sua disposição a
errar pelo mundo. Pois bem, a outra face antitética e complementar é a sua
ligação a um lugar específico, o que a linguagem monástica chamava de stabilitas loci (estabilidade do local).
Assim, o homem – e em menor grau a mulher – do Ocidente medieval oscila entre
um porto seguro e o largo.”
“O grande desenvolvimento dos claustros
monásticos data da época romana (séculos XI-XII), e o gosto estético moderno
tende a considerar que os claustros romanos que foram conservados na Provença,
por exemplo, são os mais belos que a arquitetura medieval nos legou, enquanto
que, como já vimos, a catedral é gótica por excelência. Esta oposição revela o
contraste entre a intimidade e a abertura que caracteriza a ideologia e a
sensibilidade medievais. O claustro, enquanto espaço interno do monastério, é o
lugar em que melhor se encarnam o espírito de comunidade dos monges e o aspecto
de devoção individual a que se refere a palavra monge (monos, “solitário” em grego). O claustro é o lugar próprio para a
oração individual, o cenário por excelência deste exercício fundamental da
devoção cristã. Porém, as galerias do claustro podem ser o teatro de
manifestações coletivas de devoção, como as procissões de monges, por exemplo.
(...)
Tendo em vista que a maioria dos monastérios
encontra-se hoje abandonada, e os claustros, vazios, este lugar, que se tornou
mítico por sua evocação da solidão e do paraíso, compõe um cenário excepcional
para certas atividades musicais. O claustro de Noirlac, na província francesa
de Berry, é um dos exemplos mais notáveis disso. Assim, no imaginário europeu
de hoje, o claustro tornou-se ao mesmo tempo a imagem de um paraíso perdido e a
de uma prisão destruída ou aberta.”
“O jogral é um animador. Seu nome
vem do latim jocus, “jogo”.
Donde o seu status e a sua
imagem ambígua na sociedade e cultura medievais. Esta ambiguidade é a mesma do
prazer nesta sociedade e cultura. O jogral é o próprio exemplo do herói
ambíguo. Edmond Faral considera-o como o sucessor dos mímicos da Antiguidade.
Surpreendo-me sobretudo por seus estreitos laços com a nova sociedade feudal
que se instaura do século X ao XII. Em compensação, uma coisa é certa: ele
absorve uma parte da herança dos animadores pagãos, principalmente dos bardos
das sociedades célticas. O jogral é um animador itinerante que vai fazer seus
malabarismos nos lugares onde eles são admirados e remunerados, ou seja,
essencialmente nos castelos senhoriais. Trata-se de um animador que faz de
tudo. Ele recita versos e conta histórias. É o malabarista “da boca”, mas não o
autor destes textos, que são produzidos pelos menestréis e trovadores. Ele é
apenas um executante.
Ele é
ao mesmo tempo um malabarista de gestos; um acrobata que se contorce, um
saltimbanco no sentido moderno do termo, um dançarino com frequência paródico e
também um músico que canta muitas vezes com o acompanhamento do alaúde ou da
viela de arco. Porém, tudo depende do conteúdo de sua atividade e do sentido
que ele lhe dá. O jogral ilustra de certa forma a dupla natureza do homem, que
foi criado por Deus, mas que sucumbiu ao pecado original. Seus pensamentos e
atos podem, portanto, inclinar-se para o lado bom ou mau, manifestar o seu
estado de filho de Deus criado à sua imagem ou de pecador manipulado pelo
diabo. Ele pode ser o bobo da corte de Deus ou o do diabo. No fundo, ele é a
imagem espetacular daquilo que todo herói medieval fundamentalmente é: um homem
heroico, mas pecador por algum motivo, que pode deixar de servir a Deus para
servir ao satã. Uma das grandes tarefas da moral medieval foi separar o bem e o
mal, o puro e o impuro no comportamento dos heróis medievais. Esta reflexão
concentrou-se nas profissões dos homens da Idade Média. Eram elas lícitas ou
ilícitas? E, no caso do jogral, o prazer que ele desperta e que constitui a
finalidade da sua profissão é um desejo lícito ou ilícito? Um texto do início
do século XIII que ficou famoso no meio dos medievistas faz uma seleção entre
os bons e maus jograis. Este texto segue uma dupla evolução que coloca com
firmeza o problema da ambivalência das profissões. Trata-se, de um lado, do
método escolástico que é um método crítico, de distinção, organização,
classificação e que consequentemente procura desintricar a verdade e a mentira,
o lícito e o ilícito, etc.; e, por outro lado, dos progressos da confissão
auricular, decretada obrigatória em 1215 pelo IV Concílio de Latrão, que se
propunha definir os proveitos e perigos morais e sociais de cada profissão. Foi
em um manual de confessor pouco anterior a 1215 que o inglês Thomas de Chobham,
formado pela Universidade de Paris, distinguiu os bons e os maus jograis.
Segundo ele, o jogral mau, vergonhoso (turpis) é aquele que não recua
diante da scurrilitas, ou seja, do burlesco, do excesso, do
exibicionismo das palavras e gestos. É aquele que não coloca o corpo a serviço
da alma; é um histrião que substitui os gestos decentes pela gesticulatio
despudorada. Em compensação, existem outros bufões que devem ser louvados. Eles
“cantam as grandes proezas dos príncipes e da vida dos santos, proporcionam um
alívio quando se está doente ou ansioso e não cometem infâmias abusivas como o
fazem os homens e mulheres acrobatas, bem como aqueles que dão espetáculos
vergonhosos e que fazem aparecerem fantasmas seja por encantamento ou de outra
forma”.”
“Robin Hood talvez tenha existido,
mas é essencialmente uma criação literária oriunda das baladas que, desde os séculos
XIII-XV, cristalizaram-se em torno desta personagem, ligada sobretudo ao
imaginário inglês, mas também ao europeu.
Robin Hood introduz no imaginário
europeu originário da Idade Média uma personagem representativa, o fora da lei,
o rebelde justiceiro, e um ambiente original, a floresta. A personagem talvez
tenha realmente vivido na Inglaterra no século XIII, mas sua existência é
garantida pela literatura. Sua mais antiga menção encontra-se no famoso poema Piers
Plowman (Pedro, o lavrador), elaborado entre 1360 e 1390 por William
Langland[1]. Este último cita Robin Hood como um herói de
balada popular, embora apenas nos séculos XV e XVI tenhamos textos de baladas
dedicadas a Robin Hood. Portanto, Robin Hood só surge tardiamente na
iconografia das miniaturas medievais. Determinou-se que ele tenha surgido na
história social da Inglaterra no século XIII e sobretudo no final do XIV,
repercutindo as revoltas populares e conflitos religiosos dos anos 1380. Robin
Hood é o defensor dos pobres e oprimidos, o homem da floresta, de um bando.
Sempre é escoltado por um fiel companheiro (João Pequeno) e por um monge
truculento (Frei Tuck). O romantismo lhe dará uma prometida, Maid Marian.
Robin
Hood tem um inimigo que representa o poder político e social, impiedoso e
antipopular: o xerife de Nottingham. Na maior parte das vezes, ele vive e age
na Floresta de Sherwood, em Nottinghamshire. A marca popular que contribuiu
para consolidar a sua imagem mítica foi o fato de ele ser um arqueiro. Ele
carrega, portanto, o arco, acessório emblemático que o opõe ao cavaleiro nobre
a cavalo, munido de sua lança e espada. Trata-se de uma personagem ambígua como
todos os heróis da Idade Média. Ele encontra-se a meio caminho entre justiça e
rapina, direito e ilegalidade, revolta e favor, a floresta e a corte. Com seu
bando, do qual faz parte um clérigo popular e protestador, ele rouba dos ricos
para vestir e alimentar os pobres, socorre os desarmados e impotentes atacados
pelos cavaleiros que percorrem a região. Os títulos das principais baladas que
lhe são dedicadas nos séculos XV-XVI ilustram bem as suas aventuras: “Robin
Hood e o monge”, “Robin Hood e o oleiro”, “Robin Hood e o xerife”, “A gesta de
Robin Hood”, “A morte de Robin Hood”.
A
tradição das baladas que falam sobre ele ao longo do século XVI conduz até
Shakespeare, cuja obra é a última e mais brilhante expressão da Idade Média. As
you like it (1598-1600) é uma transposição da história de Robin Hood, um
nobre que se refugia na Floresta de Arden depois de ser desapossado de suas
terras e de suas funções por seu irmão.”
[1]. Langland escreve: “Conheço baladas sobre Robin Hood e Randolph, conde
de Chester” (ROBERTSON, E. & SHEPHERD, S.H.A. Piers Plowman. Nova
York: W.W. Norton & Company, 2006. O conde de Chester (1172-1232),
personagem histórica, também era um herói popular que se opôs às taxas. Cf.
HILTON, R.H. (org.). Peasants, Knight and Heretics. Londres: Cambridge
University Press, 1976.
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