quinta-feira, 8 de maio de 2025

O Outono da Idade Média (Parte III), de Johan Huizinga

Subtítulo: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos

Editora: Cosac Naify

ISBN: 978-85-7503-756-0

Tradução: Francis Petra Janssen

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 656

Sinopse: Ver Parte I



Todo o processo de externalização da devoção popular no fim da Idade Média não pode ser expresso de forma mais concisa do que nas seguintes palavras de Jacob Burckhardt, em Weltgeschichtliche Betrachtungen [Reflexões sobre a história]:

Uma religião poderosa impregna todas as coisas da vida e colore cada movimento do espírito, cada elemento da cultura. Sem dúvida, com o tempo, essas coisas reagem à religião; de fato, seu próprio núcleo pode ser sufocado pelo círculo de representações e imagens que outrora ela atraíra para dentro de seu campo. A “santificação de todos os aspectos da vida” tem o seu lado fatídico.

E mais adiante:

Mas, por sua vez, nenhuma religião jamais foi totalmente independente da cultura dos povos e das épocas. É justamente quando ela reina soberana por meio da interpretação literal dos textos sagrados e tudo aparentemente se orienta por ela, quando ela “se encontra entrelaçada à vida como um todo”, então essa vida infalivelmente também haverá de influenciá-la, também com ela há de se emaranhar. Mais tarde, esses íntimos entrelaçamentos com a cultura não lhe serão mais úteis, mas apenas fonte de perigos. Apesar disso, uma religião sempre agirá assim enquanto ela for realmente vigorosa.1

1. Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, 1905, pp. 97 e 147. [Ed. bras.: Reflexões sobre a história. Trad. Leo Gilson Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.]

 

 

Nos dias festivos, queixa-se Nicolas de Clémanges, apenas poucos vão à missa. Eles não a assistem até o fim e contentam-se em tocar a água benta, saudar Nossa Senhora ajoelhando-se ou beijar a imagem de um santo. Se chegassem a ver a hóstia ser erguida, vangloriavam-se como se tivessem feito um grande favor a Cristo. As matinas e as vésperas geralmente são oficiadas apenas pelo padre e seu ajudante.47 O senhor do vilarejo e patrono da igreja, com toda a calma do mundo, deixa o padre esperando para começar a missa até que ele e sua mulher tenham se levantado e se vestido.48

As festas mais sagradas, até mesmo a noite de Natal, são passadas em devassidão, com jogos de cartas, injúrias e linguagem escandalosa. Se repreendido, o povo alega que os grandes senhores, o alto e o baixo clero fazem o mesmo impunemente.49 Nas vigílias dos feriados religiosos, as pessoas dançam dentro da própria igreja ao som de canções libertinas; os padres dão o exemplo, passando essas noites de vigília em meio a jogos de dados e blasfêmias.50 Esses são testemunhos dos moralistas, inclinados talvez a uma visão sombria demais. Mas os documentos confirmam mais de uma vez essa imagem soturna. O conselho de Estrasburgo servia anualmente 1100 litros de vinho para aqueles que passavam a noite de santo Adolfo na igreja “em vigília e em oração”.51 Um magistrado municipal queixou-se junto a Dionísio Cartuxo de que a procissão anual, realizada na cidade com uma relíquia santa, era motivo para uma série de indecências e bebedeiras. Como pôr um fim a isso? Não seria fácil convencer nem o próprio magistrado, pois a procissão trazia recursos para a cidade; ela atraía muita gente que precisava pernoitar, comer e beber. Acima de tudo, esse era o costume. Dionísio conhecia o problema; ele sabia quão indisciplinadamente as pessoas agiam nas procissões, falando, rindo, olhando com descaramento ao redor, ávidas por bebida e divertimentos grosseiros.52 A queixa dele encaixa-se perfeitamente no que diz respeito à procissão dos habitantes de Gent para conduzir o relicário de são Liévin [12.11] até a feira de Houthem. Em outros tempos, diz Chastellain, os notáveis costumavam carregar o corpo santo “com grande e elevada solenidade e reverência” [en grande et haute solenité et révérence], mas agora é “uma massa de malandros e de jovens arruaceiros” [une multitude de respaille et de garçonnaille mauvaise]; eles carregam-no gritando e fazendo algazarra, cantando e dançando, gozando de tudo, e todos estão bêbados. E ainda por cima estão armados e se permitem as maiores depravações por onde passam. Nesse dia, tudo lhes é consentido sob o pretexto de seu encargo sagrado.53

12.11 – São Liévin, bem à direita, com a sua língua sendo arrancada
Detalhe da procissão dos santos na Adoração do cordeiro de Deus de Jan van Eyck

Ir à igreja era um elemento importante na vida social. As pessoas iam para ostentar o seu traje mais formoso, para rivalizar em status e dignidade, em cortesia e polidez. Antigamente, como já foi mencionado,54 beijar a pátena, la paix, era um motivo frequente para as disputas mais irritantes de boas maneiras. Se um jovem nobre entrava na igreja, a senhora, mesmo com o padre consagrando a hóstia e o povo rezando, levantava-se e o beijava na boca.55 Parece que era muito comum conversar e passear dentro da igreja enquanto a missa era celebrada.56 O uso da igreja como ponto de encontro aonde os jovens iam para olhar as moças era tão comum que só os moralistas ainda se aborreciam com isso. (...)

A igreja sofria de profanações muito mais graves do que esses pequenos serviços amorosos que aconteciam durante as missas: o amante que oferecia água benta à amada, estendia-lhe a paix, acendia uma vela para ela e ajoelhava-se a seu lado, não sem fazer sinais e lançar olhares sedutores.59 Até as prostitutas procuravam clientes dentro das igrejas,60 e ali, mesmo em dias santos, vendiam-se imagens obscenas que corrompiam a juventude. Nenhum sermão ajudava contra tais males.61 Mais de uma vez a igreja e o altar foram maculados por atos imorais.62 (...)

Em todas essas profanações da fé, em razão da mistura descarada com a vida de pecado, o que existe é mais uma ingênua familiaridade com a religião do que uma verdadeira falta de devoção. Apenas uma sociedade totalmente permeada de sentimento religioso, e que aceita a fé como algo óbvio, conhece todos esses excessos e degenerações. As mesmas pessoas que seguiam uma rotina diária de práticas religiosas meio deterioradas tornavam-se de repente suscetíveis, sob as palavras inflamadas do sermão de um monge mendicante, aos extremos do fervor religioso.”

47. Nicolas de Clémanges, “De novis festivitatibus non instituendis”, em Opera, p. 143.

48.  Le Livre du chevalier De la Tour Landry, pp. 66 e 70.

49. Gerson, “Sermo de nativitate Domini”, em Opera, v. 3, pp. 946 e 947.

50. Nicolas de Clémanges, De lapsu et reparatione justitiae, Opera (Leiden, 1613), p. 147.

51. Otto Winckelmann, “Zur Kulturgeschichte des Strassburger Münsters”, Zeitschrift für die Geschichte des Oberrheins, n. 22, 1907.

52. Dionísio Cartuxo, “De modo agendi processiones”, em Opera, v. 36, pp. 198 ss.

53. Chastellain, op. cit., v. 5, pp. 253 ss.

54. Ver antes, pp. 138-9.

55. Michel Menot, “Sermones”, f. 144v., em Champion, Villon, v. 1, p. 202.

56. Le Livre du chevalier De la Tour Landry, p. 65; Olivier de la Marche, op. cit., v. 2, p. 89; L’Amant rendu cordelier, p. 25; Chronique du religieux de Saint-Denis, v. 1, p. 102.

59. L’Amant rendu cordelier à l’observance d’amours.

60. Menot, op. cit.

61. Gerson, “Expostulatio adversus corruptionem juventutis per lascivas imagines et alia hujusmodi”, em Opera, v. 3, p. 291; ver também “De parvulis ad Christum trahendis”, id., ibid., p. 281, e “Contra tentationem blasphemiae”, id., ibid., p. 246.

62. Le Livre du chevalier De la Tour Landry, pp. 80 e 81; ver Machaut, Le Livre du Voir-Dit, pp. 143 ss.

 

 

Os santos eram figuras tão reais, tão tangíveis e tão familiares na vida religiosa cotidiana que todos os impulsos religiosos mais superficiais e sensuais se ligavam a eles. Enquanto as emoções mais profundas eram dirigidas a Cristo e a Maria, todo um tesouro da vida religiosa cotidiana, acolhedora e ingênua, se cristalizava em torno da veneração dos santos. Tudo convergia para dar aos santos populares uma realidade que os trazia constantemente para o interior da própria vida. A imaginação popular se apossou deles: sua aparência era tão familiar quanto seus atributos, e seus horrendos martírios eram tão conhecidos como os milagres surpreendentes.[12.13] Eles se vestem como o próprio povo. Todo dia podia-se encontrar o sr. são Roque ou o sr. são Tiago na pessoa de um pestilento ou de um peregrino. Seria interessante pesquisar até quando as vestimentas dos santos correspondiam à moda da época — certamente durante todo o século XV. Mas em que momento a arte religiosa os retira da viva imaginação popular, cobrindo-os com uma roupagem retórica? Não se trata apenas da preferência renascentista pelas vestimentas históricas. A própria imaginação popular começa a abandoná-los, ou pelo menos não conseguem mais se impor na arte religiosa. Durante a Contrarreforma, os santos escalaram muitos degraus, exatamente como queria a Igreja, até perderem o contato com a vida do povo.

12.13 – Gerard David, Maria e santas, anjos e o pintor com sua mulher

A corporeidade, que os santos já possuíam na forma de suas imagens, era intensificada ainda mais pelo fato de a Igreja sempre ter permitido e encorajado o culto de seus restos corporais. E como não podia deixar de ser, esse apego à matéria tinha uma influência materializante na fé, que às vezes levava a extremos espantosos. Quando se trata das relíquias, a fé robusta da Idade Média não teme nem desilusão nem profanação. Os habitantes das montanhas da Úmbria, por volta do ano 1000, quiseram matar a pancadas o monge são Romualdo para não perderem seus ossos. Os monges de Fossanuova, onde morreu Tomás de Aquino, temendo ficar sem a sua valiosa relíquia, não hesitaram em decapitar, cozinhar e preservar o cadáver do nobre mestre.96 Antes mesmo de santa Isabel da Turíngia ter sido enterrada, uma multidão de devotos veio não só cortar ou arrancar pedaços dos panos que envolviam seu rosto, como também cortar seus cabelos e unhas, pedaços das orelhas e os mamilos.97 Por ocasião de uma festa solene, Carlos vi distribui as costelas de seu antepassado, são Luís de França, entre Pierre d’Ailly e seus tios de Berry e da Borgonha. Aos prelados ele deu uma perna para que a repartissem, o que fazem após a refeição.98

96. Historia translationis corporis sanctissimi ecclesiae doctoris divi Thom. de Aq., 1368, auct. fr. Raymundo Hugonis O. P., Acta Sanctorum Martii, v. 1, p. 725.

97. Relatório dos comissários papais, bispo Konrad van Hildesheim e abade Hermann van Georgenthal, sobre a inquirição de testemunhas quanto a santa Isabel de Marburgo, em janeiro de 1235, editado em Historisches Jahrbuch der Görres-Gesellschaft, v. 28, p. 887.

98. Chronique du religieux de Saint-Denis, Collection des Documents Inédits sur l’Histoire de France (Paris: Crapelet, 1839-52), v. 2, p. 37.

 

 

O povo costumava viver na rotina de uma religião totalmente exteriorizada, com uma fé muito firme que provocava medos e êxtases, mas não impunha aos ignorantes perguntas ou conflitos espirituais, como faria o protestantismo. A irreverência descontraída e a sensatez do dia a dia alternavam-se com as emoções mais profundas de devoção passional, que de maneira espasmódica se apossavam do povo. Esse contraste contínuo entre um estado de tensão religiosa forte e outro fraco não deve ser compreendido pela divisão do rebanho em dois grupos, os devotos e os mundanos, como se uma parte do povo vivesse sempre na mais alta religiosidade, enquanto os outros fossem devotos apenas na aparência.”

13.4 – Livro de orações de Filipe, o Bom, na forma de um pequeno altar portátil.
 Acima, o livro entreaberto.


13.4 – Acima, o livro aberto, com o duque orando diante de Maria em veste decorada com espigas. 

Clicando aqui, pode-se observar o manuseio do livro. 



O menosprezo pelo clero, que como uma corrente subterrânea atravessa toda a cultura medieval ao lado da elevada reverência pela posição sacerdotal, pode ser explicado em parte pela mundanidade do alto clero e a degradação do baixo clero, e em parte pelos velhos instintos pagãos. A alma popular, apenas parcialmente cristianizada, nunca perdeu por completo a aversão pelo homem que era proibido de lutar e obrigado a ser casto. O orgulho cavaleiresco, enraizado na coragem e no amor, assim como a rude consciência popular, rechaçava o ideal eclesiástico. A degeneração dos próprios religiosos fazia o resto. E assim, durante séculos, as camadas sociais altas e baixas se deleitaram com a figura do monge indecente e do padreco gordo e glutão. Um ódio latente contra o clero sempre esteve presente. Quanto mais um pregador era veemente contra os pecados de sua própria classe, mais o povo gostava de ouvi-lo.1 Tão logo o pregador ataca os clérigos, diz Bernardino de Siena, os ouvintes esquecem todo o resto; não existe jeito melhor de manter a atenção presa quando o auditório começa a ficar sonolento ou quando sofre de calor ou de frio; na mesma hora, todos despertam e ficam animados.2 Se a comoção religiosa intensa causada pelos pregadores viajantes nos séculos XIV e XV tem origem no ressurgimento das ordens mendicantes, são justamente os mendicantes que acabam se transformando, por sua corrupção, em objeto habitual de escárnio e desprezo. O sacerdote indigno da literatura popular, que como um pobre assalariado recebe três grootens para ler a missa, ou como confessor é pago pour absoudre du tout [para absolver a todos], costuma ser um monge mendicante.3 Molinet, que é em geral muito devoto, expressa a pilhéria usual contra as ordens mendicantes num voto de Ano-Novo:

Prions Dieu que les Jacobins

Puissent manger les Augustins,

Et les Carmes soient pendus

Des cardes des Frères Menus.4

Roguemos a Deus para que os jacobinos

Devorem os agostinianos,

E que os carmelitas sejam enforcados

Com os cordões dos franciscanos.

1. Monstrelet, op. cit., v. 4, p. 304.

2. Bernhardin von Siena, Opera, v. 1, p. 100, em Hefele, op. cit., p. 36.

3. Les Cent nouvelles nouvelles, op. cit., v. 2, p. 153; Les Quinze joyes de mariage, pp. 111 e 215.

4. Jean Molinet, Chronique, Collection des Chroniques Nationales Françaises, 1827-8, v. 2, p. 23. Lettres de Louis XI (Paris: Société de l’Histoire de France, 1883-1909), Faictz et dictz, f. 188v.

 

 

Tudo o que sabemos sobre a vida religiosa cotidiana da época mostra uma contínua alternância entre extremos quase diametralmente opostos. A difamação e o ódio contra padres e monges são apenas o lado oposto de um apego e de uma veneração geral e profunda. Da mesma forma, a compreensão ingênua e superficial das obrigações religiosas dá lugar ao excesso de devoção. Em 1437, depois da volta do rei francês para a sua capital, houve uma cerimônia fúnebre muito solene pela alma do conde de Armagnac, a vítima, cujo assassinato marcara o início da turbulência dos últimos anos. O povo se aglomera, mas fica muito decepcionado por não haver distribuição de dinheiro. Pois umas boas 4 mil pessoas, diz o Burguês de Paris de modo descontraído, não teriam ido até lá se não achassem que haveria a distribuição de alguma coisa. “E eles amaldiçoaram aquele por quem antes tinham rezado” [Et le maudirent qui avant prierent pour lui].5 No entanto, esses são os mesmos parisienses que derramavam rios de lágrimas nas inúmeras procissões e se encolhiam diante das palavras de um pregador ambulante. Em Rotterdam, Ghillebert de Lannoy viu um padre apaziguar uma rebelião ao erguer o Corpus Domini.6

As grandes contradições e as fortes alternâncias de tensão se manifestam tanto na vida religiosa do indivíduo culto como na das massas ignorantes. A iluminação religiosa chega sempre de um só golpe, sempre como uma pálida repetição da experiência de são Francisco, quando ouviu as palavras do Evangelho como se fossem ordens diretas. Um cavaleiro ouve a leitura da fórmula batismal provavelmente pela vigésima vez, e logo se dá conta de toda a santidade e a milagrosa eficácia daquelas palavras. Então, dali em diante, ele se propõe a afastar o diabo apenas com a lembrança do próprio batismo, sem fazer o sinal da cruz.7 Le Jouvencel assistirá a um duelo em que os adversários estão prontos para jurar pela hóstia a justiça de suas causas. De repente, o cavaleiro compreende a absoluta obrigatoriedade de que um dos dois juramentos devesse ser falso, que um dos dois haverá de ser amaldiçoado, e diz: não jurem, apenas lutem pela aposta de quinhentos escudos, sem fazer um juramento.8 (...)

O próprio Filipe, o Bom, é um dos exemplos mais impressionantes desse entrelaçamento de devoção e mundanidade. O homem das festas luxuriantes e de inúmeros filhos bastardos, o político astuto e calculista, de orgulho e ira tremendos, é um devoto muito sério. [13.4] Ele costuma permanecer em seu oratório por um longo tempo após a missa ter acabado. Faz jejum quatro dias por semana a pão e água e durante todas as vigílias de Nossa Senhora e dos apóstolos. Às vezes não come nada até as quatro horas da tarde. Dá muitas esmolas, sempre em segredo. Igualmente sem ninguém saber, manda rezar missas pela alma de cada um dos membros já falecidos do seu séquito, mediante um valor fixo: quatrocentas a quinhentas para um barão, trezentas para um cavaleiro, duzentas para um nobre e cem para um valete.15 Após o ataque surpresa de Luxemburgo, ele permanece tanto tempo imerso em seus breviários depois da missa e ainda em orações especiais de agradecimento que a sua comitiva, aguardando-o a cavalo, se impacienta, pois a batalha ainda não havia terminado: o duque bem poderia deixar para outra hora a reza de todos esses pais-nossos. Avisado de que o atraso podia ser perigoso, Filipe responde apenas: “Se Deus me deu a vitória, ele há de guardá-la para mim” [Si Dieu m’a donné victoire, il la me gardera].16

[13.4] - Filipe, o Bom
(Acredito que seja esta a imagem referenciada. Por um deslize da editora, ela não foi inserida no livro)

Não se deve enxergar nisso tudo somente hipocrisia ou um bigotismo arrogante, e sim uma tensão entre dois polos espirituais que é quase inconcebível para o espírito moderno. Isso é possível para eles pois existe um dualismo absoluto entre o mundo pecador e o reino de Deus. No espírito medieval, todos os sentimentos mais puros e elevados foram absorvidos pela religião, enquanto os impulsos sensuais e naturais, deliberadamente rejeitados, tiveram de se rebaixar ao nível de uma mundanidade pecaminosa. Na consciência medieval coexistem, por assim dizer, duas concepções de vida: a concepção devota, ascética, que se apropria de todos os sentimentos morais, e a concepção mundana, toda ela deixada ao diabo, que se vinga terrivelmente. Se uma das duas predomina por completo, então surge o santo ou o pecador irrefreado; mas em geral elas se mantêm num equilíbrio instável, com oscilações da balança. Veem-se pessoas apaixonadas, cujos pecados em flor por vezes fazem sua devoção transbordar e explodir ainda mais violentamente.”

5. Journal d’un bourgeois de Paris, op. cit., p. 336; ver também p. 242, n. 514.

6. Ghillebert de Lannoy, Œuvres, p. 163. O mesmo relatório de uma briga de rua em Haarlem, em 1444, entre Hoeken e Kabeljauwen; Reinier Snoy, Rerum belgicarum Annales, p. 149.

7. Thomas Wright, Les Cent nouvelles nouvelles, Les Quinze joyes de mariage, v. 2, p. 101.

8. Le Jouvencel, op. cit., v. 2, p. 107.

15. Id., ibid., v. 2, p. 300, e v. 7, p. 222; Jean Germain, “Liber de virtutibus Philippi ducis Burgundiae”, p. 10 (a prática menos rígida de jejuar aqui citada pode referir-se a outro tempo); Jean Jouffroy, “De Philippo duce oratio”, em Chroniques relatives à l’histoire de la Belgique sous la domination des ducs de Bourgogne, v. 3, p. 118; Fillastre, Le Premier volume de la toison d’or, f. 131. Sobre a devoção de Filipe, ver meu artigo “La Physionomie morale de Philippe le Bon”, Annales de Bourgogne, 1932 [em Verzamelde Werken, v. 2, pp. 216 ss.].

16. La Marche, op. cit., v. 2, p. 40.

 

 

Nenhuma verdade era mais certa para o espírito medieval do que a palavra de são Paulo aos Coríntios: “Videmus nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem” [“Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face”]. Esse espírito nunca esqueceu que tudo seria absurdo se o seu significado se esgotasse em sua função imediata e em suas formas de manifestação, e que tudo se prolonga até alcançar o além-mundo. Esse saber também é familiar para nós, a todo momento, como uma sensação indefinida, sempre que o som da chuva nas folhas ou o brilho da lâmpada sobre a mesa alcança por um instante um nível de percepção mais profundo do que aquele do senso prático do pensamento e da ação. Ela pode vir à tona como uma obsessão doentia, de modo que todas as coisas parecem estar prenhes de uma intenção pessoal ameaçadora ou de um enigma que precisamos mas não podemos resolver. Ela também pode nos preencher, e o fará com frequência, com a certeza calma e reconfortante de que nossas próprias vidas participam do sentido misterioso do mundo. E quanto mais essa sensação se condensa no temor por Aquele do qual emanam todas as coisas, tanto mais facilmente há de se passar da certeza de alguns momentos de clareza para uma concepção de vida permanente, ou mesmo uma convicção articulada.

Pela cultivação do senso contínuo da nossa conexão com o poder que fez as coisas como elas são, estamos mais preparados para recebê-las. A face externa da natureza não precisa se modificar, mas modificam-se nela as expressões de significado. Estava morta e agora está viva outra vez. É como a diferença entre olhar para uma pessoa sem amor e olhar para a mesma pessoa com amor… Quando vemos todas as coisas em Deus e as referimos todas a Ele, lemos nas matérias mais comuns expressões de um significado superior.5

Esse é o fundo psicológico a partir do qual se desenvolve o simbolismo. Em Deus, nada é vazio ou sem significado: nihil vacuum neque sine signo apud Deum.6 Tão logo se tenha imaginado Deus, tudo o que partia Dele e que Nele encontrava o seu sentido se solidificava ou cristalizava em pensamentos articulados em palavras. E assim surge a nobre e sublime imagem do mundo como uma grande conexão simbólica, uma catedral de ideias, a mais rica expressão rítmica e polifônica de tudo o que é imaginável.”

5. William James, The Varieties of Religious Experience, pp. 474-5.

6. Irenaeus, Adversus haereses libri, v. v, 1; v. IV, c. 21.

 

 

“O homem medieval lembra uma pessoa que há muito tempo é tratada com remédios muito fortes. Ele reage apenas aos estimulantes mais potentes. Para fazer com que o mérito de uma virtude resplandeça com todo o seu brilho, o espírito medieval serve-se dos exemplos mais extremos, nos quais um senso de moralidade menos exacerbado veria uma caricatura da virtude. (...)

A veneração hiperbólica da virtude pode ser considerada, na sua forma mais ideal, como um pensamento altamente religioso, mas em seu reverso, isto é, no desprezo do mundo, reconhecemos com clareza o elo entre o pensamento medieval e as formas de pensamento de um passado distante. Refiro-me ao fato de que os tratados de contemptu mundi não conseguem deixar de atribuir um peso excessivo ao mal contido nas coisas materiais. Não há motivo maior para desprezar o mundo do que a repugnância provocada pelas funções corporais, especialmente as excreções e a procriação. Trata-se da parte mais mesquinha da moral medieval: o horror ao humano por ser formatus de spurcissimo spermate, conceptus in pruritu carnis [formado de semente muito suja, concebido numa comichão da carne].17 O que seria essa sensualidade convertida em seu oposto senão um rebento do realismo primitivo que faz os selvagens temerem as substâncias e poderes mágicos contidos em excrementos e em tudo o que acompanha a concepção e o nascimento?”

17. Innocentius III, “De contemptu mundi”, v. 1, cap. 1, em Migne (Org.), Patrologia Latina, v. 217, pp. 702 ss.

 

 

A arte nessa época ainda faz parte integralmente da vida. A vida é definida por formas vigorosas. Ela é unificada e mensurada pelos sacramentos da Igreja, pelas festas do ano e pela liturgia das horas. Cada uma das tarefas e alegrias da vida tem uma forma fixa: a religião, a cavalaria e o amor cortês constituíam as formas mais importantes. A missão da arte era enfeitar as formas nas quais se vivia a vida com beleza. Não se buscava a arte em si, mas sim a vida bela. Ao contrário de épocas posteriores, não se sai de uma rotina de vida mais ou menos indiferente para, como consolo e edificação, desfrutar a arte em contemplação solitária: a arte era antes aplicada para intensificar o esplendor da própria vida. Ela se destina a reverberar os êxtases da vida, seja no voo mais elevado da devoção, seja no desfrutar mais altivo das coisas terrenas. Na Idade Média, a arte ainda não é considerada uma coisa bela em si. Em sua grande maioria, é arte aplicada, mesmo nos produtos que consideraríamos obras de arte autônomas. Ou seja, o motivo para desejar uma obra de arte recai na sua finalidade, na sua subordinação a alguma forma de vida. Não obstante, o puro ideal de beleza poderia guiar o próprio artista criador, muito embora isso ocorresse de modo quase inconsciente. Os primeiros germes de um amor à arte por si mesma aparecem como um crescimento descontrolado da produção artística: soberanos e nobres vão amontoando objetos de arte, formam coleções. Nesse momento, tornam-se inúteis, e passa-se a apreciá-los como curiosidade de luxo, como elementos preciosos do tesouro real. A partir daí se cultiva o sentido artístico de fato, que estaria maduro no Renascimento. (...)

As obras precisavam ser belas porque ou seu assunto era muito sagrado ou a finalidade era muito elevada.”

18.2 3 – Gerar David, O julgamento de Cambises
O juiz Cambises havia se incriminado por ter proferido sentenças injustas.
Acima, ele é preso.


Nesta cena ele é escorchado.
No fundo, à direita, seu filho toma seu lugar no assento do juiz,
recoberto com a pele de seu pai.


 

Para o homem daquela época, mal existia a separação — exigida pelo nosso senso artístico e que foi estabelecida pela ação destrutiva do tempo — entre toda aquela bizarrice, desaparecida sem deixar vestígio, e as poucas obras de arte elevadas, que foram preservadas. A vida artística da época borguinhã ainda se encontrava completamente dominada pelas formas da vida social. A arte servia para algo. Em primeiro lugar, desempenhava uma função social que consistia, sobretudo, na ostentação do esplendor e na demonstração da importância pessoal, não do artista, mas do doador. E isso não é contraditado pelo fato de, na arte religiosa, a glória esplendorosa servir para suscitar pensamentos pios e de o doador ter posto a sua pessoa em primeiro plano mediante um impulso devoto. Por outro lado, a natureza da pintura secular de modo algum é sempre aquela excessivamente altiva, que combinava com a vida exagerada da corte. Para ver bem como a arte e a vida se encaixavam uma na outra, como ambas se fundiam, faltam-nos muitas coisas do contexto em que a arte se situava, o nosso conhecimento da própria arte é fragmentário demais. A corte e a Igreja não representam a totalidade da vida daquela época.”

 

 

A consciência do prazer estético e a sua expressão em palavras desenvolveram-se tardiamente. O homem do século XV, para exprimir a sua admiração pela arte, servia-se apenas de termos que esperamos de um burguês admirado. A própria noção de beleza artística ainda é desconhecida para ele. Sempre que a beleza irradiante da arte penetrava o seu espírito e o extasiava, ele imediatamente convertia essa emoção em plenitude divina ou em alegria de viver.”

 

 

Os poucos que adotam formas humanistas na França do século XV ainda não badalam os sinos anunciando o Renascimento. Até aqui, seu ânimo e sua orientação são medievais. O Renascimento chegará apenas quando o tom da vida mudar; quando a maré da mortal negação da vida se inverter e um vento fresco e agradável começar a soprar; quando a consciência alegre amadurecer a ideia de que se pode recuperar toda aquela glória do mundo antigo, no qual o homem por tanto tempo se espelhou.”

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