quinta-feira, 8 de maio de 2025

O Outono da Idade Média (Parte II), de Johan Huizinga

Subtítulo: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos

Editora: Cosac Naify

ISBN: 978-85-7503-756-0

Tradução: Francis Petra Janssen

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 656

Sinopse: Ver Parte I


“Toda época anseia por um mundo mais belo. Quanto mais profundos o desespero e a consternação diante de um presente incerto, tanto maior será esse desejo.”

 

 

O anseio por uma vida mais bela teve sempre diante de si três caminhos que apontavam para esse objetivo distante. O primeiro levava diretamente para fora do mundo: o caminho da renúncia. Aqui parece que essa vida ideal só pode ser alcançada do outro lado, mediante a libertação de tudo o que é terreno; toda a atenção dispensada ao mundo atrasa a prometida bem-aventurança. Todas as grandes civilizações trilharam esse caminho; o cristianismo imprimira esse ideal de renúncia tão poderosamente nos espíritos, como propósito da vida individual e base da cultura, que por muito tempo impediu quase por completo de se trilhar o segundo caminho.

Esse segundo caminho era aquele que apontava para a melhora e o aperfeiçoamento do próprio mundo. A Idade Média mal conheceu essa aspiração. Para esta época, o mundo era tão bom e tão ruim como ele podia ser; ou seja, como criação de Deus, todas as instituições eram boas; mas era o pecado das pessoas que mantinha o mundo em situação de miséria. Esta época desconhece a aspiração consciente de aperfeiçoamento e reforma das instituições sociais e políticas como motivação para o pensamento e para a ação. A virtude do próprio trabalho é a única coisa que pode beneficiar o mundo, e, mesmo assim, o objetivo verdadeiro continua sendo a outra vida. Onde quer que tenha sido realmente criada uma nova forma social, de início ela é considerada um restabelecimento do bom e velho direito, ou uma luta contra abusos por uma delegação proposital do poder público protetor. A criação consciente de organismos tidos de fato como novos é rara, inclusive no intenso trabalho legislativo que a monarquia francesa empreendia desde Luís IX, o são Luís de França, e que os duques da Borgonha imitaram em seus domínios hereditários. Eles ainda não percebiam, ou mal percebiam, que esse trabalho implicava, na verdade, o desenvolvimento de formas mais eficazes de organização do Estado. Não veem diante de si um futuro, uma aspiração. Ainda é sobretudo em razão do exercício imediato de seu poder e do cumprimento de sua tarefa em prol do bem comum que promulgam decretos e instalam conselhos municipais.

Nada contribuiu tanto para esse estado de ânimo de temor à vida e de desesperança em relação aos tempos futuros quanto essa ausência de uma determinação firme de tornar o próprio mundo melhor e mais feliz. Naquele mundo não havia qualquer promessa de coisas melhores. Quem ansiava por algo melhor, mas não conseguia se despedir do mundo e de toda a sua magnificência, só podia cair em desespero; não conseguia mais enxergar em nenhum lugar a esperança ou a alegria; restava pouco tempo para o mundo, e a desgraça era tudo que o aguardava.

No momento em que se envereda pelo caminho de uma melhora positiva do próprio mundo, tem início uma nova era, na qual a coragem e a esperança tomam o lugar do temor à vida. Na verdade, essa ideia só irá surgir no século XVIII. O Renascimento extraiu a sua enérgica afirmação da vida de outras formas de satisfação. Foi apenas no século XVIII que a perfectibilidade do ser humano e da vida em sociedade tornou-se um dogma fundamental, e as aspirações econômicas e sociais do século seguinte só perderam a sua ingenuidade, mas não a coragem nem o otimismo.

O terceiro caminho para um mundo mais belo é o do sonho. É o caminho mais fácil, mas que mantém o objetivo sempre igualmente distante. Quando a realidade terrena é tão perdidamente trágica e a renúncia ao mundo tão difícil, não nos resta nada além de colorir a vida com uma bela ilusão, vivê-la no país dos sonhos de fantasias luminosas, temperar a realidade com o êxtase do ideal. Basta um tema simples, um único acorde, para fazer ressoar a fuga cativante: um olhar para a felicidade sonhada de um passado mais belo já é suficiente, um olhar para o seu heroísmo e sua virtude, ou então para os alegres raios de sol da vida na natureza. Foi sobre esses poucos temas — o do heroísmo, o da sabedoria e o do bucólico — que se edificou toda a cultura literária desde a Antiguidade. A Idade Média, o Renascimento, os séculos XVIII e XIX, todos eles juntos não fizeram mais do que encontrar novas variações para uma velha canção.

Seria o terceiro caminho para uma vida mais bela, a fuga da dura realidade para uma bela ilusão, apenas uma questão da cultura literária? Sem dúvida é mais do que isso. Ele atinge a forma e o conteúdo da vida social do mesmo modo que as duas outras aspirações, e quanto mais primitiva for a cultura, mais forte isso se torna.

O efeito dessas três atitudes espirituais na vida real difere bastante. O contato mais próximo e consistente entre as atividades da vida e o ideal surge ali onde a ideia aponta para a melhoria e o aperfeiçoamento do próprio mundo. Aqui, a coragem e a força inspiradora desaguam no próprio trabalho material; a realidade imediata é carregada de energia. Realizar a missão da sua vida é igualmente um modo de lutar pelo ideal de um mundo melhor. Se assim quisermos, também aqui um sonho de felicidade é o motivo inspirador. Até certo ponto, toda cultura almeja tornar real um mundo de sonho mediante a recriação das formas sociais. Ao passo que em outras instâncias trata-se apenas de uma recriação espiritual, de instituir uma perfeição imaginária oposta à dura realidade que se quer esquecer, aqui o objeto do sonho é a própria realidade. É ela que se quer transformar, purificar e melhorar. O mundo parece estar no caminho certo para o ideal; basta que as pessoas continuem trabalhando. A forma de vida ideal parece estar bem pouco distanciada da existência ativa; só existe uma ligeira tensão entre realidade e sonho. É consideravelmente pouco o que se exige da arte de viver ali onde é o bastante aspirar pela máxima produção e pela divisão mais justa dos bens, onde o conteúdo do ideal é prosperidade, liberdade e cultura. Não há mais necessidade de acentuar que o ser humano é um ser nobre [nobleman], ou um herói, ou um sábio, ou um refinado cortesão.

No caso da primeira das três atitudes espirituais, a influência na vida real é bem diferente: trata-se da renúncia ao mundo. O desejo pela salvação eterna torna o andamento e a forma da existência terrena indiferentes, ainda que a virtude seja cultivada e mantida. Aceitam-se as formas de vida e as da sociedade pelo que elas são, mas tenta-se permeá-las com uma moralidade transcendente. Com isso, a aversão ao mundo não tem apenas um efeito ruim sobre a sociedade terrena por meio da negação e da renúncia, mas também se difunde em trabalho piedoso e caridade prática.

E como é o impacto da terceira atitude espiritual sobre a vida: a busca por uma vida mais bela segundo um ideal sonhado? As formas de vida são recriadas em formas artísticas. Mas não apenas nas obras de arte como tais se expressa o sonho de uma vida bela, pois quer-se enobrecer a própria vida com beleza e preencher a sociedade com jogos e formas. E é justamente aqui que se fazem as maiores exigências à arte de viver das pessoas, exigências que só podem ser satisfeitas por uma elite, em vida lúdica artificiosa. Nem todos podem viver como heróis e sábios; é uma diversão cara colorir a vida com uma tintura heroica ou idílica, e, além disso, nem sempre dá certo. A ânsia pela realização do sonho de beleza nas formas da própria sociedade tem como vitium originis um caráter aristocrático.

Com isso, aproximamo-nos do aspecto sob o qual a civilização do fim da Idade Média deve ser vista: a ornamentação da vida aristocrática com as formas do ideal, a luz artificial do romantismo cavaleiresco projetada sobre a vida, o mundo disfarçado nos trajes da Távola Redonda. A tensão entre as formas de vida e a realidade é incrivelmente forte; a luz é falsa e ofuscante.

O anseio por uma vida mais bela é considerado o traço mais característico do Renascimento. Vemos nele a mais completa harmonia entre a satisfação da sede de beleza na obra de arte e na própria vida; nesse momento, como nunca dantes, a arte serve à vida e a vida serve à arte. Mas também aqui o limite entre a Idade Média e o Renascimento foi traçado de forma nítida demais. O desejo passional de revestir a própria vida com beleza, o refinamento da arte de viver, o efeito colorido de uma vida vivida segundo um ideal, tudo é mais antigo que o Quattrocento italiano. (...)

A Itália descobriu novos horizontes da beleza da vida, afinou a vida em um novo tom, mas a atitude frente a ela — o desejo de elevar a própria vida a uma forma artística —, uma invenção vulgarmente considerada típica do Renascimento, de modo algum foi criada nessa época.

A grande ruptura no modo de conceber a beleza da vida se dá entre o Renascimento e os tempos modernos. O ponto da virada situa-se ali onde a arte e a vida começam a se separar, quando não mais se desfruta da arte em meio à vida, como uma parte nobre da alegria de viver, mas fora da vida, como algo a ser altamente venerado, ao qual as pessoas se voltam em momentos de exaltação ou de tranquilidade. Com a separação entre arte e vida, revive-se o velho dualismo que separava Deus e o mundo. Traçou-se uma linha separando os prazeres da vida. Eles foram partidos em duas metades, uma inferior e uma superior. Para o indivíduo medieval, eram todos igualmente pecaminosos; agora, todos são considerados lícitos, mas com diferentes níveis de respeitabilidade, de acordo com o seu caráter mais ou menos espiritual.

As coisas que tornam a vida prazerosa permanecem as mesmas. Tanto agora como antes, são: a leitura, a música, as belas-artes, viagens, o gosto pela natureza, esportes, moda, as vaidades sociais (ordens de cavaleiros, cargos de honra, reuniões) e o entorpecimento dos sentidos. O limite entre o superior e o inferior, ainda hoje, para a maioria, parece recair entre o gosto pela natureza e o esporte. Mas esse limite não é fixo. Provavelmente o esporte, dentro em breve, pelo menos na medida em que ele é a arte da força física e da coragem, passará a ser considerado superior. Para o indivíduo medieval, a fronteira se estabelecia logo depois do ato da leitura; mesmo o prazer da leitura só podia ser santificado através da aspiração pela virtude ou sabedoria; e na música e nas artes plásticas, só se reconhecia positivamente o serviço que prestassem à fé; o prazer em si mesmo era um pecado. O Renascimento conseguiu se livrar da rejeição à alegria de viver como algo intrinsecamente pecaminoso, mas ainda não havia estabelecido uma nova separação entre o prazer de viver superior e o inferior; ele queria um desfrute desembaraçado da vida como um todo. Tal separação é o resultado do compromisso entre o Renascimento e o puritanismo, sobre o qual se assenta a atitude espiritual moderna. Foi uma capitulação recíproca, em que um insistiu na salvação da beleza e o outro na condenação do pecado.

O puritanismo rigoroso, assim como ocorria na Idade Média, ainda considerava que toda a esfera de embelezamento da vida era pecaminosa e mundana, a não ser que assumisse formas expressamente religiosas e se santificasse pelo serviço direto prestado à fé. Só quando a visão puritana do mundo foi se desgastando é que a aceitação renascentista da alegria de viver ganhou novamente espaço; e até mais espaço do que antes, pois desde o século XVIII cresce a tendência de enxergar no natural per se um elemento ético. Quem agora tentasse traçar a linha de separação entre o prazer de viver superior e o inferior, de acordo com a nossa consciência ética, não mais separaria a arte do prazer dos sentidos, nem o prazer da contemplação da natureza dos exercícios físicos, nem o elevado do natural, mas separaria somente os prazeres egoístas, falsos e vaidosos dos prazeres puros.”

 

 

A psicologia da coragem guerreira talvez nunca tenha sido formulada de modo tão simples e objetivo como nestas palavras de Le Jouvencel:

É coisa alegre a guerra… Amamos tanto nossos companheiros na guerra. Quando vemos que a nossa querela é justa e que o nosso sangue combate bem, lágrimas nos vêm aos olhos. O coração se enche de uma doçura de lealdade e piedade ao ver seu amigo, que tão valentemente expõe seu corpo para fazer e cumprir o mandamento de nosso criador. E depois nos dispomos a morrer ou viver com ele e, por amor, não o abandonar nunca. E disso vem um deleite tão grande que quem não o provou não pode dizer como é prazeroso. Pensam que um homem que faz isso teme a morte? De modo algum; pois ele se sente tão fortalecido, tão exultante, que nem mesmo sabe onde está. Na verdade, ele não teme nada.43

Essas palavras poderiam ser pronunciadas tanto por um soldado moderno quanto por um cavaleiro do século XV. Não têm nenhuma ligação com o ideal da cavalaria em si. Exprimem a essência emocional da coragem guerreira: o trêmulo abandono do egoísmo em meio à excitação do perigo de vida, a comoção profunda diante da bravura do companheiro, o êxtase da fidelidade e do sacrifício pessoal. Essa emoção ascética primitiva é a base a partir da qual o ideal da cavalaria se eleva a uma fantasia nobre de perfeição viril muito próxima da kalokagathia [belo e bom] grega, a um anseio intenso por uma vida mais bela que inspirou tantos séculos… E também a uma máscara atrás da qual podia se ocultar um mundo de ganância e violência.”

43. Le Jouvencel, Favre e Lecestre (Orgs.), Paris, Société de l’Histoire de France, 1887-9, v. 2, p. 20

 

 

O cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, este é o motivo romântico mais primário e imutável que nasce e sempre nascerá em toda parte. É a transformação mais imediata do impulso sensual em uma abnegação ética ou quase ética. Ele nasce diretamente da necessidade de demonstrar a própria coragem para a mulher amada, de correr perigos e ser forte, de sofrer e sangrar — uma aspiração que todo jovem de dezesseis anos conhece. Expressar e satisfazer esse desejo, algo que parece inalcançável, é substituído e elevado pelo ato heroico praticado por amor. Com isso, a morte passa a ser imediatamente uma alternativa para tornar plena a satisfação que, por assim dizer, fica garantida de ambos os lados.

Mas o sonho do heroísmo por amor, que nesse momento preenche e inebria o coração apaixonado, cresce e se espalha como uma planta exuberante. O que de início era um tema simples rapidamente se torna complexo; o espírito clama por novos cenários para o mesmo tema. E a própria paixão imprime cores mais fortes ao sonho de sofrimento e abnegação. O feito heroico deve constituir-se na libertação ou no resgate da mulher amada do mais iminente perigo. E com isso foi acrescido um estímulo mais intenso ao motivo original. Primeiro é o próprio sujeito que quer sofrer pela dama; mas logo junta-se a isso o desejo de resgatar a pessoa amada do sofrimento. Será que, no fundo, esse resgate sempre deve ser reduzido à preservação da virgindade, ou seja, à interdição do rival para que o salvador fique com a dama para si? De qualquer maneira, isso constitui o motivo erótico-cavaleiresco por excelência: o jovem herói que liberta a virgem. Ainda que o inimigo seja um simples dragão, o motivo sexual estará sempre subjacente. Quão sincera e ingênua é, por exemplo, a expressão desse motivo no famoso quadro de Burne-Jones em que a moderna figura feminina, justamente pela castidade da representação, logo revela a inspiração sensual.[5.1]

5.1 - Tapeçaria de Edward Burne-Jones

A libertação da virgem é o motivo romântico mais primordial, sempre renovado. É surpreendente que uma interpretação mitológica, hoje já superada, tenha visto nele a reprodução de um fenômeno natural, quando qualquer um de nós pode comprovar diariamente a espontaneidade dessa ideia! Na literatura, esse motivo pode ser evitado por algum tempo em razão de sua repetição excessiva, mas ele sempre reaparece em novas formas — como, por exemplo, no romantismo do caubói dos cinemas. E na concepção amorosa individual fora da literatura, ele sem dúvida nenhuma permanece igualmente forte.

Na representação do herói-amante, é difícil determinar até que ponto se manifestam os aspectos masculinos ou femininos do amor. Será que a figura daquele que sofre por amor é a imagem que o homem quer ter de si mesmo ou é a mulher quem deseja que ele se mostre assim? É muito mais provável que se trate do primeiro caso. Em geral, na representação do amor como forma cultural, expressa-se quase exclusivamente a concepção masculina, pelo menos até os dias mais recentes. A visão que a mulher tem do amor sempre fica velada e oculta; é o segredo mais terno e mais profundo. E não necessita da sublimação romântica no heroico, pois, devido ao seu caráter de entrega e ao seu vínculo indissolúvel com a maternidade, eleva-se por si só, sem fantasias de coragem e sacrifício, acima do erotismo egoísta. O fato de a literatura ter sido produzida por homens não justifica de todo a falta da expressão feminina do amor, mas isso ocorre também porque para a mulher o elemento literário é muito menos indispensável no amor.

A figura do nobre salvador que sofre por causa de sua amada é, em primeiro lugar, a representação do homem como ele quer ver a si mesmo. A tensão do seu sonho de libertador é intensificada pelo fato de que ele age anonimamente e só será reconhecido após o ato heroico. Nessa ocultação da identidade do herói há também, por certo, um motivo romântico baseado na concepção feminina do amor. Na materialização apoteótica da imagem da força e coragem masculinas na forma do guerreiro a cavalo, o anseio feminino por poder e o orgulho físico masculino se fundem.

A sociedade medieval cultivou esses motivos romântico-primitivos com uma insaciabilidade juvenil. Enquanto as formas literárias mais elevadas se refinaram numa expressão mais etérea e sóbria ou mais espirituosa e excitante do desejo, o romance cavaleiresco continua sempre se rejuvenescendo e, com sua infinita reelaboração da situação romântica, mantém uma atração quase incompreensível para nós.”

 

 

“A sedução do romantismo amoroso não se restringia à experiência da leitura, existindo também nos jogos e encenações. Há duas formas em que o jogo pode ocorrer: o espetáculo dramático e o esporte. Na Idade Média, este último é, de longe, o mais importante. O drama ainda se ocupava em grande parte de uma outra temática, de cunho religioso; tratar de assuntos românticos era uma exceção. O esporte medieval, pelo contrário, e sobretudo o torneio, já era altamente dramático por si só e, ao mesmo tempo, de um conteúdo fortemente erótico. O esporte sempre conserva um elemento dramático e erótico: uma competição de remo ou uma partida de futebol nos dias de hoje pressupõem muito mais os valores sentimentais de um torneio medieval do que se dão conta os próprios atletas e espectadores. Mas enquanto o esporte moderno retornou a uma simplicidade natural, quase grega, o torneio medieval, pelo menos aquele do final da Idade Média, é um esporte sobrecarregado de ornamentação, em que se elaboravam os elementos dramáticos e românticos de modo tão intencional que ele mesmo dava conta de cumprir a função dramática.

O final da Idade Média é um desses períodos em que a vida cultural dos círculos mais altos se transforma quase completamente em um jogo de salão. A realidade é violenta, dura e cruel; ela é reduzida ao sonho belo do ideal cavaleiresco, e acima dele se constrói o jogo da vida. Joga-se com a máscara de Lancelote; trata-se de uma tremenda autoilusão; mas é possível suportar essa dolorosa falsidade negando a própria mentira com um sopro de ironia. Em toda a cultura cavaleiresca do século XV há um equilíbrio instável entre a seriedade sentimental e a ironia jocosa.”

 

 

Como já foi indicado, o esporte de combate na época medieval distingue-se do grego e do moderno em virtude de sua menor naturalidade. Para aumentar o suspense da competição, o torneio possuía o estímulo do orgulho e da honra aristocráticos, do erotismo romântico e da pompa artística. É sobrecarregado de fausto e adornos, repleto de fantasia multicolorida. Além de jogo e exercício físico, ainda é literatura aplicada. Os desejos e sonhos do coração poético procuram uma representação dramática, uma realização encenada na própria vida. A vida real não era suficientemente bela, mas dura, cruel e falsa. Na carreira militar e na corte, havia pouco espaço para sentimentos de coragem em nome do amor. Mas a alma está repleta deles, quer-se vivenciá-los e se cria uma vida mais bonita com jogos preciosos. O elemento de verdadeira coragem não é menos valioso no torneio cavaleiresco do que no pentatlo. Era justamente o caráter erótico evidente que exigia uma violência sangrenta. No que diz respeito aos temas, o torneio está mais próximo da antiga epopeia indiana; em Mahabharata, a luta pela mulher também é a ideia central.”

5.5 – Miniatura extraída do Livre des Tournois, feita para Luís de Gruuthuse

 

“Será que a política e a guerra realmente se deixavam dominar pelas concepções cavaleirescas? Sem dúvida que sim. Se não por suas virtudes, ao menos por seus erros. Assim como os equívocos trágicos da época atual brotam do delírio do nacionalismo e da arrogância cultural, da mesma forma os enganos da Idade Média brotaram muitas vezes do pensamento cavaleiresco.”

 

 

“Não se deve fazer nada que tenha sido proposto por seu inimigo.” (Provérbio)

 

 

“A realidade sempre foi pior e mais crua do que a visão do refinado ideal amoroso literário.”

 

 

Um certo Charles de Rochefort tratou o tema na forma de um poema alegórico, no estilo do Roman de la Rose. O seu L’Abuzé en court [A ilusão na corte] fora atribuído ao rei René.16 Jean Meschinot compõe poemas como os de todos os seus antecessores:

A corte é um mar / Vagas de orgulho, tormentas de inveja... / A ira desperta brigas e mágoas, / Que muitas vezes põem o barco a perder; / A traição desempenha o seu papel / Deixe-se levar a outro lugar para o seu divertimento.17

16. Œuvres du roi René, v. 4, p. 73. Ver Thuasne, v. 2, p. 204.

17. Meschinot, ed. 1522, f. 94, por La Borderie, Bibl. De l’Éc. des Chartres, LVI, 1895, p. 313.

 

 

O monge de Cluny achava que estava certo quando mostrava a superficialidade da beleza física. “A beleza do corpo existe apenas na pele. Pois se as pessoas vissem o que há sob a pele, assim como acontece ao lince da Beócia, que vê as entranhas, sentiriam asco ante a visão de uma mulher. Toda aquela graça consiste em mucosidades e em sangue, em fluidos e bile. Se alguém pensar naquilo que se oculta nas narinas, naquilo que se oculta na garganta e no ventre, sempre achará imundice. E se nem mesmo com as pontas dos dedos conseguimos tocar o muco ou os excrementos, como podemos querer abraçar o próprio saco dos excrementos?9

9. Odo van Cluny, “Collationum” (livro 3), em Migne (Org.), Patrologia Latina, v. 133, p. 556. O motivo e seu efeito se baseiam em Johannes Chrysostomus, “Sobre as mulheres e a beleza”, em Opera (Paris, 1735), v. 12, p. 523.

 

 

Em torno da Dança Macabra agrupam-se algumas representações afins ligadas à morte, igualmente apropriadas para serem usadas como elemento de advertência e terror. O conto dos três mortos e dos três vivos é anterior à Dança Macabra.24 Ele aparece na literatura francesa já no século XIII: três jovens da nobreza encontram de repente três mortos horríveis que lhes contam sobre suas glórias terrenas do passado e os alertam para o fim próximo que os aguarda. (...)

11.7 - As três mortes e as três viúvas

A representação dos três mortos e dos três vivos constitui o elo entre a imagem repugnante da putrefação e o pensamento, retratado na Dança Macabra, de que todos são iguais perante a morte. O desenvolvimento desse motivo na história da arte pode ser mencionado aqui apenas de passagem. Parece que a França também é o país de origem da Dança Macabra. Mas como ela surgiu? Foi como um espetáculo verdadeiramente encenado ou como uma imagem? (...)

11.8 - As três vivas e as três mortas do livro de salmos de Bonne de Luxemburgo

Em todo caso, mais cedo ou mais tarde, a Dança Macabra foi tanto encenada como pintada e gravada. O duque da Borgonha fez com que ela fosse representada em 1449, na sua residência em Bruges.25 Se pudéssemos ter alguma ideia da execução de tal espetáculo — as cores, os movimentos, o jogo de luz e sombras sobre os dançarinos —, compreenderíamos ainda melhor o grave horror que a Dança Macabra infligia aos ânimos, melhor até do que nos fazem compreender as xilogravuras de Guyot Marchant e de Holbein.”

24. Sobre tudo isso, consulte Émile Mâle, L’Art religieux à la fin du Moyen-Âge, v. 2, “La Mort”.

25. A. de Laborde, “Origine de la représentation de la Mort, chevauchant un bœuf”, em Académie des Inscriptions et Belles-Lettres: comptes rendus (1923, v. 2, pp. 1 e 393.

11.9 - Pintura do inferno, Pisa, Campo Santo


11.10 – A morte não perdoa bispo nem nobre.
Detalhes da dança macabra de Guyot Marchant, La Danse Macabre, Paris, 1485.



Chastellain, em seu Miroir de Mort,32 resumiu todos os motivos aqui tratados. Ele começa com uma narrativa comovente que, apesar da solene prolixidade, própria desse autor, acerta em cheio quanto a seu efeito. Sua amada moribunda o chama para junto de si e, com uma voz entrecortada, lhe diz:

Meu amigo, vê minha face,

Vê o que a triste morte faz,

E não te esqueças jamais.

Esta é aquela que tanto amaste,

E este é o seu corpo, feio e sujo,

Que para sempre perderás;

Ele será refeição fedorenta

Para a terra e os vermes:

A dura morte põe fim a toda beleza.”

32. Chastellain, Œuvres, v. 6, p. 49. Ver antes, p. 252.

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