Editora: Globo
ISBN: 978-85-2503-339-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 913
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Sinopse: Ensaio fundamental, acadêmico,
para a compreensão da formação social e política brasileira. Partindo das
origens portuguesas de nosso patronato político, o autor demonstra como o
Brasil foi governado, desde a colônia, por uma comunidade burocrática que acabou
por frustrar o desenvolvimento de uma nação independente. Sua análise abarca o
longo período que vai da Revolução Portuguesa do século XIV até a Revolução de
1930 no Brasil.
“A história, uma vez aberta ao dinamismo, não
contempla atos gratuitos e inconsequentes – ela devora, segundo uma ideia que seria
cara a Hegel, homens e instituições.”
“O Estado (no segundo reinado), desta forma elevado
a uma posição prevalente, ganha poder, internamente, contra as instituições e classes
particularistas, e, externamente, se estrutura como nação em confronto com outras
nações. Do seu seio, mediante esse estímulo, floresce o absolutismo, consagrado
na razão de estado. Influxos recíprocos – Estado e comércio – geram o sistema mercantilista,
próprio à expansão do aparelhamento estatal, condutor da economia e beneficiário
da atividade comercial, preocupada, não raro, na ilusão monetária. Ele permitiu,
justificando-a racionalmente, a política de transporte do tráfico africano, asiático
e americano, que supôs, sem a fixação de fontes produtoras nacionais, que o Estado
seria rico se fluísse, no país, muito dinheiro, em boas e sonantes moedas. A atividade
mercantil, desvinculada da agricultura e da indústria, não permitiu a acumulação
de capitais no país: a prata e o ouro, depois de perturbar e subverter o reino,
fugiam para as manufaturas e as cidades europeias, em louca disparada. “Parece”
– confessa um fidalgo – “que este dinheiro da Índia é excomungado, porque não luz
a nenhum de nós.” [...] “É dinheiro de encantamento” – retruca o soldado, traindo o desdém medieval pela
riqueza, no fundo o pecado da riqueza – “que se converte em carvões; o mais dele
vai por onde veio. Donde o diabo traz a lebre lá lhe leva a pele; e veio por canais
infernais, pelos mesmos se torna a ir. O mais dele é de sangue de inocentes; e assi
como o dinheiro por que foi vendido o Filho de Deus se não comprou com ele mais
do que um pedaço de chão infrutuoso que não servia mais que para sepultura de mortos
e para cama de bichos, assi estoutros nunca lhe vereis morgados feitos com o seu
dinheiro: tudo vai a parar num campo de mortos, em bichos e sujidades, em que por
derradeiro o mais deles vem a parar.” (Diogo do Couto.) Era o resultado da especulação
– a mola, por alguns séculos, da riqueza, fruto do golpe audaz, do expediente astuto,
da aventura temerária, e não do trabalho continuado, do cálculo e da poupança. O
império da mesma direção – o pensamento importado e tardo, a realidade tumultuária
– levou ao atraso científico e ao enrijecimento do direito, ao serviço, ambas as
fraquezas, do estado-maior de domínio. A utilização técnica do conhecimento científico,
uma das bases da expansão do capitalismo industrial, sempre foi, em Portugal e no
Brasil, fruta importada. Não brotou a ciência das necessidades práticas do país,
ocupados os seus sábios, no tempo de Descartes, Copérnico e Galileu, com o silogismo
aristotélico desdenhoso da ciência natural. Verney, já no século XVIII, em nome
de uma plêiade de sábios educados no estrangeiro, clama contra o atraso do ensino
nacional, acadêmico, aéreo, falso. Portugal, cheio de conquistas e glórias, será,
no campo do pensamento, o “reino cadaveroso”, o “reino da estupidez”: dedicado à
navegação, em nada contribuiu para a ciência náutica; voltado para as minas, não
se conhece nenhuma contribuição na lavra e na usinagem dos metais. Toda a vida intelectual,
depois da fosforescência quinhentista, “ficou reduzida a comentários. Comentar os
livros da antiguidade; comentar, subtilizar, comentar. Era um jogo de subtilezas
formais, um jogo verbal de ilusões aéreas. [...] Por toda parte, na Europa, vemos
o triunfo do moderno espírito, do espírito crítico e experimentalista. Por toda
parte? Não digo bem. Menos aqui, na península ibérica; menos aqui, em Portugal.
[...] Temos que confessar que viemos para trás; temos que declarar que tudo morreu.
Nada passou do espírito científico para o século XVII português; pelo contrário:
o século XVII, aqui, é peripatético e medieval”. A ciência se fazia para as escolas
e para os letrados e não para a nação, para suas necessidades materiais, para sua
inexistente indústria, sua decrépita agricultura ou seu comércio de especulação.
Uma camada de relevo político e social monopolizava a cultura espiritual, pobre
de vida e de agitação. Fora dela, cobertos de insultos, ridicularizados, os reformadores
clamavam no deserto, forçados a emigrar para a distante Europa, envolvida em outra
luz.”
“O inglês fundou na América uma pátria, o português
um prolongamento do Estado.”
“A administração local, a única parcialmente brasileira
será apenas autônoma para pequenas obras, uma ponte ou uma estrada vicinal. A sociedade
não se lusitanizará com esta parada no seu processo de tomada de consciência, nem
apropriará, no seu conteúdo, o papel do governo, como expressão das necessidades
e anseios coletivos. Criará uma dependência morta, passiva, estrangulada. O Estado
não é sentido como o protetor dos interesses da população, o defensor das atividades
dos particulares. Ele será, unicamente, monstro sem alma, o titular da violência,
o impiedoso cobrador de impostos, o recrutador de homens para empresas com as quais
ninguém se sentirá solidário. Ninguém com ele colaborará – salvo os buscadores de
benefícios escusos e de cargos públicos, infamados como adesistas a uma potência
estrangeira. Os senhores territoriais, a plebe urbana cultivam, na insubmissão impotente,
um oposicionismo difuso, calado, temeroso da reação draconiana. Cria-se, em toda
parte, o sentimento de rebeldia informe, que se traduz em estranho conflito interior,
com a vontade animosa na propaganda e na palavra, débil na ação e arrependida na
hora das consequências. O inconfidente é bem o protótipo do homem colonial: destemperado
e afoito na conspiração, tímido diante das armas e, frente ao juiz, herege que renuncia
ao pecado, saudoso da fé. Ao sul e ao norte, os centros de autoridade são sucursais
obedientes de Lisboa: o Estado, imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece
íntegro, reforçado pela espada ultramarina, quando a sociedade americana ousa romper
a casca do ovo que a aprisiona. A colônia prepara, para os séculos seguintes, uma
pesada herança, que as leis, os decretos e os alvarás não lograrão dissolver.”
“Fazenda, guerra e justiça são as funções dos
reis, no século XVI”.
“De todas as ordens religiosas, franciscanos,
capuchinhos, beneditinos, carmelitas, oratorianos, responsáveis estes pela educação
liberal de alguns homens públicos, nenhuma desempenhou, durante dois séculos (1549
a 1759), o papel dos jesuítas, junto aos indígenas e aos colonos. Nenhuma ordem,
como esta, mais irredutível aos interesses econômicos dos colonos, nenhuma mais
rebelde aos ditames da administração. Representou, na dissolução de costumes dos
invasores brancos, a moral romana e europeia, enrijecida pelo Concilio de Trento,
no espírito da Contrarreforma. Herdeira, pela inassimilação secular do clero, da
voz dos profetas, defendeu uma causa, só eles coerentes num mundo subvertido pelo
caos: a disciplina da sociedade a padrões religiosos. A Ordem, ao contrário das
demais, vincula-se à mais estrita obediência ao papa, por meio de solene voto. A
família e o Estado são desprezados, em benefício de missão mais alta e consagrada
diretamente ao chefe da Igreja. Nessa submissão havia um dissídio íntimo e cheio
de consequências latentes com o padroado. No trato com o indígena, sem respeito
ao colono e a seus imediatos interesses, em desafio às autoridades do mundo, tudo
levaria o jesuíta a uma organização teocrática. Obstou-lhe o passo – ao contrário
da sociedade espanhola, embora também presa ao padroado – a rígida integração do
Estado português, estruturado com base na supremacia do poder civil. Os bandeirantes
e os colonos do norte defenderam o poder civil, compreendido o catolicismo dentro
do Estado, identificado com a grei portuguesa. A organização política de Portugal
nunca assentou, como a espanhola, sobre a Igreja, Igreja, contudo, limitada pelo
padroado. O respeito devotado ao padre e ao clero, a obediência aos padrões religiosos,
não impediram que a supremacia civil mantivesse suas prerrogativas de comando, alicerçadas
numa secular luta. O que as ordens religiosas conseguiram, no Brasil, foi, no máximo,
sobretudo pelo esforço dos jesuítas, a conservação da moldura religiosa da sociedade.
Enquanto as outras ordens transigiram com a flutuante e dissolvente moral da terra,
na qual os transmigrados seriam um bando desaçaimado de garanhões e de escravizadores
e a indiada, matéria-prima do bordel dos sertões, os jesuítas, os “donzelões intransigentes”,
se mantiveram incólumes ao apelo da carne e à cobiça escravagista.”
“Em todos os tempos, as culturas, quando se encontram,
combatem, com o sacrifício de uma, num permanente processo de trituramento interior,
com a sobra da nostalgia idealizada da civilização perdida e soterrada, longínqua
e morta.”
“A classe é um fenômeno da economia e do mercado,
sem que represente uma comunidade – embora a ação comunitária seja possível, provável
e frequente com base na situação comum e em interesses homogêneos. Ter ou não ter
– obter lucros, possuir bens, ou desfrutar de ingressos econômicos em virtude de
habilitação profissional – situam a classe, positiva ou negativamente qualificada.
O ter e o não ter, a capacidade de lucro ou salário refere-se ao mercado, aos valores
que se podem fixar em termos econômicos, redutíveis, em expressão última, ao dinheiro.
As classes, nas suas conexões com o domínio, o comando e a política, ganham ascendência
com a sociedade burguesa, com a Revolução Industrial.”
“Um século depois, o mais profundo analista do
Segundo Reinado (Joaquim Nabuco) dirá que o crédito faz do fazendeiro “o empregado
agrícola que o comissário ou o acionista de banco tem no interior para fazer o seu
dinheiro render acima de 12%”. O comerciante – a burguesia comercial – libará o
mel do açúcar, com os proventos da exportação e reexportação, ficando o industrial
e o lavrador com as sobras e os ônus.”
“A estrutura de classes recebe sua expressão desse
mundo econômico. A economia mercantil, movida da Europa, traça o contorno das praias
e dos sertões americanos. A exportação, infundindo o valor a todas as coisas, determina
o posto do senhor de engenho e do proprietário na pirâmide social. Essa circunstância,
que encobre todas as outras, se adensa graças a outra realidade. O escravo – que
exige crédito –, base de toda a produção, concentra nos seus traficantes, na rede
de seus traficantes, a outra mola da expansão econômica. Nesse sentido, e não no
sentido retórico e original, a palavra de Joaquim Nabuco expressa uma verdade: o
escravo confundiu as classes, impedindo a estratificação. O opulento senhor de escravos
se converterá, senão ele, seu filho, senão este, seu neto, no pobre orgulhoso: as
terras passarão ao fornecedor de escravos a crédito, ao exportador, ao comissário,
que lhe adiantam os meios para sustentar o “luxo sem cabedais”: “poucos são os netos
de agricultores que se conservam à frente das propriedades que seus pais herdaram;
o adágio ‘pai rico, filho nobre, neto pobre’ expressa a longa experiência popular
dos hábitos da escravidão”.”
“Atrás do quadro da escravidão não se esconde
apenas a tirania, a dureza de costumes e o aviltamento do homem. “Os senhores poucos”
– bradará Vieira – “os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos
despidos e nus; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros;
os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses;
os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania,
os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão
e espetáculos da extrema miséria”. Há, no fundo da cena, o painel que desvenda a
transmigração e a mercancia, a transmigração e a “mercancia diabólica”. Na empresa
convergem os dois pilares da economia portuguesa – o comércio e a agricultura –,
com a sanção, o proveito e os interesses da camada politicamente dominante. Nos
dois e meio ou quatro milhões de escravos que entraram no Brasil durante a colônia
haverá um negócio global em torno de cem milhões de libras, mais a importância do
tráfico interno, o que levará a um aumento de cinquenta a cem por cento. O volume
dos valores empregados será, desta sorte, equivalente aos do ouro, o segundo maior
valor da colônia, abaixo do açúcar. Vinte por cento das importações empregam-se
no escravo, num comércio sem paralelo pela sua lucratividade. Esta desdenhada circunstância
explica muitos enigmas da história brasileira: a dependência à burguesia portuguesa,
por sua vez enfeudada à europeia, a centralização política decorrente de um homogêneo
núcleo de interesses, a submissão do agricultor ao vendedor e financiador de escravos,
a pouca mobilidade da empresa colonial, arraigada, até à morte, aos seus investimentos
de escassa lucratividade, agrilhoada às dívidas sempre renovadas e crescentes. Do
centro da “mercancia diabólica” se irradia, depois de conjugados o Estado e os negociantes,
uma ordem social, que entra em todos os poros da colônia e infunde vento às metropolitanas
combinações econômicas. O açúcar e o ouro explicam muito da vida colonial, mas nada
explicam sem o escravo, considerada mercadoria mais valiosa. Num momento em que
a renda interna se funda, na maior parte, na exportação, é esta manipulada, no exterior
e nas ramificações internas, por outro e mais fundamental elemento vinculador aos
centros europeus.”
“Toda nossa política, assim monárquica como republicana,
mostrou-se geralmente ou duvidosa da capacidade do povo, ou suspeitosa do caráter
de suas manifestações, de tal maneira que, entre nós, o povo foi sempre mais um
símbolo constitucional do que fonte de autoridade em cujo contato dirigentes, representantes
e líderes partidários fossem retemperar o ânimo e o desejo de servir.
A política brasileira tem a perturbá-la, intimamente,
secretamente, desde os dias longínquos da Independência, o sentimento de que o povo
é uma espécie de vulcão adormecido. Todo perigo está em
despertá-lo. Nossa política nunca aprendeu a pensar normalmente no povo, a aceitar
a expressão da vontade popular como base da vida representativa.” (Hermes Lima)
“O conservador sem cargos faz-se revolucionário;
o liberal no poder esquece a pólvora incendiária.”
“Ainda se conservam, e é provável que se conservem
para sempre, na lembrança de todos os que assistiram às eleições anteriores a 1842,
as cenas de que eram teatro as nossas igrejas na formação das mesas eleitorais.
Cada partido tinha seus candidatos, cuja aceitação ou antes imposição, era questão
de vida ou morte. Quais, porém, os meios de chegarem as diversas parcialidades a
um acordo? Nenhum. A turbulência, o alarido, a violência, a pancadaria decidiam
o conflito. Findo ele, o partido expelido da conquista da mesa nada mais tinha que
fazer ali, estava irremissivelmente perdido. Era praxe constante: declarava-se coato
e retirava-se da igreja, onde, com as formalidades legais, fazia-se a eleição
conforme queria a mesa.” Não acabava aí a via crucis eleitoral. As eleições
secundárias abriam outro capítulo, nas quais a barganha, mantida embora a coerência
partidária, designava os deputados. Os afagos oficiais, as nomeações, as promessas
indicavam o eleito, não raro remetidas as atas em branco para que os presidentes
da província decidissem preenchê-las ao seu talante. Mais tarde, o registro das
atas nos tabeliães públicos obstou a fraude, ao tempo que abria outro expediente,
este de longa vida, as duplicatas eleitorais. O regime, dito democrático, do sistema
de 1824, era, na realidade, o domínio da turbulência popular, só não extremada em
virtude do freio disciplinador da propriedade territorial, forte na quadra inicial
da nação e devido ao pouco prestígio da Câmara na primeira legislatura, escaldadas
as opiniões com a dissolução da Constituinte. ”
“O governo, para o povo, não é o protetor, o defensor,
a guarda vigilante de sua vontade e de seus interesses: mas o explorador, o algoz,
o perseguidor. Um comando político ativo e violento submete uma sociedade passiva
e atemorizada, vendo no poder a insondável máquina de opressão, incapaz de provocar
a confiança. Na última década do século (XIX), uma transação, provisória e de resultados
tardios, aproximando o mando do povo, para, a título de representá-lo, impor-lhe,
pelo compadrio ou pelo favor, pelo bacamarte ou pela miséria, o caminho da submissão.
A tutela colonial sucede-se a tutela imperial, sob a luz de um mito, o venerando
imperador, fonte de bondade e respeito ao cidadão, mas, na realidade, desvirilizado
pelos intermediários e idealizado pela distância. A anarquia sucede a ordem, ao
tumulto do país real a paz fictícia do país oficial, depois, uma transação tão governamental
como a outra. Sempre, mortos os fumos da Independência, o governo paira sobre as
águas, comandando os elementos. O “cabresto” não desapareceu, mas alargou-se para
muitas mãos. Só uma coisa permaneceu: a dependência do eleitor, mais ávido de mercês
e não mais autônomo.”
“O governo tudo sabe, administra e provê. Ele
faz a opinião, distribui a riqueza e qualifica os opulentos. O súdito, turvado com
a rocha que lhe rouba o sol e as iniciativas, tudo espera da administração pública,
nas suas dificuldades grandes e pequenas, confiando, nas horas de agonia, no milagre
saído das câmaras do paço ou dos ministérios. Esse perigoso complexo psicológico
inibe, há séculos, o povo, certo de que o Estado não é ele, mas uma entidade maior,
abstrata e soberana. A caricatura: Bentinho, condenado ao seminário e ao jejum dos
olhos de Capitu, sonha que o imperador desligará a promessa da mãe e selará o noivado.
Os contemporâneos, com a observação mais crua, sentem a realidade. “Todos cruzam
os braços” – lamenta o visconde do Uruguai – “e se voltam para ele [o governo],
todos o acusam, quando se manifesta o mais pequeno mal.” “Tudo se espera do Estado”
– lembra Joaquim Nabuco – “que, sendo a única associação ativa, aspira e absorve
pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os
seus clientes, pelo emprego público, sugando as economias do pobre pelo curso forçado,
e tornando precária a fortuna do rico.” Por toda parte, em todas as atividades,
as ordenanças administrativas, dissimuladas em leis, decretos, avisos, ordenam a
vida do país e das províncias, confundindo o setor privado ao público. Os regulamentos,
com a feição francesa, ainda quentes da tradução, com minúcia e casuísmo, inundam
as repartições, o comércio, a agricultura. Da mole de documentos, sai uma organização
emperrada, com papéis que circulam de mesa em mesa, hierarquicamente, para o controle
de desconfianças recíprocas. Sete pessoas querem incorporar uma sociedade? O governo
lhes dará autorização. Quer alguém fabricar agulhas? O governo intervirá com a permissão
ou o privilégio. O fazendeiro quer exportar ou tomar empréstimos? Entre o ato e
a proposta se interporão um atoleiro de licenças. Há necessidade de crédito particular?
O ministério será chamado a opinar. O carro, depois da longínqua partida, volta
aos primeiros passos, enredado na reação centralizadora e na supremacia burocrático-monárquica,
estamental na forma, patrimonialista no conteúdo. Um aparente paradoxo: o Estado,
entidade alheia ao povo, superior e insondável, friamente tutelador, resistente
à nacionalização, gera o sentimento de que ele tudo pode e o indivíduo quase nada
é. O ideal, utopicamente liberal, que afirma o domínio, a fiscalização e a apropriação
da soberania de baixo para cima, base do regime democrático, esse ideal não perece,
não obstante sua impotência. Entende a camada dominante, negando-o, que a sociedade
brasileira não dispõe dos instrumentos necessários de cultura e autonomia para o
trato de seus negócios e para governar-se a si mesma. O dogma, não longe da verdade,
perde-se num círculo vicioso: o povo não tem capacidade para os negócios porque
o sistema lhe impede neles participar. A contradição está na raiz do despotismo
pedagógico, da ditadura mental dos planos de José Bonifácio, que, reconhecendo a
inaptidão, sobre ela assenta a casa, cultivando uma atmosfera artificial, base do
seu poder.”
“No todo, a crise de 1864, como sempre tem acontecido
entre nós, foi aproveitada pelos especuladores para obter do governo, sob a ação
do pânico, além das medidas excepcionais em que a opinião estava concorde, favores
extraordinários, em benefício exclusivo deles. É sempre esse o processo; levanta-se
um clamor geral pedindo a intervenção do governo, e este, no uso da ditadura que
lhe é imposta, não se limita à medida reclamada por todos; tornando-se cúmplice
dos que exploram a confusão do momento, dos que jogam afoitamente contando com o
Estado para salvá-los ou desobrigá-los em caso de perda, decreta providências excessivas
que só aproveitam a essa classe, em favor da qual a lei não merecia ser suspensa,
muito menos inovada.” A entidade da crise oficial, tão oficial como a especulação,
fecha o círculo da vida financeira do Império.”
“Mauá, o maior empresário e banqueiro do Império,
via com clareza a estrutura do seu tempo. Ele sofria, como todos, o dilaceramento
de tendências opostas: reclama a liberdade para a empresa, mas não dispensa, senão
que reclama estímulo oficial, envolvendo o Estado nos negócios, no esquema global.
(...) O empresário quer a indústria, mas solicita a proteção alfandegária e o crédito
público. Duas etapas constituem o ideal do empresário: na cúpula, o amparo estatal;
no nível da empresa, a livre iniciativa.”
“Ao arvorar no Partido Liberal a ideia da federação,
em combate à apropriação republicana, Joaquim Nabuco denunciará, como impedimento
fundamental do progresso, “esta burocracia que só serve para falsificar, na transmissão
para o centro, as impressões da nossa vasta superfície, essa organização forasteira
e espoliadora que, em vez de ajudar a viver, esgota em nome e com a força do Estado
a atividade de cada uma de suas partes. [...] As províncias hão de compreender dentro
de pouco” – prossegue, em tom vivamente republicano – “que o que constitui governo
colonial não é a falta de representação parlamentar, nem a da Constituição, nem
o nome de colônia, nem a diferença de nacionalidade. O que constitui o governo colonial
é a administração em espírito contrário ao do desenvolvimento local”. Os recursos
deverão ficar onde são produzidos, sem separar o trabalho de seus frutos. O governo
deveria expressar a vontade dos governados, com a responsabilidade plena da administração,
extinguindo-se o “beduinismo político”, comparados os presidentes de província às
"aves de arribação e de rapina", iguais aos magistrados ingleses na Índia,
que tributam e devastam as localidades em proveito da corte (discurso na Câmara
dos Deputados, de 21 de setembro de 1885). O Estado, concentrado nas garras centralizadoras,
confunde-se com a exploração estrangeira, voraz, impiedosa, esterilizadora.”
“No fundo, ainda uma vez, o dogma liberal da soberania
do povo. “Há entre nós, um monarca: o Imperador; mas só há um soberano: o povo.
Aquele cede a este, ou muda de terra. Pode ser Pedro I; mas não esqueça a porta,
por onde este saiu”.” (Rui Barbosa)
“Os escravos, auxiliados pela campanha abolicionista
e estimulados pelas alforrias humanitárias, fogem do trabalho, formando quilombos,
renascem os quilombos de memória já perdida nas suas tentativas iniciais. Em São
Paulo, principalmente, as fazendas de café da zona de Campinas se despovoam, com
a fuga de escravos para o litoral. Diante da reação dos proprietários, que apelam
para a força pública, Cotegipe, escravocrata intransigente, se dispõe a utilizar
o Exército na repressão. Na Câmara dos Deputados, o líder abolicionista Joaquim
Nabuco concita os militares a se negarem ao papel degradante de “capitães-do-mato
na pega de negros fugidos”. A semente não podia cair em terreno mais fértil – o
Exército, sem compromissos com a propriedade territorial, de onde não saíam os oficiais,
não se dispôs a apoiar, de outro lado, o estamento monárquico, do qual se desligara
e que não admitia abrir-lhe as portas. Não se poderia contar com a força armada
para conter a rebelião das senzalas, com cerca de doze mil escravos, que abandonam
as fazendas, só em São Paulo, no contágio de um movimento que se precipitara a partir
do norte. Deodoro, autorizado pelos seus pares em assembleia, repele a presença
do Exército na obra repressora. O Clube Militar não se dirige ao gabinete – nesse
ano de 1887 chefiado por um escravocrata – mas ao ajudante-general do exército e
à princesa regente. O Exército declara que a perseguição aos escravos não será decorosa
ou digna, cabendo a tarefa à polícia. “Não nos deem tais ordens, porque não as cumpriremos”
– diz enfaticamente o chefe militar. A princesa a linguagem é mais macia, docemente
áulica, embora inflexível nos propósitos, sempre com o protesto de lealdade ao trono:
“esperam que o governo imperial não consinta que os oficiais e as praças do Exército
sejam desviados de sua nobre missão, que não deseja o esmagamento do preto pelo
branco nem consentiria também que o preto, embrutecido pelos horrores da escravidão,
conseguisse garantir sua liberdade esmagando o branco”.
“O Exército havia de manter a ordem. Mas, diante
de homens que fogem calmos, sem ruído, tranquilamente, evitando tanto a escravidão
como a luta e dando, ao atravessar cidades, enormes exemplos de moralidade, cujo
esquecimento tem feito muitas vezes a desonra do Exército mais civilizado, o Exército
brasileiro espera que o governo imperial conceder-lhe-á o que respeitosamente pede
em nome da humanidade e da honra da própria bandeira que defende”. A manifestação
casa-se com outra, cuja importância não foi avaliada no tempo: a candidatura de
Deodoro para uma vaga de senador pelo Rio de Janeiro, nas eleições de 17 de julho
de 1887. O futuro proclamador da República concorre desligado dos partidos, distante
já de suas simpatias ao Partido Conservador. Será uma candidatura gerada pelos seus
camaradas de farda, em nome do abolicionismo, incapaz, obviamente, de romper a barreira
partidária. Os dois fatos, a candidatura de 17 de julho e a manifestação de outubro,
denunciam o desligamento do Exército das teias partidárias da monarquia. Indicarão,
mais significativamente, o comando militar nos assuntos políticos, tolerado, não
sem irritação, pelo grupo dirigente, impotente para punir, reprimir ou restabelecer
a disciplina. Somente os golpes de bastidores suprem a reação aberta, com planos
e providências para anular o desvio do eixo político. Desprotegidos pelo Exército,
o fazendeiro e o comerciante urbano sentem que a abolição está às portas. Os paulistas,
aptos a dispensar o escravo e substituí-lo pelo assalariado, apressam a mudança
do regime de trabalho, confiados em que os pretos permaneceriam nas fazendas, se
livres, sem motivo para a fuga em massa. Antônio Prado, agora abolicionista, em
nome dos interesses agrícolas de São Paulo, aceita a alforria imediata, abandonados
os projetos da transição suave, em dois ou cinco anos. Não será o 13 de maio, desta
forma, a generosa dádiva da regente, mas o resultado do dissídio na cúpula, com
a defecção da força armada. (...) A abolição fazia-se de cima para baixo, não pelo
ofício dos senadores, conselheiros e viscondes, mas pela espada.”
Um comentário:
De fato, a leitura deste livro foi uma tarefa hercúlea – não só pelo tamanho do cartapácio, mas, especialmente, pela forma hermética, árida, que o autor escreve.
É uma pena que assim seja, pois, talvez esta seja a obra mais completa, mais culta, com maior quantidade de citações (cerca de 60 páginas só de notas de obras citadas) que já tive a oportunidade de ler.
Acabei demorando meses para finalizar este livro – o fiz enquanto lia outras obras – e, posso dizer tranquilamente que há trechos em que o mesmo é quase ilegível, dada a aridez da escrita. "Os donos do poder" só toma maior dinamismo quando começa a tratar da “Revolução” de 1930 (entre aspas, posto que, adotando a concepção de Trotsky, a revolução é quando o povo toma em suas mãos o seu próprio destino. Tal fato não ocorreu em 1930, nem nunca no Brasil – talvez, a coluna Prestes tenha sido a oportunidade mais próxima disto ocorrer, porém, este é um tema para outros debates).
Não tenho apreço por alguns historiadores que querem ver tudo o que passou como uma piada, intentando fazer livros mais de humor do que de história – não conseguem fazer nem uma coisa, nem outra. Porém, além da contextualização histórica muito bem elaborada, fez falta a inserção de elementos mais próximos ao ser humano, como a própria citação contida neste blog, do eleitor que “não sabia” o próprio nome. Exemplos e contextualizações mais diretas como esta ao longo do livro teriam sido fundamentais para mitigar a dificuldade da leitura da obra.
Em outros termos, "Os donos do poder" é um livro para iniciados – e que tenham fôlego.
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