quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (Parte I), de Raymundo Faoro

Editora: Globo

ISBN: 978-85-2503-339-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 913

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Sinopse: Ensaio fundamental, acadêmico, para a compreensão da formação social e política brasileira. Partindo das origens portuguesas de nosso patronato político, o autor demonstra como o Brasil foi governado, desde a colônia, por uma comunidade burocrática que acabou por frustrar o desenvolvimento de uma nação independente. Sua análise abarca o longo período que vai da Revolução Portuguesa do século XIV até a Revolução de 1930 no Brasil.



“A história, uma vez aberta ao dinamismo, não contempla atos gratuitos e inconsequentes – ela devora, segundo uma ideia que seria cara a Hegel, homens e instituições.”

 

 

“O Estado (no segundo reinado), desta forma elevado a uma posição prevalente, ganha poder, internamente, contra as instituições e classes particularistas, e, externamente, se estrutura como nação em confronto com outras nações. Do seu seio, mediante esse estímulo, floresce o absolutismo, consagrado na razão de estado. Influxos recíprocos – Estado e comércio – geram o sistema mercantilista, próprio à expansão do aparelhamento estatal, condutor da economia e beneficiário da atividade comercial, preocupada, não raro, na ilusão monetária. Ele permitiu, justificando-a racionalmente, a política de transporte do tráfico africano, asiático e americano, que supôs, sem a fixação de fontes produtoras nacionais, que o Estado seria rico se fluísse, no país, muito dinheiro, em boas e sonantes moedas. A atividade mercantil, desvinculada da agricultura e da indústria, não permitiu a acumulação de capitais no país: a prata e o ouro, depois de perturbar e subverter o reino, fugiam para as manufaturas e as cidades europeias, em louca disparada. “Parece” – confessa um fidalgo – “que este dinheiro da Índia é excomungado, porque não luz a nenhum de nós.” [...] “É dinheiro de encantamento” – retruca o soldado, traindo o desdém medieval pela riqueza, no fundo o pecado da riqueza – “que se converte em carvões; o mais dele vai por onde veio. Donde o diabo traz a lebre lá lhe leva a pele; e veio por canais infernais, pelos mesmos se torna a ir. O mais dele é de sangue de inocentes; e assi como o dinheiro por que foi vendido o Filho de Deus se não comprou com ele mais do que um pedaço de chão infrutuoso que não servia mais que para sepultura de mortos e para cama de bichos, assi estoutros nunca lhe vereis morgados feitos com o seu dinheiro: tudo vai a parar num campo de mortos, em bichos e sujidades, em que por derradeiro o mais deles vem a parar.” (Diogo do Couto.) Era o resultado da especulação – a mola, por alguns séculos, da riqueza, fruto do golpe audaz, do expediente astuto, da aventura temerária, e não do trabalho continuado, do cálculo e da poupança. O império da mesma direção – o pensamento importado e tardo, a realidade tumultuária – levou ao atraso científico e ao enrijecimento do direito, ao serviço, ambas as fraquezas, do estado-maior de domínio. A utilização técnica do conhecimento científico, uma das bases da expansão do capitalismo industrial, sempre foi, em Portugal e no Brasil, fruta importada. Não brotou a ciência das necessidades práticas do país, ocupados os seus sábios, no tempo de Descartes, Copérnico e Galileu, com o silogismo aristotélico desdenhoso da ciência natural. Verney, já no século XVIII, em nome de uma plêiade de sábios educados no estrangeiro, clama contra o atraso do ensino nacional, acadêmico, aéreo, falso. Portugal, cheio de conquistas e glórias, será, no campo do pensamento, o “reino cadaveroso”, o “reino da estupidez”: dedicado à navegação, em nada contribuiu para a ciência náutica; voltado para as minas, não se conhece nenhuma contribuição na lavra e na usinagem dos metais. Toda a vida intelectual, depois da fosforescência quinhentista, “ficou reduzida a comentários. Comentar os livros da antiguidade; comentar, subtilizar, comentar. Era um jogo de subtilezas formais, um jogo verbal de ilusões aéreas. [...] Por toda parte, na Europa, vemos o triunfo do moderno espírito, do espírito crítico e experimentalista. Por toda parte? Não digo bem. Menos aqui, na península ibérica; menos aqui, em Portugal. [...] Temos que confessar que viemos para trás; temos que declarar que tudo morreu. Nada passou do espírito científico para o século XVII português; pelo contrário: o século XVII, aqui, é peripatético e medieval”. A ciência se fazia para as escolas e para os letrados e não para a nação, para suas necessidades materiais, para sua inexistente indústria, sua decrépita agricultura ou seu comércio de especulação. Uma camada de relevo político e social monopolizava a cultura espiritual, pobre de vida e de agitação. Fora dela, cobertos de insultos, ridicularizados, os reformadores clamavam no deserto, forçados a emigrar para a distante Europa, envolvida em outra luz.”

 

 

“O inglês fundou na América uma pátria, o português um prolongamento do Estado.”

 

 

“A administração local, a única parcialmente brasileira será apenas autônoma para pequenas obras, uma ponte ou uma estrada vicinal. A sociedade não se lusitanizará com esta parada no seu processo de tomada de consciência, nem apropriará, no seu conteúdo, o papel do governo, como expressão das necessidades e anseios coletivos. Criará uma dependência morta, passiva, estrangulada. O Estado não é sentido como o protetor dos interesses da população, o defensor das atividades dos particulares. Ele será, unicamente, monstro sem alma, o titular da violência, o impiedoso cobrador de impostos, o recrutador de homens para empresas com as quais ninguém se sentirá solidário. Ninguém com ele colaborará – salvo os buscadores de benefícios escusos e de cargos públicos, infamados como adesistas a uma potência estrangeira. Os senhores territoriais, a plebe urbana cultivam, na insubmissão impotente, um oposicionismo difuso, calado, temeroso da reação draconiana. Cria-se, em toda parte, o sentimento de rebeldia informe, que se traduz em estranho conflito interior, com a vontade animosa na propaganda e na palavra, débil na ação e arrependida na hora das consequências. O inconfidente é bem o protótipo do homem colonial: destemperado e afoito na conspiração, tímido diante das armas e, frente ao juiz, herege que renuncia ao pecado, saudoso da fé. Ao sul e ao norte, os centros de autoridade são sucursais obedientes de Lisboa: o Estado, imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece íntegro, reforçado pela espada ultramarina, quando a sociedade americana ousa romper a casca do ovo que a aprisiona. A colônia prepara, para os séculos seguintes, uma pesada herança, que as leis, os decretos e os alvarás não lograrão dissolver.”

 

 

“Fazenda, guerra e justiça são as funções dos reis, no século XVI”.

 

 

“De todas as ordens religiosas, franciscanos, capuchinhos, beneditinos, carmelitas, oratorianos, responsáveis estes pela educação liberal de alguns homens públicos, nenhuma desempenhou, durante dois séculos (1549 a 1759), o papel dos jesuítas, junto aos indígenas e aos colonos. Nenhuma ordem, como esta, mais irredutível aos interesses econômicos dos colonos, nenhuma mais rebelde aos ditames da administração. Representou, na dissolução de costumes dos invasores brancos, a moral romana e europeia, enrijecida pelo Concilio de Trento, no espírito da Contrarreforma. Herdeira, pela inassimilação secular do clero, da voz dos profetas, defendeu uma causa, só eles coerentes num mundo subvertido pelo caos: a disciplina da sociedade a padrões religiosos. A Ordem, ao contrário das demais, vincula-se à mais estrita obediência ao papa, por meio de solene voto. A família e o Estado são desprezados, em benefício de missão mais alta e consagrada diretamente ao chefe da Igreja. Nessa submissão havia um dissídio íntimo e cheio de consequências latentes com o padroado. No trato com o indígena, sem respeito ao colono e a seus imediatos interesses, em desafio às autoridades do mundo, tudo levaria o jesuíta a uma organização teocrática. Obstou-lhe o passo – ao contrário da sociedade espanhola, embora também presa ao padroado – a rígida integração do Estado português, estruturado com base na supremacia do poder civil. Os bandeirantes e os colonos do norte defenderam o poder civil, compreendido o catolicismo dentro do Estado, identificado com a grei portuguesa. A organização política de Portugal nunca assentou, como a espanhola, sobre a Igreja, Igreja, contudo, limitada pelo padroado. O respeito devotado ao padre e ao clero, a obediência aos padrões religiosos, não impediram que a supremacia civil mantivesse suas prerrogativas de comando, alicerçadas numa secular luta. O que as ordens religiosas conseguiram, no Brasil, foi, no máximo, sobretudo pelo esforço dos jesuítas, a conservação da moldura religiosa da sociedade. Enquanto as outras ordens transigiram com a flutuante e dissolvente moral da terra, na qual os transmigrados seriam um bando desaçaimado de garanhões e de escravizadores e a indiada, matéria-prima do bordel dos sertões, os jesuítas, os “donzelões intransigentes”, se mantiveram incólumes ao apelo da carne e à cobiça escravagista.”

 

 

“Em todos os tempos, as culturas, quando se encontram, combatem, com o sacrifício de uma, num permanente processo de trituramento interior, com a sobra da nostalgia idealizada da civilização perdida e soterrada, longínqua e morta.”

 

 

“A classe é um fenômeno da economia e do mercado, sem que represente uma comunidade – embora a ação comunitária seja possível, provável e frequente com base na situação comum e em interesses homogêneos. Ter ou não ter – obter lucros, possuir bens, ou desfrutar de ingressos econômicos em virtude de habilitação profissional – situam a classe, positiva ou negativamente qualificada. O ter e o não ter, a capacidade de lucro ou salário refere-se ao mercado, aos valores que se podem fixar em termos econômicos, redutíveis, em expressão última, ao dinheiro. As classes, nas suas conexões com o domínio, o comando e a política, ganham ascendência com a sociedade burguesa, com a Revolução Industrial.”

 

 

“Um século depois, o mais profundo analista do Segundo Reinado (Joaquim Nabuco) dirá que o crédito faz do fazendeiro “o empregado agrícola que o comissário ou o acionista de banco tem no interior para fazer o seu dinheiro render acima de 12%”. O comerciante – a burguesia comercial – libará o mel do açúcar, com os proventos da exportação e reexportação, ficando o industrial e o lavrador com as sobras e os ônus.”

 

 

“A estrutura de classes recebe sua expressão desse mundo econômico. A economia mercantil, movida da Europa, traça o contorno das praias e dos sertões americanos. A exportação, infundindo o valor a todas as coisas, determina o posto do senhor de engenho e do proprietário na pirâmide social. Essa circunstância, que encobre todas as outras, se adensa graças a outra realidade. O escravo – que exige crédito –, base de toda a produção, concentra nos seus traficantes, na rede de seus traficantes, a outra mola da expansão econômica. Nesse sentido, e não no sentido retórico e original, a palavra de Joaquim Nabuco expressa uma verdade: o escravo confundiu as classes, impedindo a estratificação. O opulento senhor de escravos se converterá, senão ele, seu filho, senão este, seu neto, no pobre orgulhoso: as terras passarão ao fornecedor de escravos a crédito, ao exportador, ao comissário, que lhe adiantam os meios para sustentar o “luxo sem cabedais”: “poucos são os netos de agricultores que se conservam à frente das propriedades que seus pais herdaram; o adágio ‘pai rico, filho nobre, neto pobre’ expressa a longa experiência popular dos hábitos da escravidão”.”

 

 

“Atrás do quadro da escravidão não se esconde apenas a tirania, a dureza de costumes e o aviltamento do homem. “Os senhores poucos” – bradará Vieira – “os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos da extrema miséria”. Há, no fundo da cena, o painel que desvenda a transmigração e a mercancia, a transmigração e a “mercancia diabólica”. Na empresa convergem os dois pilares da economia portuguesa – o comércio e a agricultura –, com a sanção, o proveito e os interesses da camada politicamente dominante. Nos dois e meio ou quatro milhões de escravos que entraram no Brasil durante a colônia haverá um negócio global em torno de cem milhões de libras, mais a importância do tráfico interno, o que levará a um aumento de cinquenta a cem por cento. O volume dos valores empregados será, desta sorte, equivalente aos do ouro, o segundo maior valor da colônia, abaixo do açúcar. Vinte por cento das importações empregam-se no escravo, num comércio sem paralelo pela sua lucratividade. Esta desdenhada circunstância explica muitos enigmas da história brasileira: a dependência à burguesia portuguesa, por sua vez enfeudada à europeia, a centralização política decorrente de um homogêneo núcleo de interesses, a submissão do agricultor ao vendedor e financiador de escravos, a pouca mobilidade da empresa colonial, arraigada, até à morte, aos seus investimentos de escassa lucratividade, agrilhoada às dívidas sempre renovadas e crescentes. Do centro da “mercancia diabólica” se irradia, depois de conjugados o Estado e os negociantes, uma ordem social, que entra em todos os poros da colônia e infunde vento às metropolitanas combinações econômicas. O açúcar e o ouro explicam muito da vida colonial, mas nada explicam sem o escravo, considerada mercadoria mais valiosa. Num momento em que a renda interna se funda, na maior parte, na exportação, é esta manipulada, no exterior e nas ramificações internas, por outro e mais fundamental elemento vinculador aos centros europeus.”

 

 

“Toda nossa política, assim monárquica como republicana, mostrou-se geralmente ou duvidosa da capacidade do povo, ou suspeitosa do caráter de suas manifestações, de tal maneira que, entre nós, o povo foi sempre mais um símbolo constitucional do que fonte de autoridade em cujo contato dirigentes, representantes e líderes partidários fossem retemperar o ânimo e o desejo de servir.

A política brasileira tem a perturbá-la, intimamente, secretamente, desde os dias longínquos da Independência, o sentimento de que o povo é uma espécie de vulcão adormecido. Todo perigo está em despertá-lo. Nossa política nunca aprendeu a pensar normalmente no povo, a aceitar a expressão da vontade popular como base da vida representativa.” (Hermes Lima)

 

 

“O conservador sem cargos faz-se revolucionário; o liberal no poder esquece a pólvora incendiária.”

 

 

“Ainda se conservam, e é provável que se conservem para sempre, na lembrança de todos os que assistiram às eleições anteriores a 1842, as cenas de que eram teatro as nossas igrejas na formação das mesas eleitorais. Cada partido tinha seus candidatos, cuja aceitação ou antes imposição, era questão de vida ou morte. Quais, porém, os meios de chegarem as diversas parcialidades a um acordo? Nenhum. A turbulência, o alarido, a violência, a pancadaria decidiam o conflito. Findo ele, o partido expelido da conquista da mesa nada mais tinha que fazer ali, estava irremissivelmente perdido. Era praxe constante: declarava-se coato e retirava-se da igreja, onde, com as formalidades legais, fazia-se a eleição conforme queria a mesa.” Não acabava aí a via crucis eleitoral. As eleições secundárias abriam outro capítulo, nas quais a barganha, mantida embora a coerência partidária, designava os deputados. Os afagos oficiais, as nomeações, as promessas indicavam o eleito, não raro remetidas as atas em branco para que os presidentes da província decidissem preenchê-las ao seu talante. Mais tarde, o registro das atas nos tabeliães públicos obstou a fraude, ao tempo que abria outro expediente, este de longa vida, as duplicatas eleitorais. O regime, dito democrático, do sistema de 1824, era, na realidade, o domínio da turbulência popular, só não extremada em virtude do freio disciplinador da propriedade territorial, forte na quadra inicial da nação e devido ao pouco prestígio da Câmara na primeira legislatura, escaldadas as opiniões com a dissolução da Constituinte. ”

 

 

“O governo, para o povo, não é o protetor, o defensor, a guarda vigilante de sua vontade e de seus interesses: mas o explorador, o algoz, o perseguidor. Um comando político ativo e violento submete uma sociedade passiva e atemorizada, vendo no poder a insondável máquina de opressão, incapaz de provocar a confiança. Na última década do século (XIX), uma transação, provisória e de resultados tardios, aproximando o mando do povo, para, a título de representá-lo, impor-lhe, pelo compadrio ou pelo favor, pelo bacamarte ou pela miséria, o caminho da submissão. A tutela colonial sucede-se a tutela imperial, sob a luz de um mito, o venerando imperador, fonte de bondade e respeito ao cidadão, mas, na realidade, desvirilizado pelos intermediários e idealizado pela distância. A anarquia sucede a ordem, ao tumulto do país real a paz fictícia do país oficial, depois, uma transação tão governamental como a outra. Sempre, mortos os fumos da Independência, o governo paira sobre as águas, comandando os elementos. O “cabresto” não desapareceu, mas alargou-se para muitas mãos. Só uma coisa permaneceu: a dependência do eleitor, mais ávido de mercês e não mais autônomo.”

 

 

“O governo tudo sabe, administra e provê. Ele faz a opinião, distribui a riqueza e qualifica os opulentos. O súdito, turvado com a rocha que lhe rouba o sol e as iniciativas, tudo espera da administração pública, nas suas dificuldades grandes e pequenas, confiando, nas horas de agonia, no milagre saído das câmaras do paço ou dos ministérios. Esse perigoso complexo psicológico inibe, há séculos, o povo, certo de que o Estado não é ele, mas uma entidade maior, abstrata e soberana. A caricatura: Bentinho, condenado ao seminário e ao jejum dos olhos de Capitu, sonha que o imperador desligará a promessa da mãe e selará o noivado. Os contemporâneos, com a observação mais crua, sentem a realidade. “Todos cruzam os braços” – lamenta o visconde do Uruguai – “e se voltam para ele [o governo], todos o acusam, quando se manifesta o mais pequeno mal.” “Tudo se espera do Estado” – lembra Joaquim Nabuco – “que, sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público, sugando as economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico.” Por toda parte, em todas as atividades, as ordenanças administrativas, dissimuladas em leis, decretos, avisos, ordenam a vida do país e das províncias, confundindo o setor privado ao público. Os regulamentos, com a feição francesa, ainda quentes da tradução, com minúcia e casuísmo, inundam as repartições, o comércio, a agricultura. Da mole de documentos, sai uma organização emperrada, com papéis que circulam de mesa em mesa, hierarquicamente, para o controle de desconfianças recíprocas. Sete pessoas querem incorporar uma sociedade? O governo lhes dará autorização. Quer alguém fabricar agulhas? O governo intervirá com a permissão ou o privilégio. O fazendeiro quer exportar ou tomar empréstimos? Entre o ato e a proposta se interporão um atoleiro de licenças. Há necessidade de crédito particular? O ministério será chamado a opinar. O carro, depois da longínqua partida, volta aos primeiros passos, enredado na reação centralizadora e na supremacia burocrático-monárquica, estamental na forma, patrimonialista no conteúdo. Um aparente paradoxo: o Estado, entidade alheia ao povo, superior e insondável, friamente tutelador, resistente à nacionalização, gera o sentimento de que ele tudo pode e o indivíduo quase nada é. O ideal, utopicamente liberal, que afirma o domínio, a fiscalização e a apropriação da soberania de baixo para cima, base do regime democrático, esse ideal não perece, não obstante sua impotência. Entende a camada dominante, negando-o, que a sociedade brasileira não dispõe dos instrumentos necessários de cultura e autonomia para o trato de seus negócios e para governar-se a si mesma. O dogma, não longe da verdade, perde-se num círculo vicioso: o povo não tem capacidade para os negócios porque o sistema lhe impede neles participar. A contradição está na raiz do despotismo pedagógico, da ditadura mental dos planos de José Bonifácio, que, reconhecendo a inaptidão, sobre ela assenta a casa, cultivando uma atmosfera artificial, base do seu poder.”

 

 

“No todo, a crise de 1864, como sempre tem acontecido entre nós, foi aproveitada pelos especuladores para obter do governo, sob a ação do pânico, além das medidas excepcionais em que a opinião estava concorde, favores extraordinários, em benefício exclusivo deles. É sempre esse o processo; levanta-se um clamor geral pedindo a intervenção do governo, e este, no uso da ditadura que lhe é imposta, não se limita à medida reclamada por todos; tornando-se cúmplice dos que exploram a confusão do momento, dos que jogam afoitamente contando com o Estado para salvá-los ou desobrigá-los em caso de perda, decreta providências excessivas que só aproveitam a essa classe, em favor da qual a lei não merecia ser suspensa, muito menos inovada.” A entidade da crise oficial, tão oficial como a especulação, fecha o círculo da vida financeira do Império.”

 

 

“Mauá, o maior empresário e banqueiro do Império, via com clareza a estrutura do seu tempo. Ele sofria, como todos, o dilaceramento de tendências opostas: reclama a liberdade para a empresa, mas não dispensa, senão que reclama estímulo oficial, envolvendo o Estado nos negócios, no esquema global. (...) O empresário quer a indústria, mas solicita a proteção alfandegária e o crédito público. Duas etapas constituem o ideal do empresário: na cúpula, o amparo estatal; no nível da empresa, a livre iniciativa.”

 

 

“Ao arvorar no Partido Liberal a ideia da federação, em combate à apropriação republicana, Joaquim Nabuco denunciará, como impedimento fundamental do progresso, “esta burocracia que só serve para falsificar, na transmissão para o centro, as impressões da nossa vasta superfície, essa organização forasteira e espoliadora que, em vez de ajudar a viver, esgota em nome e com a força do Estado a atividade de cada uma de suas partes. [...] As províncias hão de compreender dentro de pouco” – prossegue, em tom vivamente republicano – “que o que constitui governo colonial não é a falta de representação parlamentar, nem a da Constituição, nem o nome de colônia, nem a diferença de nacionalidade. O que constitui o governo colonial é a administração em espírito contrário ao do desenvolvimento local”. Os recursos deverão ficar onde são produzidos, sem separar o trabalho de seus frutos. O governo deveria expressar a vontade dos governados, com a responsabilidade plena da administração, extinguindo-se o “beduinismo político”, comparados os presidentes de província às "aves de arribação e de rapina", iguais aos magistrados ingleses na Índia, que tributam e devastam as localidades em proveito da corte (discurso na Câmara dos Deputados, de 21 de setembro de 1885). O Estado, concentrado nas garras centralizadoras, confunde-se com a exploração estrangeira, voraz, impiedosa, esterilizadora.”

 

 

“No fundo, ainda uma vez, o dogma liberal da soberania do povo. “Há entre nós, um monarca: o Imperador; mas só há um soberano: o povo. Aquele cede a este, ou muda de terra. Pode ser Pedro I; mas não esqueça a porta, por onde este saiu”.” (Rui Barbosa)

 

 

“Os escravos, auxiliados pela campanha abolicionista e estimulados pelas alforrias humanitárias, fogem do trabalho, formando quilombos, renascem os quilombos de memória já perdida nas suas tentativas iniciais. Em São Paulo, principalmente, as fazendas de café da zona de Campinas se despovoam, com a fuga de escravos para o litoral. Diante da reação dos proprietários, que apelam para a força pública, Cotegipe, escravocrata intransigente, se dispõe a utilizar o Exército na repressão. Na Câmara dos Deputados, o líder abolicionista Joaquim Nabuco concita os militares a se negarem ao papel degradante de “capitães-do-mato na pega de negros fugidos”. A semente não podia cair em terreno mais fértil – o Exército, sem compromissos com a propriedade territorial, de onde não saíam os oficiais, não se dispôs a apoiar, de outro lado, o estamento monárquico, do qual se desligara e que não admitia abrir-lhe as portas. Não se poderia contar com a força armada para conter a rebelião das senzalas, com cerca de doze mil escravos, que abandonam as fazendas, só em São Paulo, no contágio de um movimento que se precipitara a partir do norte. Deodoro, autorizado pelos seus pares em assembleia, repele a presença do Exército na obra repressora. O Clube Militar não se dirige ao gabinete – nesse ano de 1887 chefiado por um escravocrata – mas ao ajudante-general do exército e à princesa regente. O Exército declara que a perseguição aos escravos não será decorosa ou digna, cabendo a tarefa à polícia. “Não nos deem tais ordens, porque não as cumpriremos” – diz enfaticamente o chefe militar. A princesa a linguagem é mais macia, docemente áulica, embora inflexível nos propósitos, sempre com o protesto de lealdade ao trono: “esperam que o governo imperial não consinta que os oficiais e as praças do Exército sejam desviados de sua nobre missão, que não deseja o esmagamento do preto pelo branco nem consentiria também que o preto, embrutecido pelos horrores da escravidão, conseguisse garantir sua liberdade esmagando o branco”.

“O Exército havia de manter a ordem. Mas, diante de homens que fogem calmos, sem ruído, tranquilamente, evitando tanto a escravidão como a luta e dando, ao atravessar cidades, enormes exemplos de moralidade, cujo esquecimento tem feito muitas vezes a desonra do Exército mais civilizado, o Exército brasileiro espera que o governo imperial conceder-lhe-á o que respeitosamente pede em nome da humanidade e da honra da própria bandeira que defende”. A manifestação casa-se com outra, cuja importância não foi avaliada no tempo: a candidatura de Deodoro para uma vaga de senador pelo Rio de Janeiro, nas eleições de 17 de julho de 1887. O futuro proclamador da República concorre desligado dos partidos, distante já de suas simpatias ao Partido Conservador. Será uma candidatura gerada pelos seus camaradas de farda, em nome do abolicionismo, incapaz, obviamente, de romper a barreira partidária. Os dois fatos, a candidatura de 17 de julho e a manifestação de outubro, denunciam o desligamento do Exército das teias partidárias da monarquia. Indicarão, mais significativamente, o comando militar nos assuntos políticos, tolerado, não sem irritação, pelo grupo dirigente, impotente para punir, reprimir ou restabelecer a disciplina. Somente os golpes de bastidores suprem a reação aberta, com planos e providências para anular o desvio do eixo político. Desprotegidos pelo Exército, o fazendeiro e o comerciante urbano sentem que a abolição está às portas. Os paulistas, aptos a dispensar o escravo e substituí-lo pelo assalariado, apressam a mudança do regime de trabalho, confiados em que os pretos permaneceriam nas fazendas, se livres, sem motivo para a fuga em massa. Antônio Prado, agora abolicionista, em nome dos interesses agrícolas de São Paulo, aceita a alforria imediata, abandonados os projetos da transição suave, em dois ou cinco anos. Não será o 13 de maio, desta forma, a generosa dádiva da regente, mas o resultado do dissídio na cúpula, com a defecção da força armada. (...) A abolição fazia-se de cima para baixo, não pelo ofício dos senadores, conselheiros e viscondes, mas pela espada.”

Um comentário:

Doney disse...

De fato, a leitura deste livro foi uma tarefa hercúlea – não só pelo tamanho do cartapácio, mas, especialmente, pela forma hermética, árida, que o autor escreve.
É uma pena que assim seja, pois, talvez esta seja a obra mais completa, mais culta, com maior quantidade de citações (cerca de 60 páginas só de notas de obras citadas) que já tive a oportunidade de ler.
Acabei demorando meses para finalizar este livro – o fiz enquanto lia outras obras – e, posso dizer tranquilamente que há trechos em que o mesmo é quase ilegível, dada a aridez da escrita. "Os donos do poder" só toma maior dinamismo quando começa a tratar da “Revolução” de 1930 (entre aspas, posto que, adotando a concepção de Trotsky, a revolução é quando o povo toma em suas mãos o seu próprio destino. Tal fato não ocorreu em 1930, nem nunca no Brasil – talvez, a coluna Prestes tenha sido a oportunidade mais próxima disto ocorrer, porém, este é um tema para outros debates).
Não tenho apreço por alguns historiadores que querem ver tudo o que passou como uma piada, intentando fazer livros mais de humor do que de história – não conseguem fazer nem uma coisa, nem outra. Porém, além da contextualização histórica muito bem elaborada, fez falta a inserção de elementos mais próximos ao ser humano, como a própria citação contida neste blog, do eleitor que “não sabia” o próprio nome. Exemplos e contextualizações mais diretas como esta ao longo do livro teriam sido fundamentais para mitigar a dificuldade da leitura da obra.
Em outros termos, "Os donos do poder" é um livro para iniciados – e que tenham fôlego.