quarta-feira, 30 de junho de 2021

Para entender O Capital: Livros II e III (Parte III), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-403-2

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: Ver Parte I



(Refere-se ao livro III) 

 

Marx viu claramente que a consolidação do sistema de crédito tinha profundas consequências para o “capital comum da classe”, como já havia afirmado no capítulo 22 e na introdução geral ao capital comercial. Eu não saberia enfatizar o suficiente essa ideia. Ela reposiciona a circulação do capital monetário como uma espécie de sistema nervoso central que orienta os fluxos de capital que reproduzem o capital em geral. Além disso, implica uma socialização do capital que sinaliza uma mudança radical em seu caráter. Empresas de capital aberto, por exemplo, facilitam o surgimento de capitais coletivos e associados que, por um lado, permitem uma vasta extensão na escala, abrangência e forma dos empreendimentos capitalistas e, por outro, abrem caminho para um mercado mundial no qual o trabalho associado e os direitos de propriedade coletiva seriam cada vez mais comuns. Marx pensava até que as empresas de capital aberto, em razão de seu caráter associativo, poderiam tornar-se a base para uma transição para um modo de produção não capitalista. Hoje, isso parece estranho, se não absolutamente equivocado, mas na época havia razões interessantes para se considerar tal possibilidade.

As possibilidades positivas e negativas inerentes ao advento do sistema de crédito capitalista estavam incorporadas, diz Marx, na pessoa do banqueiro francês Isaac Péreire, que possuía “o agradável caráter misto de vigarista e profeta” (C3, 573). Por isso, peço permissão para fazer uma pequena digressão (como Marx faz no capítulo 36) sobre esse “caráter”.

Os irmãos Péreire – Isaac e Émile – se formaram no espírito do utopismo saint-simoniano da França dos anos 1830 e, durante o Segundo Império (1852-1870), puseram algumas dessas ideias utópicas em prática, em especial as que diziam respeito ao poder dos capitais associados. Saint-Simon (1760-1825) – cujo “gênio e mente enciclopédica” Marx admirava muito, segundo Engels (C3, 740) – procurou aconselhar o rei. Enviou-lhe muitas cartas sugerindo maneiras de melhorar a vida coletiva e evitar aquelas mudanças violentas ilustradas pelas Revolução Francesa, cujos excessos Saint-Simon julgava repugnantes. Ele foi provavelmente um dos primeiros pensadores a propor algo semelhante ao que hoje seria a União Europeia. Se alguém tivesse lhe dado ouvidos, duas guerras mundiais poderiam ter sido evitadas. Ele propôs formas racionais e representativas de governo que legislariam em benefício de todas as classes, sob um comando monárquico benevolente. Enfatizou também a importância da conciliação de capital e trabalho (que incluía artesãos e empresários capitalistas) para realizar projetos e obras públicas de larga escala (e, em certa medida, planejados) que contribuiriam para o bem-estar de todos. Para isso, era necessário que as pequenas quantidades de capital monetário, dispersas na sociedade, fossem reunidas numa forma associada.

Luís Bonaparte, que se autoproclamou imperador em 1852 após um golpe de Estado em 1851, era fã das ideias de Saint-Simon, tendo sido chamado muitas vezes de “Saint-Simon a cavalo”. Luís concebeu projetos de grande escala para pôr em movimento o capital e o trabalho não empregados após o crash e os movimentos revolucionários de 1848. Os irmãos Péreire desempenharam um importante papel nisso. Eles criaram novas instituições de crédito e juntaram pequenas quantidades de capital nas formas associadas que Saint-Simon defendia e, assim, acabaram dominando o mundo das finanças no Segundo Império. Controlando as cédulas de crédito, eles participaram ativamente da grande missão de Haussmann de absorver o capital e o trabalho excedentes mediante a reconstrução e a transformação de ­Paris. Construíram edifícios residenciais e novas lojas de departamentos, ao mesmo tempo que monopolizaram os serviços públicos (como a iluminação a gás) e as novas estruturas de transporte e comunicação da cidade. Mas o boom dos anos 1850 e início dos anos 1860, assim como a lendária rivalidade entre os Péreires e a conservadora casa bancária dos Rothschilds (tema principal do romance O dinheiro, de Zola), chegaram ao fim com o colapso financeiro de 1867, que destruiu o império do crédito especulativo dos Péreires. É bem possível que Marx tivesse essa rivalidade em mente quando escreveu:

O sistema monetário é essencialmente católico, e o sistema de crédito, essencialmente protestante. “Os escoceses odeiam o dinheiro.” Como dinheiro, a existência monetária das mercadorias tem uma existência puramente social. É a que traz a salvação. A fé no valor monetário como espírito imanente das mercadorias, fé no modo de produção e sua disposição predestinada, fé nos agentes individuais de produção como mera personificação do capital que se autovaloriza. Mas o sistema de crédito não é mais emancipado do sistema monetário como base do que o protestantismo das bases do catolicismo. (C3, 727)

Rothschild (sendo judeu) acreditava no “catolicismo” do ouro como base monetária, ao passo que os Péreires (também judeus) depositavam sua fé no papel. Quando veio o colapso, o papel se mostrou sem valor, ao passo que o ouro jamais perdeu o brilho, e até cintilou mais hipnoticamente do que nunca.

A tensão entre cédulas de crédito e mercadorias-dinheiro (como o ouro) é onipresente nesses capítulos. Marx trata explicitamente dessa questão bem mais adiante, no meio de um capítulo bastante vago sobre o metal precioso e a taxa de câmbio:

É precisamente o desenvolvimento do sistema de crédito e bancário que, por um lado, procura pôr todo o capital monetário a serviço da produção, enquanto, por outro, reduz a um mínimo a reserva de metal numa dada fase do ciclo, no qual ele não pode mais desempenhar as funções que lhe são delegadas – é esse elaborado sistema de crédito e bancário que torna supersensível o organismo inteiro.

Por meio da garantia de conversibilidade das notas bancárias, a reserva de metal funciona “como o eixo de todo o sistema de crédito”. A estrutura que surge é a seguinte:

o banco central é o pivô do sistema de crédito. E a reserva de metal é, por sua vez, o pivô do banco. A mutação do sistema de crédito em sistema monetário é necessária [...]. Uma certa quantidade de metal, insignificante em comparação com a produção total, é reconhecidamente o pivô do sistema. Por isso, abstraindo da terrível exemplificação desse seu caráter de pivô nas crises, o que se tem é esse belo dualismo teórico. (C3, 706)

Se mesmo a pretensão de uma base de metal ou de mercadoria para o sistema de crédito e monetário global foi abandonada no começo dos anos 1970 (embora os chamados “gold bugs”, que defendem o retorno ao padrão-ouro, ainda sejam abundantes), a ideia de uma estrutura hierárquica de pivôs (cuja centro seria o dólar americano) para o sistema financeiro global ainda parece uma concepção apropriada. É mais verdadeiro hoje do que na época de Marx que:

o crédito, sendo [...] uma forma social de riqueza, desloca o dinheiro e usurpa sua posição. É a confiança no caráter social da produção que faz com que a forma-dinheiro dos produtos apareça como algo meramente evanescente e ideal, como uma mera noção. Mas tão logo o crédito é abalado, e essa é uma fase regular e necessária no ciclo da indústria moderna, supõe-se que toda riqueza real é efetiva e repentinamente transformada em dinheiro, em ouro e prata – uma demanda insana, mas que surge necessariamente do próprio sistema. E o ouro e a prata necessários para satisfazer essa imensa demanda atingem o valor de alguns milhões no cofre do banco. (C3, 708)

Mas antes Marx apresenta um tratamento ainda mais rico dessas relações: “Faz parte das bases da produção capitalista o fato de que o dinheiro confronta as mercadorias como uma forma autônoma de valor, ou que o valor de troca precisa ter uma forma autônoma em dinheiro”. A mercadoria-dinheiro, como equivalente universal, é essa forma autônoma. O que ocorre quando a moeda de crédito e as operações de crédito substituem a mercadoria-dinheiro?

Em épocas de pressão, quando o crédito se retrai ou seca completamente, o dinheiro confronta-se absolutamente com as mercadorias como o único meio de pagamento e a verdadeira existência do valor. Daí a desvalorização geral das mercadorias, a dificuldade e até a impossibilidade de transformá-las em dinheiro, isto é, em sua própria forma puramente fantástica.

A alusão à teoria do fetichismo é inequívoca. Em segundo lugar, “a própria moe­da de crédito só é dinheiro na medida em que representa absolutamente dinheiro real”. Com a evasão de moeda para o exterior, a conversibilidade do crédito em dinheiro “torna-se problemática”:

Por isso, são necessárias medidas coercitivas, o aumento da taxa de juro etc. a fim de garantir [...] a conversibilidade [...]. Uma desvalorização da moeda de crédito (para não falar de uma completa perda de seu caráter monetário, que é, de resto, puramente imaginário) destruiria todas as relações existentes. O valor das mercadorias é assim sacrificado para assegurar a existência fantástica e autônoma desse valor em dinheiro. [...] Essa é a razão por que mercadorias no valor de muitos milhões precisam ser sacrificadas por alguns milhões em dinheiro. Isso é inevitável na produção capitalista, e constitui uma de suas belezas. [...] Enquanto o caráter social do trabalho aparece como a existência monetária da mercadoria e, por conseguinte, fora da produção real, as crises monetárias, independentemente das crises reais ou como uma intensificação destas últimas, são inevitáveis. (C3, 648-9)

Foi isso que aconteceu na depressão de 1930? E essa é a “inevitabilidade” que o keynesianismo se esforçou para corrigir?

Embora essa tensão entre crédito e dinheiro “real” já tivesse sido há muito tempo identificada:

é apenas com esse sistema que surge a forma mais notável e grotesca dessa contradição e desse paradoxo absurdo, porque (1) no sistema capitalista a produção para o valor de uso direto, para o próprio uso do produtor, é abolida quase completamente, de modo que a riqueza existe apenas como um processo social expresso como o entrelaçamento da produção e da circulação; e (2) porque, com o desenvolvimento do sistema de crédito, a produção capitalista se esforça constantemente para superar essa barreira metálica – barreira que é tanto material como imaginária – à riqueza e ao seu movimento, porém volta sempre a bater a cabeça contra ela. (C3, 707-8)

Assim, a forma das mercadorias-dinheiro é um obstáculo à expansão que as moedas de crédito superam e evitam, mas em certo ponto a qualidade e a confiabilidade das moedas de crédito podem ser validadas apenas por sua capacidade de troca por mercadorias-dinheiro.

Uma das coisas mais difíceis para todos os analistas (inclusive Marx) é a compreen­são da diferença entre a riqueza que circula no sistema financeiro e de crédito e a produção de riqueza supostamente “real”. A relação entre Wall Street e Main Street (ou, como dizem os ingleses, entre a City e a High Street) intriga a todos. Os argumentos habituais sobre o que fazer com o euro são uma excelente demonstração das confusões reinantes. O que Marx sugere é que um sistema monetário baseado puramente em mercadorias-dinheiro age como uma barreira ao avanço da acumulação do capital, porque há uma quantidade limitada de dinheiro à disposição. Há um perigo claro e constante daquilo que hoje chamamos de “repressão financeira”, que ocorre quando não há dinheiro suficiente (de nenhum tipo) para fazer circular o volume crescente de mercadorias que são produzidas à medida que avança a acumulação do capital. As moedas de crédito se tornam, portanto, não só necessárias, mas cruciais para a expansão contínua do capitalismo. À primeira vista, há elementos que sugerem (embora, pelo que sei, isso nunca tenha sido estudado empiricamente) que a história da acumulação do capital tenha acontecido paralelamente a uma acumulação de moedas de crédito e dívidas concomitantes. Apenas desse modo o capital pode ser acumulado “ilimitadamente”. Mas se a acumulação do capital depende de uma acumulação paralela de moedas de crédito e instrumentos de crédito, então ela produz necessariamente um monstro fetichista à sua imagem e semelhança, baseado na fé, na confiança e na expectativa, e que periodicamente escapa do controle. As moedas de crédito não substituem, simplesmente, a moeda metálica: elas colocam o sistema monetário e a concepção de moeda num plano totalmente novo, que mais abrange do que elimina os fetichismos implícitos no sistema de crédito. Crédito “espuma”, bolhas de ativos, booms e colapsos especulativos são o preço que o capital tem de pagar por se libertar temporariamente das restrições da mercadoria-dinheiro.

Essas restrições, no entanto, reaparecem em fases de crise. O volume das obrigações de crédito ultrapassa periodicamente o da produção real de valor (mas esta pode ser medida); então, as mercadorias-dinheiro (as representantes do valor), no curso de uma crise financeira, fazem a insanidade das moedas de crédito cair na realidade. Essa é a disciplina da moeda forte real, que conecta Wall Street a Main Street. É o “catolicismo” da base monetária em ação. A propósito, a referência religiosa reflete a longa proscrição dos juros pela Igreja católica (regra que continua válida na lei islâmica, e que a Igreja católica abandonou apenas no século XIX). A famosa distinção de Martinho Lutero entre os males da usura e a legitimidade de uma taxa de juros “justa” foi essencial para o movimento protestante romper com Roma.

O que é tão crucial no sistema de crédito é sua capacidade de ultrapassar qualquer barreira monetária à acumulação e lançar-se num mundo de crescimento ilimitado. Existem possibilidades ilimitadas de criação de papel-moeda (cédulas de crédito). Foi o que aconteceu na bolha imobiliária de 2001 nos Estados Unidos. Os preços estavam subindo, e todo mundo estava tirando vantagem dos valores crescentes dos ativos imobiliários – e, quanto mais se tirava vantagem, mais os preços subiam. Os imóveis funcionavam como caixas automáticos, sem limite de saque, até que as pessoas se deram conta de que o preço dos imóveis havia subido muito acima da renda. E houve o crash. Aconteceu a mesma coisa no boom fundiário do Japão, nos anos 1980. Quando há um crash, a liquidez dos proprietários (disposição de moeda forte real) é a única coisa que importa. Na medida em que essa liquidez é insuficiente, as execuções hipotecárias, as perdas e as desvalorizações de ativos vão se acumulando.

Que importância geral isso tem hoje em dia? A base metálica do sistema monetário mundial foi formalmente abandonada no início dos anos 1970. Isso parece tornar o pensamento de Marx irrelevante. Ele não disse que o “dinheiro, na forma de metal precioso, permanece a base da qual o sistema de crédito jamais pode se libertar”? O ouro ainda cumpre um papel residual importante, é claro. Quando a fé no papel-moeda e na moeda de crédito é abalada, surgem preços em ouro, como se viu nos últimos anos. Uma minoria ainda sente que o ouro é a maneira mais segura de acumular valores monetários reais. Hoje, existe uma abundância de anúncios sobre a segurança dos investimentos em ouro. Talvez haja alguma verdade nisso (e nós nos odiaremos se não tivermos investido em ouro caso seu preço triplique nos próximos cinco anos!). Mas há pouca probabilidade de retornarmos ao padrão-ouro. A sabedoria convencional diz que isso seria um desastre para a expansão contínua do mercado mundial, e mergulharia o mundo numa depressão permanente. A economia mundial situa-se no plano da economia de crédito, e não pode abandoná-lo.

Mas se o “pivô” metálico do sistema monetário desaparece, o que o substitui? A resposta são os bancos centrais mundiais, combinados com as autoridades reguladoras estatais (um “nexo Estado-finanças”, como eu o chamo). Juntos, eles formam o “pivô” do sistema monetário e de crédito global. Para Marx, esse pivô era o Banco da Inglaterra; para nós, é o Federal Reserve Bank dos Estados Unidos (juntamente com o Tesouro norte-americano) e os outros bancos centrais e autoridades reguladoras, como as da Inglaterra, do Japão e da União Europeia. O resultado, no entanto, é a substituição de um mecanismo regulador que se baseia na produção de mercadorias reais (ouro e prata) por uma instituição humana. O julgamento humano é a única disciplina exercida sobre a criação de crédito. Mas essa instituição humana faz a coisa certa? O foco principal tem de ser, então, como os bancos centrais são estruturados e regulados, e como são formuladas políticas dentro do aparato estatal para lidar com os excessos periódicos que ocorrem nesse sistema de crédito.

Se o banco central e as autoridades reguladoras são mal estruturados, ou se baseiam numa teoria econômica errônea (como o monetarismo), a política pode se implicar profundamente nos processos de formação e/ou resolução de crises. Muitos consideram que a política do banco central teve um papel importante na exacerbação da grande depressão de 1930 (como a desastrosa decisão de Winston Churchill, quando era ministro das Finanças, de reinstituir o padrão-ouro na Inglaterra em 1920). Hoje, muitos dizem que as políticas de Bernanke estão conduzindo os Estados Unidos numa direção totalmente errada, e que o período em que Alan Greenspan esteve no comando do Federal Reserve, que na época parecia tão maravilhoso, teve um papel importante no crash devastador de 2007-2008. É claro que, hoje, investiga-se amplamente a ideia de que uma falha regulatória tenha afetado os acontecimentos recentes, e alguns consideram que uma melhor estrutura regulatória seria uma resposta importante à crise dos Estados Unidos, e mesmo do mundo. Mas de que nos serve um Banco Central Europeu que se encarrega de manter a inflação sob controle, sem nenhuma consideração pelo desemprego, e que consequentemente parece paralisado diante da resposta que deve dar à crise da dívida grega, sem promover uma austeridade debilitante e cada vez mais profunda? As instituições humanas são falíveis e sujeitas a todo tipo de força social e opinião conflituosa. Elas criam um mecanismo regulatório muito distinto daquele que prevalece quando as mercadorias-dinheiro ainda operavam como o pivô no qual a política do banco central tinha de girar.

Mesmo na época de Marx, a falibilidade das instituições financeiras e suas políticas tiveram um papel importante. Marx cita como principal exemplo o “equivocado” Bank Act britânico de 1844. Essa legislação dividia o Banco da Inglaterra em “um Departamento de Emissão e um Departamento Bancário” (C3, 688). O primeiro se ocupava dos títulos da dívida pública e da reserva de metais, e emitia papel-moeda lastreado nessas reservas. Ele emitia notas (que eram muito mais convenientes para propósitos de comércio) em troca de ouro e, em contrapartida, as cédulas prometiam “pagar ao portador” em ouro, se necessário (nas notas inglesas, essa promessa de pagamento ao portador ainda pode ser encontrada). Desse modo, eu poderia levar a qualquer momento as notas ao banco e receber de volta o valor equivalente em ouro. As cédulas eram, em suma, “conversíveis”. (A suspensão da conversibilidade foi, portanto, uma opção política e, de fato, já havia ocorrido na Inglaterra em dado momento durante as Guerras Napoleônicas.) A outra parte do banco descontava as letras de câmbio, expedia cheques, emitia títulos e atuava em negócios bancários convencionais. A legislação de 1844 criou uma barreira de proteção entre essas duas partes, mas em 1848 uma crise de confiança atingiu a última delas. Houve uma corrida aos bancos, à medida que as pessoas perdiam a confiança no papel comercial e nos títulos públicos.

O Departamento Bancário sofreu uma escassez de ouro, enquanto o Departamento de Emissão era inundado com esse metal:

A separação do banco em dois departamentos independentes retirou o poder dos diretores de dispor livremente da totalidade de seus meios disponíveis em momentos decisivos, de modo que podiam ocorrer situações em que o Departamento Bancário se defrontava com a falência e, ao mesmo tempo, o Departamento de Emissão dispunha de muitos milhões em ouro [...]. E assim o Bank Act de 1844 empurrou todo o mundo do comércio à erupção de uma crise, retirando da circulação um estoque de notas bancárias e, com isso, acelerando e intensificando a crise. E por meio dessa intensificação da demanda por acomodação monetária [...] ele leva a taxa de juros em tempos de crise a um nível até então inédito.

O paralelo com o que aconteceu com a taxa de juro sobre os títulos gregos na crise de 2011 é notável:

Assim, em vez de eliminar as crises, [o Banco da Inglaterra] as intensifica a ponto de ruir ou o mundo inteiro da indústria, ou o Bank Act. Em duas ocasiões, 25 de outubro de 1847 e 12 de novembro de 1857, a crise atingiu seu pico; então o governo, suspendendo o Act de 1844, liberou o banco da restrição sobre a emissão de notas e, em ambas as ocasiões, isso foi suficiente para deter a crise. (C3, 689)

Não entendo que, nessa passagem, Marx esteja dizendo que o Bank Act de 1844 foi a causa de uma crise, e sim que ele serviu para intensificar e acelerar uma crise que surgiu por outras razões (quais eram Marx não diz). Mas que tipo de arranjo institucional é esse que não pode responder de maneira adequada à inevitabilidade de crises periódicas? Essa foi, certamente, a pergunta fundamental feita ao Banco Central Europeu durante as crises de dívida em que afundaram não só Grécia, mas também Irlanda, Portugal, Espanha e Itália ao longo de 2001. Descrever o Bank Act de 1844 como “equivocado” é inferir que Marx acreditava na possibilidade de um Bank Act que não exacerbasse crises. Instituições bancárias e de crédito poderiam ser suficientemente flexíveis para acomodar variações na produção e nos preços e, ainda mais importante, nos sentimentos dos investidores. Mas seria possível criar instituições financeiras que pudessem deter as contradições que estão na base da formação da crise? Para os keynesianos, esse era o Santo Graal da política pública. Marx acreditava que isso não era possível. “Leis bancárias ignorantes e confusas, como aquelas de 1844-1845, podem intensificar a crise monetária. Mas nenhuma legislação bancária pode abolir as crises” (C3, 621).”

 

 

Qual é o sentido, então, do abandono completo e formal do lastro da moeda de crédito nas mercadorias-dinheiro a partir do início dos anos 1970 (essa medida já havia sido informalmente aplicada pelas políticas keynesianas após os anos 1930)? É difícil dizer qual seria a posição de Marx diante desses eventos contemporâneos. Certamente, ele teria se alinhado muito mais aos keynesianos do que aos monetaristas (pois critica reiteradamente a teoria quantitativa da moeda tal como foi desenvolvida por Ricardo). Mas não penso que ele acreditasse que as tendências de crise do capitalismo pudessem ser contidas, muito menos superadas, por reformas financeiras. Creio que uma leitura cuidadosa desses capítulos sustenta tal ponto de vista. É importante colocar essas questões aqui porque, com a análise do crédito, Marx parece conduzir seu conceito de capital a uma dimensão radicalmente diferente.

A loucura evidente, ainda que periódica, que toma conta do sistema financeiro leva à questão: por que diabos uma sociedade tolera isso? A resposta de Marx é muito clara. O crédito é absolutamente essencial quando se trata de acomodar em termos monetários o estímulo expansionista da acumulação perpétua de capital. A barreira constituída pela base metálica (e por notas conversíveis em ouro) tem de ser superada, uma vez que a quantidade de ouro e de prata não só é inadequada, porque relativamente inflexível em relação a flutuações na produção de mercadorias, como é insuficiente, porque finita. Além do mais, o caráter especulativo de todas as formas de investimento de capital (que pressupõe que a expansão na forma de mais mais-valor será produzida ao final do dia) está inelutavelmente embutido na circulação de capital monetário portador de juros. E, como vimos repetidas vezes ao longo do Livro II de O capital, os caprichos dos tempos distintos de curso (do capital fixo, em particular) só podem ser acomodados por meio de um sistema de crédito ativo; a liberação de “capital morto” de tesouros que seriam utilizados de outra maneira desempenha um papel crítico, acelerando a acumulação, ao invés de retardá-la. (...)

Superficialmente, o sistema de crédito parece ser sem lei, caótico e descontrolado em sua capacidade de incubar febres especulativas e colapsos periódicos. Isso era esperado, porque o juro, na linguagem dos Grundrisse, é uma particularidade, e é regulado (se é, de fato) por outras particularidades – especialmente, como vimos, pela oferta e pela demanda de capital monetário, além da competição entre diferentes frações do capital. Ele se restringe, portanto, a ser acidental, sem lei e conjuntural. Ele também depende da fé. A psicologia disso tudo, como Keynes tratará de enfatizar (e Zola descreve de modo brilhante), torna-se crucial. Para Marx, no entanto, essa questão se coloca de maneira bem diferente. Ele pergunta como os capitais e os capitalistas poderiam funcionar se ficassem presos aos fetichismos inerentes às formas superficiais do capital. Uma vez que se perdem no labirinto de seus próprios construtos fetichistas, como podem os capitalistas identificar as raízes de seus dilemas e, mais ainda, encontrar uma saída? Essa é, suspeito eu, a “confusão” que Marx queria apresentar. Desvendá-la depende de uma compreensão mais profunda da categoria de capital fictício, da qual tratarei brevemente.

Marx também sugere que a tendência à superprodução e superacumulação de capital – ou aquilo a que ele mais tarde se refere como uma “pletora” de capital –, anteriormente identificada com traços fundamentais das leis gerais do movimento do capital, atua como um gatilho, ou mesmo como causa subjacente das crises de confiança que periodicamente abalam o sistema de crédito. O “catolicismo” da base monetária, no qual o valor real é representado pela mercadoria-dinheiro (ouro e prata), é considerado por Marx o teste decisivo de realidade imposto às febres especulativas. Assim, mesmo quando as mercadorias-dinheiro – os metais preciosos – são desobrigadas de seu papel mediador como representações de valor, Marx dificilmente concordaria em tirar do valor seu papel central como árbitro das leis de movimento do capital. A questão da relação entre os poderes imateriais – porém objetivos – do valor e as eflorescências do sistema de crédito passa então para o primeiro plano da preocupação teórica.

Embora não apresente respostas definitivas, Marx tem insights nesses capítulos que poderiam ser elaborados subsequentemente. Entre eles, destaca-se o papel das formas fictícias e especulativas de capital na configuração (“disrupção” seria o termo mais adequado) das leis efetivas de movimento da acumulação do capital, em oposição às leis gerais desse movimento. Mas as relações entre Wall Street e Main Street são hoje tão opacas e controversas quanto na época de Marx.”

 

 

“O que Marx procura é uma espécie de radiografia dessa natureza interna que elucide como e por que a loucura contraditória do sistema de crédito tem necessariamente de ser engendrada. O que explica o fato de que as contradições fundamentais e subjacentes do capital assumem sempre a forma de crises financeiras e comerciais? Para esclarecer isso, ele exclui o sistema de crédito e a circulação de capital portador de juros do estudo da acumulação e da circulação do capital no Livro II, tentando compreender o que há na circulação e na acumulação do capital que torna tão necessários o crédito e o funcionamento “autônomo e independente” do capital monetário. Com base no Livro II, em suma, temos de entender por que o capital não pode existir sem um sistema de crédito, por que uma acumulação de riqueza é necessariamente acompanhada de uma acumulação de dívidas e por que a contradição fundamental entre valor e sua representação monetária internaliza a não equivalência infinita e necessária entre oferta e demanda no interior de um sistema capitalista de produção de mais-valor.”

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