Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-403-2
Tradução: Rubens Enderle
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 392
Sinopse: Ver Parte
I
(Refere-se ao livro II)
“Há uma ideia básica que é fundamental para o entendimento do argumento de
Marx nesses capítulos. Ela deriva de sua longa insistência no fato de que o valor
e o mais-valor não podem ser produzidos por meio de atos de troca. O valor é criado
na produção, e ponto. Segue-se disso que o tempo e o trabalho despendidos na circulação
no mercado não produzem valor. Uma grande quantidade de tempo e de esforço de trabalho
é absorvida pela produção no mercado. Marx considera que, em relação à produção
de valor, esse tempo e esse esforço de trabalho são desperdiçados. Há, portanto,
muitos incentivos para que se encontrem maneiras de reduzir esse desperdício. Uma
consequência disso é a fascinação histórica e contínua do capital pela aceleração.
O gasto de trabalho na transformação de uma mercadoria em dinheiro ou vice-versa
é trabalho improdutivo (improdutivo não no sentido de que o trabalho é inútil ou
desnecessário, ou realizado por trabalhadores ociosos, preguiçosos e improdutivos,
mas improdutivo porque não produz valor). Grande parte do trabalho é empregada,
obviamente, na circulação de mercadorias, e os capitalistas, assim como os comerciantes,
os atacadistas e os varejistas, organizam esse trabalho e extraem lucro dele, em
parte explorando os trabalhadores que eles empregam do mesmo modo como fazem os
capitalistas da produção. Para Marx, porém, isso ainda deve ser categorizado como
trabalho improdutivo. Essa é uma questão controversa, que foi objeto de um debate
substancial e interminável, parcialmente descrito na introdução de Ernest Mandel
ao Livro II (embora um grande número de estudiosos questione a interpretação de
Mandel[1]).
Não pretendo
entrar aqui nos detalhes dessa controvérsia. Mas há alguns pontos gerais que precisam
ser mencionados, mesmo que não possamos resolvê-los. Por exemplo, há uma dificuldade
potencial que surge em relação à formulação de Marx no Livro
I. No capítulo 16, ele muda o foco do trabalhador individual para o “trabalhador
coletivo”. O que ele tem em mente, em linhas gerais, é uma fábrica em que os produtores
diretos da linha de produção se misturam com os trabalhadores que efetuam a limpeza,
a manutenção e outros serviços auxiliares, e faz bem em incluí-los todos como parte
do processo coletivo de produção, ainda que alguns não apliquem individualmente
sua força de trabalho na mercadoria que está sendo produzida. Como observei no Livro
I de Para entender o capital, há um problema em definir exatamente onde
começa e onde termina o trabalho coletivo. Este inclui designers, gerentes, engenheiros,
trabalhadores de manutenção e limpeza e vendedores que trabalham de dentro da fábrica?
Se o que importa realmente é a produtividade do coletivo, e não o trabalhador individual,
precisamos saber com base em que grupo de trabalhadores a produtividade deve ser
calculada e quem são os “trabalhadores associados” que produzem o valor. O que acontece
quando várias funções que antes eram parte do trabalho coletivo no interior da fábrica
(como a limpeza e o design gráfico de publicidade) são terceirizadas? Elas deixam
de ser parte do trabalho produtivo coletivo e passam à categoria de trabalho improdutivo?
Nos últimos quarenta anos, houve uma forte tendência sistêmica das empresas capitalistas
de lançar mão da terceirização, presumivelmente para chegar a uma definição muito
mais “eficiente” do trabalho coletivo empregado por elas, incrementando com isso
sua taxa individual de lucro (embora os efeitos agregados sobre a produção de mais-valor
sejam, no máximo, sombrios). Limpeza, manutenção, design, marketing etc. tornam-se
cada vez mais “servições empresariais [business services]”, e é muito difícil
distinguir (o próprio Marx confessa, como veremos) quando essas atividades devem
ser classificadas como produtivas de valor e quando devem ser consideradas improdutivas,
porém necessárias. Esses problemas existem no interior de formas supostamente socialistas
(uma das críticas à cooperativa Mondragon é que ela depende cada vez mais de terceirizações
e, portanto, sobrevive à custa da exploração em outra parte).
Não posso
tratar dessa questão aqui, exceto para sinalizar que, neste ponto, estamos diante
de um pesadelo contábil (que, a meu ver, é insolúvel) e de uma consequente massa
de controvérsias (nas quais os marxistas se notabilizaram durante muito tempo).
Deixo a você a decisão de estudar esses problemas na medida de seu interesse. Se
você empreender esse estudo, verá que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo
é muito importante nos escritos de Adam Smith, e Marx devota grande parte do primeiro
volume das Teorias do mais-valor ao exame e à crítica das teses de Adam Smith
para definir melhor sua própria teoria. Mas, pessoalmente, não estou persuadido
de que Marx tenha encontrado uma resposta razoável para o problema. Penso também
que nenhum outro autor a encontrou, e essa é a razão de um legado tão grande de
controvérsia.
Na ausência
de uma clara solução contábil para a divisão entre trabalho produtivo e improdutivo,
ficamos com o problema de como preservar os insights intuitivos de Marx e,
ao mesmo tempo, reconhecer a dificuldade (impossibilidade?) de operacionalizar as
distinções. O insight intuitivo deriva da análise dos três ciclos do capital.
O momento da produção (o processo de trabalho) funda o ciclo produtivo. Mas esse
ciclo não pode ser completado sem que se negociem as condições de circulação definidas
pelo dinheiro e pelas mercadorias. O trabalho está certamente envolvido em todos
os três ciclos, e a continuidade do ciclo do capital industrial (o processo inteiro)
depende das condições de continuidade definidas em todos os três ciclos. A ideia
principal é a da necessidade da continuidade e velocidade (aceleração) do fluxo,
e o que tem de ser feito para assegurar esse movimento contínuo.
Se essa
fosse a única consideração, poderíamos defender a inclusão de todo trabalho envolvido
na produção, circulação e realização como parte do trabalho coletivo de manutenção
e reprodução do capital (isso poderia ser estendido para incluir o trabalho doméstico,
voltado para a reprodução da força de trabalho). Em outras palavras, poderíamos
dizer que todos os trabalhadores envolvidos no ciclo do capital industrial deveriam
ser considerados trabalhadores produtivos. Na visão de Marx, porém, isso encobriria
e mascararia algo muito importante. Se o valor e o mais-valor são produzidos apenas
no ponto de produção no ciclo produtivo, os gastos realizados e o trabalho despendido
no âmbito da circulação do capital industrial têm de ser pagos pelas deduções realizadas
sobre o valor e o mais-valor produzidos na produção. Seguramente, a extensão dessas
deduções é uma questão de profunda importância, tanto individual como socialmente,
para a reprodução do capital. Se todo o valor e o mais-valor produzido fosse absorvido
nos custos de circulação, quem se incomodaria em produzir? Por isso, estratégias
para reduzir essas deduções, assim como para minimizar o tempo perdido na circulação,
desempenharam um papel importante na história do capital, e podemos experienciar
os resultados dessas estratégias em nossas vidas cotidianas.
Deriva
daí o impulso para revolucionar constantemente as configurações espaçotemporais
do capitalismo por meio da aceleração (até do nosso consumo, por exemplo) e da “anulação
do espaço pelo tempo” (como Marx diz nos Grundrisse).
Em contrapartida, o poder excessivo para impor essas deduções (ou a incapacidade
de facilitar o rápido movimento do capital através dos ciclos) pode ser o gerador
de crises. Se todo poder está nas mãos dos capitalistas monetários (os financistas)
e os capitalistas de mercadorias (os comerciantes), qual é o impacto disso na produção
de valor da qual essas frações do capital dependem em última instância? Podemos
dizer, por exemplo, que as perturbações na economia global ocorridas em 2007 foram
causadas pelos lucros excessivos (e, como veremos, largamente fictícios) que foram
tirados do dinheiro improdutivo e dos ciclos da mercadoria (por exemplo, pelo Goldman
Sachs e pelo Walmart) e sugaram a energia das atividades produtivas, ou então degradaram
tanto as condições no ciclo produtivo que acabaram provocando uma fuga de capitais
para os ciclos improdutivos do dinheiro e da mercadoria, nos quais a acumulação
poderia ocorrer mais pela despossessão do que pela produção. Como poderíamos estabelecer
a verdade de cada uma dessas proposições é uma questão intrigante. Mas o problema
se apresenta prontamente: se o valor pode ser produzido na circulação, para que
se incomodar em produzir? Marx não coloca a questão dessa forma, mas ela está implícita
na análise. Eu preferiria mil vezes me ocupar com essa questão a me perder num pântano
contábil. E essa é a questão que parece corresponder mais propriamente à compreensão
intuitiva de Marx. Ela também tem grande relevância em nossa época. Tendo tudo isso
em mente, vejamos como Marx trata dos detalhes.”
[1] Para uma crítica dos
argumentos de Mandel na introdução ao Livro II, ver Patrick Murray, “Beyond the
‘Commerce and Industry’ Picture of Capital,” em Christopher John Arthur e Geert
A. Reuten (orgs.), The Circulation of Capital: Essays on Volume Two of Marx’s
Capital (Londres, Macmillan, 1998), p. 57-61.
“É evidente que quanto
maior for a coincidência entre o tempo de produção e o tempo de trabalho, maiores
serão a produtividade e a valorização de um determinado capital produtivo num dado
intervalo de tempo. Daí a tendência da produção capitalista de encurtar o máximo
possível o excedente do tempo de produção sobre o tempo de trabalho. No entanto,
ainda que o tempo de produção do capital possa diferir de seu tempo de trabalho,
este está sempre contido naquele, e o próprio excedente é condição do processo de
produção. (203-4)
O tempo
de curso é o tempo necessário para vender a mercadoria e, então, reconverter o capital
monetário em meios de produção e força de trabalho. “Tempo de curso e tempo de produção
excluem-se mutuamente. Durante seu tempo de curso, o capital não atua como capital
produtivo e, por isso, não produz mercadoria nem mais-valor” (204). Isso significa
que:
a expansão e contração do tempo de curso age como
limite negativo à contração e expansão do tempo de produção [...]. Quanto mais as
metamorfoses da circulação do capital são apenas ideais, isto é, quanto mais o tempo
de curso = 0 ou se aproxima de zero, tanto mais atua o capital, tanto maior se torna
sua produtividade e autovalorização. Se, por exemplo, um capitalista trabalha por
encomenda, recebendo o pagamento na entrega do produto, e o pagamento se efetua
com seus próprios meios de produção, então seu tempo de circulação se aproxima de
zero. (204-5)
A economia
política clássica, observa Marx, ignorou a importância da análise dos tempos de
produção e circulação. Como consequência, surgiu, entre muitos de seus representantes,
assim como entre os próprios capitalistas, a ilusão fetichista de que o mais-valor
poderia derivar “da esfera da circulação”, porque “a maior duração do tempo de curso
age como uma razão da alta do preço”. Isso produz a ilusão de que “o capital contém
em si uma fonte mística de autovalorização, que flui na esfera da circulação, independentemente
de seu processo de produção e, portanto, da exploração do trabalho” (205). Fascinado
pela crença fetichista (que ainda persiste) de que o valor pode ter origem na circulação,
é impossível entender por que o capital se movimenta no sentido da aceleração e
da eficiência crescentes em seu curso. Afinal, se o valor pode ser produzido mediante
a circulação, o que explica a luta para reduzir os tempos de curso? Tempos mais
lentos produziriam um valor maior.”
“Ainda que Engels tivesse razão em se queixar de que o Livro II “não
contém muito material para a agitação”, essa passagem indica um desenvolvimento
significativo na visão política de Marx sobre o comunismo, que será cada vez
mais eloquente (embora, em grande parte, não declarado) na seção III do Livro
II. Ela levanta questões sobre como a “sociedade” poderia coordenar e
“calcular” racionalmente divisões agregadas do trabalho e gerenciar projetos de
longo prazo na ausência de sinais de mercado, de maneira que, ao invés de
diminuir, aumentasse a liberdade dos trabalhadores associados para perseguir
seus interesses coletivos. O que essa análise mostra pela primeira vez em O
capital, mas não pela última, é a existência de uma contradição fundamental
no cerne do projeto comunista. Pois assim como a liberdade individual burguesa
só se tornou possível no contexto de um aparato disciplinar draconiano baseado
na propriedade privada – que sustenta o modo de produção capitalista –, o
comunismo precisa encontrar uma maneira de redefinir e proteger a liberdade do
trabalho associado dentro de uma estrutura geral de cálculo, coordenação e
planejamento que circunscreva e discipline a produção das infraestruturas
sociais e físicas necessárias, ao mesmo tempo que aumenta as perspectivas de
emancipação humana.
Na sociedade capitalista, ao contrário, na qual
o entendimento social se afirma apenas e invariavelmente post festum,
grandes perturbações podem e têm de ocorrer constantemente. Por um lado, uma
pressão sobre o mercado monetário, ao mesmo tempo que, inversamente, a
facilidade proporcionada por este último provoca o surgimento de um grande
número de tais empresas, ou seja, precisamente as circunstâncias que, mais
tarde, pressionarão o mercado monetário. Tal mercado é pressionado porque aqui
se faz necessário o adiantamento constante de capital monetário em grande
escala e durante longos períodos. Desconsideramos aqui inteiramente o fato de
que industriais e comerciantes aplicam em especulações ferroviárias etc. o
capital monetário requerido para o funcionamento de seus negócios e o repõem
mediante empréstimos no mercado monetário. (410-1)
Esse
processo fornece uma base técnica para todas as “formas insanas” e
comportamentos “loucos” identificados nas investigações sobre o capital
financeiro e o sistema de crédito no Livro III:
Como elementos do capital produtivo são
constantemente retirados do mercado e apenas um equivalente em dinheiro é
lançado no mercado em seu lugar, aumenta a demanda solvente, sem fornecer, por
si mesma, qualquer elemento de oferta. Por conseguinte, aumentam os preços,
tanto dos meios de vida quanto dos materiais de produção. A isso se agrega o
fato de que, durante esse tempo, especula-se regularmente e opera-se uma grande
transferência de capital. Um bando de especuladores, empreiteiros, engenheiros,
advogados etc. enriquece, provocando uma forte demanda de consumo no mercado.
Além disso, os salários aumentam. Quanto aos meios alimentares, isso fornece um
estímulo à agricultura, mas como esses meios alimentares não podem ser aumentados
subitamente, no curso do ano, cresce sua importação, assim como, em geral, a
importação de meios alimentares exóticos (café, açúcar, vinho etc.) e de
objetos de luxo. Isso provoca a importação excessiva e a especulação nesse ramo
de negócio. Por outro lado, nos ramos da indústria em que a produção pode ser
rapidamente incrementada (mais propriamente, a manufatura, a mineração etc.), o
aumento dos preços provoca uma expansão repentina, logo seguida do colapso.
(411)
Isso
significa um distanciamento radical da linguagem habitual do Livro II e uma
ligação direta, e mesmo maravilhosa, com os capítulos sobre finanças e crédito
do Livro III, confirmando a unidade subjacente entre os dois livros. Marx ainda
vai além, quando examina o efeito sobre o trabalho:
O mesmo efeito se produz sobre o mercado de
trabalho, a fim de atrair para os novos ramos de negócio grandes massas da
superpopulação relativa latente, e inclusive dos trabalhadores ocupados. Em
geral, tais empresas em grande escala, como ferrovias, retiram do mercado de
trabalho uma determinada quantidade de força de trabalho, que só pode proceder
de certos ramos, como a agricultura etc., nos quais se empregam apenas
indivíduos de grande vigor. Isso continua a ocorrer mesmo depois que novas
empresas se tenham convertido em ramos permanentes da indústria e, assim, já
esteja formada a classe trabalhadora nômade por elas requerida, como, por
exemplo, nos casos em que a construção de ferrovias é realizada temporariamente
numa escala acima da média. Uma parte do exército operário de reserva, que
pressionava os preços para baixo, é absorvida. Os salários sobem em geral,
mesmo nas partes do mercado de trabalho que até então apresentavam um bom nível
de ocupação. Isso dura até que o inevitável colapso volta a liberar o exército
operário de reserva e os salários são novamente pressionados para baixo, até
atingir seu patamar mínimo. (411-2)
Está
clara, aqui, a relação entre essas teses e aquelas expressas no capítulo 25 do Livro
I. Contudo, Marx acrescenta, numa nota de rodapé, uma observação teórica
ainda mais pertinente e potencialmente explosiva:
Contradição no modo de produção capitalista: os
trabalhadores, como compradores de mercadorias, são importantes para o mercado.
Mas como vendedores de sua mercadoria – a força de trabalho –, a sociedade
capitalista tem a tendência de reduzi-los ao mínimo do preço.
Contradição adicional: as épocas em que a
produção capitalista desenvolve todas as suas potencialidades mostram-se
regularmente como épocas de superprodução, porquanto as potências produtivas
jamais podem ser empregadas a ponto de, com isso, um valor maior poder não só
ser produzido como realizado; mas a venda das mercadorias, a realização do
capital-mercadoria e, assim, também a do mais-valor, está limitada não pelas necessidades
de consumo da sociedade em geral, mas pelas necessidades de consumo de uma
sociedade cuja grande maioria é sempre pobre e tem de permanecer pobre. (nota
1, 412)
Que o
arrocho salarial no interesse da extração de mais-valor para o capital coloque
uma tal dificuldade de demanda efetiva sustentada é há muito tempo uma das
principais contradições das leis de movimento do capital. Aqui ela é
explicitamente reconhecida como tal. A importância dos trabalhadores como
consumidores e, por conseguinte, como agentes para a realização do valor do
capital-mercadoria no mercado é, de fato, um tema importante em todo o Livro
II. No Livro I, essa questão foi ignorada simplesmente com base no pressuposto
de que todas as mercadorias são negociadas por seus valores. Esse é um daqueles
momentos de O capital em que as mercadorias – um aspecto da distribuição
excluído de antemão como uma particularidade – são reintroduzidas no núcleo do
processo de circulação do capital industrial em geral, com enormes impactos
sobre as contradições no interior das leis de movimento do capital.
Como
conclusão do capítulo, Marx estende seu pensamento para além do pressuposto
normal de um sistema fechado de comércio. A distância do mercado tem de ser
vista “como uma base material específica” para uma circulação mais longa e,
portanto, para os tempos de rotação. O exemplo que Marx dá é o do tecido e do
fio de algodão vendidos à Índia. O produtor vende ao comerciante, que recorre
ao mercado monetário para obter meios de pagamento. Mais tarde, o exportador
vende no mercado indiano. Só então o valor equivalente pode voltar para a
Inglaterra (em dinheiro ou em forma-mercadoria) para fornecer meios de
pagamento equivalentes àqueles necessários a uma nova produção (o dinheiro, é
claro, volta para o mercado monetário). As lacunas entre a oferta e a demanda efetiva
são similares àquelas esboçadas no caso da rotação anual do capital B.
Para cobrir a lacuna entre oferta e demanda é preciso recorrer ao mercado
monetário ou ao crédito. Mas muita coisa pode dar errado:
Ora, é possível que mesmo na Índia o fio seja novamente
vendido a crédito. Com esse crédito, compram-se produtos nesse país que são
enviados à Inglaterra, como retorno pelo fio vendido, ou se reemite uma letra
de câmbio pela importação. Se essa situação se prolonga, o resultado é uma
pressão sobre o mercado monetário indiano, cujo efeito reverso sobre a
Inglaterra pode ocasionar aqui uma crise. Por sua vez, a crise, mesmo que
vinculada à exportação de metais preciosos para a Índia, provoca neste último
país uma nova crise em consequência da falência de firmas inglesas e suas
filiais indianas, às quais os bancos indianos concederam créditos. Assim
instala-se uma crise simultânea tanto no mercado cuja balança comercial é
desfavorável como naquele cuja balança é favorável. Este fenômeno pode ser
ainda mais complicado. Por exemplo, a Inglaterra enviou lingotes de prata à
Índia, mas como os credores ingleses da Índia cobram agora a quitação dos
empréstimos, em breve a Índia terá de reenviar seus lingotes de prata à
Inglaterra. (413)
A
questão, é claro, é que “o que aparece como crise no mercado monetário
expressa, na realidade, anomalias nos próprios processos de produção e de
reprodução” (414). Esse é o verdadeiro insight que resulta do estudo dos
tempos distintos de rotação, em particular aqueles envolvidos no comércio de
longa distância.
Não há nada de novo nas crises monetárias que
se repetem de um lugar e de um momento para outro no processo de circulação. É,
por assim dizer, da própria natureza do capital agir dessa maneira.”
“O principal objetivo de Marx nesse capítulo introdutório é analisar a
economia como uma totalidade social, constituída de uma miríade de atividades
individuais, e de que forma essa totalidade é estruturada. Ele inicia o
capítulo lembrando a importância da continuidade no fluxo do capital – como o
ciclo monetário parece mediar o ciclo produtivo do capital (e vice-versa) num
processo de “repetição constante”. O resultado é a “perpétua ressurgência” do
capital “como capital produtivo”, condicionada por “suas transformações no
processo de circulação”. É muito importante ter em mente a ideia das constantes
metamorfoses da forma (de dinheiro em produção, de produção em mercadoria e
desta novamente em dinheiro). Tal concepção do capital como processo e fluxo é,
no fim das contas, o que torna tão especial o conceito marxiano de economia e
capital. Diz ele:
Cada capital singular, no entanto, forma apenas
uma fração autonomizada do capital social total – uma fração dotada, por assim
dizer, de vida individual –, assim como cada capitalista singular não é mais
que um elemento individual da classe capitalista. O movimento do capital social
consiste da totalidade dos movimentos de suas frações autonomizadas [...].
(449)
É
muito importante ter em mente a independência e a autonomia do capital
individual como um traço fundamental do modo de produção capitalista. Não
podemos jamais esquecer que a individualidade e a autonomia não são direitos
concedidos pela natureza, mas um produto histórico do advento de uma sociedade
de mercado, do direito burguês, da monetarização e da mercadorização, todos
eles precondições necessárias para o surgimento do modo de produção
capitalista. Acho estranho que se diga tão frequentemente que Marx nega a
individualidade e a possibilidade de autonomia, quando na verdade ele se refere
continuamente à importância delas, e conta como elas se desenvolveram.
Além
disso, o consumo produtivo implica a “conversão de capital variável em força de
trabalho”. O trabalhador entra em cena como portador da mercadoria força de
trabalho (mais uma precondição para o surgimento do modo de produção
capitalista). Mas os trabalhadores também compram mercadorias para o seu
consumo individual. “Aqui a classe trabalhadora se apresenta como compradora, e
os capitalistas como vendedores de mercadorias aos trabalhadores” (450). Os
indivíduos dessas duas grandes classes estabelecem relações mútuas como
compradores e vendedores, relação muito diferente daquela entre produtores e
expropriadores de mais-valor. O consumo da classe trabalhadora (seu consumismo)
torna-se um momento importante na realização de valores no mercado. E o
trabalhador, como qualquer outro, tem autonomia e poder de escolha como
comprador.
O ciclo dos capitais individuais, considerados
em seu conjunto como capital social, ou seja, em sua totalidade, compreende não
apenas a circulação do capital, mas também a circulação geral das mercadorias.
Primordialmente, esta última só pode consistir de dois componentes: 1) o
próprio ciclo do capital e 2) o ciclo das mercadorias que entram no consumo
individual, ou seja, das mercadorias nas quais o trabalhador gasta seu salário
e o capitalista seu mais-valor (ou parte dele). (450)”
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
(A partir daqui refere-se ao Livro III)
“Se, como o leitor
teve o desprazer de descobrir, a análise das conexões internas efetivas do
processo capitalista de produção é uma coisa muita intricada e um trabalho
muito minucioso; se é uma tarefa da ciência reduzir o movimento visível e
meramente aparente ao movimento interno efetivo, é inteiramente evidente que
nas mentes dos agentes da produção e da circulação capitalistas surgirão ideias
acerca das leis da produção em completa divergência com estas últimas, e que
serão apenas a expressão consciente do movimento aparente. As ideias de um
comerciante, de um especulador da bolsa, de um banqueiro são necessária e
absolutamente falsas. As dos fabricantes são falseadas pelos atos da circulação
aos quais o capital é submetido e pela nivelação da taxa geral de lucro. Nessas
mentes, a concorrência também assume necessariamente um papel inteiramente
falso. (C3, 428)
Perceba
o que isso implica. A autoconsciência, a autopercepção e as ideias dos agentes
financeiros (assim como as dos capitalistas em geral) são enganosas, não no
sentido de que eles sejam loucos (embora, como veremos, esse seja o caso muitas
vezes), mas necessariamente iludidos no sentido descrito por Marx em sua
teoria do fetichismo. Nessa teoria, a aparência superficial dos signos do
mercado (como os preços e os lucros), aos quais temos inevitavelmente de
reagir, esconde o conteúdo real de nossas relações sociais. Agimos
necessariamente com base nesses signos, não importando se reconhecemos ou não o
fato de que eles mascaram outra coisa. Não é surpresa, portanto, encontrar
ideias e teorias burguesas que reproduzam os signos enganadores no mundo da consciência
e do pensamento. A intenção geral de Marx em O capital é revelar o que
se esconde por trás e além dos fetichismos da troca de mercadorias e ver o
mundo “de pé”. (...)
A
visão de Marx sobre tudo isso tem uma imensa importância em nossa época. Hoje,
não só temos de lidar com inúmeras explicações que acreditamos serem confiáveis
sobre o que acontece em Wall Street (inclusive as investigações do Congresso),
como também somos esmagados por uma retórica que diz que o sistema bancário é
tão complicado que apenas os banqueiros especialistas compreendem o que fazem.
Por isso, dizem que devemos confiar na expertise deles para lidar com os
problemas que eles criaram. Mas, se Marx está certo, não devemos acreditar nas
explicações dos banqueiros (ainda que sejam “confiáveis”, no sentido fetichista
do termo), e certamente não delegar a eles a tarefa de conceber arranjos
institucionais para controlar as contradições inerentes (a maioria das quais é
desconhecida) às leis de movimento do capital. Banqueiros e financistas são de
certo modo as últimas pessoas em quem se pode confiar, não porque sejam todos
fraudadores e mentirosos (embora notoriamente um certo número deles o seja),
mas porque muito provavelmente são prisioneiros de suas próprias mistificações
e ideias fetichistas. Não é difícil imaginar o que Marx teria dito de Lloyd
Blankfein, que, pressionado por uma comissão do Congresso, declarou que seu
banco, o Goldman Sachs, estava apenas realizando a obra de Deus.
Os
sistemas bancário e financeiro são, segundo Marx, um mundo muito complicado. A
insistência de Marx para que se preste atenção apenas àqueles aspectos
vinculados às leis gerais de movimento do capital é proveitosa e ao mesmo tempo
frustrante. A ciência de Marx procura o movimento interno efetivo em meio ao
caos aparente e a inúmeras complicações. Nosso esforço deveria ser procurar não
menos do que isso.”
“Numa sociedade camponesa com alto nível de autossuficiência, só serão
comercializados os produtos que excederem a satisfação das necessidades
básicas, e os comerciantes se verão restringidos a negociar apenas esses
excedentes. Seu papel se expande e atinge “um ponto máximo com o
desenvolvimento pleno da produção capitalista, em que o produto é produzido
simplesmente como uma mercadoria, e não como um meio direto de subsistência”. O
capital comercial “apenas medeia o intercâmbio de mercadorias”, mas “compra e
vende para muitas pessoas. Vendas e compras são concentradas em suas mãos e,
desse modo, a compra e a venda deixam de estar ligadas às necessidades diretas
do comprador (como comerciante)”. Embora Marx não diga, o comerciante
obviamente procura obter ganho com economias de escala em sua operação.
A
riqueza do comerciante “existe sempre como riqueza monetária, e seu dinheiro
funciona sempre como capital”, apesar de sua forma ser sempre D-M-D’. Isso
significa que a finalidade e o objeto das operações do comerciante tem de ser a
busca de ΔM (C3, 443). A questão é: de onde vem esse ΔM, e quais são as
implicações de sua apropriação pelo comerciante?
Como
afirma Marx:
[não há] absolutamente nenhum problema em
compreender por que o capital comercial aparece como a forma histórica do capital muito tempo antes de o capital ter submetido ao seu
jugo a própria produção. Sua existência e seu desenvolvimento a um certo nível
são uma precondição histórica para o desenvolvimento do modo de produção
capitalista (1) como precondição para a concentração da riqueza monetária, e
(2) porque o modo de produção capitalista pressupõe a produção para o comércio
[...]. Por outro lado, cada desenvolvimento do capital comercial confere à
produção um caráter progressivamente orientado para o valor de troca,
transformando cada vez mais os produtos em mercadorias.
A
existência do capital comercial pode ser uma condição necessária para a
transição para o modo de produção capitalista, mas, “tomada em si mesmo, é
insuficiente para explicar a transição” (C3, 444).
No
contexto da produção capitalista, “o capital comercial é rebaixado de sua
existência separada anterior para se tornar um momento particular do
investimento do capital em geral, e a equalização dos lucros reduz sua taxa de
lucro à média geral. Agora ele funciona simplesmente como o agente do capital
produtivo”.”
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