sábado, 27 de novembro de 2021

O homem sem qualidades (Parte I), de Robert Musil

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-276-5

Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 1248

Sinopse: Nesta que é considerada uma das obras literárias mais importantes do século XX, o autor Robert Musil tece uma intrincada trama centralizada em Ulrich. O personagem vive diversas experiências, viaja ao exterior e, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, retorna a Viena, convivendo com os mais diversos tipos humanos. Este romance-ensaio mostra a decadência dos valores vigentes até o início do século passado, marcando a perda de posição da Europa na decisão dos rumos políticos e econômicos mundiais.



As cidades se reconhecem pelo andar, como as pessoas. Abrindo os olhos, o recém-chegado deduziria o mesmo da vibração do movimento nas ruas, muito antes que de qualquer detalhe típico. Ainda que fosse só imaginação, não importa. A supervalorização da pergunta: onde estou? vem do tempo dos nômades, em que era preciso registrar os locais de pastagem. Seria importante saber por que, ao falarmos num nariz vermelho, nos contentamos que seja vermelho, sem nos importarmos com o tom especial de vermelho, embora este possa ser descrito com exatidão em micromilímetros, pela frequência das ondas. Mas numa ocasião tão mais complexa como a cidade em que nos encontramos, sempre gostaríamos de saber exatamente que cidade é. Isso nos distrai de pontos mais importantes.

Portanto, não se dê valor maior ao nome da cidade. Como todas as cidades grandes, era feita de irregularidade, mudança, avanço, passo desigual, choque de coisas e acontecimentos, e, no meio disso tudo, pontos de silêncio, sem fundo; era feita de caminhos e descaminhos, de um grande pulsar rítmico e do eterno desencontro e dissonância de todos os ritmos, como uma bolha fervente pousada num recipiente feito da substância duradoura das casas, leis, ordens e tradições históricas.”

 

 

“Se se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.

Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas.

E alguém que faz?

“Podem-se deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.

A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.”

 

 

“As pessoas frias e calculistas não conseguem na vida metade do sucesso daquelas personalidades bem-dosadas, capazes de ter sentimentos profundos por pessoas e circunstâncias que lhes trazem vantagens.”

 

 

“Na Áustria o patriotismo era assunto muito especial. Pois crianças alemãs aprendiam simplesmente a desprezar as guerras das crianças austríacas, e ensinavam-lhes que as crianças francesas eram netas de libertinos sem fibra, que fogem aos milhares quando um soldado alemão barbudo avança sobre eles. E com papéis trocados, bem como as modificações desejáveis, aprendiam a mesma coisa as crianças francesas, russas e inglesas, que também tinham sido frequentemente vencedoras. Mas crianças são fanfarronas, gostam de brincar de polícia e ladrão, e estão sempre dispostas a considerar a família X da rua Y a maior família do mundo, caso façam parte dela. Assim, se deixam influenciar facilmente pelo patriotismo. Mas na Áustria isso era um pouco mais complicado. Pois os austríacos também tinham vencido todas as guerras da sua história, mas depois da maioria dessas guerras tinham feito algum tipo de concessão. Isso faz pensar, e na sua composição sobre amor à pátria Ulrich escreveu que um verdadeiro patriota nunca deveria considerar sua pátria a melhor de todas; sim, com um lampejo que lhe pareceu especialmente belo, embora ficasse mais ofuscado por seu brilho do que visse o que estava contido nele, acrescentara àquela frase suspeita mais outra: que provavelmente também Deus gostava de falar do seu mundo no conjunctivus potentialis (hic dixerit quispiam = aqui se poderia objetar...), pois era Deus quem fazia o mundo, pensando que bem podia ser de outra maneira.

Ele sentira muito orgulho dessa frase, mas talvez não se tivesse expressado de maneira muito compreensível, pois causara grande agitação, e quase o afastaram da escola, embora não chegassem a tomar essa decisão por não descobrirem se aquele comentário inadequado era blasfêmia contra a pátria ou contra Deus.”

 

 

“Toda profissão que não é exercida por dinheiro, mas por amor, chega um momento em que o acúmulo dos anos parece levar a nada.”

 

 

“Naturalmente todas as épocas têm todas as variedades de rostos; mas a moda destaca sempre um deles, fazendo-o modelo de felicidade e beleza, e os demais tentam imitá-lo; até as feias o conseguem com ajuda de roupa e penteado, só as que nasceram para coisas especiais não o conseguem nunca — nelas manifesta-se sem concessões o ideal de beleza banido e aristocrático de tempos passados.”

 

 

De repente, tinham aparecido três sujeitos: talvez tivesse roçado num deles na rua, numa hora tardia e solitária, pois estava distraído com outras ideias; mas mesmo assim aqueles rostos, contorcidos à luz do lampião, expressavam uma raiva mais antiga. Ele cometera então um erro. Deveria ter recuado imediatamente, como quem tem medo, mas empurrando com as costas o sujeito que se metera atrás dele, ou enfiando o cotovelo em seu estômago, tentando ao mesmo tempo fugir, pois contra três homens fortes não se luta. Em vez disso, hesitara um instante. Era a idade: 32 anos. A essa altura, hostilidade e amor exigem mais tempo. Ele não acreditava que os três rostos que o encaravam na noite com raiva e desprezo quisessem apenas seu dinheiro, imaginou que era ódio, ódio que confluíra contra ele e se personificara; enquanto os malandros o insultavam com palavras grosseiras, pensou que podiam nem ser malandros mas cidadãos como ele, apenas bêbados e liberando suas inibições, e que, notando o vulto dele ao passar, descarregavam sobre ele o ódio que está sempre em todo mundo à espera de qualquer pessoa estranha, como uma tempestade iminente no ar. Ele próprio já sentira algo parecido. Hoje em dia, muitíssimas pessoas se sentem numa lamentável oposição a muitíssimas outras. É um traço fundamental de nossa cultura o homem desconfiar profundamente de pessoas fora do seu próprio meio; portanto, não só um ariano considera um judeu um ser incompreensível e inferior, mas um jogador de futebol sente o mesmo diante de um pianista. Afinal, cada coisa só existe dentro de seus limites, afirmando-se como ato relativamente hostil contra o ambiente; sem papa não teria havido Lutero, sem pagãos não teria havido papa; por isso, não se pode negar que a mais intensa inclinação do homem por seus irmãos se baseie na repulsa deles.”

 

 

“Ao acordar, certificou-se de que os ferimentos não eram graves, e refletiu de novo sobre o acontecido. Uma briga sempre deixa uma sensação ruim, por assim dizer de uma intimidade precipitada, e Ulrich sentiu que, mesmo tendo sido atacado, não se portara adequadamente. Mas adequar-se a quê? Junto das ruas onde a cada trezentos passos um policial pune a menor infração da ordem, há outras que exigem força e atenção, como uma floresta virgem. A humanidade produz bíblias e armas, tuberculose e tuberculina. É uma democracia com reis e aristocratas; constrói igrejas, mas constrói universidades que as combatem; transforma mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares; naturalmente também coloca nas mãos de bandidos mangueiras de borracha recheadas de chumbo, para atormentarem outras pessoas, e depois prepara cobertores macios para as vítimas desses maus-tratos, como as cobertas que agora envolviam Ulrich com carinho e proteção.

Tudo isso é o conhecido fato dos paradoxos, da incoerência e imperfeição da vida, que nos fazem rir ou chorar. Ulrich porém não era assim. Odiava aquela mescla de desapego e exagerado apego à vida, com que suportamos suas contradições e meias-verdades, como uma tia solteirona tolera as má-criações de um jovem sobrinho. Mas não saltou da cama ao ver que ficar deitado nela era tirar vantagem da desordem nas relações humanas; pois evitar pessoalmente o mal e fazer o bem, mas não se importar com a ordem geral, é, em muitos sentidos, um compromisso precipitado com a consciência à custa da causa, um curto-circuito, uma fuga para o mundo particular. Depois daquela involuntária experiência, Ulrich chegou a pensar que valia muito pouco eliminarem-se armas, ou reis, e reduzir a ignorância e maldade humanas com o progresso; pois as objeções e maldades são sempre substituídas por outras, como se uma perna do mundo escorregasse para trás cada vez que a outra avança. Seria preciso entender a causa e o mecanismo secreto desse processo! Isso seria mais importante do que ser um bom homem segundo princípios breve superados; assim, em assuntos de moral Ulrich preferia o serviço no estado-maior ao heroísmo cotidiano da prática do bem.”

 

 

“Numa comunidade através da qual correm energias, todo caminho leva a um bom objetivo, desde que não se hesite nem reflita demais. Os objetivos são a curto prazo; mas também a vida é curta, e assim conseguimos arrancar dela um máximo de realização. A pessoa não precisa mais que isso para ser feliz, pois aquilo que se obtém modela a alma, enquanto aquilo que se deseja, sem conseguir, apenas a deforma; para a felicidade importa muito pouco o que se deseja, mas apenas que seja obtido.”

 

 

“A marcha do tempo nos domina. Andamos com ela dia e noite, e fazemos dentro dela todo o resto; nos barbeamos, comemos, amamos, lemos livros, exercemos nossa profissão, como se as quatro paredes estivessem imóveis; e o inquietante é saber que as paredes se movem, sem notarmos nada, lançam seus trilhos à frente como longos fios sinuosos, tateiam, sem que se saiba para onde. Além disso queremos se possível fazer parte das forças que determinam o curso do tempo. É um papel obscuro, e acontece, quando olhamos para fora após um intervalo mais longo, que a paisagem mudou; o que passa voando o faz porque só pode ser assim, mas apesar da resignação cresce a sensação incômoda de que seguimos além de nossa meta ou entramos por um caminho errado.”

 

 

“Na Kakânia só se tomava um gênio por patife, nunca se tomava um patife por gênio, como acontecia em outras partes.”

 

 

“Aliás, quanta coisa singular se podia dizer sobre essa Kakânia submersa! Por exemplo, ela era kaiserlich-königlich e kaiserlich und königlich, ou seja, imperial e real; um dos dois sinais, K.K. ou K. e K., marcava cada pessoa e coisa, mas mesmo assim era preciso uma sabedoria secreta para poder distinguir sempre com segurança que instituição ou pessoa se devia chamar K.K. ou K. e K. Por extenso, chamava-se Monarquia Austro-Húngara, mas popularmente era chamada Áustria, com um nome, portanto, a que havia renunciado com um solene juramento de Estado, mas que mantinha em todos os assuntos sentimentais, para mostrar que sentimentos são tão importantes quanto o direito público, e que regulamentos não são a coisa realmente séria da vida. A Constituição era liberal, mas o regime era clerical. O regime era clerical, mas se vivia de forma liberal. Todos os cidadãos eram iguais diante da lei, mas nem todos eram cidadãos. Havia um Parlamento que fazia tamanho uso de sua liberdade, que habitualmente o mantinham fechado; mas também havia um parágrafo de exceção com ajuda do qual passavam sem o Parlamento, e quando todos já estavam contentes com o absolutismo, a Coroa invariavelmente determinava a volta do regime parlamentar. Havia muitas dessas singularidades naquele país, e entre elas estavam as brigas nacionais, que chamavam justamente a atenção da Europa, e hoje são descritas de maneira tão errada. Eram tão fortes, que por sua causa a máquina do Estado parava várias vezes ao ano, mas nos intervalos e pausas de governo todos se davam magnificamente bem, fazendo de conta que nada acontecera. E não acontecera mesmo nada de real. Apenas a resistência de todo ser humano contra os esforços de outro ser humano, que hoje é geral, tinha naquele país já muito cedo se desenvolvido; podemos mesmo dizer que se tornara um cerimonial sublimado, que podia ter consequências bem maiores se sua evolução não tivesse sido interrompida antes do tempo por uma catástrofe.

Pois não apenas a repulsa aos cidadãos ascendera ali à condição de sentimento comunitário: também a desconfiança com relação à própria pessoa e destino assumira caráter de profunda convicção. Naquele país, sempre se pensava uma coisa e fazia outra — e isso até mesmo de forma extremamente apaixonada, sem medir consequências — ou se fazia uma coisa e pensava outra. Observadores desinformados julgavam isso cortesia, ou até fraqueza do que pensavam ser o caráter austríaco. Mas era falso; e sempre é falso explicar os fenômenos de um país através do caráter de seus habitantes. Pois um habitante tem no mínimo nove caracteres, o profissional, o nacional, o estatal, o de classe, o geográfico, o sexual, o consciente e o inconsciente, e talvez ainda um caráter particular: reúne todos em si, mas eles o desagregam; na verdade, ele não passa de uma pequena cova lavada por muitos riachinhos, que desaparecem nela, para depois voltarem a brotar e, junto com outros riachinhos, encherem outra cova. Por isso, todo habitante da terra tem ainda um décimo caráter, que não é senão a fantasia passiva de espaços não preenchidos; este permite tudo ao ser humano, menos uma coisa: levar a sério aquilo que seus outros nove — no mínimo — caracteres fazem, e o que acontece com eles; em outras palavras, exatamente aquilo que deveria preencher. Esse espaço que, como se vê, é de difícil descrição, varia na cor e na forma, por exemplo da Itália para a Inglaterra, na medida em que variam a cor e a forma daquilo que dele se destaca, mas, de fato, é sempre idêntico, um aposento vazio e invisível, no qual se posta a realidade como uma cidadezinha de blocos, de brinquedo, que a fantasia tenha abandonado.”

 

 

“No momento em que iniciou o estudo de mecânica, Ulrich sentiu um entusiasmo febril. Para que se precisa do Apolo del Belvedere, se temos diante dos olhos novas formas de um turbodínamo ou o jogo de pistões de uma máquina a vapor? Quem se encantaria com a milenar conversa sobre o bem e o mal depois de constatar que não são “constantes”, mas “valores funcionais”, de forma que o valor das obras depende das circunstâncias históricas, e o valor das pessoas depende da habilidade psicotécnica com que avaliamos suas qualidades? O mundo é realmente cômico, analisado do ponto de vista da técnica; nada prático nas relações humanas, altamente antieconômico e inexato em seus métodos; e quem estiver habituado a resolver seus problemas com a régua de cálculo, simplesmente não pode mais levar a sério metade das afirmações dos homens.”

 

 

“Na verdade, não se pode negar que esses sonhos ancestrais, na opinião dos não matemáticos, se concretizaram de repente de um modo bem diverso do que se imaginara. A corneta do postilhão de Münchhausen era mais bela que a voz em conserva, industrial; a bota de sete léguas, mais bela que um caminhão; o reino de Larino, mais belo que um túnel de ferrovia; a mandrágora, mais bela que um fototelegrama; comer o coração da própria mãe para compreender os pássaros era mais belo que estudar psicologia animal sobre a expressividade dos pios. Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore, espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos; também não devemos passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes, mas comer bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho. Realmente não é preciso falar muito a respeito; a maioria das pessoas sabe perfeitamente, hoje, que a matemática entrou em todos os campos de nossa vida, como um demônio. Talvez nem todas essas pessoas acreditem na história do Diabo a quem se pode vender a alma; mas todas as pessoas que entendem alguma coisa de alma, por serem sacerdotes, historiadores e artistas, e tirarem boas vantagens disso, testemunham que foi a matemática que arruinou a alma, que a matemática é a fonte de uma inteligência perversa que faz do homem senhor da terra mas escravo da máquina. A secura interior, a monstruosa mistura de sensibilidade para os detalhes e indiferença para o todo, o enorme desamparo do ser humano num deserto de minúcias, sua inquietação, maldade, a incrível frieza do coração, cobiça, crueldade e violência que caracterizam nossa era, seriam, segundo esses relatos, resultado dos prejuízos que um aguçado pensamento lógico traz à alma! E assim, já no tempo em que Ulrich se tornou matemático, havia pessoas que profetizavam a derrocada da cultura europeia, porque nenhuma crença, nenhum amor, nenhuma candura restavam no ser humano; e significativamente todos foram maus matemáticos na juventude e nos anos escolares. Isso provou para eles, mais tarde, que a matemática, mãe da ciência natural exata, avó da técnica, também é mãe ancestral daquele espírito do qual finalmente brotaram os gases venenosos e os pilotos de guerra.”

 

 

“Os homens, percebendo uma tal situação, costumam tratar essas mulheres sedentas de amor como tratariam idiotas a quem se engana com os truques mais tolos, fazendo-os cair sempre no mesmo tropeço.”

 

 

“Não era sem importância Ulrich poder dizer que realizara muitas coisas na ciência. Seus trabalhos lhe tinham granjeado reconhecimento alheio. Esperar admiração seria pedir demais, pois mesmo no reino da verdade só se admiram sábios mais velhos, dos quais depende conseguirmos ou não o mestrado ou a cátedra.”

 

 

“Uma hora por dia é um doze avos da vida consciente, e basta para manter um corpo treinado como o de uma pantera, capaz de enfrentar qualquer aventura; mas é desperdiçada numa expectativa insensata, pois nunca chegam aventuras dignas de tal preparativo. O mesmo acontece com o amor, para o qual o ser humano é preparado da maneira mais monstruosa.”

 

 

“— Você não gosta de Walter. Na verdade, nem é amigo dele. — O tom das palavras era desafiador, mas ela ria.

Ulrich deu uma resposta inesperada:

— Somos amigos de juventude. Você ainda era criança, Clarisse, e nossa relação já era a de uma amizade juvenil claramente em decadência. Por muitos anos nós nos admiramos mutuamente, e agora desconfiamos um do outro por nos conhecermos bem demais. Cada um gostaria de se livrar da penosa impressão de ter um dia confundido o amigo consigo mesmo; e assim nos prestamos mutuamente o serviço de um espelho deformante que não se deixa subornar.”

 

 

“Todas as pessoas ocupadas em destruir os êxitos de um período positivo precedente pensam que os estão corrigindo.”

 

 

““Se naquele tempo fazíamos afirmações, tinham outro objetivo além de serem corretas: simplesmente o de nos afirmarmos!”

O impulso de ser luz era na juventude mais forte do que o de ver as coisas na luz; a lembrança da juventude, como um voo sobre raios, lhe pareceu agora uma dolorosa perda.”

 

 

“A vida nada constrói sem tirar as pedras de construção de algum outro lugar.”

 

 

“Diotima aprendeu que também convidados famosos sempre conversavam aos pares nas suas reuniões, porque já naquele tempo uma pessoa só conseguia falar objetiva e sensatamente com no máximo mais uma pessoa, e ela, na verdade, não conseguia fazer isso nem com uma só. Com isso Diotima descobrira em si mesma o conhecido mal dos homens contemporâneos, que se chama civilização. É um fato inibidor misturando sabonete, ondas hertzianas, a linguagem cifrada e arrogante dos matemáticos e das fórmulas químicas, economia política, pesquisa experimental e incapacidade de uma convivência simples mas não simplória entre os homens. E também a relação da nobreza intelectual, que lhe era inerente, com a nobreza social, que Diotima tratava com tanta cautela, e, apesar de todos os sucessos, trazia algumas decepções, com o tempo lhe pareceu cada vez mais caracterizar não uma era da cultura, mas apenas uma era da civilização.

Segundo essa ideia, civilização era tudo aquilo que o seu espírito não conseguia dominar. E por isso incluía aí também, há muito, e principalmente, o seu marido.”

 

 

“Mal ela começara, e Arnheim já dizia que só viera àquela velha cidade para recuperar-se um pouco, no encanto barroco da antiga cultura austríaca, dos cálculos, do materialismo, da sensatez ressequida do trabalho dos homens civilizados de agora.

Diotima respondera que nessa cidade reinava uma espiritualidade muito alegre, e sentia-se contente com isso.

— Sim — dissera ele —, não temos mais vozes interiores; hoje em dia sabemos demais, a razão tiraniza nossa vida.”

 

 

“Por infelicidade não há nada mais difícil de reproduzir em literatura do que um homem que pensa. Um grande descobridor, quando certa vez lhe perguntaram como conseguia ter tantas ideias novas, respondeu: “pensando nisso o tempo todo”. E com efeito, pode-se dizer que as ideias inesperadas só aparecem porque esperamos por elas. Constituem em grande parte um resultado positivo do caráter, de inclinações constantes, de ambição persistente, de ocupação incansável. Como deve ser monótona essa persistência! Por outro prisma, a solução de uma tarefa intelectual não acontece de modo muito diferente do que quando um cão, levando um bastão na boca, quer passar por uma porta estreita; ele vira a cabeça para a esquerda e a direita, até o bastão entrar, e nós agimos de modo muito parecido, apenas com a diferença de que não tentamos fazer isso de modo inconsciente, mas, pela experiência, já sabemos mais ou menos como proceder. E embora uma cabeça inteligente tenha muito mais habilidade e experiência nos movimentos do que uma cabeça tola, a solução também para ela chega de forma inesperada, acontece de repente, e sentimos com vago espanto que os pensamentos se fizeram por si, em vez de esperarem pelo seu autor. Essa sensação de assombro é o que muita gente chama hoje em dia de intuição, depois de antigamente a chamarem inspiração, e acreditam dever enxergar nela algo de suprapessoal; mas é apenas algo impessoal, isto é, a afinidade e solidariedade das próprias coisas que se encontram dentro de uma cabeça.

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se percebe dela nesse processo. Por isso o pensamento, enquanto não está acabado, é um estado muito miserável, parecido com uma cólica de todas as volutas do cérebro; e quando fica concluído, já não tem a forma de um pensamento, como se experimentou, mas tem a forma de algo pensado, o que infelizmente é impessoal, pois o pensamento se dirige para fora e se comunica ao mundo. Praticamente não se consegue surpreender o momento entre o pessoal e o impessoal, quando alguém pensa, e por isso o pensamento é um fato tão embaraçoso para os escritores, que estes o preferem evitar.”

 

 

“Seu amigo de juventude, Walter, marido da pequena Clarisse, que ultimamente andava tão esquisito, um dia afirmara a respeito dele: “Ulrich só faz com o máximo de energia aquilo que julga desnecessário!” Aquilo lhe ocorreu exatamente nesse momento, e ele pensou: “Hoje em dia pode-se dizer isso de todos nós”.”

 

 

“Nosso julgamento sobre um ato nunca é julgamento sobre aquele lado do ato que Deus recompensa ou pune: Lutero, singularmente, foi quem disse isso. Provavelmente sob influência de um dos místicos dos quais foi amigo por algum tempo. Certamente muitos outros crentes poderiam tê-lo dito. No sentido burguês, eram todos imoralistas. Diferenciavam entre pecados e alma, que pode permanecer imaculada apesar dos pecados, quase como Maquiavel diferencia o meio e o fim. O “coração humano” lhe fora “retirado”. “Também em Cristo havia um ser humano externo e outro interior, e tudo o que ele fazia com relação às coisas exteriores partia do ser humano externo, enquanto seu ser humano interno permanecia imperturbável e à parte”, diz Eckehart. Esses santos e crentes seriam por fim capazes até de absolver um Moosbrugger!? A humanidade certamente progrediu desde aqueles tempos; mas embora mate Moosbrugger, essa humanidade ainda tem a fraqueza de venerar aqueles homens que talvez o tivessem absolvido.”

 

 

“Nesses momentos nada está tão distante quanto a ideia de que a vida que se leva, e que leva a gente, não nos interessa muito, não intimamente. Mas todo homem sabe disso enquanto é jovem. Ulrich recordava como lhe parecera um dia daqueles nestas ruas, há uma década ou década e meia. Tudo fora ainda uma vez tão magnífico, e contudo naquele anseio fervente havia um doloroso pressentimento de cativeiro; uma sensação inquietante: tudo o que penso alcançar, me alcança; estou corroído por uma suspeita de que neste mundo as manifestações falsas, levianas e impessoais ecoam mais intensamente do que as íntimas e essenciais. Essa beleza — pensamos — tudo bem, mas será minha? A verdade que conheço, será a minha verdade? Os objetivos, vozes, realidades, tudo isso que me seduz, me atrai e me leva, que sigo e em que me precipito... será a verdade real, ou dela se mostra apenas um sopro inacessível, pousado sobre a realidade oferecida?

São as divisões e formas pré-configuradas da vida o que a desconfiança sente com tanta nitidez, a mesmice, o que já foi preparado por gerações inteiras, a linguagem pronta, não apenas da boca, mas das sensações e percepções. Ulrich parara diante de uma igreja. Meu Deus, se aí na sombra se sentasse uma gigantesca matrona com grande ventre descaído, o dorso recostado nas paredes das casas, e lá em cima o rosto exposto ao crepúsculo, cheio de mil rugas, verrugas e espinhas: ele não o poderia também ter considerado belo? Meu Deus, como tudo era bonito! Não nos queremos furtar ao fato de termos vindo ao mundo para admirar isso. Mas, como já se disse, também não seria impossível julgar belas as amplas formas que descaem tranquilas e a filigrana das rugas numa matrona respeitável; apenas, é mais simples dizer: ela é velha. E essa passagem da sensação de velhice para a de beleza do mundo é mais ou menos a mesma transição que se faz do espírito dos jovens para a moral mais complexa do adulto, que parece uma lição ridícula até que nós mesmos a compartilhamos. Ulrich parou diante da igreja apenas alguns segundos, mas eles desceram às suas profundezas e comprimiram seu coração com toda a resistência original que sentimos contra esse mundo cristalizado em milhões de toneladas de rocha, essa hirta paisagem lunar da emoção, em que fomos colocados sem poder reagir.”

 

 

“No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com seus prazeres; sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, profissão e realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa. Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude ainda jazia à frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente.

Mas muito mais estranho ainda é que a maioria das pessoas nem nota isso; adota o homem que apareceu nela, cuja vida viveu; suas experiências lhe parecem agora a expressão das próprias qualidades, e seu destino lhe parece ser seu próprio mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo se grudou nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia. E então só recordam vagamente sua juventude, quando ainda tinham certa resistência. Essa outra força puxa e gira, não quer ficar em lugar algum e desencadeia uma tempestade de desnorteados movimentos de fuga; a ironia da juventude, sua rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos jovens para tudo o que é heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa seriedade e sua inconstância — tudo isso não significa senão movimentos de fuga. No fundo, apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe parece necessário e unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como se tudo aquilo em que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e necessário.”

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