Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-2094-276-5
Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth
Opinião: ★★★★☆
Análise em vídeo: Clique aqui
Link para compra: Clique aqui
Páginas: 1248
Sinopse: Nesta
que é considerada uma das obras literárias mais importantes do século XX, o
autor Robert Musil tece uma intrincada trama centralizada em Ulrich. O
personagem vive diversas experiências, viaja ao exterior e, às vésperas da
Primeira Guerra Mundial, retorna a Viena, convivendo com os mais diversos tipos
humanos. Este romance-ensaio mostra a decadência dos valores vigentes até o
início do século passado, marcando a perda de posição da Europa na decisão dos
rumos políticos e econômicos mundiais.
“As cidades se reconhecem pelo andar, como as pessoas. Abrindo os olhos,
o recém-chegado deduziria o mesmo da vibração do movimento nas ruas, muito
antes que de qualquer detalhe típico. Ainda que fosse só imaginação, não
importa. A supervalorização da pergunta: onde estou? vem do tempo dos nômades,
em que era preciso registrar os locais de pastagem. Seria importante saber por
que, ao falarmos num nariz vermelho, nos contentamos que seja vermelho, sem nos
importarmos com o tom especial de vermelho, embora este possa ser descrito com
exatidão em micromilímetros, pela frequência das ondas. Mas numa ocasião tão
mais complexa como a cidade em que nos encontramos, sempre gostaríamos de saber
exatamente que cidade é. Isso nos distrai de pontos mais importantes.
Portanto,
não se dê valor maior ao nome da cidade. Como todas as cidades grandes, era
feita de irregularidade, mudança, avanço, passo desigual, choque de coisas e
acontecimentos, e, no meio disso tudo, pontos de silêncio, sem fundo; era feita
de caminhos e descaminhos, de um grande pulsar rítmico e do eterno desencontro
e dissonância de todos os ritmos, como uma bolha fervente pousada num
recipiente feito da substância duradoura das casas, leis, ordens e tradições
históricas.”
“Se
se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos,
os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa
executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria
presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira,
calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas
necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que
gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.
Pois
nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas.
E
alguém que faz?
“Podem-se
deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A
atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia
inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso
enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as
pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem
somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o
heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com
extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.”
“As
pessoas frias e calculistas não conseguem na vida metade do sucesso daquelas
personalidades bem-dosadas, capazes de ter sentimentos profundos por pessoas e
circunstâncias que lhes trazem vantagens.”
“Na
Áustria o patriotismo era assunto muito especial. Pois crianças alemãs
aprendiam simplesmente a desprezar as guerras das crianças austríacas, e
ensinavam-lhes que as crianças francesas eram netas de libertinos sem fibra,
que fogem aos milhares quando um soldado alemão barbudo avança sobre eles. E
com papéis trocados, bem como as modificações desejáveis, aprendiam a mesma
coisa as crianças francesas, russas e inglesas, que também tinham sido
frequentemente vencedoras. Mas crianças são fanfarronas, gostam de brincar de
polícia e ladrão, e estão sempre dispostas a considerar a família X da rua Y a
maior família do mundo, caso façam parte dela. Assim, se deixam influenciar
facilmente pelo patriotismo. Mas na Áustria isso era um pouco mais complicado.
Pois os austríacos também tinham vencido todas as guerras da sua história, mas
depois da maioria dessas guerras tinham feito algum tipo de concessão. Isso faz
pensar, e na sua composição sobre amor à pátria Ulrich escreveu que um
verdadeiro patriota nunca deveria considerar sua pátria a melhor de todas; sim,
com um lampejo que lhe pareceu especialmente belo, embora ficasse mais ofuscado
por seu brilho do que visse o que estava contido nele, acrescentara àquela
frase suspeita mais outra: que provavelmente também Deus gostava de falar do
seu mundo no conjunctivus potentialis (hic dixerit quispiam =
aqui se poderia objetar...), pois era Deus quem fazia o mundo, pensando que bem
podia ser de outra maneira.
Ele
sentira muito orgulho dessa frase, mas talvez não se tivesse expressado de
maneira muito compreensível, pois causara grande agitação, e quase o afastaram
da escola, embora não chegassem a tomar essa decisão por não descobrirem se
aquele comentário inadequado era blasfêmia contra a pátria ou contra Deus.”
“Toda profissão que não é exercida por
dinheiro, mas por amor, chega um momento em que o acúmulo dos anos parece levar
a nada.”
“Naturalmente todas as épocas têm todas as
variedades de rostos; mas a moda destaca sempre um deles, fazendo-o modelo de
felicidade e beleza, e os demais tentam imitá-lo; até as feias o conseguem com
ajuda de roupa e penteado, só as que nasceram para coisas especiais não o
conseguem nunca — nelas manifesta-se sem concessões o ideal de beleza banido e
aristocrático de tempos passados.”
“De repente, tinham aparecido três sujeitos: talvez tivesse roçado num
deles na rua, numa hora tardia e solitária, pois estava distraído com outras
ideias; mas mesmo assim aqueles rostos, contorcidos à luz do lampião,
expressavam uma raiva mais antiga. Ele cometera então um erro. Deveria ter
recuado imediatamente, como quem tem medo, mas empurrando com as costas o
sujeito que se metera atrás dele, ou enfiando o cotovelo em seu estômago,
tentando ao mesmo tempo fugir, pois contra três homens fortes não se luta. Em
vez disso, hesitara um instante. Era a idade: 32 anos. A essa altura,
hostilidade e amor exigem mais tempo. Ele não acreditava que os três rostos que
o encaravam na noite com raiva e desprezo quisessem apenas seu dinheiro,
imaginou que era ódio, ódio que confluíra contra ele e se personificara;
enquanto os malandros o insultavam com palavras grosseiras, pensou que podiam
nem ser malandros mas cidadãos como ele, apenas bêbados e liberando suas
inibições, e que, notando o vulto dele ao passar, descarregavam sobre ele o
ódio que está sempre em todo mundo à espera de qualquer pessoa estranha, como
uma tempestade iminente no ar. Ele próprio já sentira algo parecido. Hoje em
dia, muitíssimas pessoas se sentem numa lamentável oposição a muitíssimas
outras. É um traço fundamental de nossa cultura o homem desconfiar
profundamente de pessoas fora do seu próprio meio; portanto, não só um ariano
considera um judeu um ser incompreensível e inferior, mas um jogador de futebol
sente o mesmo diante de um pianista. Afinal, cada coisa só existe dentro de
seus limites, afirmando-se como ato relativamente hostil contra o ambiente; sem
papa não teria havido Lutero, sem pagãos não teria havido papa; por isso, não
se pode negar que a mais intensa inclinação do homem por seus irmãos se baseie
na repulsa deles.”
“Ao
acordar, certificou-se de que os ferimentos não eram graves, e refletiu de novo
sobre o acontecido. Uma briga sempre deixa uma sensação ruim, por assim dizer
de uma intimidade precipitada, e Ulrich sentiu que, mesmo tendo sido atacado,
não se portara adequadamente. Mas adequar-se a quê? Junto das ruas onde a cada
trezentos passos um policial pune a menor infração da ordem, há outras que
exigem força e atenção, como uma floresta virgem. A humanidade produz bíblias e
armas, tuberculose e tuberculina. É uma democracia com reis e aristocratas;
constrói igrejas, mas constrói universidades que as combatem; transforma
mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares; naturalmente
também coloca nas mãos de bandidos mangueiras de borracha recheadas de chumbo,
para atormentarem outras pessoas, e depois prepara cobertores macios para as
vítimas desses maus-tratos, como as cobertas que agora envolviam Ulrich com
carinho e proteção.
Tudo
isso é o conhecido fato dos paradoxos, da incoerência e imperfeição da vida,
que nos fazem rir ou chorar. Ulrich porém não era assim. Odiava aquela mescla
de desapego e exagerado apego à vida, com que suportamos suas contradições e
meias-verdades, como uma tia solteirona tolera as má-criações de um jovem
sobrinho. Mas não saltou da cama ao ver que ficar deitado nela era tirar
vantagem da desordem nas relações humanas; pois evitar pessoalmente o mal e
fazer o bem, mas não se importar com a ordem geral, é, em muitos sentidos, um
compromisso precipitado com a consciência à custa da causa, um curto-circuito,
uma fuga para o mundo particular. Depois daquela involuntária experiência,
Ulrich chegou a pensar que valia muito pouco eliminarem-se armas, ou reis, e
reduzir a ignorância e maldade humanas com o progresso; pois as objeções e
maldades são sempre substituídas por outras, como se uma perna do mundo
escorregasse para trás cada vez que a outra avança. Seria preciso entender a
causa e o mecanismo secreto desse processo! Isso seria mais importante do que
ser um bom homem segundo princípios breve superados; assim, em assuntos de
moral Ulrich preferia o serviço no estado-maior ao heroísmo cotidiano da
prática do bem.”
“Numa
comunidade através da qual correm energias, todo caminho leva a um bom
objetivo, desde que não se hesite nem reflita demais. Os objetivos são a curto
prazo; mas também a vida é curta, e assim conseguimos arrancar dela um máximo
de realização. A pessoa não precisa mais que isso para ser feliz, pois aquilo
que se obtém modela a alma, enquanto aquilo que se deseja, sem conseguir,
apenas a deforma; para a felicidade importa muito pouco o que se deseja, mas
apenas que seja obtido.”
“A
marcha do tempo nos domina. Andamos com ela dia e noite, e fazemos dentro dela
todo o resto; nos barbeamos, comemos, amamos, lemos livros, exercemos nossa
profissão, como se as quatro paredes estivessem imóveis; e o inquietante é
saber que as paredes se movem, sem notarmos nada, lançam seus trilhos à frente
como longos fios sinuosos, tateiam, sem que se saiba para onde. Além disso queremos
se possível fazer parte das forças que determinam o curso do tempo. É um papel
obscuro, e acontece, quando olhamos para fora após um intervalo mais longo, que
a paisagem mudou; o que passa voando o faz porque só pode ser assim, mas apesar
da resignação cresce a sensação incômoda de que seguimos além de nossa meta ou
entramos por um caminho errado.”
“Na
Kakânia só se tomava um gênio por patife, nunca se tomava um patife por gênio,
como acontecia em outras partes.”
“Aliás,
quanta coisa singular se podia dizer sobre essa Kakânia submersa! Por exemplo,
ela era kaiserlich-königlich e kaiserlich und königlich, ou seja,
imperial e real; um dos dois sinais, K.K. ou K. e K., marcava
cada pessoa e coisa, mas mesmo assim era preciso uma sabedoria secreta para
poder distinguir sempre com segurança que instituição ou pessoa se devia chamar
K.K. ou K. e K. Por extenso, chamava-se Monarquia Austro-Húngara,
mas popularmente era chamada Áustria, com um nome, portanto, a que havia
renunciado com um solene juramento de Estado, mas que mantinha em todos os
assuntos sentimentais, para mostrar que sentimentos são tão importantes quanto
o direito público, e que regulamentos não são a coisa realmente séria da vida.
A Constituição era liberal, mas o regime era clerical. O regime era clerical,
mas se vivia de forma liberal. Todos os cidadãos eram iguais diante da lei, mas
nem todos eram cidadãos. Havia um Parlamento que fazia tamanho uso de sua
liberdade, que habitualmente o mantinham fechado; mas também havia um parágrafo
de exceção com ajuda do qual passavam sem o Parlamento, e quando todos já
estavam contentes com o absolutismo, a Coroa invariavelmente determinava a
volta do regime parlamentar. Havia muitas dessas singularidades naquele país, e
entre elas estavam as brigas nacionais, que chamavam justamente a atenção da
Europa, e hoje são descritas de maneira tão errada. Eram tão fortes, que por
sua causa a máquina do Estado parava várias vezes ao ano, mas nos intervalos e
pausas de governo todos se davam magnificamente bem, fazendo de conta que nada
acontecera. E não acontecera mesmo nada de real. Apenas a resistência de todo
ser humano contra os esforços de outro ser humano, que hoje é geral, tinha
naquele país já muito cedo se desenvolvido; podemos mesmo dizer que se tornara
um cerimonial sublimado, que podia ter consequências bem maiores se sua
evolução não tivesse sido interrompida antes do tempo por uma catástrofe.
Pois
não apenas a repulsa aos cidadãos ascendera ali à condição de sentimento
comunitário: também a desconfiança com relação à própria pessoa e destino
assumira caráter de profunda convicção. Naquele país, sempre se pensava uma
coisa e fazia outra — e isso até mesmo de forma extremamente apaixonada, sem
medir consequências — ou se fazia uma coisa e pensava outra. Observadores
desinformados julgavam isso cortesia, ou até fraqueza do que pensavam ser o
caráter austríaco. Mas era falso; e sempre é falso explicar os fenômenos de um
país através do caráter de seus habitantes. Pois um habitante tem no mínimo
nove caracteres, o profissional, o nacional, o estatal, o de classe, o
geográfico, o sexual, o consciente e o inconsciente, e talvez ainda um caráter
particular: reúne todos em si, mas eles o desagregam; na verdade, ele não passa
de uma pequena cova lavada por muitos riachinhos, que desaparecem nela, para
depois voltarem a brotar e, junto com outros riachinhos, encherem outra cova.
Por isso, todo habitante da terra tem ainda um décimo caráter, que não é senão
a fantasia passiva de espaços não preenchidos; este permite tudo ao ser humano,
menos uma coisa: levar a sério aquilo que seus outros nove — no mínimo —
caracteres fazem, e o que acontece com eles; em outras palavras, exatamente aquilo
que deveria preencher. Esse espaço que, como se vê, é de difícil descrição,
varia na cor e na forma, por exemplo da Itália para a Inglaterra, na medida em
que variam a cor e a forma daquilo que dele se destaca, mas, de fato, é sempre
idêntico, um aposento vazio e invisível, no qual se posta a realidade como uma
cidadezinha de blocos, de brinquedo, que a fantasia tenha abandonado.”
“No
momento em que iniciou o estudo de mecânica, Ulrich sentiu um entusiasmo
febril. Para que se precisa do Apolo del Belvedere, se temos diante dos
olhos novas formas de um turbodínamo ou o jogo de pistões de uma máquina a
vapor? Quem se encantaria com a milenar conversa sobre o bem e o mal depois de
constatar que não são “constantes”, mas “valores funcionais”, de forma que o
valor das obras depende das circunstâncias históricas, e o valor das pessoas
depende da habilidade psicotécnica com que avaliamos suas qualidades? O mundo é
realmente cômico, analisado do ponto de vista da técnica; nada prático nas
relações humanas, altamente antieconômico e inexato em seus métodos; e quem
estiver habituado a resolver seus problemas com a régua de cálculo,
simplesmente não pode mais levar a sério metade das afirmações dos homens.”
“Na
verdade, não se pode negar que esses sonhos ancestrais, na opinião dos não
matemáticos, se concretizaram de repente de um modo bem diverso do que se
imaginara. A corneta do postilhão de Münchhausen era mais bela que a voz em
conserva, industrial; a bota de sete léguas, mais bela que um caminhão; o reino
de Larino, mais belo que um túnel de ferrovia; a mandrágora, mais bela que um
fototelegrama; comer o coração da própria mãe para compreender os pássaros era
mais belo que estudar psicologia animal sobre a expressividade dos pios.
Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore,
espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos;
também não devemos passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes,
mas comer bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade
ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a
humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela
precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse chatíssimo ímpeto
de fanatismo pelo trabalho. Realmente não é preciso falar muito a respeito; a
maioria das pessoas sabe perfeitamente, hoje, que a matemática entrou em todos
os campos de nossa vida, como um demônio. Talvez nem todas essas pessoas
acreditem na história do Diabo a quem se pode vender a alma; mas todas as
pessoas que entendem alguma coisa de alma, por serem sacerdotes, historiadores
e artistas, e tirarem boas vantagens disso, testemunham que foi a matemática
que arruinou a alma, que a matemática é a fonte de uma inteligência perversa
que faz do homem senhor da terra mas escravo da máquina. A secura interior, a
monstruosa mistura de sensibilidade para os detalhes e indiferença para o todo,
o enorme desamparo do ser humano num deserto de minúcias, sua inquietação,
maldade, a incrível frieza do coração, cobiça, crueldade e violência que
caracterizam nossa era, seriam, segundo esses relatos, resultado dos prejuízos
que um aguçado pensamento lógico traz à alma! E assim, já no tempo em que
Ulrich se tornou matemático, havia pessoas que profetizavam a derrocada da
cultura europeia, porque nenhuma crença, nenhum amor, nenhuma candura restavam
no ser humano; e significativamente todos foram maus matemáticos na juventude e
nos anos escolares. Isso provou para eles, mais tarde, que a matemática, mãe da
ciência natural exata, avó da técnica, também é mãe ancestral daquele espírito
do qual finalmente brotaram os gases venenosos e os pilotos de guerra.”
“Os
homens, percebendo uma tal situação, costumam tratar essas mulheres sedentas de
amor como tratariam idiotas a quem se engana com os truques mais tolos,
fazendo-os cair sempre no mesmo tropeço.”
“Não
era sem importância Ulrich poder dizer que realizara muitas coisas na ciência.
Seus trabalhos lhe tinham granjeado reconhecimento alheio. Esperar admiração
seria pedir demais, pois mesmo no reino da verdade só se admiram sábios mais
velhos, dos quais depende conseguirmos ou não o mestrado ou a cátedra.”
“Uma
hora por dia é um doze avos da vida consciente, e basta para manter um corpo
treinado como o de uma pantera, capaz de enfrentar qualquer aventura; mas é
desperdiçada numa expectativa insensata, pois nunca chegam aventuras dignas de
tal preparativo. O mesmo acontece com o amor, para o qual o ser humano é
preparado da maneira mais monstruosa.”
“—
Você não gosta de Walter. Na verdade, nem é amigo dele. — O tom das palavras
era desafiador, mas ela ria.
Ulrich
deu uma resposta inesperada:
—
Somos amigos de juventude. Você ainda era criança, Clarisse, e nossa relação já
era a de uma amizade juvenil claramente em decadência. Por muitos anos nós nos
admiramos mutuamente, e agora desconfiamos um do outro por nos conhecermos bem
demais. Cada um gostaria de se livrar da penosa impressão de ter um dia
confundido o amigo consigo mesmo; e assim nos prestamos mutuamente o serviço de
um espelho deformante que não se deixa subornar.”
“Todas
as pessoas ocupadas em destruir os êxitos de um período positivo precedente
pensam que os estão corrigindo.”
““Se
naquele tempo fazíamos afirmações, tinham outro objetivo além de serem
corretas: simplesmente o de nos afirmarmos!”
O
impulso de ser luz era na juventude mais forte do que o de ver as
coisas na luz; a lembrança da juventude, como um voo sobre raios, lhe pareceu
agora uma dolorosa perda.”
“A
vida nada constrói sem tirar as pedras de construção de algum outro lugar.”
“Diotima
aprendeu que também convidados famosos sempre conversavam aos pares nas suas
reuniões, porque já naquele tempo uma pessoa só conseguia falar objetiva e
sensatamente com no máximo mais uma pessoa, e ela, na verdade, não conseguia
fazer isso nem com uma só. Com isso Diotima descobrira em si mesma o conhecido
mal dos homens contemporâneos, que se chama civilização. É um fato inibidor
misturando sabonete, ondas hertzianas, a linguagem cifrada e arrogante dos
matemáticos e das fórmulas químicas, economia política, pesquisa experimental e
incapacidade de uma convivência simples mas não simplória entre os homens. E
também a relação da nobreza intelectual, que lhe era inerente, com a nobreza
social, que Diotima tratava com tanta cautela, e, apesar de todos os sucessos,
trazia algumas decepções, com o tempo lhe pareceu cada vez mais caracterizar
não uma era da cultura, mas apenas uma era da civilização.
Segundo
essa ideia, civilização era tudo aquilo que o seu espírito não conseguia
dominar. E por isso incluía aí também, há muito, e principalmente, o seu
marido.”
“Mal
ela começara, e Arnheim já dizia que só viera àquela velha cidade para
recuperar-se um pouco, no encanto barroco da antiga cultura austríaca, dos
cálculos, do materialismo, da sensatez ressequida do trabalho dos homens
civilizados de agora.
Diotima
respondera que nessa cidade reinava uma espiritualidade muito alegre, e
sentia-se contente com isso.
—
Sim — dissera ele —, não temos mais vozes interiores; hoje em dia sabemos
demais, a razão tiraniza nossa vida.”
“Por
infelicidade não há nada mais difícil de reproduzir em literatura do que um
homem que pensa. Um grande descobridor, quando certa vez lhe perguntaram como
conseguia ter tantas ideias novas, respondeu: “pensando nisso o tempo todo”. E
com efeito, pode-se dizer que as ideias inesperadas só aparecem porque
esperamos por elas. Constituem em grande parte um resultado positivo do
caráter, de inclinações constantes, de ambição persistente, de ocupação
incansável. Como deve ser monótona essa persistência! Por outro prisma, a
solução de uma tarefa intelectual não acontece de modo muito diferente do que
quando um cão, levando um bastão na boca, quer passar por uma porta estreita;
ele vira a cabeça para a esquerda e a direita, até o bastão entrar, e nós
agimos de modo muito parecido, apenas com a diferença de que não tentamos fazer
isso de modo inconsciente, mas, pela experiência, já sabemos mais ou menos como
proceder. E embora uma cabeça inteligente tenha muito mais habilidade e
experiência nos movimentos do que uma cabeça tola, a solução também para ela
chega de forma inesperada, acontece de repente, e sentimos com vago espanto que
os pensamentos se fizeram por si, em vez de esperarem pelo seu autor. Essa
sensação de assombro é o que muita gente chama hoje em dia de intuição, depois
de antigamente a chamarem inspiração, e acreditam dever enxergar nela algo de
suprapessoal; mas é apenas algo impessoal, isto é, a afinidade e solidariedade
das próprias coisas que se encontram dentro de uma cabeça.
Quanto
melhor a cabeça, tanto menos se percebe dela nesse processo. Por isso o
pensamento, enquanto não está acabado, é um estado muito miserável, parecido
com uma cólica de todas as volutas do cérebro; e quando fica concluído, já não
tem a forma de um pensamento, como se experimentou, mas tem a forma de algo
pensado, o que infelizmente é impessoal, pois o pensamento se dirige para fora
e se comunica ao mundo. Praticamente não se consegue surpreender o momento
entre o pessoal e o impessoal, quando alguém pensa, e por isso o pensamento é
um fato tão embaraçoso para os escritores, que estes o preferem evitar.”
“Seu
amigo de juventude, Walter, marido da pequena Clarisse, que ultimamente andava
tão esquisito, um dia afirmara a respeito dele: “Ulrich só faz com o máximo de
energia aquilo que julga desnecessário!” Aquilo lhe ocorreu exatamente nesse
momento, e ele pensou: “Hoje em dia pode-se dizer isso de todos nós”.”
“Nosso
julgamento sobre um ato nunca é julgamento sobre aquele lado do ato que Deus
recompensa ou pune: Lutero, singularmente, foi quem disse isso. Provavelmente
sob influência de um dos místicos dos quais foi amigo por algum tempo.
Certamente muitos outros crentes poderiam tê-lo dito. No sentido burguês, eram
todos imoralistas. Diferenciavam entre pecados e alma, que pode permanecer
imaculada apesar dos pecados, quase como Maquiavel diferencia o meio e o fim. O
“coração humano” lhe fora “retirado”. “Também em Cristo havia um ser humano
externo e outro interior, e tudo o que ele fazia com relação às coisas
exteriores partia do ser humano externo, enquanto seu ser humano interno
permanecia imperturbável e à parte”, diz Eckehart. Esses santos e crentes
seriam por fim capazes até de absolver um Moosbrugger!? A humanidade certamente
progrediu desde aqueles tempos; mas embora mate Moosbrugger, essa humanidade
ainda tem a fraqueza de venerar aqueles homens que talvez o tivessem absolvido.”
“Nesses
momentos nada está tão distante quanto a ideia de que a vida que se leva, e que
leva a gente, não nos interessa muito, não intimamente. Mas todo homem sabe
disso enquanto é jovem. Ulrich recordava como lhe parecera um dia daqueles
nestas ruas, há uma década ou década e meia. Tudo fora ainda uma vez tão
magnífico, e contudo naquele anseio fervente havia um doloroso pressentimento
de cativeiro; uma sensação inquietante: tudo o que penso alcançar, me alcança;
estou corroído por uma suspeita de que neste mundo as manifestações falsas,
levianas e impessoais ecoam mais intensamente do que as íntimas e essenciais.
Essa beleza — pensamos — tudo bem, mas será minha? A verdade que conheço, será
a minha verdade? Os objetivos, vozes, realidades, tudo isso que me seduz, me
atrai e me leva, que sigo e em que me precipito... será a verdade real, ou dela
se mostra apenas um sopro inacessível, pousado sobre a realidade oferecida?
São
as divisões e formas pré-configuradas da vida o que a desconfiança sente com
tanta nitidez, a mesmice, o que já foi preparado por gerações inteiras, a
linguagem pronta, não apenas da boca, mas das sensações e percepções. Ulrich
parara diante de uma igreja. Meu Deus, se aí na sombra se sentasse uma
gigantesca matrona com grande ventre descaído, o dorso recostado nas paredes
das casas, e lá em cima o rosto exposto ao crepúsculo, cheio de mil rugas,
verrugas e espinhas: ele não o poderia também ter considerado belo? Meu Deus,
como tudo era bonito! Não nos queremos furtar ao fato de termos vindo ao mundo
para admirar isso. Mas, como já se disse, também não seria impossível julgar
belas as amplas formas que descaem tranquilas e a filigrana das rugas numa
matrona respeitável; apenas, é mais simples dizer: ela é velha. E essa passagem
da sensação de velhice para a de beleza do mundo é mais ou menos a mesma
transição que se faz do espírito dos jovens para a moral mais complexa do
adulto, que parece uma lição ridícula até que nós mesmos a compartilhamos.
Ulrich parou diante da igreja apenas alguns segundos, mas eles desceram às suas
profundezas e comprimiram seu coração com toda a resistência original que
sentimos contra esse mundo cristalizado em milhões de toneladas de rocha, essa
hirta paisagem lunar da emoção, em que fomos colocados sem poder reagir.”
“No
fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com
seus prazeres; sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, profissão e
realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa.
Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum
uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido
diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de
uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e
apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude
ainda jazia à frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de
possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de
repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como
certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante
vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente.
Mas
muito mais estranho ainda é que a maioria das pessoas nem nota isso; adota o
homem que apareceu nela, cuja vida viveu; suas experiências lhe parecem agora a
expressão das próprias qualidades, e seu destino lhe parece ser seu próprio
mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas
e uma mosca: aquilo se grudou nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento,
e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que
corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia. E então só
recordam vagamente sua juventude, quando ainda tinham certa resistência. Essa
outra força puxa e gira, não quer ficar em lugar algum e desencadeia uma
tempestade de desnorteados movimentos de fuga; a ironia da juventude, sua
rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos jovens para tudo o que é
heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa seriedade e sua
inconstância — tudo isso não significa senão movimentos de fuga. No fundo,
apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe parece necessário e
unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como se tudo aquilo em
que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e necessário.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário