Editora: Companhia de Freud
ISBN: 978-85-8571-793-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 216
Sinopse: Ver Parte
I
“A pós-modernidade não me parece analisável,
pois, como a época do esclarecimento em relação aos ídolos imaginários, mas
como a do desaparecimento da instância que, no sujeito, lhe diz: “Tu não tens o
direito de...”. Digamos que, na pós-modernidade, o Pai é morto sem que se sigam
a culpabilidade e a condenação do assassinato graças ao qual se constitui
alguma figura do Outro. A pós-modernidade produz assim sujeitos sem
consistência superegóica verdadeira, insensíveis à injunção simbólica, mas
extremamente vulneráveis a todas as formas de trauma. Não recalcando mais, eles
se tornam imunes à culpabilidade, mas sujeitos à vergonha. Esse desaparecimento
da culpabilidade é hoje tão profundo que alcançou o meio dos responsáveis
políticos – lembramo-nos da histórica e aterradora fala de um ministro da Saúde
dos anos 1980 a propósito da questão do sangue contaminado: “responsável, mas
não culpado”.
O universo simbólico do sujeito pós-moderno
não é mais o do sujeito moderno: sem grande Sujeito, isto é, sem marcos em que
possam se fundar uma anterioridade e uma exterioridade simbólicas, o sujeito
não chega a se desdobrar numa espacialidade e numa temporalidade
suficientemente amplas. Ele fica engolido num presente dilatado no qual tudo
transcorre. A relação com os outros se torna problemática na medida em que sua
sobrevivência pessoal se encontra assim sempre em causa.”
“O que acontece com a forma sujeito hoje, em
período neoliberal? (...) Do lado da consciência reflexiva (processos ditos
secundários), o neoliberalismo quer absolutamente acabar com o sujeito crítico (...). E do lado do inconsciente
(processos ditos primários) o neoliberalismo não tem mais o que fazer com o
velho sujeito herdado da modernidade, exposto por Freud, classicamente neurótico e assaltado pela culpabilidade.
Ao invés desse sujeito duplamente determinado, ele quer dispor de um sujeito a-crítico e, tanto quanto possível,
psicotizante. Isto é, um sujeito disponível para todas as conexões, um sujeito
incerto, indefinidamente aberto aos fluxos de mercado e comunicacionais, em
carência permanente de mercadorias para consumir. Um sujeito precário em suma,
cuja precariedade mesma é exposta à venda no Mercado, que pode aí encontrar
novos escoadouros, tornando-se grande provedor de kits identitários e de imagens
de identificação.”
“O que produz, pois, o mais difundido desses
meios, a televisão, nas crianças? A questão é ainda mais importante de ser
levantada na medida em que o achatamento das crianças pela televisão começa
muito cedo. As crianças que hoje chegam à escola são frequentemente crianças
empanturradas de televisão desde sua mais tenra idade. Está aí um fato
antropológico novo, cujo total alcance não se avaliou ainda: doravante os
pequeninos frequentemente se encontram diante da tela antes mesmo de falar.
Intuitivamente se compreende por quê: é o único instrumento que permite manter
as crianças tranquilas sem se ocupar delas. O consumo de imagens, como todas as
pesquisas mostram, atinge várias horas por dia. Segundo um estudo da Unesco,
“as crianças do mundo passam em média três horas por dia diante da telinha, o
que representa pelo menos 50% mais de tempo consagrado a esse meio que a
qualquer outra atividade para-escolar, compreendidos aí os deveres, passar
tempo com a família, amigos ou ler”4. Esse número, já considerável,
é, no entanto, apenas uma média: perto de um terço das crianças olha a
televisão 4 horas por dia ou mais (encontra-se, entre esse terço, uma maioria
de crianças das classes e das minorias desfavorecidas).
A inundação do espaço familiar por essa
torneira sempre aberta de onde corre um fluxo ininterrupto de imagens não deixa
de ter, evidentemente, efeitos consideráveis na formação do futuro sujeito
falante. Em primeiríssimo lugar, a televisão, pelo lugar preponderante ocupado
por uma publicidade onipresente e agressiva, constitui um verdadeiro
adestramento precoce para o consumo e uma exortação à monocultura da mercadoria5.
Aliás, essa incitação excessiva não é desprovida de visadas ideológicas. Os
mais agressivos publicitários entenderam perfeitamente que partido podiam tirar
do desabamento pós-moderno de toda figura do Outro: eles também não hesitam em
recomendar entranhar-se “na fragilidade da família e da autoridade para
instalar marcas, novas referências” (...)
Além da publicidade, há a violência das
imagens: em torno dos 11 anos, a criança “média” terá visto cerca de 100.000
atos de violência na televisão e terá assistido a cerca de 12.000 assassinatos8!
Certo, as histórias contadas pelas supostas gentis avós de outrora continham
uma porção considerável de horríveis histórias de ogros devoradores de crianças
que literalmente nada deixam a invejar às usuais imagens gore* difundidas hoje. Mas não se deve esquecer duas diferenças
cruciais: 1) a avó, ao mediatizar o horror, o integrava no circuito enunciativo
e o tornava, de certo modo aceitável; 2) existe uma nítida dessemelhança entre o
universo claramente imaginário do ogro no conto, obrigando a criança a pensar
esse universo como um outro mundo (o da ficção) e o universo muito realista dos
seriados, com brigas, violências, roubos assassinatos, sem distância do mundo
real9. (...)
Assim, esquece-se frequentemente de mencionar
que o tempo a mais para a televisão é tempo a menos para a família. De modo
que, com a televisão, é a família, como lugar de transmissão geracional e
cultural da vida, que se encontra de cara reduzida à porção compatível. Neste
sentido, a expressão “filhos da televisão”, tomada ao pé da letra, ao invés de
provocar risos, deveria verdadeiramente aparecer como o que ela é: antes
patética, de tanto que ela verifica o fato de que a televisão efetivamente
roubou o lugar educador dos pais em relação aos filhos, para tornar-se o que
estudos quebequenses nomeiam como “terceiro parental” particularmente ativo,
suplantando em muito os verdadeiros pais.”
*: Subgênero cinematográfico dos filmes de
horror, que é caracterizado pela presença de cenas extremamente violentas, com
muito sangue, vísceras e restos mortais de humanos ou animais.
4: Jo Groebel, “The Unesco Global Study on Media Violence”, em Children and Media Violence, Unesco,
Stockholm, 1998.
5: Ver o artigo de Paul Moreira em Le Monde diplomatique de setembro de
1995: “Les enfants malades de la publicite”. Segundo a revista Consumer Report, uma criança americana
vê em média 40.000 espotes de publicidade por ano. O poder de compra dos kids
americanos interessa fortemente o marketing, já que ele é avaliado em cerca de
15 bilhões de dólares – sem contar a influência que eles têm nas compras de
seus pais, estimadas em cerca de 130 bilhões de dólares por ano (números de
1991).
8: Wendy Josephson, Television
Violence: A Review of the Effects on Children of Different Ages, Patrimoine
canadien, 1995.
9: Um estudo conduzido pelo psicólogo Jeffrey
Johnson da Columbia University, publicado na revista Science de 29 de março de 2002, nº 295, argumenta com uma nítida
correlação entre o comportamento adolescente violento e o tempo passado diante
da televisão.
“Primeiro, notemos que a exposição maciça à
imagem televisiva desvia o sentido secular das relações texto-imagem. Antes da
invasão das relações geracionais pela televisão, decerto existiam imagens, mas
a iniciação à prática simbólica partia do texto através do qual eram inferidas
as imagens. Entendo por “texto” tanto enunciados orais – fala cotidiana,
contos, versões de mitos ou lendas – quanto enunciados registrados numa escrita
(texto santo, folhetos, romances...). Esse primado do texto pode ser facilmente
concebido a partir de certas situações simples. Por exemplo, a audição de um
contador de histórias ou a leitura de um romance desencadeiam uma atividade
psíquica durante a qual o ouvinte ou o leitor cria imagens mentais das quais
ele se torna, de algum modo, o primeiro espectador. Era assim que os feácios,
reunidos em torno do aedo que contava as proezas de Ulisses, assistiam
“diretamente” e “viam” em seu foro interior as proezas narradas. Essa
capacidade de presentificar o que está ausente refere, evidentemente, um ponto
chave da simbolização. Aliás é a audição da narrativa de suas próprias proezas
que permite a Ulisses “voltar a si” quando chega à ilha de Alkinoos, num
retorno a si mesmo tão intenso que ele cobre o rosto, provavelmente para chorar
de emoção, como Heidegger conjeturou14. (...)
O narrador grego fazia seus ouvintes
penetrarem no mundo das forças vivas da Physis, abrindo-lhes uma janela para um
mundo primeiro, um mundo divino, geralmente furtado à visão dos mortais, onde
se tecem os acontecimentos do mundo segundo em que estes vivem. O narrador
grego é exitoso no prodígio de fazer ver aos que habitam esse mundo das
aparências um suposto verdadeiro mundo, um mundo real onde se organizam as
coisas. Quanto ao leitor, ele imagina algo do mundo que o autor criou.
Aqui está o estatuto da imagem arcaica,
tornada tão inteligível por J.- P. Vernant, e lá o estatuto da fábula, para o
qual, segundo Umberto Eco, o leitor é convidado pela interpretação do texto e
de seus não-ditos15.
Quanto ao fato de todos os ouvintes ou de
todos os leitores verem as mesmas imagens, com certeza não. Aliás, conhecem-se
as controvérsias que surgem a partir do momento em que um cineasta propõe-se
rodar a adaptação de uma obra literária: como ninguém, nenhum leitor “viu” a
mesma coisa, todo mundo protesta pelo escândalo e pela traição.”
14: M. Heidegger, Essais et conférences [1954], Gallimard, Paris, 1958; cf. artigo
“Alètheia”.
15: J.-P. Vernant, Religions, histoires, raisons, Maspero, Paris, 1979: cf. cap. 8,
“Naissance d’images”; U. Eco, Lector in
fabula, Grasset, Paris, 1985.
“Nesse caso, cada vez mais e mais frequente,
o uso da televisão é muito pernicioso, já que ele só pode afastar ainda mais o
sujeito do domínio das categorias simbólicas de espaço, de tempo e de pessoa. A
multiplicidade das dimensões oferecidas pode se tomar um obstáculo a mais para
o domínio dessas categorias fundamentais, turvando sua percepção e se
acrescentando à confusão simbólica e aos desencadeamentos fantasísticos. E nada
menos que a capacidade discursiva e simbólica do sujeito que se encontra então
posta em causa.
Sendo impotente para transmitir sozinha o dom
da palavra, a televisão dificulta a antropofeitura simbólica dos recém-vindos,
ela torna difícil o legado do bem mais precioso, a cultura.
É impossível dizer que não sabíamos. Nós
temos sido advertidos do desastre civilizacional em curso. Nos anos 1980, numa
obra divertida, nostálgica e visionária, Ginger
e Fred,
Fellini, como artista da imagem herdeiro da grande cultura, havia feito o
balanço previsível da catástrofe em curso. Com a televisão, mostrava-nos ele,
séculos de arte e de cultura estão indo rio abaixo num cenário chocante de
niilismo mercantilista. Não digo que esse diagnóstico seja inelutável: a
televisão pode, dissemos, eventualmente abrir para um mundo ampliado, contanto
que a instalação simbólica mínima esteja assegurada. Mas seu uso não pode
suprir as fraquezas na simbolização, como se poderia ingenuamente crer. Pior
até: ele arrisca barrar mais ainda as vias de acesso a esse mundo.
Evidentemente, essa observação vale para
todas as próteses sensoriais, não apenas para a tele-visão, mas para toda
tele-mática que joga com a tele-presença, isto é, tudo o que transporta um aqui
para acolá e um lá para aqui mesmo (os jogos de vídeo, o telefone celular que
acompanha cada um 24 horas por dia, a internet...).
Poderíamos, pois, dizer que o uso das
próteses sensoriais só pode permitir o desenvolvimento de novas aptidões para o
gozo nos casos em que a função simbólica está quase fixada. Em caso contrário,
ele só pode gerar novos sofrimentos. (...)
Vivemos, pois, num mundo no qual estamos
vendo certos sujeitos se tornarem seres ubíquos, quase liberados das coações
espaço-temporais ancestrais graças às próteses sensoriais, ao preço de ver
alguns outros não mais poderem habitar nenhum espaço.”
“Uma violenta repressão de instintos
poderosos exercida do exterior nunca traz como resultado a extinção ou a
dominação destes, mas ocasiona um recalque que instala a propensão a entrar
posteriormente na neurose. A psicanálise frequentemente teve a oportunidade de
ensinar a que ponto a severidade indubitavelmente sem discernimento da educação
participa da produção da doença nervosa, ou ao preço de qual prejuízo da
capacidade de agir e da capacidade de gozar a normalidade exigida é adquirida.”
(Freud, L’Intéret de la psychanalyse [1913],
Retz, Paris, 1980.)
“É apenas quando essa primeira dominação
(ontológica) está posta que se pode dizer que a dominação é também, para o
homem, um fato sociopolítico. Marx permitiu compreender o quanto essa dominação
sócio-política era complexa e sutil, já que ela se apresenta como uma realidade
que se afirma dissimulando-se. Com efeito, a dominação sociopolítica é tanto o
conjunto dos meios pelos quais certos grupos de indivíduos exercem um domínio
econômico, político e/ou cultural sobre outros grupos quanto o conjunto dos
meios pelos quais esses grupos dominantes dissimulam seus interesses
particulares, tentando fazê-los passar por interesses universais. Essa segunda
dominação apresenta, pois, a particularidade de ser contingente e de funcionar
enquanto seus dominados continuem seus “patos”. Quando um grupo humano para de
ser enganado pela dissimulação de uma dominação e o rei, como se diz, lhe
aparece repentinamente nu, então, geralmente, esse grupo sai, num prazo
relativamente curto, dessa dominação, para logo experimentar uma nova.”
“É a mais conquistadora de todas as
dominações possíveis na hora atual que arrisca triunfar, o que se chama
comumente de neoliberalismo. A enorme novidade do neoliberalismo por relação
aos sistemas de dominação anteriores diz respeito a que estes últimos
funcionavam com o controle, o reforço e a repressão institucionais, enquanto
que o novo capitalismo funciona com a desinstitucionalização13.
Provavelmente foi isso que Foucault não viu chegar. Entregue totalmente ao
estudo das múltiplas formas de o poder encarregar-se da vida (nos cuidados, na
educação, nas formas da punição...), ele não viu que uma novíssima dominação
muito progressivamente se instalava após a Segunda Guerra Mundial. Os
exemplares estudos de Foucault sobre as sociedades disciplinares vieram, com
efeito, num momento em que essas sociedades já entravam em decadência. Com
efeito, eles se aplicaram a um objeto já bem fragilizado no momento do estudo14.
Foi por isso que, embora os estudos de Foucault sobre as sociedades
disciplinares fossem fundados, eles não deixaram de gerar um imenso
mal-entendido. Os muito vivos engajamentos militantes da época não perceberam que
as instituições que eles tomavam como alvo eram exatamente os aparelhos que a
fração mais conquistadora do capitalismo queria destruir. Então já não era mais
pelo poder tomar, para si o encargo disciplinar da vida que a dominação queria
continuar a impor-se, era por uma forma de dominação toda nova, cuja instalação
os anos 1960 no mundo (na Califórnia, na Itália, na Inglaterra, na França em
maio de 68...) precipitaram. O novo capitalismo estava descobrindo e impondo
uma maneira muito menos constrangedora e menos onerosa de garantir a sua sorte:
não mais continuar a reforçar a dominação segunda que produzia sujeitos
submissos, mas quebrar as instituições e assim acabar com o tomar o encargo da
dominação primeira de maneira a obter indivíduos dóceis, precários, instáveis,
abertos a todos os modos e todas as variações do mercado.
É assim que, hoje, “as únicas coações
justificáveis são as das trocas de mercadorias”15. O exclusivo e
único imperativo admissível é que as mercadorias circulem. De modo que toda instituição,
vindo interpor entre os indivíduos e as mercadorias suas referências culturais
e morais, é doravante mal vinda. Em suma, o novo capitalismo muito rápido
identificou o partido que podia tirar da contestação. É assim que o
neoliberalismo promove hoje “um imperativo de transgressão dos interditos” que
confere a esse discurso um “perfume libertário”, fundado na proclamação da
autonomia de cada um e na “ampliação indefinida da tolerância em todos os
campos”16. É por isso que ele porta com ele a desinstitucionalização:
é preciso não apenas “menos Estado”, mas menos de tudo o que poderia entravar a
circulação da mercadoria.
Ora, o que essa desinstitucionalização
imediatamente produz é bem uma dessimbolização dos indivíduos. O limite
absoluto da dessimbolizaçao é quando mais nada vem assegurar e assumir o
encaminhamento dos sujeitos para a função simbólica encarregada da relação e da
busca de sentido. Nunca se chega aí verdadeiramente, mas, enfim, quando a
relação de sentido desfalece, é sempre em detrimento do próprio da humanidade,
a discursividade, e em proveito da relação de forças. O que o novo capitalismo
visa hoje é o núcleo primeiro da humanidade: a dependência simbólica do homem.
Não é surpreendente, pois, que nosso espaço social se encontre cada vez mais
invadido pela violência comum, pontuada por momentos de hiperviolência,
acidentes catastróficos que as condições ambientes tornam, doravante, sempre
possíveis. O círculo é assim fechado: a lógica neoliberal produz sujeitos que,
funcionando precisamente na lei do mais forte, ainda reforçam essa lógica.”
13: É notável que seja pelas instituições
asilares, ali onde o enquadramento era o mais forte, que essa
desinstitucionalização tenha começado. O que Robert Castel havia perfeitamente
identificado em seus estudos, notadamente em F. Castel, R. Castel, A. Lovell, La Société psychiatrique avance e, le modele
américain, Paris, Grasset, 1979.
14: Nos Estados Unidos, o mesmo mal-entendido
ocorreu com E. Goffman: tomou-se Asiles (publicado na França em 1968) por um
estudo libertador, enquanto que ele se inscrevia num projeto de
desinstitucionalização. Aliás, esse projeto foi implantado em 1 996 na
Califórnia, depois que um certo Ronald Reagan foi eleito governador...
15: P.-A. Taguieff, Résister au
bougisme, Mille et une nuits, Paris, 2001, p. 1 4.
16: Ibid., p. 15.
“Tudo o que remete à esfera transcendente dos
princípios e dos ideais, não sendo conversível em mercadorias e em serviços, se
vê doravante desacreditado. Os valores “morais” não têm valor (mercadológico).
Por não valerem nada, sua sobrevivência não se justifica mais num universo que
se tornou integralmente mercantil. Além do mais, eles constituem uma
possibilidade de resistência à propaganda publicitária, que exige, para ser
plenamente eficaz, um espírito “livre” de todo aprisionamento cultural. A
dessimbolização tem, pois, um objetivo: ela quer erradicar, nas trocas, o
componente cultural, sempre particular.”
“A dificuldade de inserção num mundo do
trabalho cada vez mais hipotético e enigmático, o embaralhamento da referência
histórica e geracional reagrupam a juventude em agregações seriais sem de jeito
nenhum lhe conferir a estrutura e as bases de uma classe social. Tratar-se-ia,
antes, de uma fora de classe, definida negativamente pelo que ela não é. O que,
aliás, diz muito bem o termo “exclusão”: uma parte da juventude com efeito se
vê excluída de fato da atividade social. É por isso que uma análise da
violência juvenil em termos de luta das classes parece inadequada. Essa
violência não é uma reviravolta contra a exploração (sem emprego, sem
mais-valia), não visa nenhuma emancipação (nenhuma ideologia da salvação está
operando), ela adere sem reserva ao consumo e aos valores do mercado, não
denuncia nenhuma alienação (entregue a ela mesma, ela mais sofreria de uma
dobra identitária e gregária que os fenômenos de “bandos” antagonistas ilustram
à porfia). Os ilícitos cometidos não têm, politicamente, sentido, causados que
são precisamente pela queda do sentido. “Ter ódio” exprime um humor, tão
imperioso quanto vago, não uma reivindicação social. (...)
Nada permite transformar a revulsão em
revolta, porque a força do neocapitalismo reside, paradoxalmente, na fraqueza
de seus governos. A governança neoliberal é uma vontade de não-governo, segundo
a ideia de que a um mínimo de governo político corresponde um máximo de
rendimento econômico. Desse estiolamento voluntário e técnico do poder resulta
um efeito perverso, que não havia escapado à sagacidade de Hannah Arendt: “todo
enfraquecimento do poder é um convite à violência”27. Trata-se aqui
do “poder” como expressão de um “querer”. Ora, o poder atual não “quer” mais
nada, nada mais que a melhor adaptação possível a uma conjuntura e a uma
evolução que o ultrapassem. A “modernização” (das empresas, da escola, das
instituições...) se apresenta como um gigantesco tropismo em escala planetária,
uma espécie de lei natural, um empurrão surdo e irreprimível da evolução. É
aqui a “força das coisas” que exige submissão e adaptação vitais e não os
detentores de um poder que se tornou frouxo, mole, secundário e gestionário. A
ausência de um verdadeiro governo, isto é, de uma instituição cuja legitimidade
é necessariamente exterior aos interesses econômicos, abole a autoridade, ao
mesmo tempo que torna oculto o poder. O enfraquecimento do Estado não anuncia,
longe disso, o da dominação sociopolítica, mas a passagem para uma nova forma
de dominação, dissimulada e maligna, pela qual o poder verdadeiro se torna
anônimo, informe e não localizável: “estamos diante de uma tirania sem tirano”28.
É, abertamente, a promoção da anomia, a suspensão dos interditos e de tudo o
que pode impô-los à pura impetuosidade dos apetites. O esmagamento da cidadania
sobre a sociedade civil, constituída apenas do conjunto conflitual dos
interesses particulares29, torna impossível a necessária dialética
entre o corpo social e sua representação política. Definitivamente, o completamento
da antropologia neoliberal, cuja ausência de princípio a célebre palavra de
ordem “laissez-faire” confessava
antecipadamente, abre um novo espaço societário, completamente depurado,
prosaico, trivial, niilista, marca de um novo e poderoso darwinismo social no
qual o valor, doravante único, passa de uma mão a outra sem outra forma de
processo e quaisquer que sejam as modalidades: os “mais adaptados” podem
legitimamente tirar proveito de todas as situações, enquanto os “ menos
adaptados” são muito simplesmente abandonados, até mesmo convocados a
desaparecer. Está aí um profundo requestionamento da civilização, já que se
encontra abandonado o tradicional dever biopolítico, que cabe a todo Estado, de
proteção de suas populações.
É esse espaço hiper-realista do valor nu na
troca direta que alguns se recusam a integrar. Eles então se engajam na via
ditada pelo abandono, que os leva à violência “gratuita”, puramente reativa30.
É preciso rebater-se em algum derivativo quando o lugar e os representantes do
poder são invisíveis. Xerxes fazia flagelar o mar para puni-lo por suas
tempestades, os jovens delinquentes queimam, saqueiam, agridem com a mesma
raiva impotente, por não poderem atingir os responsáveis por sua relegação.
Estamos diante de um círculo vicioso do niilismo: a anomia como condição de
possibilidade do neocapitalismo faz cair no niilismo tanto os que dele se
aproveitam quanto os que dele padecem.”
27: Hannah Arendt, Du mensonge à la violence, Calmann-Lévy, Paris, 1972, p. 187.
28: Ibid, p. 181.
29: Definição da sociedade civil lembrada por
Bernard Cassen, citando Hegel, em Le
Monde diplomatique, n° 567, de junho de 2001, p. 28.
30: A exemplo desses quatro jovens rapazes,
com idade de treze a vinte e sete anos, que feriram nove pessoas jogando uma carga
de explosivos num salão de festas. Motivo invocado: “Era para chatear as
pessoas”. Cf. Le Monde, 4 de janeiro
de 2002.
“A pós-modernidade não é a simples queda dos
ideais do eu, nem um levante em massa contra os ídolos. Os que creem que
vivemos uma época de um abrir de olhos doloroso mas salvador se tranquilizam
barato. Com efeito, estamos na época da fabricação de um “novo homem”, de um
sujeito a-crítico e psicotizante, por uma ideologia também conquistadora, mas
provavelmente muito mais eficaz do que o foram as grandes ideologias
(comunistas e nazistas) do século passado. O que o neoliberalismo quer é um
sujeito dessimbolizado, que não esteja mais nem sujeito à culpabilidade, nem
suscetível de constantemente jogar com um livre arbítrio crítico. Ele quer um
sujeito incerto, privado de toda ligação simbólica; ele tende a instalar um
sujeito unissexo e “não-engendrado”, isto é, sem o arrimo de seu fundamento
exclusivamente no real, o da diferença sexual e da diferença geracional. Sendo
recusada toda referência simbólica suscetível de garantir as trocas humanas, há
apenas mercadorias que são trocadas num fundo ambiente de venalidade e de
niilismo generalizados no qual somos solicitados a tomar lugar. O
neoliberalismo está realizando o velho sonho do capitalismo. Não apenas ele
estende o território da mercadoria até os limites do mundo (o que está em curso
sob o nome de mundialização), no qual
tudo se tornou passível de ser mercadoria (a água, o genoma, o ar, as espécies
vivas, a saúde, os órgãos, os museus nacionais, as crianças...). Ele também
está recuperando velhas questões privadas, até agora deixadas à maneira de cada
um (subjetivação, personação, sexuação...), para fazê-las entrar na órbita da
mercadoria.
Vivemos, nesse sentido, uma virada capital,
porque, se a forma sujeito construída com grande luta pela história é atingida,
não serão mais somente as instituições que temos
em comum que estarão em perigo, será também, e sobretudo, o que somos. Não é apenas nosso ter cultural que está em perigo, é nosso
ser. O que testemunha, com clareza,
um grau de gravidade bem superior, já que, se a perda de bens comuns é sempre
compensável pela produção de novos bens, a perda de seu ser próprio é
praticamente irremediável. Provavelmente é nesse ponto que entram em jogo o
possível triunfo absoluto do neoliberalismo e, pois, as grandes batalhas a
ocorrer: se a forma-sujeito é debilitada, então mais nada poderá constituir
obstáculo para o desdobramento sem limite dessa forma política – estágio último
do capitalismo, o do capitalismo-total, no qual tudo, até nosso próprio ser,
terá entrado na órbita da mercadoria.”
“Da minha parte, de jeito nenhum estou
decidido a empregar esse lazer para praticar uma das numerosas artes da
desistência, mas para tentar compreender todos os detalhes da nova ideologia
que se instala. Aparece, de ora em diante, que, sob ventos propícios, ela é
provavelmente tão virulenta quanto as terríveis ideologias que se desencadearam
no Ocidente no século XX. Com efeito, não é impossível que, depois do inferno
do nazismo e do terror do comunismo, uma nova catástrofe se perfile. Só
teríamos saído de uns para entrar na outra. Porque o neoliberalismo, como as
duas ideologias já citadas, também quer fabricar um homem novo. De ora em
diante, as mudanças nos grandes campos da atividade humana – a economia de
mercado, a economia política, a economia simbólica e a economia psíquica –
convergem suficientemente para indicar que um novo homem, subtraído de sua
faculdade de julgar e empurrado a gozar sem desejar, está aparecendo.”
A hora não é, para mim, nem para um otimismo
idiota, o do impaciente que se regozija muito rápido com a desterritorialização
operada pela mercadoria e pela queda dos ídolos, nem para um pessimismo
nostálgico pelos tempos definitivamente acabados. Se há um imperativo
categórico hoje, é o da resistência diante da instalação do capitalismo total.”
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