quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O capitalismo como religião – Walter Benjamim

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-340-0
Organização: Michael Löwy
Tradução: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 192 

“O romantismo não é apenas uma escola literária do século XIX ou uma reação tradicionalista contra a Revolução Francesa – duas proposições que se encontram num número incalculável de obras de eminentes especialistas em história literária ou em história das ideias políticas. Antes, é mais uma forma de sensibilidade que irriga todos os campos da cultura, uma visão do mundo que se estende da segunda metade do século XVIII (de Rousseau!) até nossos dias, um cometa cujo “núcleo” incandescente é a revolta contra a civilização capitalista-industrial moderna, em nome de certos valores sociais ou culturais do passado. Nostálgico de um paraíso perdido – real ou imaginário –, o romantismo se opõe, com a energia melancólica do desespero, ao espírito quantificador do universo burguês, à reificação mercantil, ao utilitarismo raso e, sobretudo, ao desencantamento do mundo. Pode assumir formas regressivas, reacionárias, restauradoras, que visam um retorno ao passado, mas igualmente formas revolucionárias que integram as conquistas de 1789 (liberdade, democracia, igualdade), formas revolucionárias para as quais o objetivo não é uma volta para trás, mas um desvio pelo passado comunitário para rumar ao futuro utópico.”
(Michael Löwy)


“O pensamento de Benjamin está profundamente enraizado na tradição romântica alemã e na cultura judaica da Europa Central; ele corresponde a uma conjuntura histórica precisa, que é aquela da época das guerras e das revoluções, entre 1914 e 1940. E, no entanto, os temas principais de sua reflexão são de uma surpreendente universalidade: nos dão instrumentos para compreender realidades culturais, fenômenos históricos, movimentos sociais em outros contextos, outros períodos, outros continentes. No começo do século XXI, em face de uma civilização industrial-capitalista, cujos “progresso”, “expansão” e “crescimento” conduzem numa velocidade crescente a uma catástrofe ecológica sem precedentes na história da humanidade, esses instrumentos constituem um precioso arsenal de armas críticas e uma janela aberta para as paisagens-do-desejo da utopia. Para Benjamin, só uma revolução podia interromper a marcha da sociedade burguesa rumo ao abismo, mas ele dava a respeito da revolução uma definição nova: “Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência”[7].”
[7]: Citado em Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio, cit., p. 93-4.

_______________________________

“O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta.”


“O capitalismo presumivelmente é o primeiro caso de culto não expiatório, mas culpabilizador. Nesse aspecto, tal sistema religioso é decorrente de um movimento monstruoso. Uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar lança mão do culto, não para expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação. Esta, portanto, não deve ser esperada do culto em si, nem mesmo da reforma dessa religião, que deveria poder encontrar algum ponto de apoio firme dentro dela mesma; tampouco da recusa de aderir a ela. Faz parte da essência desse movimento religioso que é o capitalismo aguentar até o fim, até a culpabilização final e total de Deus, até que seja alcançado o estado de desespero universal, no qual ainda se deposita alguma esperança. Nisto reside o aspecto historicamente inaudito do capitalismo: a religião não é mais reforma do ser, mas seu esfacelamento. Ela é a expansão do desespero ao estado religioso universal, do qual se esperaria a salvação. A transcendência de Deus ruiu. Mas ele não está morto[b]; ele foi incluído no destino humano.”
[b]: Cf. o dito contrário em Nietzsche, A gaia ciência (São Paulo, Martin Claret, 2003), aforismos 115, 127, 207, ou Assim falou Zaratustra (São Paulo, Martin Claret, 2003), p. 24 (Preâmbulo II) e p. 78 (Dos Compassivos). (N. E. A.)


“O capitalismo é uma religião puramente de culto, desprovida de dogma.”


“TRÊS HOMENS EM BUSCA DA RELIGIÃO
Três jovens estavam parados de mãos dadas debaixo do grande pinheiro que encimava a colina. Seus olhares estavam voltados para baixo, para o seu povoado natal e para além dele, por onde corriam as estradas que queriam trilhar dali por diante... rumo à vida. Um deles falou: “Daqui a trinta anos, voltaremos a nos encontrar aqui e então veremos quem de nós encontrou a religião, a religião única e verdadeira”. Os demais concordaram e, com um aperto de mão, separaram-se em três direções diferentes, seguindo por três estradas diferentes rumo à vida.
Depois de vagar por algumas semanas, um deles viu surgir diante de si as torres e cúpulas de uma enorme cidade... Resoluto, dirigiu-se à cidade, pois havia escutado maravilhas sobre as grandes cidades: todos os tesouros da arte estariam guardados nelas, volumosos livros cheios de sabedoria milenar e, afinal de contas, também muitas igrejas, nas quais todas aquelas pessoas oravam a Deus. Ali devia estar também a religião. Cheio de destemida esperança, cruzou o portão da cidade ao cair do sol... Ele permaneceu trinta anos na cidade, pesquisando e procurando a religião verdadeira e única.
O segundo jovem havia tomado uma estrada diferente, que serpenteava por vales sombreados e montanhas cobertas de mato. Ele perambulou faceiro e despreocupado e, onde via um lugar aprazível, deitava-se para descansar e sonhar. E assim, quando estava a contemplar absorto a beleza do pôr do sol, quando estava deitado placidamente na relva a admirar as nuvens brancas desfilarem pelo céu azul, quando no meio do mato de repente via reluzir na escuridão por trás das árvores um lago oculto, sentia-se feliz e pensava ter descoberto a religião... Ele passou trinta anos assim, perambulando e descansando, sonhando e contemplando.
A sorte do terceiro não foi tão amena. Sendo pobre, não tinha como ficar perambulando alegremente por muito tempo, mas foi forçado a pensar primeiro em como ganhar o pão de cada dia. E por isso ele nem vacilou muito – poucos dias depois já estava em um povoado a serviço do ferreiro para aprender o ofício. Foi um tempo duro para ele e, em todo caso, não houve oportunidade para que fosse em busca da religião. E não foi só no primeiro ano, mas foi assim todo o tempo. Porque depois de ter aprendido o ofício, ele não passou muito tempo percorrendo o mundo, mas foi arranjar trabalho numa cidade grande. Lá trabalhou arduamente por uma série de anos, e quando o trigésimo ano chegou ao fim ele havia alcançado a condição de artífice autônomo, mas não havia conseguido ir à procura da religião e, portanto, não a havia encontrado.
Por volta do final do trigésimo ano ele tomou o caminho do seu povoado natal. A estrada o levou por uma região montanhosa fenomenal e selvagem, e ele caminhou dias inteiros sem encontrar ninguém. Na manhã do reencontro, porém, teve vontade de escalar uma daquelas altas montanhas, cujos picos avistara sobranceiros durante toda a sua caminhada. De madrugada, várias horas antes da alvorada, pôs-se a caminho; a escalada foi muito penosa, já que ele estava sem o equipamento adequado. Tentando retomar o fôlego, ele ficou parado sobre o pico. Então viu, sob o brilho do sol da manhã que acabara de despontar, uma vasta planície descortinar-se diante dele... com todos os povoados em que havia exercido o seu ofício – e com a cidade em que havia se tornado mestre ferreiro. Viu claramente diante de si todos os caminhos que percorrera e os lugares em que trabalhara. Não conseguia parar de olhar para aquilo tudo! Porém, quando olhou mais para cima, para o resplendor do sol, diante de seus olhos viu um novo mundo elevar-se lentamente nas nuvens, em meio ao fulgor cintilante. Ele divisou cumes montanhosos, picos brancos reluzentes que se alteavam até as nuvens. Porém, uma luz muito elevada acima da terra ofuscou seus olhos e não permitiu que visse as coisas com nitidez, mas mesmo assim ele imaginou ter visto vultos vivendo ali, e catedrais de cristal reverberavam longinquamente na luz da manhã até ele. Ao ver isso, ele se prostrou no chão, comprimiu sua testa contra a rocha, chorou e respirou fundo. Um momento depois, levantou-se e lançou mais um olhar para o mundo maravilhoso lá de cima, que agora se apresentava diante dele em todo o esplendor do sol. Por fim, ele também divisou fracamente alguns caminhos estreitos que conduziam para as montanhas florescentes e brilhantes. Então, voltou-se e desceu da montanha. E não foi fácil para ele orientar-se novamente no vale lá embaixo.
Porém, ao anoitecer daquele dia, ele chegou a seu povoado natal e foi ao encontro de seus amigos, na colina sobranceira ao povoado. Então, eles se sentaram ao pé do grande pinheiro e contaram um para o outro o que lhes sucedera e como haviam encontrado a sua religião. O primeiro narrou sobre a sua vida na cidade grande, sobre como havia pesquisado e estudado nas bibliotecas e nos auditórios, sobre como havia ouvido o que disseram os mais importantes professores. Ele próprio certamente não encontrou uma religião, mas, mesmo assim, achava ter sido o que mais realizou. Ele disse: “Porque em toda aquela grande cidade não há uma só igreja cujos dogmas e princípios eu não seja capaz de refutar”. Então o segundo narrou o que lhe sucedeu em sua peregrinação, e muitas coisas fizeram os dois ouvintes dar boas risadas e escutar com atenção. Mas, apesar de todos os esforços, ele não foi capaz de fazê-los compreender a sua religião e ele, na verdade, nunca conseguiu dizer muito mais do que: “Sabe, uma coisa assim é preciso sentir na própria pele!”. E repetia: “É preciso sentir isso na própria pele!”. Os outros não o compreenderam e quase acabaram por rir-se dele. Bem devagar e ainda tomado pela forte experiência que tivera, o terceiro começou a contar tudo o que lhe acontecera. Mas ele não contou da mesma maneira que os outros haviam narrado o que lhes sucedera; ele não contou como vivenciara os acontecimentos, mas como ele visualizara os seus caminhos pela manhã, em pé sobre o cume da montanha. Bem por fim e hesitando muito, ele mencionou aqueles picos montanhosos brancos e reluzentes. “Creio que se conseguirmos uma visão panorâmica como essa da nossa vida, também veremos o caminho para aquelas montanhas e para os picos ofuscantes. Porém, decerto só poderemos intuir o que está contido naquele fogo, e cada um de nós deverá tentar dar-lhe forma segundo as coisas que nos sucederam”. Dito isso, ele se calou. Os outros dois certamente não entenderam tudo, mas nenhum deles falou; antes, olharam para a noite que estava caindo, na tentativa de talvez avistarem os picos reluzentes a distância.”


“Toda arte é dedicada à alegria. E não há tarefa mais elevada nem mais importante que proporcionar alegria às pessoas.” (Friedrich Schiller)


“Como é raro o recurso sincero aos clássicos!”


“Depois de falar, sempre achamos que não dissemos o ‘essencial’.” (Walter Calé)


“O falso romantismo, o grotesco isolamento em que fomos postos na relação com o devir, tornou muitos de nós apáticos; por tanto tempo tiveram de crer na nulidade que até a fé se tornou nula para eles. A falta de ideais de nossa juventude é o último resquício de sua sinceridade.”


“É em seu posicionamento diverso frente ao tempo histórico que se distinguem o drama barroco e a tragédia. Na tragédia, o herói morre, visto que ninguém é capaz de viver no tempo preenchido. Ele morre de imortalidade. A morte é uma imortalidade irônica; esta é a origem da ironia trágica. A origem da culpa trágica situa-se na mesma área. Ela repousa no tempo próprio do herói trágico, preenchido de modo puramente individual. Esse tempo próprio do herói trágico – que, a exemplo do tempo histórico, tampouco queremos definir aqui – inscreve todos os seus feitos e a sua existência inteira como que dentro de um círculo mágico. Quando, de modo incompreensível, a complicação trágica repentinamente se faz presente, quando o menor passo em falso acarreta a culpa, quando o mínimo deslize ou o acaso mais improvável causam a morte, quando não são pronunciadas as palavras de entendimento e solução aparentemente ao alcance de todos, trata-se daquela influência peculiar que o tempo do herói exerce sobre todo evento, visto que, no tempo preenchido, todo evento é função desse tempo. Parece quase paradoxal a nitidez dessa função no momento em que o herói se encontra completamente passivo, visto que o tempo trágico pode ser visto como o desabrochar de uma flor cujo cálice exala a acre fragrância da ironia. Pois não raro a fatalidade do tempo do herói se cumpre durante as pausas em que ele está em completo descanso (durante o sono, por exemplo); de modo semelhante, a importância que o tempo preenchido tem para o destino trágico se evidencia nos grandes momentos de passividade: na decisão trágica, no momento retardante, na catástrofe. O parâmetro trágico de Shakespeare está baseado na grandiosidade com que ele diferencia os diversos estágios de tragicidade enquanto repetições de um só tema, tornando-os cada vez mais precisos. A tragédia dos antigos, em contraposição, apresenta um incremento cada vez mais portentoso das potências trágicas; os antigos conhecem o destino trágico; Shakespeare, os heróis trágicos, a ação trágica. Com razão, Goethe o chama de romântico[b].
Na tragédia, a morte constitui uma imortalidade irônica; irônica por sua determinidade desmedida; a morte trágica é sobredeterminada, e isso é a expressão propriamente dita da culpa do herói. Hebbel talvez estivesse no caminho certo com a concepção da individuação enquanto culpa original[c]; porém, tudo depende de definir o que a culpa da individuação transgride. Nessa forma, é possível formular a pergunta pela conexão entre história e tragicidade. Não se trata de uma individuação a ser apreendida com relação ao ser humano. No drama barroco, a morte não se baseia naquela determinidade extrema que o tempo individual confere ao evento. Ela não é um ponto final; sem a certeza de uma vida superior e sem a ironia, ela é a metábasiv [passagem] de toda a vida eÏv Âllo génov [para um outro gênero]. O drama barroco é matematicamente comparável a um dos braços de uma hipérbole, sendo que seu outro braço está no infinito. A lei da vida superior vale no espaço restrito da existência terrena, e todos jogam até que a morte encerre o jogo para promover a repetição do mesmo jogo em escala maior num outro mundo. É na repetição que repousa a lei do drama barroco. Seus eventos são sombras metafóricas, reflexos simbólicos de outro jogo. A morte arrebata para dentro desse jogo.
O tempo do drama barroco é não preenchido e, não obstante, finito. Ele é não individual, sem que tenha generalidade histórica. O drama barroco, em qualquer sentido, é uma forma intermediária. A generalidade de seu tempo é espectral, não mítica. O fato de seus atos serem em número par tem a ver, em seu âmago, com a natureza especular peculiar ao jogo. Exemplo disso, como também de todas as demais relações concebidas, é Alarcos de Schlegel[d], que aliás é um excelente objeto de análise do drama barroco. Quanto à hierarquia e à posição, seus personagens são da realeza, como não poderia deixar de ser no drama barroco consumado, em função de seu significado simbólico. Esse drama é enobrecido pela distância que em toda parte separa imagem e espelhamento, significante e significado. Desse modo, o drama barroco na verdade não constitui a imagem de uma vida superior, mas nada mais é que uma das duas imagens espelhadas, e sua continuação não é menos espectral que ela própria. Os mortos se convertem em fantasmas. O drama barroco esgota em termos artísticos a ideia histórica da repetição; por conseguinte, ele aborda um problema bem diferente da tragédia. Culpa e grandiosidade reivindicam, no drama barroco, uma determinidade – para não dizer uma sobredeterminidade – que diminui na mesma proporção em que aumenta sua dimensão, a extensão mais universal possível, e não por causa da culpa e da grandiosidade, mas por causa da repetição daquelas mesmas relações.
Porém, à essência da repetição temporal se deve que nenhuma forma pode estar baseada nela de modo acabado. E mesmo que a relação entre a tragédia e a arte permaneça problemática, mesmo que a tragédia talvez também seja mais ou menos que uma forma artística, ela, em todo caso, é uma forma acabada. Seu caráter temporal está esgotado e configurado na forma dramática. O drama barroco não é acabado em si mesmo; ademais, a ideia de sua resolução não se situa mais dentro do âmbito dramático. E esse é o ponto em que – a partir da análise da forma – aparece de modo decisivo a diferença entre drama barroco e tragédia. O restante do drama barroco se chama música. Talvez, assim como a tragédia caracteriza a transição do tempo histórico para o tempo dramático, o drama barroco se situe na passagem do tempo dramático para o tempo da música.”
[b] Goethe, “Shakespeare und kein Ende”, Sämtliche Werke (Jubiläumsausgabe [...] em colaboração com Konrad Burdach [et al.], org. Eduard von der Hellen, v. XXXVII: Schriften zur Literatur, parte II, Stuttgart/Berlim, s/d), p. 41 e 45. (N. E. A.)
[c] Friedrich Hebbel, “Mein Wort ber das Drama!”, Sämtliche Werke (Historisch-kritische Ausgabe, org. Richard Maria Werner, [seção I] v. II: Kritische Arbeiten II, Berlim, [s/d]), p. 3s. (N. E. A.)
[d] Friedrich Schlegel, Alarcos. Ein Trauerspiel (Berlim, 1802). (N. E. A.)


“Frente ao caráter irrevogável da tragicidade, que perfaz a realidade última da linguagem e de sua ordem, toda composição animada pelo sentimento (de tristeza) deve ser chamada de trama. O drama barroco não tem como base a linguagem real; ele está baseado na consciência da unidade da linguagem proporcionada pelo sentimento que se explicita na palavra. Em meio a essa explicitação, o sentimento extraviado entoa o lamento da tristeza. Mas ele tem de se resolver; tendo como base a unidade recém-pressuposta, ele se converte na linguagem do puro sentimento, em música. No drama barroco, a tristeza conjura a si própria, mas também se resolve por si mesma. Essa tensão e resolução do sentimento em seu próprio âmbito é a trama. Nela, a tristeza é apenas um tom na escala dos sentimentos, e assim não há, por assim dizer, um drama barroco puro, visto que os variados sentimentos do cômico, do temível, do assustador e muitos outros entram na roda. O estilo enquanto unidade guarda-chuva dos sentimentos permanece reservado à tragédia. O mundo do drama barroco é um mundo especial que sustenta sua validade grandiosa e equivalente também frente à tragédia. Ele é o lugar da recepção propriamente dita da palavra e do discurso na arte; a capacidade de falar e a capacidade de ouvir ainda são pesadas nos mesmos pratos da balança, e, no fim das contas, tudo depende da audição do lamento, pois só o lamento profundamente percebido e ouvido se transforma em música. Onde na tragédia se ergue a petrificação eterna da palavra falada, o drama barroco concentra a ressonância sem fim de sua sonoridade.”


“O ritmo do conflito bélico vindouro será ditado pela tentativa não só de defender-se, mas também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores. (...) A finalidade última das ações da frota aérea deve ser destruir a vontade de resistência inimiga. Alguns poucos “raids [ataques]” devem infundir na população dos centros inimigos um terror inconsciente tal que malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo similar à psicose.”


“A sociedade burguesa não conseguiu cumprir nada do que anunciou. Estamos muito distantes daquele radicalismo vulgar e raso que simplesmente reparte a culpa por essa situação entre os membros individuais e os estratos profissionais da burguesia e passa a descrever “o” burguês como particularmente malvado e idiota ao mesmo tempo. Isso está totalmente errado. O debacle dos ideais burgueses é uma fatalidade inevitável de abrangência histórico-universal em razão de certas contradições internas existentes desde o início, impossíveis de serem evitadas ou neutralizadas a partir do espírito da burguesia. Não podemos desenvolver isso teoricamente neste ponto[1]. A burguesia só se tornou objetivamente maldosa e perigosa na última etapa, no período do debacle, quando quis prorrogar um jogo já perdido com todos os meios da violência, da artimanha e da insinuação. Mas também isso é fado histórico, pois nunca houve na história universal uma “desistência de bom grado” de um jogo perdido...
A burguesia iniciou-se com as promessas mais radicais e com a crítica mais radical das mazelas humanas já feitas até agora em toda a história universal. Ela começou com as teses do cosmopolitismo, do “império da razão”, da infinita educabilidade do gênero humano, da paz eterna, do equilíbrio pacífico entre os poderes materiais e imateriais antagônicos numa graduação infinitamente elástica e automaticamente mutável das camadas sociais mediante a “livre concorrência”, que ela contrapôs à hierarquia rígida da antiga constituição estamental.
Vemos hoje o que resultou desses ideais e dessas promessas.”
[1] Apenas um exemplo escolhido a esmo: o liberalismo burguês propagou a “luz verde para o capaz!”. Porém, ele manteve em vigor, por exemplo (como já objetaram os antigos saint-simonistas), o direito hereditário, que em si já anula completamente essa tese, deixando de garantir um começo justo a uma parcela sempre crescente da população.
(Direção editorial da L[iterarische] W[elt])


“Infelizmente é de conhecimento geral que praticamente não há nada mais contagioso que o delírio e a loucura. A verdade precisa ser penosamente investigada com base em razões; o delírio se assume por imitação, muitas vezes sem se dar conta, por complacência, pelo simples fato de estar convivendo com o delirante, pela participação em suas restantes boas intenções, por boa-fé. O delírio se transmite do mesmo modo que o bocejo, assim como traços faciais e estados de ânimo passam de uns para os outros, ou uma corda musical responde harmonicamente a outra. Soma-se a isso ainda a diligência do delirante em confiar-nos as opiniões favoritas do seu ego como se fossem joias, e ele sabe bem como se comportar para fazer isso; quem para agradar um amigo não começará delirando inocentemente com ele, para logo depois chegar a uma fé poderosa e transplantar essa sua fé nos outros com a mesma diligência? É a boa-fé que une o gênero humano; por meio dela, aprendemos, se não tudo, o mais útil e a maior parte das coisas; e, como se diz, um delirante nem por isso já é um enganador. O delírio, justamente por ser delírio, gosta tanto de companhia; é nela que ele se revigora, porque se estivesse por sua própria conta não teria razão de ser nem certeza de nada; tendo essa finalidade, até a pior companhia é a melhor coisa para ele.”
[Johann Gottfried Herder (1744-1803) – Delírio]


“A experiência de todos os países e de todas as épocas confirma que a incidência do crime não é multiplicada por penas suaves nem atenuada por penas severas. Acaso a propriedade de alguém no Marrocos estaria mais segura porque os ladrões de lá são despedaçados a golpes de sabre, ou na Argélia, onde são atirados de uma torre e aparados com ganchos de ferro? Em lugar nenhum há malfeitores mais sanguinários do que na Itália e na França, onde mais se decapita e se aplica a tortura na roda; em lugar nenhum se rouba mais nas estradas do interior do que na Inglaterra, onde não há ladrão que escape da forca; e em lugar nenhum se viaja mais incólume do que na Dinamarca e em Holstein, onde não se enforcam mais os gatunos...
(...) Nosso direito de matar o assassino deve se basear no direito à retaliação. Barkhausen mostrou claramente a incongruência dessa opinião. Se quiserdes, por vosso lado, matar quem matou, então também o adúltero deve ser judicialmente intimado a levar sua esposa para a cama do ofendido; um tipo de satisfação que muitas vezes poderia ser pior do que a própria ofensa sofrida[m]...”
[m] Helfrich Peter Sturz, Schriften (col. I, Leipzig, 1779), p. 232-4 e 236-8. (N. E. A.)
[Helfrich Peter Sturz (1736-1779) – Contra a pena de morte]


“A burguesia forjou novas armas de guerra: concepções de mundo, teorias raciais, metáforas políticas, humanas e filosóficas – muito mais perigosas, porque eram mais dissimuladas que o antigo exército profissional que limitava e apequenava a si mesmo.”
[Jacob Burckhardt (1818-1897) – Liberalismo e democracia]


“Em 1813, Arndt viaja na esteira do exército de Napoleão em retirada da Rússia, passando por Vilna, no trajeto para a Alemanha.
“Ai ai! Durante nossa lenta jornada pelos desolados ermos cobertos de neve tivemos tempo para refletir sobre todas as atrocidades provocadas por essa única campanha militar. O que vimos? Ah, se um altivo conquistador pudesse chorar como faz chorar as mães de centenas de milhares! No segundo, terceiro e quarto dias de nossa viagem, encontrávamos o tempo todo grupos isolados de prisioneiros que eram trazidos de volta rumo ao Oriente. Que espetáculo! Infelizes comedores de carne de cavalo maltrapilhos, enregelados, azulados, quase nem se pareciam mais com seres humanos. Houve os que morreram diante de nossos olhos em povoados e estalagens. Havia doentes empilhados em trenós; assim que um deles morria, era atirado para o lado no meio da neve. Nas margens das estradas jaziam os cadáveres como qualquer outra carniça, descobertos e sem sepultura; nenhum olho humano pranteara sua última aflição. Nós os víamos em parte com os membros sangrando; alguns que haviam sido abatidos também foram apoiados em árvores e usados como pavorosos sinais para indicar o caminho. Eles e os cavalos caídos apontavam o caminho até Vilna; por menos conhecedor do caminho que alguém fosse, dificilmente teria conseguido se perder. Nossos cavalos resfolegavam e corcoveavam com frequência quando tinham de passar pelo meio ou até por cima daquilo.
Já na cidade, ao ir para casa, encontrei um jovem de fino trato, a quem dirigi a palavra e perguntei algo. Ele era um brabantês e cirurgião-chefe de um hospital militar de prisioneiros franceses que haviam sido aquartelados num instituto eclesiástico. Fui com ele até os átrios da miséria, vi o pátio do mosteiro cheio de cadáveres deitados em toda a volta e recuei. Ele contou que, de 2 mil internados, ele contava diariamente cinquenta a oitenta mortos. Isso significa que logo ele terá menos trabalho. Enquanto me aproximava do portão da cidade passaram por mim cinquenta, sessenta trenós, todos cheios de cadáveres que eram retirados dos hospitais e das praças públicas. Eram transportados como se transporta madeira velha de cercados, e estavam duros da neve e secos como madeira de cercado, e serão comida ruim para vermes e peixes (pois muitos eram jogados em orifícios cavados no gelo que cobre o rio). O mais terrível para mim era isto: observar na pele de muitos corpos as marcas da passagem dos insetos, assim como se vê nos prados em que as formigas têm seus ninhos os trilhos deixados pela sua diligente atividade. Era uma visão deplorável: corpos humanos que um dia foram saudados com amor e alegria em seu nascimento, que depois foram nutridos e educados com amor para serem, por fim, na flor da sua vida, arrancados de seus pais e amigos por um conquistador selvagem, dessa maneira animalesca, sem qualquer disciplina, para serem arrastados para longe com as cabeças batendo na terra e as pernas estendidas para o céu, sem nada encobrindo aquilo que a humanidade e o pudor costumam cobrir.
Nessa noite, ainda presenciei na cidade uma monstruosidade sem igual. Eu havia saído para observar o tumulto provocado pela chegada e passagem da milícia russa e também os colonos e judeus poloneses, e eis que fui atraído por uma cantoria que chegou aos meus ouvidos e, sem me dar conta, alcancei as imediações do portão de Minsk, em cima do qual estava sendo celebrado um ofício divino solene. Prestei atenção a ele por alguns minutos e, no caminho de volta, não muito longe do portão, passei por um portal e cheguei ao pátio de uma igreja. Num primeiro momento, avistei só a igreja, em seguida as janelas superiores, ou melhor, as aberturas sem janelas de um edifício que circundava o pátio, parecido com um mosteiro ou um internato. Ao chegar mais perto, o que vejo? Pilhas de cadáveres, em alguns pontos tão altas que chegavam às janelas do segundo andar; eram com certeza mil cadáveres, todo um hospital extinto; em todo aquele enorme edifício nenhuma janela, nenhuma pessoa – só um cachorro farejando uma porta. Por sorte, a neve congelada inibia o fedor da decomposição que, em outra circunstância, teria impedido qualquer aproximação a esses lugares desolados. Batalhas sangrentas podem ter produzido pilhas semelhantes de cadáveres também na França e na Alemanha, mas para expô-los tão monstruosamente ao olho humano era necessário o concurso do modo polonês de operar e de um ano como o de 1812. Porém, como posso ficar admirado de que essas pilhas de cadáveres tenham sido amontoadas aqui? Nosso trenó não estava estacionado ao abrigo de um galpão da hospedaria Müller, na Deutsche Strasse, em cima de um francês que havia sido esmagado com sua montaria dentro do esterco e da palha? Tão grande foi o infortúnio desse tempo, tão despreocupada e desumana a sujeira.” [af]
Ernst Moritz Arndt (1769-1860) – Erinnerungen aus dem äußeren Leben [Memórias da vida exterior]


“Wolfgang Menzel (1798-1873), o reacionário “devorador de franceses” e denunciante dos adeptos do movimento da Junges Deutschland [Jovem Alemanha], divulga, em suas Denkwürdigkeiten [Memorabilia], a seguinte anedota, engraçada e espirituosa, ocorrida no ano da revolução.
Durante a revolução, um comerciante rico de Stuttgart encontrava-se constantemente tomado por um medo intenso. No meio de uma noite insone, no verão de 1849, ele olhou pela janela e viu o brilho claro da lua; percebeu que toda a cidade estava mergulhada no mais profundo silêncio. Diante disso, seu medo atingiu o paroxismo. Ele se vestiu, deixou a casa e tocou vigorosamente a campainha da casa de Duvernoy, que naquela época era ministro do Interior. Assustado, este mandou abrir a porta, recebeu o comerciante e lhe perguntou estupefato o que desejava dele no meio da noite. Então o comerciante, na maior agitação, disse-lhe que estava ali para adverti-lo de que na cidade reinava um silêncio muito suspeito [as].”
[as] Wolfgang Menzel, Denkwürdigkeiten (org. Konrad Menzel, Bielefeld/Leipzig, 1877), p. 423. (N. E. A.)


“Tudo [...] agora é ultra, tudo transcende incessantemente, tanto no pensamento como na ação. Ninguém mais conhece a si mesmo, ninguém compreende o elemento no qual está suspenso e age, ninguém conhece o material que está processando. Não se pode falar de pura simploriedade, pois coisas simplórias há bastantes. As pessoas jovens são instigadas muito cedo e então arrastadas pelo redemoinho da época. O que o mundo admira e o que todo mundo busca é riqueza e celeridade. Ferrovias, correios expressos, navios a vapor e todas as possíveis facilidades da comunicação é tudo o que o mundo culto almeja para formar-se além da conta e, desse modo, perseverar na mediocridade. E esse é justamente o resultado da generalidade: que uma cultura mediana se torne comum a todos; é isso que buscam as sociedades bíblicas, o método de ensino de Lancaster e sabe-se lá o que mais. Na verdade, este é um século para as cabeças capazes, para pessoas práticas de rápida apreensão, para os que, dotados de uma certa desenvoltura, sentem-se superiores à massa, mesmo que não tenham talento para chegar ao ápice. Preservemos tanto quanto possível a mentalidade que alcançamos; nós seremos, talvez junto a alguns poucos, os últimos de uma época que não retornará tão cedo.”
[Johann Wolfgang von] Goethe – Briefwechsel zwischen Goethe und Zelter in den Jahren 1796 bis 1832 [Correspondência entre Goethe e Zelter entre os anos de 1796 e 1832], Berlim, 1834, p. 43-4.


“Encapsuladas e inaparentes como uma semente são as experiências verdadeiramente produtivas na vida do ser humano. Tudo que é sumamente fecundo está encerrado na casca dura da incomunicabilidade. Nada separa tão claramente a produtividade autêntica da falta de produtividade e, sobretudo, da falsa produtividade quanto a pergunta: o homem vivenciou no tempo certo – na década entre 15 e 25 anos de idade – aquilo que o faz ficar de boca fechada, aquilo que o torna silente, ciente e reflexivo, aquilo que para ele se tornou a experiência que sempre professará, que nunca trairá e que jamais contará para ninguém?”


“Não é a cabeça que é preciso quebrar para apreender a verdade, é o coração.” (São Martinho)

Nenhum comentário: